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INSOLVÊNCIA
DIREITO DE RETENÇÃO
GRADUAÇÃO DE CRÉDITOS
Sumário
I - Tendo sido reclamado um crédito garantido por direito de retenção reconhecido por sentença, e tendo sido assim reconhecido pelo AI na lista de créditos reconhecidos, recaía sobre a credora detentora de um crédito hipotecário o ónus de impugnar a lista por indevida qualificação daquele crédito, nos termos do art. 130º do CIRE, sob pena de não o fazendo, atento o efeito cominatório previsto no nº 3 do referido preceito legal, aquela garantia se ter por reconhecida, com a consequente graduação dos créditos em conformidade com tal reconhecimento. II - Na sentença de graduação de créditos, estes são graduados em função do que conste daquela lista, limitando-se o AI a apresentar uma proposta de graduação mas sendo da exclusiva competência do juiz essa mesma graduação, a qual deve respeitar a natureza do crédito reconhecido na lista que não foi objecto de impugnação. III - O art. 130º do CIRE não contempla como fundamento de impugnação a errada graduação de créditos proposta pelo AI. IV. A alteração introduzida pelo DL nº 48/2024 ao art. 759º nº 1 e 2 do CC, nos termos do art. 3º, só é aplicável aos direitos de retenção que sejam constituídos após a sua entrada em vigor- 25.08.2024. V - Tendo-se constituído o direito de retenção antes da entrada em vigor daquela alteração legal, na graduação de créditos o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, em cumprimento do regime legal consagrado no art. 759º nº 1 e 2 do CC.
Texto Integral
Processo n.º 3235/23.4T8AVR-A.P1---Apelação Origem: Juízo de Comércio de Aveiro- Juiz 1
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Sumário (elaborado pela Relatora):
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I. RELATÓRIO 1. Por sentença proferida em 4.10.2023, já transitada em julgado, foi decretada a Insolvência de AA, tendo sido fixado em 20 dias o prazo para a reclamação de créditos.
2. Por requerimento de 24.11.2023, o Administrador de insolvência veio requerer a abertura do apenso de reclamação de créditos, juntando em anexo lista de créditos reconhecidos e não reconhecidos, nos termos do art. 129º do CIRE constando como reconhecidos nessa lista, entre vários créditos de natureza comum, créditos garantidos, entre os quais o crédito reclamado pelo credor BB- no valor total de €144.894,25 estando indicado beneficiar o mesmo do privilégio de retenção por sentença proferida no processo nº 412/22.9T8BAO do TJ de Comércio de Porto Este-, o crédito reclamado pela Banco 1..., SA, no valor de €45.111,00 garantido por hipoteca registada em 2005, e os créditos reclamados pelo IGFSS, IP no valor de €549.876,35 garantidos por hipoteca registada em 2020.
3. Nessa mesma ocasião o Administrador de Insolvência apresentou ainda, a seguinte proposta de graduação de créditos:
“Relativamente ao montante apurado resultante da liquidação da meação do imóvel referente à fração com a letra “K”, correspondente ao segundo andar direito, destinado a habitação, tipo T-dois, no bloco ..., entrada dois, com lugar de garagem e uns arrumos situados na cave como número dezoito, do prédio urbano sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho de Baião, descrito na CRP de Baião sob o nº...-C:
-Em primeiro lugar, sejam pagas as despesas e dívidas da MI;
-Em segundo lugar, sejam pagos os créditos garantidos da Banco 1..., S.A, sobre os quais recai a hipoteca do bem registada pela inscrição AP ... de 2005/01/07;
-Em terceiro lugar, sejam pagos os créditos garantidos do Instituto de Gestão Financeira, sobre os quais recaem duas hipotecas do bem, uma registada pela inscrição AP ... de 2018/10/04 e uma outra registada pela inscrição AP ... de 2020/01/06;
-Em quarto lugar, sejam pagos, os créditos garantidos de BB e CC;
-Em quinto lugar, sejam pagos os créditos comuns na respetiva proporção.”
3. Foi proferido despacho em 9.07.2024 a determinar que o AI apresentasse proposta de graduação de créditos, tendo o AI apresentado requerimento em 11.07.2024 a dar conta que já apresentara proposta de graduação de créditos no requerimento por si apresentado em 24.11.2023. 4. Por requerimento de 24.07.2024, Ref. Citius 16474512, o credor BB veio requerer que o seu crédito fosse graduado em primeiro lugar por lhe ter sido reconhecido, por sentença transitada em julgado, o direito de retenção sobre o imóvel apreendido à insolvente.
5. Cumprido o contraditório a Banco 1... opôs-se, terminando por requerer que fosse “graduado o crédito hipotecário do Banco Reclamante, Banco 1..., S.A., como proposto pelo Sr. Administrador de Insolvência (requerimento ref.ª 16418788 datada de 11/07/2024), e por esse motivo, prevalecente em relação aos demais créditos reclamados.”
6. Foi proferida sentença em 25.10.2024, Ref. Citius 135409300, com o seguinte teor: “I. Por sentença proferida nos autos principais foi declarada a insolvência de AA e fixado em 20 dias o prazo para reclamação de créditos. Em cumprimento do disposto no art. 129.º do CIRE, o ADMINISTRADOR DA INSOLVÊNCIA juntou aos autos lista dos créditos reconhecidos, que não foi objeto de impugnação, e, bem assim, a proposta de graduação dos créditos. O tribunal é competente, o processo o próprio e nada obsta à homologação da lista e da proposta de graduação apresentadas pelo Administrador da Insolvência.
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II. Nos termos do n.º 1 do art. 129.º do CIRE, nos 15 dias subsequentes ao termo do prazo das reclamações, o administrador da insolvência apresenta na secretaria uma lista de todos os credores por si reconhecidos e uma lista dos não reconhecidos, ambas por ordem alfabética, relativamente não só aos que tenham deduzido reclamação como àqueles cujos direitos constem dos elementos da contabilidade do devedor ou sejam por outra forma do seu conhecimento, bem como uma proposta de graduação dos credores reconhecidos, que tenha por referência a previsível composição da massa insolvente e respeite o disposto no n.º 2 do artigo 140.º e na alínea d) do n.º 1 do artigo 241.º. Dispõe o n.º 3 do art. 130.º do CIRE que, se não houver impugnações, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação dos créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste dessa lista, podendo o juiz, caso concorde com a proposta de graduação elaborada pelo administrador da insolvência, homologar a mencionada proposta.
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III. Em conformidade com o exposto, homologo, por sentença, a lista de credores e a proposta de graduação apresentadas a 24.11.2023 e a 11.07.2024, respetivamente, e, consequentemente, julgo verificados os créditos nela descritos, a pagar nos termos previstos na referida proposta, rateadamente, pelo produto da liquidação e/ou pelos rendimentos cedidos, depois de satisfeitas as custas e demais encargos do processo. Custas a atender no processo principal nos termos do art. 303.º do CIRE. Valor da ação - o correspondente ao montante global dos créditos reconhecidos, a considerar, para efeitos de tributação, no processo principal, nos termos do art. 303.º do CIRE [cfr. art. 296.º, n.º 1, 306.º, n.º 1 e 2 do Código de Processo Civil e art. 17.º, n.º 1, do CIRE]. Notifique e registe.”
7. O Administrador de Insolvência apresentou nos autos requerimento em 7.11.2024, no qual requereu o seguinte:
“Vem, respeitosamente, e na sequência da notificação da sentença acima identificada, indicar que a 24.07.2024, foi junto nos presentes autos um requerimento, identificado sob a referência 16474512, pelos credores BB e CC na qual, além de outros pedidos, solicitavam uma graduação diferente da proposta por nós.
Tendo em conta que não temos conhecimento que a presente questão tenha sido objeto de apreciação, solicitamos pronúncia sobre a mesma.”
8. Foi proferido despacho em 12.11.2024, Ref Citius 135643631, com o seguinte teor: “Requerimento datado de 07.11.2024: Dispõe o art. 130.º do CIRE o seguinte: «1 - Nos 10 dias seguintes ao termo do prazo fixado no n.º 1 do artigo anterior, pode qualquer interessado impugnar a lista de credores reconhecidos através de requerimento dirigido ao juiz, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorreção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos. 2 - Relativamente aos credores avisados por carta registada, o prazo de 10 dias conta-se a partir do 3.º dia útil posterior à data da respetiva expedição. 3 - Se não houver impugnações, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação dos créditos, em que, salvo o caso de erro manifesto, se homologa a lista de credores reconhecidos elaborada pelo administrador da insolvência e se graduam os créditos em atenção ao que conste dessa lista, podendo o juiz, caso concorde com a proposta de graduação elaborada pelo administrador da insolvência, homologar a mencionada proposta.» Tal como decorre da sentença que antecede, não foi apresentada pelos credores, em tempo, qualquer impugnação relativamente à lista e/ou à graduação proposta pelo Administrador da Insolvência apresentadas a 24.11.2023. A discussão [tardia] trazida aos autos apenas a 24.07.2024 surgiu a propósito da venda e das menções que dela os titulares do direito de retenção pretendiam fazer constar. Não obstante, a proposta apresentada pelo Administrador da Insolvência mostra-se conforme com a lei. Com efeito, o Decreto-Lei n.º 48/2024, de 25 de julho, alterou o regime jurídico do direito de retenção sobre imóveis, limitando as situações em que este prevalece sobre a hipoteca anteriormente registada. Tal alteração teve em vista reforçar a posição do credor hipotecário e acelerar os processos de insolvência e resgate de empresas, no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência. Tal novo regime veio, assim, estabelecer que o titular do direito de retenção sobre um imóvel só pode ser pago com preferência aos demais credores do devedor, incluindo o credor hipotecário, se o seu crédito assegurar o reembolso de despesas feitas para conservar ou aumentar o valor do imóvel. Apenas neste caso o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca [mesmo que esta tenha sido registada anteriormente] – o que não é o caso presente, pois o direito de retenção respeita ao incumprimento pelo devedor do contrato promessa celebrado com o credor. Ao acabado de referir acresce que o Decreto-Lei n.º 48/2024 entrou em vigor 30 dias após a sua publicação, ou seja, a 25 de agosto de 2024, e aplica-se aos direitos de retenção constituídos após essa data. Com fundamento em tudo o exposto, nada há a acrescentar à sentença proferida.” 9. O credor BB apresentou requerimento em 14.11.2024 com o seguinte teor:
“(…) após consulta do citius, no dia de hoje, tomou conhecimento do despacho proferido pela M.ma Juiz a quo datado de 12-11-2024, na qual diz “Com efeito, o Decreto-Lei n.º 48/2024, de 25 de julho, alterou o regime jurídico do direito de retenção sobre imóveis, limitando as situações em que este prevalece sobre a hipoteca anteriormente registada. Tal alteração teve em vista reforçar a posição do credor hipotecário e acelerar os processos de insolvência e resgate de empresas, no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência. Tal novo regime veio, assim, estabelecer que o titular do direito de retenção sobre um imóvel só pode ser pago com preferência aos demais credores do devedor, incluindo o credor hipotecário, se o seu crédito assegurar o reembolso de despesas feitas para conservar ou aumentar o valor do imóvel. Apenas neste caso o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca [mesmo que esta tenha sido registada anteriormente] – o que não é o caso presente, pois o direito de retenção respeita ao incumprimento pelo devedor do contrato promessa celebrado com o credor. Ao acabado de referir acresce que o Decreto-Lei n.º 48/2024 entrou em vigor 30 dias após a sua publicação, ou seja, a 25 de agosto de 2024, e aplica-se aos direitos de retenção constituídos após essa data. Com fundamento em tudo o exposto, nada há a acrescentar à sentença proferida”, vimos dizer que, com todo o respeito que lhe é devido, entendemos que não está a ser corretamente aplicado o artigo 3º do mencionado DL, uma vez que o direito de retenção do ora Reclamante foi constituído em 16-10-2023, data muito anterior á entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 48/2024, de 25 de julho.
Face o exposto deverá ser clarificada a sentença.” 10. Foi proferido despacho em 15.11.2024, Ref Citius 135774189, com o seguinte teor: “Requerimento datado de 14.11.2024: Tal como decorre dos autos, não foi apresentada pelos credores, em tempo, qualquer impugnação relativamente à lista e/ou à graduação proposta pelo Administrador da Insolvência apresentadas a 24.11.2023. Assim, por se concordar com a proposta de graduação elaborada pelo Administrador da Insolvência, foi a mesma homologada, em conformidade com o disposto no art. 130.º, n.º 3, do CIRE. Em face do exposto nada há a clarificar, pelo que vai indeferido o requerido. Notifique.” 11. Inconformado com a referida decisão, o credor reclamante BB interpôs recurso de apelação, formulando as seguintes CONCLUSÕES 1. Por apenso ao processo da insolvência de AA, declarada por sentença proferida o Sr. Administrador da Insolvência apresentou nos autos lista de créditos a que alude o art. 129º, nº 2 do CIRE, pela qual, entre outros, reconheceu o seguinte crédito: Crédito garantido com privilegio de retenção da fração “K” correspondente ao segundo andar direito, destinado a habitação, tipo T-dois, no bloco ..., entrada dois, com lugar de garagem e uns arrumos situados na cave ambos identificados com o número dezoito, do prédio urbano sito no Lugar ..., freguesia ..., concelho de Baião, descrito na Conservatória do Registo Predial de Baião sob o n.º ...-K e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...... e com o alvará de licença de utilização n.º ... emitido pela Câmara Municipal ... em 28/05/2004, no valor de € 144.894,25. 2. Bem como apresentou o Administrador de Insolvência proposta de graduação de créditos, na qual propôs que o crédito do Recorrente fosse pago em quarto lugar, em detrimento do crédito garantido por hipoteca. 3. Nos termos do artigo 130º n.º 3 do CIRE o Tribunal a quo homologou por sentença a proposta de graduação apresentadas em 24-11-2023 e 11-07-2024. 4. Sendo que o Recorrente em 24-07-2024 reclamou da proposta de graduação de créditos apresentada. 5. O crédito do Recorrente, resulta da sentença, proferida nos autos que correram termos sob o n.º 412/22.9T8BAO no Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este, Juízo Central Cível de Penafiel – Juiz 1, transitada em julgado em 16-10-2023, na qual se encontra constituído o direito de retenção do ora Recorrente, com preferência de pagamento resultante do disposto nos nºs 1 e 2 do artigo 759º do CC sobre o único imóvel que integra a massa insolvente. 6. O Tribunal a quo ao graduar o crédito do Recorrente em quarto lugar incorreu em grave erro de aplicação do direito que deverá determinar in fine a revogação proferida pelo Tribunal de Primeira Instância. 7. Impõe-se, assim, dar cumprimento ao artigo 759º n.º 1 e 2 do CC, devendo ser graduado o crédito do Recorrente, que por força da sentença proferida goza do direito de retenção e preferência no pagamento em primeiro lugar. 8. O direito de retenção do ora Reclamante foi constituído em 16-10-2023, data anterior á entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 48/2024, de 25 de julho, pelo que deve ser aplicado o artigo nºs 1 e 2 do artigo 759º do CC. 9. O Recorrente reclamou da proposta apresentada 24-07-2024, que o Tribunal a quo considera tardia, contudo é ao Juiz que, mediante a aplicação e cumprimento da lei, compete a verificação e graduação de créditos. 10.O que in casu não se verifica, pois a sentença proferida viola o disposto no artigo 759º do CC e a sentença proferida e transitada em julgado no processo n.º 412/22.9T8BAO no Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este, Juízo Central Cível de Penafiel – Juiz 1. 11. Pelo que, deverá a douta sentença ser revogada e substituída por outra, mediante a qual o crédito do ora Recorrente seja graduado em primeiro lugar, cumprindo-se assim a lei. 9. Foram apresentadas contra-alegações pela credora Banco 1..., pugnando pela manutenção do julgado.
10. Foram cumpridos os vistos legais.
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II. DELIMITAÇÃO do OBJECTO do RECURSO:
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635º, nº 3, e 639º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
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A questão a decidir, em função das conclusões de recurso, é a seguinte: - Se o crédito do Apelante deve ser graduado em primeiro lugar.
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III. FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO
Para a decisão a proferir relevam os factos inerentes à tramitação processual e respectivas peças processuais constantes do relatório acima elaborado, tendo-se procedido à consulta integral dos autos principais e respectivos apensos.
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IV. FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA.
Nos termos do disposto no art. 128º do CIRE, dentro do prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência, devem os credores da insolvência reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento, acompanhado de todos os documentos probatórios de que disponham, no qual indiquem, designadamente a sua proveniência e a sua natureza (comum, subordinada, privilegiada ou garantida), requerimento esse que é endereçado ao administrador da insolvência.
A verificação tem por objecto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento.
Estes créditos sobre a insolvência (art. 47º do CIRE) serão pagos nos termos dos arts. 173º ss do CIRE, e o pagamento apenas contemplará os que estiverem verificados por sentença transitada em julgado e nos moldes aí determinados.
A lista dos credores reconhecidos (e a lista dos credores não reconhecidos quando a haja) a ser apresentada pelo Administrador de Insolvência, conforme exige o art. 129º nº 1 e 2 do CIRE, assume extrema relevância se atentarmos no efeito cominatório previsto para o caso de tal lista não ser objecto de impugnação, porquanto, é de imediato proferida sentença de verificação e graduação dos créditos, homologatória da lista de credores reconhecidos elaborada pelo Administrador da Insolvência, sendo graduados os créditos em função do que conste dessa lista, sendo que a homologação só não ocorrerá nos casos muito limitados de erro manifesto- art. 130º nº 3 do CIRE.
Por conseguinte, na ausência de impugnação, o juiz pressupondo não ter havido discrepâncias entre os termos da reclamação e os termos em que o crédito foi reconhecido pelo Administrador da insolvência, por regra limitar-se-á a homologar a lista de credores elaborada pelo Administrador da insolvência.
O art. 130º nº 1 do CIRE permite a qualquer interessado, nos 10 dias seguintes ao termo do prazo fixado no nº 1 do art. 129º, impugnar a lista de credores reconhecidos através de requerimento dirigido ao juiz, com fundamento na indevida inclusão ou exclusão de créditos, ou na incorreção do montante ou da qualificação dos créditos reconhecidos.
Como salienta Ana Prata, Jorge Morais Carvalho e Rui Simões, “o conceito de interessado inclui o devedor insolvente e os credores, relativamente aos seus créditos ou aos créditos de terceiros. Pode ser, em concreto, mais prejudicial para um credor a exclusão de um dos seus créditos, se tiver valor reduzido, do que a inclusão incorreta, em geral ou como garantido, de um crédito de outro credor, que assim poderá ser pago, ou ser pago com preferência, em relação aos seus créditos.”[1]
No caso dos presentes autos não houve qualquer impugnação da lista de credores reconhecidos pelo AI, não tendo sido questionado pela devedora insolvente ou por qualquer credor nem a inclusão ou exclusão de créditos, nem os valores, nem sequer a qualificação desses créditos-natureza comum, subordinada, privilegiada ou garantida-, pelo que o crédito reclamado pelo aqui Apelante foi julgado verificado e reconhecido no valor total de €144.894,25 com a natureza de garantido, tendo o AI mencionado nessa lista de forma expressa que beneficiava do direito de retençãoconferido por sentença proferida no processo nº 412/22.9T8BAO do TJ de Comércio de Porto Este, o que veio a ser confirmado pela análise da certidão judicial junta aos autos cuja junção foi ordenada pelo próprio tribunal a quo. Dessa lista foi a Apelada Banco 1... devidamente notificada e nenhuma impugnação apresentou, designadamente quanto à natureza do crédito reconhecido ao aqui Apelante, pelo que as questões que posteriormente veio levantar e que reitera na resposta ao presente recurso, destinadas a questionar a natureza do crédito do aqui Apelante - a pôr em causa a existência do direito de retenção e sua implicação em termos de graduação- não podem aqui ser consideradas porque deviam ter sido suscitadas no prazo legal concedido para a impugnação da lista e pela forma processual adequada.
Contrariamente ao sustentado pela aqui Apelada, e que de forma velada subjaz ao entendimento do tribunal a quo, era à Apelada que competia impugnar a lista de créditos reconhecidos apresentada pelo AI, com fundamento na incorreção da qualificação do crédito reconhecido ao aqui Apelante, aduzindo as razões que agora pretende introduzir em sede de recurso quanto à pretensão de exclusão ou restrição do direito de retenção, garantia essa que foi reconhecida ao crédito do Apelante pelo AI.
É indiscutível que naquela ação em que ficou reconhecido o direito de retenção do aqui Apelante, a aqui Apelada não foi parte, e que esta poderia bem ter questionado nestes autos o direito de retenção de que o aqui Apelante se arrogou quando reclamou o seu crédito, dado não ter ficado abrangida pela força do caso julgado[2], e caso o tivesse questionado os autos teriam prosseguido para o incidente de verificação do crédito, porém, não o fez.
A falta de tempestiva impugnação do crédito reconhecido ao aqui Apelante- mormente por indevida qualificação -determinou o reconhecimento do crédito como garantido com base no direito de retenção sobre o imóvel apreendido para a massa insolvente.
Não tendo havido impugnação da lista de credores reconhecidos apresentada pelo AI- quer quanto aos credores, quer quanto aos valores reclamados, quer mesmo quanto à natureza dos créditos- o juiz podia limitar-se a homologar a lista, como o fez, por tal estar previsto expressamente no mencionado art. 130º nº 3 do CIRE.
O que não devia era ter-se limitado a homologar a graduação proposta sem cuidar sequer de se pronunciar sobre a oposição que o credor, ora Apelante, apresentara à referida graduação, discordando do lugar em que fora graduado pelo AI (4º lugar por ter sido dada prevalência aos créditos garantidos por hipoteca).
Conforme se extrai do texto do art. 130º nº3 do CIRE, na sentença a proferir os créditos são graduados em função do que conste daquela lista, não podendo ser homologada sem mais a graduação proposta pelo AI, incumbindo sempre ao juiz graduá-los atendendo à natureza dos créditos que houver sido reconhecida, sendo sempre da sua exclusiva competência essa graduação, a qual deve respeitar a natureza do crédito reconhecido na lista que não foi objecto de impugnação.
Contrariamente ao defendido pela aqui Apelada e como parece decorrer da fundamentação dos despachos subsequentes à prolação da sentença de graduação de créditos, não podia o aqui Apelante ter apresentado impugnação da lista de credores reconhecidos para ser apreciada a pretensão de ver o seu crédito graduado em primeiro lugar, desde logo porque esse não é um dos fundamentos de impugnação permitidos pelo art. 130º nº 1 do CIRE.
Tendo o Apelante reclamado um crédito alegando gozar da garantia do direito de retenção reconhecido por sentença, garantia essa reconhecida pelo AI na lista de créditos reconhecidos, era sobre a Apelada detentora de um crédito hipotecário que recaía o ónus de impugnar a garantia real invocada pelo aqui Apelante, sob pena de não o fazendo, atento o efeito cominatório previsto no art. 130º nº 3 do CIRE, aquela garantia se ter por reconhecida, com a consequente graduação dos créditos em conformidade com tal reconhecimento.
Não era ao aqui Apelante que incumbia suscitar impugnação, nem o podia fazer, já que o seu crédito havia sido reconhecido na lista apresentada pelo AI pelo valor e com a natureza tal como havia sido por si reclamado.
O art. 130º do CIRE não permite questionar em sede de impugnação a errada graduação de créditos proposta pelo AI, o que se compreende desde logo porque não passa disso mesmo, de uma mera proposta de graduação, competindo ao juiz em exclusivo graduar os créditos reconhecidos na lista apresentada pelo AI, em função da natureza que foi reconhecida a cada um dos créditos, e se algum dos credores com ela não se conformar poderá recorrer da sentença de graduação, como ocorreu no presente caso.
Apesar disso, o aqui Apelante apresentou requerimento dirigido ao juiz, antes da prolação da sentença, peticionando que o seu crédito fosse graduado em primeiro lugar, antes dos créditos hipotecários, insurgindo-se contra a graduação proposta pelo Administrador de insolvência, e sobre essa sua posição o tribunal a quo não teceu uma única consideração na sentença, limitando-se a homologar a graduação de créditos proposta pelo AI.
O próprio AI veio inclusivamente alertar o tribunal a quo para o facto de este não se ter pronunciado na sentença de verificação e graduação de créditos sobre a questão oportunamente levantada pelo credor, aqui Apelante, da prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca, e só então foi emitida pronúncia, decidindo-se que a hipoteca prefere ao direito de retenção, estando fundamentada essa prevalência única e exclusivamente na aplicação do DL nº 48/2024 de 25.07, conforme exposto no despacho de 12.11.2024 que aqui se reproduz:
“(…) a proposta apresentada pelo Administrador da Insolvência mostra-se conforme com a lei. Com efeito, o Decreto-Lei n.º 48/2024, de 25 de julho, alterou o regime jurídico do direito de retenção sobre imóveis, limitando as situações em que este prevalece sobre a hipoteca anteriormente registada. Tal alteração teve em vista reforçar a posição do credor hipotecário e acelerar os processos de insolvência e resgate de empresas, no âmbito do Plano de Recuperação e Resiliência. Tal novo regime veio, assim, estabelecer que o titular do direito de retenção sobre um imóvel só pode ser pago com preferência aos demais credores do devedor, incluindo o credor hipotecário, se o seu crédito assegurar o reembolso de despesas feitas para conservar ou aumentar o valor do imóvel. Apenas neste caso o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca [mesmo que esta tenha sido registada anteriormente] – o que não é o caso presente, pois o direito de retenção respeita ao incumprimento pelo devedor do contrato promessa celebrado com o credor. Ao acabado de referir acresce que o Decreto-Lei n.º 48/2024 entrou em vigor 30 dias após a sua publicação, ou seja, a 25 de agosto de 2024, e aplica-se aos direitos de retenção constituídos após essa data. Com fundamento em tudo o exposto, nada há a acrescentar à sentença proferida.”
É precisamente com essa fundamentação subjacente à graduação de créditos que o aqui Apelante não se conforma, e quanto a nós com inteira razão, por resultar evidente que a decisão padece de um erro manifesto de julgamento.
Face ao dissenso jurisprudencial e doutrinal sobre a graduação a ser feita entre o direito de retenção do promitente-comprador e a hipoteca[3], mormente em sede de graduação de créditos no âmbito da insolvência, impunha-se que o tribunal a quo tivesse esclarecido na sentença de verificação e graduação de créditos que proferiu qual a sua posição, ainda que fosse no mesmo sentido da proposta de graduação apresentada pelo AI.
Alertado para tal omissão o tribunal a quo acabou por afirmar que concordava com a proposta de graduação do AI, lançando mão do DL nº 48/2024, não tomando em devida consideração que não podia fundamentar a prevalência do crédito hipotecário com base no novo regime estabelecido naquele diploma legal porquanto tal diploma só é aplicável aos direitos de retenção constituídos após 25.08.2024, e o direito de retenção do aqui Apelante constituiu-se antes dessa data, mais não seja porque tal direito lhe foi reconhecido por sentença judicial transitada em julgado em 16.10.2023, assim como lhe foi reconhecida a natureza de crédito garantido por direito de retenção na lista de créditos reconhecidos pelo AI que foi apresentada em 24.11.2023, lista essa que não foi impugnada, não tendo sido questionado de forma tempestiva o direito de retenção reconhecido ao crédito do Apelante, como já anteriormente explicitamos.
Deste modo, não sendo o regime implementado pelo DL nº 48/2024 de 25.07 aplicável ao caso dos autos, coloca-se legitimamente a questão suscitada pelo Apelante quanto à graduação de créditos levada a cabo na sentença proferida e complementada por despachos de 12.11.2024 e 15.11.2024, no que ao seu crédito diz respeito, decisão essa que graduou em primeiro lugar o crédito da aqui Apelada garantido por hipoteca em detrimento do crédito do Apelante garantido por direito de retenção, contrariando o regime estabelecido na articulação dos arts. 755º nº 1 al. f) e 759º nº 1 e 2 do CC.
Cremos ser posição consolidada da esmagadora maioria da jurisprudência dos Tribunais Superiores[4], também por nós sufragada, que na graduação de créditos o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, em cumprimento do regime legal consagrado no art. 759º nº 1 e 2 do CC.
Ainda que no âmbito de uma graduação de créditos em sede de processo de insolvência aquele regime possa ter de ser temperado nos termos estabelecidos no AUJ nº 4/2014, articulado com o AUJ nº 4/2019.
Não obstante, afigura-se-nos não existirem argumentos válidos que permitam uma interpretação restritiva daquele preceito legal por forma a dele excluir o direito de retenção especialmente atribuído pelo art. 755º nº 1 al f) do CC ao beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, como a aqui Apelada defende.
Ao julgador compete aplicar a lei apesar das críticas que se lhe possam apontar, só podendo deixar de o fazer caso questione a sua constitucionalidade, hipótese que não ocorreu, sendo certo que o art. 755º nº 1 al f) do CC em articulação com o art. 759º nº 2 do CC foi já objecto de apreciação pelo Tribunal Constitucional que se pronunciou pela não inconstitucionalidade daquele regime do qual resulta a prevalência do direito de retenção do promitente-adquirente sobre a hipoteca, mesmo que esta tenha sido anteriormente constituída e registada, não violando os princípios constitucionais da proporcionalidade, da confiança e da segurança legítima, como se extrai dos Acórdãos nº 594/2003, 22/2004, 356/2004, 466/2004, 698/05 e 73/2011.
Como refere Ana Taveira da Fonseca, em anotação ao art. 755º do CC, “muitas têm sido as tentativas de interpretar corretivamente a disposição em análise(…)nada autoriza, de acordo com o direito constituído, a que se proceda a uma interpretação restritiva do art. 755º, nº 1, al.f) pois este foi pensado para proteger qualquer promitente-adquirente titular de um crédito resultante do não cumprimento imputável à contraparte de um contrato-promessa.”[5]
Na discussão jurisprudencial e doutrinal de que nos dão nota, de forma exaustiva, aqueles dois acórdãos uniformizadores de jurisprudência, resultou do AUJ nº 4/2014 que “no âmbito da graduação de créditos em insolvência o consumidor promitente-comprador em contrato, ainda que com eficácia meramente obrigacional com traditio, devidamente sinalizado, que não obteve o cumprimento do negócio por parte do administrador da insolvência, goza do direito de retenção nos termos do estatuído no artigo 755.º, n.º 1, alínea f) do Código Civil”.
Conforme se fez menção na fundamentação do AUJ nº 4/2019 “antes do Acórdão n.º 4/2014, a questão de saber se o direito de retenção, previsto no art.755.º, n.º 1, al. f), do Código Civil, devia ter aplicação no âmbito do processo de insolvência suscitava diferentes opiniões, encontrando-se na doutrina quem admitisse essa solução em termos amplos(4), quem a admitisse apenas na hipótese de o promitente-comprador ser um consumidor(5) e quem excluísse tal aplicação(6). Na jurisprudência, as opiniões também não eram unânimes e, por isso, veio a verificar-se a necessidade de uniformização, que conduziu ao Acórdão n.º 4/2014. O teor do segmento uniformizador deste acórdão, reconhecendo o direito de retenção apenas ao promitente-comprador que tivesse a qualidade de consumidor, não granjeou a unanimidade do Pleno das Secções Cíveis. Com a publicação do Acórdão n.º 4/2014, os diferentes entendimentos quanto ao alcance da solução não ficaram pacificados. Parte da doutrina continuou a defender uma solução mais ampla, quanto ao âmbito de aplicação do direito de retenção do promitente-comprador(7). A jurisprudência, do Supremo Tribunal de Justiça, posterior àquele acórdão, pronunciou-se no sentido de um conceito restrito de consumidor, do qual ficavam excluídos aqueles que destinassem o imóvel a um fim profissional, vindo, depois, a admitir também o conceito de consumidor num sentido amplo, no qual cabe a hipótese de o bem prometido-comprar, e objeto de traditio, ser destinado ao exercício de uma atividade profissional. A jurisprudência dos Tribunais da Relação interpretou o conceito de consumidor, previsto no Acórdão n.º 4/2014, maioritariamente, num sentido restrito, ou seja, dele excluindo o uso do imóvel, objeto de traditio, para fins profissionais(8). 3 - Analisando, de forma mais detalhada, a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, posterior ao Acórdão n.º 4/2014, que se pronuncia sobre o âmbito de aplicação deste acórdão, identificam-se decisões que interpretaram o conceito de consumidor em sentido restrito, decisões que o interpretam em sentido amplo e decisões que não são elencáveis nessa dualidade interpretativa. (…) São também comportáveis nesta categoria de decisões que não relevam naquele debate interpretativo, aquelas onde se concluiu que o incumprimento definitivo do contrato-promessa já se tinha verificado antes da declaração de insolvência, pelo que o promitente-comprador tinha adquirido direito de retenção nos termos do regime geral do incumprimento do contrato-promessa, sem necessidade de questionar a sua qualidade de consumidor. Neste sentido, por exemplo, acórdão de 11.09.2018, no proc. n.º 25261/11.6T2SNT-D.L1.S2 (relatora Graça Amaral)(10) e acórdão de 27.04.2017, no proc. n.º 44/14.5T8VIS-B.C1.S1 (Relator Pinto de Almeida)(11). (…) 4 - Dado que o art.106.º do Código da Insolvência e Recuperação de Empresas (CIRE) não se refere, de modo expresso, à hipótese de o administrador da insolvência não cumprir o contrato-promessa, dotado de sinal, mas sem eficácia real, no qual exista traditio do objeto prometido vender, o Acórdão n.º 4/2014 admitiu a aplicação de regras do regime civilístico previsto para tal tipo de situação. Deste modo, estendeu-se a aplicação das soluções indemnizatórias, previstas no art.442.º, n.º 2, do CC, ao incumprimento do contrato promessa resultante de decisão do administrador da insolvência, bem como a aplicação do direito de retenção da coisa objeto do contrato-prometido, previsto no art.755.º, n.º 1, alínea f), do CC, com a consequente hierarquização de créditos resultante do art.759.º, n.º 2, do CC, que estabelece a prevalência deste direito sobre a hipoteca. Tal solução civilística não foi, porém, convocada para o domínio da insolvência com o âmbito de aplicação que tem nas relações contratuais em geral, mas sim com um âmbito limitado à hipótese de o promitente-comprador, que obteve a traditio do bem prometido-comprar, ter a qualidade de consumidor. Esta qualidade do promitente-comprador assumiu, assim, a função de instrumento delimitador, ou de recorte normativo, da aplicabilidade do regime civilístico, e em particular do art.755.º, n.º 1, alínea f), do CC no âmbito de um processo de insolvência. Saber se o âmbito de convocação desta norma devia ter sido esse ou se tal restrição aplicativa não devia ter existido é questão que está fora do âmbito presente acórdão. Em análise está apenas o problema, suscitado pela divergência jurisprudencial que deu causa a este acórdão, de saber qual a noção de consumidor subjacente à jurisprudência do Acórdão n.º 4/2014, porquanto da noção que se adote decorrerá uma aplicação mais ampla ou mais restrita da solução prevista no art.755.º, n.º 1, alínea f), com as consequências previstas no art.759.º, n.º 2, do CC. A jurisprudência que acabou por conduzir ao Acórdão n.º 4/2014, percecionando a ausência de uma clara tutela específica do promitente-comprador em contrato sem eficácia real, que entrega sinal (ou antecipa parte ou a totalidade do preço da compra e venda) e obtém a traditio do imóvel prometido vender, quando o administrador da insolvência opta por não celebrar o contrato-prometido, foi estendendo a tutela civilística a tal situação por uma razão de justiça material, baseada na (pelo menos, parcial) equiparação valorativa das hipóteses. A especificidade e a complexidade do processo de insolvência, no qual não relevam apenas os interesses do promitente-vendedor (que vem a tornar-se insolvente) e do promitente-comprador, mas também os interesses de todos os credores do insolvente chamados ao processo, tornam legítima a dúvida de saber se a melhor realização da justiça material é a que convoca a aplicação da tutela civilística em termos mais amplos ou mais restritos. (…)não é possível, neste momento, regressar à discussão subjacente ao Acórdão n.º 4/2014, de saber se apenas o promitente-comprador consumidor deve beneficiar do direito de retenção. Tal como não é possível introduzir qualquer discussão sobre diferentes critérios aplicativos, como, por exemplo, o de equacionar a aplicação daquele regime apenas ao promitente-comprador que destine o imóvel a habitação e onde, efetivamente, tenha passado a habitar (o que encontraria algum suporte na tutela constitucional do direito à habitação). A solução ideal passaria pela existência de uma intervenção legislativa que definisse, com clareza literal, os direitos daquele promitente-comprador.”
E foi isso que efectivamente ocorreu, tendo o legislador alterado o Código Civil, motivado por razões que se prendem com o Plano de Recuperação e Resiliência, e perante a necessidade de “entrada em vigor de um quadro jurídico revisto para a insolvência e resgate de empresas com vista a acelerar estes processos e adaptá-los ao paradigma ‘digital por definição’, incluindo a revisão do regime de preferência do direito de retenção no confronto com a hipoteca, procedeu ao reforço da hipoteca perante o direito de retenção, que, até à data, prevalecia de forma absoluta sobre a primeira”, como fez expressa menção no recente DL nº 48/2024 de 25.07.
Como se pode ler desse diploma legal, “a posição do credor hipotecário é reforçada através da limitação da prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca anteriormente registada aos casos em que a não consagração desta solução conduz ao locupletamento do credor hipotecário à custa do titular do direito de retenção. Estas situações ocorrem sempre que o titular do direito de retenção realizou despesas com o imóvel com vista à sua conservação ou aumento do seu valor. Consequentemente, altera-se o regime legal no sentido de condicionar a prevalência do direito de retenção sobre a hipoteca anteriormente registada à circunstância de o crédito garantido assegurar o reembolso de despesas feitas com o imóvel que tenham contribuído para o conservar ou para aumentar o respetivo valor.”
Com a entrada em vigor do mencionado DL nº 48/2024, o artigo 759.º do Código Civil, passou a ter a seguinte redação:
1 - Recaindo o direito de retenção sobre coisa imóvel, o respetivo titular, enquanto não entregar a coisa retida, tem a faculdade de a executar, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário, e de, nos casos em que o crédito assegura o reembolso de despesas para a conservar ou aumentar o seu valor, ser pago com preferência aos demais credores do devedor.
2 - Nos casos previstos na parte final do número anterior, o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada anteriormente.
Porém esta alteração ao art. 759º nº 1 e 2 do CC, como vimos já, nos termos do art. 3º do DL nº 48/2024, só é aplicável aos direitos de retenção que sejam constituídos após a sua entrada em vigor- 25.08.2024- não o sendo no que respeita ao crédito do aqui Apelante que assume a natureza de crédito garantido por direito de retenção que foi assim reconhecido, inclusivamente pela aqui Apelada e pelo AI, antes da entrada em vigor do novo regime legal.
Após estes breves considerandos sobre o regime abstratamente aplicável ao caso dos autos, convém salientar que resulta dos presentes autos que no caso sob apreciação o incumprimento definitivo do contrato-promessa não resultou de opção do AI, uma vez que já se tinha verificado antes da declaração de insolvência, pelo que o promitente-comprador- aqui Apelante- tinha adquirido direito de retenção nos termos do regime geral do incumprimento do contrato-promessa, sem necessidade de se questionar a sua qualidade de consumidor, não estando sequer em causa o circunstancialismo subjacente aos referidos AUJ.
Ainda que assim não se entenda, para que se pudesse aferir da eventual aplicação ao crédito do aqui Apelante da restrição introduzida pelos AUJ nº 4/2014 e 4/2019 - assumir a qualidade de consumidor e destinar o imóvel, objeto de tradição, a uso particular - teria de ter sido impugnada pela aqui Apelada a natureza do direito de retenção do aqui Apelante e sua abrangência para efeitos da graduação em sede de processo de insolvência, nos termos previstos no art. 130º do CIRE e aduzidos os factos necessários ao seu conhecimento, o que não ocorreu.
Concluindo, de acordo com o direito constituído à data da prolação da decisão recorrida, o crédito do aqui Apelante garantido por direito de retenção prevalece sobre o crédito hipotecário nos termos da articulação do art. 755º nº 1 al. f) e 759º nº 1 e 2 do CC, não lhe sendo aplicável a nova redação deste último preceito legal.
Consequentemente, relativamente ao montante apurado resultante da liquidação da meação do imóvel referente à fração com a letra “K” apreendida para a massa insolvente, depois de abatidas as dívidas da massa insolvente, o crédito do aqui Apelante garantido por direito de retenção deve ser graduado em primeiro lugar, antes do crédito da aqui Apelada, apesar de este último se mostrar garantido por hipoteca registada anteriormente à constituição do direito de retenção daquele.
Perante a procedência dos argumentos recursivos, impõe-se a revogação da sentença recorrida, e a reformulação da graduação de créditos em conformidade com o acima decidido.
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V. DECISÃO: Em razão do antes exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação do Porto, em julgar procedente o presente recurso de apelação, revogando-se a sentença recorrida e graduando-se o crédito reconhecido ao Apelante garantido pelo direito de retenção em primeiro lugar, antes do crédito da aqui Apelada garantido por hipoteca. Custas do presente recurso a cargo da Apelada, que nele ficou vencida. Notifique.
Porto, 29.04.2025
Maria da Luz Seabra
Rodrigues Pires
João Diogo Rodrigues
(O presente acórdão não segue na sua redação o Novo Acordo Ortográfico)
_______________ [1] CIRE Anotado, 2013, Almedina, pág. 387 [2] Neste sentido Ac STJ de 11.06.2024, Proc. Nº 1413/12.0TJCBR-P.C1.S1; Ac STJ de 22.02.2024, Proc. Nº 207/22.0T8VNG-E.P1.S1; Ac RP de 19.05.2020, Proc nº 6903/13.5TBVNG-B.P1, www.dgsi.pt [3] A esse propósito ver Código Civil Anotado, Ana Prata (Coord), Vol. I, 2017, pág. 950 ss [4] Entre outros, Ac STJ de 11.06.2024, Proc. Nº 1413/12.0TJCBR-P.C1.S1; Ac STJ de 16.05.2019, Proc. Nº 61/11.7TBAOV-B.G1.S1; Ac RP de 23.04.2020, Proc. Nº 554/10.3TYVNG-C.P1, www.dgsi.pt [5] Comentário ao Código Civil, Direito das Obrigações, UCP, pág. 1012ss