TRANSAÇÃO JUDICIAL
SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA
CASO JULGADO MATERIAL
Sumário

I - Perante uma transação judicial, que veio a ser homologada por sentença transitada em julgado, em que as partes incluíram uma cláusula que refere que a ali autora se considera inteiramente ressarcida de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais, presentes e futuros, decorrentes do sinistro que era causa de pedir nos autos, declarando nada mais ter a receber da ré, impõe-se a conclusão de que as partes dispuseram sobre todos os danos presentes e futuros previsíveis, certos ou eventuais.
II - Verifica-se a excepção de caso julgado numa acção sucessiva em que a autora pede a indemnização por prejuízos e despesas alegadamente não compreendidas em pedido anterior, mas que decorrem dos mesmos danos que fundaram o pedido nessa acção anterior, que terminou por transacção.

Texto Integral

PROC. Nº 3395/24.7T8AVR.P1
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo Central Cível de Aveiro - Juiz 3

REL. N.º 954
Relator: Juiz Desembargador Rui Moreira
1º Adjunto: Juíza Desembargadora Dra. Lina Castro Baptista
2º Adjunto: Juíza Desembargadora: Dra. Alexandra Pelayo

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ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DO PORTO

1 – RELATÓRIO

AA, residente na Residência ..., Rua ..., ..., em ..., intentou acção em processo comum contra A..., B..., SA, com sede na Av. ..., Lisboa, pedindo a condenação desta:
“a) a pagar aos demandantes a quantia líquida de 113.500,00 euros pelos danos sofridos em resultado do acidente supra descrito, tudo acrescido de juros à taxa legal desde a citação;
b) a garantir o pagamento das sessões de fisioterapia que se mostrarem necessárias; ou caso assim não se considere, deverá a Ré assegurar o pagamento do valor de 300,00 euros mensais; o que perfaz a quantia anual de 3.600,00 euros e, tendo por base a esperança média de vida - que, segundo as estatísticas, em Portugal, para as mulheres, é de aproximadamente 84 anos – deverá a Ré pagar 68.400,00 euros.
c) porque a Autora irá necessitar de acompanhamento médico e medicamentoso, com o que terá despesas, deve a Ré ser condenada, atendendo à respetiva esperança de vida, que para as mulheres se situa nos 84 anos de idade, em quantia nunca inferior a 3000,00 euros, sem prejuízo de outra medicação que a mesma venha a precisar, bem como, ao agendamento anual ou semestral, consoante a necessidade de cada especialidade para devido acompanhamento e seguimento; Ou caso assim não se entenda, devera a seguradora fornecer relatórios médicos e suportar os custos das consultas; valor a apurar em incidente de liquidação de sentença. (cfr. arts. 564º nº 2 e 569º do CC e 556º, nº 1, al. b) e nº 2 e 358º do CPC).
d) a pagar as mensalidades da instituição que se cifram em 14.187,90 euros, bem como ser condenada ao pagamento da mensalidade da instituição onde a mesma estiver internada até ao fim da sua vida; ou, a atribuição do valor mensal de 2.400,00 euros para o pagamento da instituição.
e) Juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento, bem como numa sanção pecuniária compulsória nunca inferior a 50,00 euros (cinquenta euros) por cada dia de atraso, nos termos do art. 829.º-A, n.º 4, do Código Civil, desde a data em que a sentença condenatória transitar em julgado, a acrescer aos juros de mora e demais quantias em que vier a ser condenada;
f) Cumulativamente e em qualquer caso, deve a Ré ser condenada no pagamento à Autora de custas judiciais, custas de parte, procuradoria condigna e tudo o mais que é de Lei.
Alegou ter sido vítima de um acidente de viação provocado por um veículo segurado na ré, cuja condutora foi a exclusiva responsável, referindo os danos que sofreu e as carências que agora suporta e que lhe devem ser supridas, com isso justificando o seu pedido.
Alegou, também ter intentado outra acção em processo comum contra a ré, que correu termos sob o número 4039/21.4T8AVR, no Juízo Central Cível de Aveiro - Juiz 2 do Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro, onde foi sujeita a perícia médica que caracterizou a sua actual condição física, que descreveu, onde sobressaem um défice funcional permanente de 19 pontos e o impedimento para o exercício de qualquer actividade profissional, com dependências permanentes de ajuda. Mais referiu que, nessa acção, ocorreu transação sobre o pedido, com o seguinte conteúdo:
“1 – A autora reduz o seu pedido à quantia de € 80.000,00 (oitenta mil euros), quantia esta que a ré se obriga a pagar, no prazo de 15 dias, contra recibo, por transferência bancária, para o seguinte IBAN (…)
2 – Com o recebimento da quantia supra, a autora considera-se inteiramente ressarcida de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais, presentes e futuros, decorrentes do sinistro identificados nos autos, declarando nada mais ter a receber da ré, seja a que título for.
3 – (…)”.
Concluiu, porém, que “A transação realizada no âmbito de um processo judicial, entre as respetivas partes, não é permitida quanto a direitos indisponíveis – ou seja, aqueles de que não se pode livremente dispor, por força da lei ou da sua natureza – nem sobre questões respeitantes a negócios jurídicos ilícitos (cfr. art.º 1249.º do CC e n.º 1 do art.º 289.º do Código de Processo Civil).” E que “O direito à vida e à integridade física são direitos indisponíveis e que merecem a tutela do Direito.”
A Ré invoca na sua contestação a existência de caso julgado, rejeitando que a transacção celebrada no referido processo, homologada por sentença transitada em julgado, tenha versado sobre direitos indisponíveis. De resto, alega que a autora recebeu o valor de 80.000,00€, sem que agora a isso faça qualquer referência.
Qualificou a actuação da autora como litigância de má fé e concluiu pela improcedência da acção.
A autora respondeu, sustentando a não coincidência entre os danos já indemnizados e os agora invocados.
Foi proferido despacho saneador-sentença.
Afirmou o tribunal que a autora, ao transigir na acção supra referenciada, não dispôs do seu direito à vida ou integridade física, direitos, de facto, indisponíveis. Por conseguinte, a transacção homologada por sentença impõe-se com força de caso julgado, por serem idênticos, naquela e nesta acção, os sujeitos, a causa de pedir e o pedido. Quanto a este, considerou que a cláusula inserida na transacção referida, segundo a qual a autora declarou “considerar–se inteiramente ressarcida de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais, presentes e futuros, decorrentes do sinistro identificados nos autos, declarando nada mais ter a receber da ré, seja a que título for”, impede agora a sua pretensão de indemnização de outros danos eventualmente resultantes do mesmo acidente.
Assim, declarou procedente a excepção de caso julgado e absolveu a ré da instância.
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É desta decisão que vem interposto o presente recurso, pela autora, que o termina alinhando as seguintes conclusões:
a) Por despacho saneador datado de 15 de dezembro de 2024, o Tribunal a quo decidiu considerar procedente a exceção de caso julgado, exceção dilatória de conhecimento oficioso, que obsta ao conhecimento do pedido, conduzindo à absolvição da Ré da instância – artigos 576º n.º 1 e 2, 577º i) e 578º do CPC; Decisão, com a qual a Autora não pode concordar.
b) A sentença recorrida deixou de considerar adequadamente os pedidos relacionados aos danos futuros, conforme demonstrado nas provas anexadas aos autos.
c) O Tribunal a quo, ao deixar de valorizar corretamente os documentos juntos, contraria os princípios da ampla defesa e do contraditório, que garantem o direito à plena reparação dos danos.
d) A Recorrente, com a presente ação vem pedir:
- a pagar aos demandantes a quantia líquida de 113.500,00 euros pelos danos sofridos em resultado do acidente supra descrito, tudo acrescido de juros à taxa legal desde a citação;
- a garantir o pagamento das sessões de fisioterapia que se mostrarem necessárias; ou caso assim não se considere, deverá a Ré assegurar o pagamento do valor de 300,00 euros mensais; o que perfaz a quantia anual de 3.600,00 euros e, tendo por base a esperança média de vida - que, segundo as estatísticas, em Portugal, para as mulheres, é de aproximadamente 84 anos – deverá a Ré pagar 68.400,00 euros.
- porque a Autora irá necessitar de acompanhamento médico e medicamentoso, com o que terá despesas, deve a Ré ser condenada, atendendo à respetiva esperança de vida, que para as mulheres se situa nos 84 anos de idade, em quantia nunca inferior a 3000,00 euros, sem prejuízo de outra medicação que a mesma venha a precisar, bem como, ao agendamento anual ou semestral, consoante a necessidade de cada especialidade para devido acompanhamento e seguimento; Ou caso assim não se entenda, devera a seguradora fornecer relatórios médicos e suportar os custos das consultas; valor a apurar em incidente de liquidação de sentença. (cfr. arts. 564º nº 2 e 569º do CC e 556º, nº 1, al. b) e nº 2 e 358º do CPC).
- a pagar as mensalidades da instituição que se cifram em 14.187,90 euros, bem como ser condenada ao pagamento da mensalidade da instituição onde a mesma estiver internada até ao fim da sua vida; ou, a atribuição do valor mensal de 2.400,00 euros para o pagamento da instituição.
- Juros de mora, vencidos e vincendos, à taxa legal, até efectivo e integral pagamento, bem como numa sanção pecuniária compulsória nunca inferior a 50,00 euros (cinquenta euros) por cada dia de atraso, nos termos do art. 829.º-A, n.º 4, do Código Civil, desde a data em que a sentença condenatória transitar em julgado, a acrescer aos juros de mora e demais quantias em que vier a ser condenada;
- Cumulativamente e em qualquer caso, deve a Ré ser condenada no pagamento à Autora de custas judiciais, custas de parte, procuradoria condigna e tudo o mais que é de Lei.
e) No processo 4039/21.4T8AVR, que correu termos no Juízo Central Cível de Aveiro - Juiz 2, no qual as partes eram as mesmas, o pedido era o seguinte:
f) Nestes termos e nos melhores de Direito, Encontram-se preenchidos todos os requisitos pedidos pelo art. 483.º do CC, pelo que se deverá considerar procedente o pedido, condenando a Ré ao pagamento
g) 90.520,00 euros respeitantes a danos patrimoniais e não patrimoniais;
h) 120,00 euros, referentes a indemnização pela privação do uso do veículo.
i) em caso de atribuição de pontuação na parte do dano biológico, bem como a titulo de quantum doloris, e dano estético, seja a Ré condenada no pagamento do valor a que se vier a apurar.
j) A estes valores acresce, também, a quantia resultante dos juros que à taxa legal se venham a vencer desde a citação até integral pagamento, acrescida de 5% desde o trânsito em julgado da sentença que assim vier a decidir nos termos do n.º 4 do art. 829.ºA do Código Civil;
k) E a pagar custas e procuradoria condignas.
l) Nesta ação foi pedida a realização de perícia, que foi realizada, conforme certidão já junta aos autos com a Petição inicial e nessa sequência, foi atribuído à aqui recorrente dano biológico, quantum doloris, dano estético…. Tudo conforme relatório pericial eu já se encontra junto aos autos.
m) E a transação realizada no processo, em 27 de fevereiro de 2024, pelas 09:30 horas, Sala de audiências n.º 1 refere o seguinte:
Quando eram 9 horas e 57 minutos, aquando todos presentes, pelo MM.º Juiz de Direito foi iniciada a presente diligência, tendo sido tentada a conciliação das partes, nos termos do artigo 604.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, a qual foi conseguida com a seguinte:
TRANSAÇÃO
1 – A autora reduz o seu pedido à quantia de € 80.000,00 (oitenta mil euros), quantia esta que a ré se obriga a pagar, no prazo de 15 dias, contra recibo, por transferência bancária, para o seguinte IBAN que a autora expressamente indica para este efeito: PT50. ....
2 – Com o recebimento da quantia supra, a autora considera-se inteiramente ressarcida de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais, presentes e futuros, decorrentes do sinistro identificados nos autos, declarando nada mais ter a receber da ré, seja a que título for.
3 – Custas processuais na proporção de 20% para a autora e 80% para a ré.
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Seguidamente, pelo Mmº Juiz de Direito foi proferida a seguinte:
SENTENÇA HOMOLOGATÓRIA
A transação que antecede mostra-se válida, quer quanto à forma, quer quanto à qualidade dos intervenientes, bem como ainda quanto à natureza disponível do seu objeto. Assim sendo, e abrigo do disposto nos artigos 277º, al. d), 283º, n.º 2, 284º, 289º, n.º 1 e 290º n.º 4, todos do Cód. Proc. Civil, julgo válida a sobredita transação e, consequentemente, homologo-a por sentença, condenando as partes no cumprimento das obrigações dela emergentes.
Custas nos termos acordados, na proporção do decaimento, atendendo ao disposto no art. 527º do C.P.C., sem prejuízo de se atender ao apoio judiciário concedido à Autora, por ser do conhecimento oficioso deste Tribunal, que a Digna Procuradora da República afeta a este Juízo Central Cível não se opõe a tal forma de distribuição das custas. Notifique.
n) Reitera-se, NÃO SE PEDE:
a) 90.520,00 euros respeitantes a danos patrimoniais e não patrimoniais;
b) 120,00 euros, referentes a indemnização pela privação do uso do veículo.
c) em caso de atribuição de pontuação na parte do dano biológico, bem como a titulo de quantum doloris, e dano estético, seja a Ré condenada no pagamento do valor a que se vier a apurar.
d) A estes valores acresce, também, a quantia resultante dos juros que à taxa legal se venham a vencer desde a citação até integral pagamento, acrescida de 5% desde o trânsito em julgado da sentença que assim vier a decidir nos termos do n.º 4 do art. 829.ºA do Código Civil;
e) E a pagar custas e procuradoria condignas.
38. PEDE-SE:
- o pagamento das sessões de fisioterapia e reabilitação que a Recorrente precisara até ao fim da vida, dado que «é dependente máxima na realização de atividades funcionais e moderadas nas transferências, apresentando uma MIF (Medida de Independência Funcional) de 52/126 – NUNCA ESTE PEDIDO FOI FEITO!
A recorrente, conforme relatório médico, precisa de sessões de fisioterapia 3x por semana.
- os lucros cessantes que vai deixar de receber até ao fim da sua vida, pois à data do acidente tinha 61 anos e, no presente é dependente de terceiros para todas as suas necessidades básicas diárias (conforme consta do relatório do IML junto aos autos com a PI);
- o pagamento das consultas médicas até ao fim da vida da aqui Recorrente, conforme consta do relatório do IML, necessárias as consultas médicas na especialidade de neurologia, bem como fisiatria e reabilitação.
- o pagamento dos medicamentos até ao fim da vida da aqui Recorrente, que por mês são aproximadamente 150,00 euros;
- pagar as mensalidades da instituição que se cifram em 14.187,90 euros, bem como ser condenada ao pagamento da mensalidade da instituição onde a mesma estiver internada até ao fim da sua vida; ou, a atribuição do valor mensal de 2.400,00 euros para o pagamento da instituição, porquanto, A recorrente está dependente de terceiros para tudo e tais cuidados têm de ser necessariamente prestado em instituição.
o) Ou seja, todos os danos futuros, até ao seu último suspiro!
p) O PEDIDO EM AMBAS AÇÕES É MATERIALMEMTE DIFERENTE.
q) As partes são as mesmas, mas não há identidade de pedidos; o que seria o caso julgado.
r) Conforme consta do artigo 580.º do CPC:
1 - As exceções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à exceção do caso julgado.
s) Para haver caso julgado, tem de haver tripla entidade: as mesmas partes, a mesma causa de pedir, e, o mesmo pedido.
t) Seguindo de perto «UM POLVO CHAMADO AUTORIDADE DO CASO JULGADO, Por José lebre de Freitas, na Revista da Ordem dos Advogados, (não se transcreve a citação, por economia processual e tal ser impertinente em sede de conclusões)
(…)
u) No caso em apreço, o Tribunal a quo mal andou ao considerar que o pedido é o mesmo; Sendo tal visível a qualquer homem médio que não há identidade de pedidos, DEVENDO A EXCEPÇÃO DO CASO JULGADO IMPROCEDER.
Nestes termos e nos melhores de direito, Devem as presentes alegações serem consideradas procedentes e, consequentemente, ser revogada tal decisão, e ser substituída que considere improcedente a exceção de caso julgado, por falta de cumprimentos dos seus pressupostos.”
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A R. apresentou resposta ao recurso, pronunciando-se pela confirmação da decisão recorrida.
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O recurso foi admitido, com subida nos próprios autos e sob efeito devolutivo, como devido.
Cumpre decidir.
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2- FUNDAMENTAÇÃO

Não podendo este Tribunal conhecer de matérias não incluídas nas conclusões, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso - arts. 635º, nº 4 e 639º, nºs 1 e 3 do CPC, é nelas que deve identificar-se o objecto do recurso.
No caso, cumpre decidir se, em face do teor da transação celebrada entre a autora e a ré, no proc. nº 4039/21.4T8AVR, no Juízo Central Cível de Aveiro - Juiz 2, se verifica excepção de caso julgado que obste à discussão da pretensão da autora nos presentes autos, designadamente perante a alegação desta segundo a qual os danos cuja indemnização é agora pedida são diferentes dos contemplados no anterior processo.
Para a decisão desta questão, quer o relatório que antecede, quer as próprias conclusões do recurso da apelante, fornecem os elementos necessários, nenhum outro se justificando salientar.
Interessante é, antes de mais, ponderar que a autora, na petição inicial, justificou a admissibilidade da presente acção com o facto de, na primeira acção – a nº 4039/21.4T8AVR, do Juízo Central Cível de Aveiro - Juiz 2 – ter ocorrido uma transação sobre direitos indisponíveis. Daí, como entendeu o tribunal recorrido, decorreria implicitamente a arguição da nulidade daquela transacção, o que seria um pressuposto da possibilidade de o direito da autora à indemnização dos danos que lhe advieram do acidente de 16/11/2020 ser novamente discutido e decidido, compreendendo uma nova avaliação dos danos dele resultantes.
Sendo nula a transacção, bem como a sentença que a homologou, nada obstaria a uma nova sentença sobre o mesmo sinistro.
Todavia, tal como a ré contestou, o tribunal concluiu que a transacção e sentença que a homologou não versaram sobre direitos indisponíveis – alegadamente o direito à integridade física e à vida – mas sobre uma questão patrimonial perfeitamente disponível, qual seja, a indemnização de danos sofridos pela autora, na sua integridade física e psíquica, é certo, mas que não se confunde com um disponibilidade efectiva sobre esses bens jurídicos.
Perante tal obstáculo, veio a autora, em resposta, tal como vem no presente recurso, justificar a admissibilidade da presente acção com o facto de os danos cuja indemnização agora pretende não coincidirem com aqueles que foram indemnizados na primeira acção. Como tal, alega não se verificar a identidade do pedido, o que impede o preenchimento da hipótese do nº 1 do art. 581º do CPC, isto é, a ocorrência de caso julgado.
No caso, é inequívoca a identidade das partes e da causa de pedir.
Importará, então, verificar se o acordo de vontades das partes, consubstanciado no contrato de transacção anterior, que foi homologado por sentença, compreendeu também uma disposição quanto aos danos agora elencados e cuja indemnização é pedida.
Com efeito, são recorrentes, no judiciário, situações em que as partes negoceiam e transigem sobre alguns efeitos de uma determinada situação jurídica, mas não sobre todos eles, quer por não o terem pretendido, quer por não o terem previsto, designadamente por esses efeitos não terem ocorrido ou não serem previsíveis ao tempo.
Todavia, também são frequentes os casos em que as partes, pretendendo-o, dispõe definitivamente, segundo a sua vontade, quanto a todos os efeitos de uma situação jurídica, tenham já ocorrido ou sejam futuros, previsíveis ou imprevisíveis.
Assim, nuns casos as partes especificam que a transacção se refere “aos danos reclamados neste processo”, salvaguardando a hipótese de ulterior consideração de outros ali não especificados, presentes ou futuros; ou em que a transacção expressamente refere o diferimento do tratamento e indemnização de outros danos que se venham a manifestar futuramente. Mas, noutros, as partes expressamente prevêem a solução definitiva do litígio, garantindo que de determinada situação jurídica não venham a ser extraídos novos efeitos para uma das partes. Veja-se, a este propósito, o ac. do STJ de 19-10-2022, proc. nº 12/20.8T8VFR-A.P1.S1, em dgsi.pt, onde se refere a viabilidade de qualquer uma destas soluções.
Como se refere no ac. do TRL de 22/11/22, proc. nº 10905/19.0T8SNT.L1-7, em dgsi.pt, “… o dano futuro é previsível quando se pode prognosticar, conjeturar com antecipação ao tempo em que acontecerá, a sua ocorrência; no caso contrário, isto é, quando o homem medianamente prudente e avisado o não prognostica, o dano é imprevisível, desconsiderando-se o juízo do timorato; (…) Os danos previsíveis podem dividir-se entre os certos e os eventuais: dano futuro certo é aquele cuja produção se apresenta, no momento de acerca dele formar juízo, como infalível; dano futuro eventual é aquele cuja produção se apresenta, no momento de acerca dele formar juízo, como meramente possível, incerto, hipotético.”
Casos típicos de aplicação destas hipóteses são precisamente as situações de responsabilidade civil, em que importa responder perante danos já ocorridos ou, também, por danos futuros que sejam previsíveis, sejam certos ou eventuais.
No caso, constata-se que a autora não funda qualquer pedido em danos que apenas se tenham manifestado em momento ulterior ao da transação ocorrida no proc. nº 4039/21.4T8AVR. Pelo contrário, as várias verbas agora peticionadas correspondem à indemnização de prejuízos e despesas decorrentes da situação de incapacidade da autora, resultante do acidente de viação que constitui a causa de pedir. Ou seja, respeitam aos mesmos danos que constituíram o objecto do processo anterior.
Tais prejuízos e despesas, incluindo os custos de fisioterapia, acompanhamento médico e medicamentoso, custos de assistência por terceiros, designadamente por internamento em instituição, embora futuros ao tempo da transacção, eram já previsíveis, por decorrerem da sua condição clínica.
Pelo contrário, entre estes danos cuja indemnização vem pedida não se encontra nenhum que tenha surgido ulteriormente e que, constituindo ainda um efeito do facto danoso, jamais pudesse ter sido considerado pelas partes, aquando da transacção. A título de exemplo de um tal dano, veja-se o tratado no acórdão do TRL de 11-10-2001, doc nº RL200110110009002: um caso da epilepsia pós-traumática decorrente de acidente de viação só posteriormente manifestada e conhecida pelo lesado.
Ora, na sua transacção, as partes acordaram sobre a indemnização de todos os danos, quer os já identificados e quantificáveis, quer quanto aos futuros, certos ou eventuais, dispondo: “Com o recebimento da quantia supra, a autora considera-se inteiramente ressarcida de todos os danos patrimoniais e não patrimoniais, presentes e futuros, decorrentes do sinistro identificados nos autos, declarando nada mais ter a receber da ré, seja a que título for.”
É, pois, inevitável concluir, em total concordância com o tribunal recorrido, que os prejuízos e as despesas cuja indemnização é agora peticionada respeitam aos mesmos danos resultantes do acidente de viação que é causa de pedir e sobre os quais as partes, com vontades congruentes, dispuseram no âmbito do processo nº 4039/21.4T8AVR.
Face ao teor da cláusula acima citada, é, de resto, razoável admitir que a ré acordou em celebrar tal transacção, pagando a indemnização convencionada, precisamente para dessa forma liquidar definitivamente toda a responsabilidade pela indemnização dos danos resultantes do acidente em causa. É esse o sentido normal de uma cláusula, não consentindo ela qualquer outra interpretação. O que, de resto, nem é invocado pela apelante.
Pelo exposto, reconhecendo-se a verificação da excepção de caso julgado, tal como disposto nos arts. 580º, nºs 1 e 2 e 581º do CPC, impõe-se a absolvição da ré da instância, nos termos do art. 576º, nºs 1 e 2 do mesmo código.
Cumpre, pois, confirmar a sentença em crise, que assim decidiu, na falta de provimento da presente apelação.
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Sumariando:
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3 - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem este Tribunal em julgar improcedente a presente apelação, com o que confirmam a decisão recorrida.
Custas pela apelante.
Reg. e not.
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Porto, 29 de Abril de 2025
Rui Moreira
Lina Baptista
Alexandra Pelayo