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SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE LISBOA
ISENÇÃO DE CUSTAS
Sumário
I - As pessoas coletivas de direito privado e utilidade pública são suscetíveis de beneficiar de isenção de custas nos termos do art.º 4.º, n.º 1, al. f) do Regulamento das Custas Processuais mas apenas quando atuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defenderem os interesses que lhes estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável. II - Não se concluindo que se está perante qualquer atuação respeitante, no âmbito das especiais atribuições de uma Instituição Particular de Solidariedade Social, para defesa dos interesses que especialmente lhe estão conferidos pelo respetivo estatuto, não há lugar à isenção de custas. III - Tendo a recorrente requerido que lhe fosse reconhecida a isenção de custas, impõe-se ao Tribunal a quo a prolação de decisão sobre a questão suscitada e a notificação para proceder ao pagamento da taxa de justiça devida pela apresentação da contestação, sem multa.
Texto Integral
I – Relatório
1. O autor, AA intentou a presente ação declarativa, com processo comum, contra a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, pedindo que a ré fosse condenada no pagamento:
a) do valor de €725 (setecentos e vinte e cinco euros, a título de desconto ilegal de aviso prévio correspondente a 30 dias;
b) do valor de €38 (trinta e oito euros), a título de créditos de formação vencidos e não pagos;
c) do valor de €143,44 (cento e quarenta e três euros e quarenta e quatro cêntimos), a título de trabalho suplementar e horas de trabalho em singelo por força da formação frequentada fora do horário de trabalho
d) do valor de €266,12, a título de trabalho suplementar, realizado nos termos e condições referidas nos arts. 38.º a 46.º da petição inicial;
e) do valor de €195 (cento e noventa a cinco euros) a título de suplemento remuneratório por acompanhamento dos jovens a colónia;
f) do valor de €142,77 (cento e quarenta e dois euros e setenta e sete cêntimos) a título de trabalho suplementar, realizado nos termos e condições referidas nos arts. 51.º a 62.º da petição inicial;
g) ao pagamento de juros de mora, à taxa legal em vigor, contabilizados desde a data de vencimento de cada uma das prestações supra identificadas nas alíneas antecedentes, até à data do integral e efetivo pagamento.
Para tanto (i) invocou que celebrou com a ré um contrato de trabalho, com fundamento na necessidade de substituir uma trabalhadora, tendo-se obrigado a trabalhar por conta da ré, com a categoria de técnico de ação educativa; (ii) o contrato cessou a 21-10-2022, quando pôs termo ao mesmo; (iii) a ré descontou-lhe o pré-aviso (dois meses) quando só devia ter sido um mês, (iv) só fez 28 horas de formação das 40 que lhe eram devidas, (v) o seu PNT era de 7,35 horas, mas passou a fazer mais 30 minutos, que não lhe foram pagos como trabalho suplementar,(vi) também não lhe foram pagos 3 dias de colónia, devidos como trabalho suplementar (vii) trocou turno com dois colegas e foi obrigado a fazê-los, ainda que no período (antes da troca) estivesse em falta (COVID).
2. A ré contestou (i)invocando que pagou toda a formação (40 horas); (ii)que foi o autor quem escolheu as horas em que iria ter formação; (iii)que os 30 minutos depois das 7 horas eram para permitir o descanso; (iv)que os dias de colónia não são como tal considerados e foram compensados, (v) ausência do autor nos dias que esteve com COVID em nada influenciou as escalas, cuja troca já havia sido homologada, (vi) o autor teve de fazer os dias que refere, pois eram dias (depois de regressar do COVID) que já tinha trocado antes de tal doença, sendo seu PNT normal.
3. Na contestação apresentada, a ré requereu isenção de custas alegando, para tanto, que:
“a) A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, nos termos do n.º 1 do artigo 1.º dos seus Estatutos de 2008, de 3 de Dezembro, é uma Pessoa Coletiva de Direito Privado e Utilidade Pública Administrativa. b) A Santa Casa da Misericórdia de Lisboa tem como fins “a realização da melhoria do bem-estar das pessoas, prioritariamente dos mais desprotegidos, abrangendo as prestações de ação social, saúde … e promoção da qualidade de vida, de acordo com a tradição cristã e obras de misericórdia do seu compromisso originário e da sua secular atuação em prol da comunidade, bem como a promoção, apoio e realização de atividade que visem a inovação, a qualidade e a segurança na prestação de serviços ...” (cf. n.º 1 do artigo 4.º desses Estatutos), c) e “… desenvolve … as atividades de serviço ou interesse público que lhe sejam solicitadas pelo Estado ou outras entidades públicas …” (cf. n.º 2 do artigo 4.º desses Estatutos). d) Para a realização dos seus fins estatutários, a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa “… dirige estabelecimentos e serviços no âmbito da sua atividade …” (cf. a al. a) do n.º 3 do artigo 4º desses Estatutos) e “… desenvolve e prossegue atividades de promoção, prevenção e tratamento da doença, de reabilitação e prestação de cuidados continuados …” (cf. al. c) do n.º 3 do artigo 4.º desses Estatutos), e) Ao abrigo da alínea f), do n.º 1, do artigo .º do Regulamento das Custas Processuais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26 de Fevereiro e o qual entrou em vigor em 20 de Abril de 2009, estão isentas de pagamento de custas “As pessoas coletivas privadas sem fins lucrativos, quando atuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável”.
4. Sobre esta questão, o Tribunal a quo proferiu o seguinte despacho: A ré invocou que está dispensada do seu pagamento, nos termos do art.º 4.º, al. f), do Regulamento das Custas Processuais. Dispõe o art.º 4.º, n.º 1, al. f) do RCP que estão isentos de custas «as pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos quando actuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos de legislação que lhe seja aplicável». Tal previsão circunscreve-se ao âmbito das especiais atribuições das entidades aí referidas, e ficando dependente da natureza do interesse em litígio: “Trata-se de uma isenção de custas condicional, na medida em que só funciona em relação aos processos concernentes às suas especiais atribuições ou para defesa dos interesses conferidos pelo seu estatuto ou pela própria lei. Nesta perspectiva, pode parecer que esta isenção não abrange as acções que tenham por objecto obrigações ou litígios derivados de contratos que essas pessoas celebrem com vista a obter meios para o exercício das suas atribuições. Todavia, se o objecto de tais acções for instrumental em relação aos fins estatutários dessas entidades, propendemos a considerar serem abrangidas pela isenção de custas em análise” - Salvador da Costa, Regulamento das Custas Processuais Anotado e Comentado, 2009, Almedina, pág. 146. Os créditos da execução do contrato (e a condenação no seu pagamento) é um interesse do empregador e não um interesse comunitário que lhe esteja conferido pela Lei ou pelos Estatutos. Por conseguinte, a isenção não abrange as ações interpostas contra ou pela ré em que estas defendam interesses conexos com a relação laboral estabelecida com um trabalhador – neste sentido cf. acs. da Relação de Coimbra de 13/12/2011, processo 68/08.1TTCBR-A.C2, e da Relação do Porto de 21-01-2013, processo 1140/11.6TTMTS-B.P1, ambos disponíveis em www.dgsi.pt. Cumpra o disposto no artigo 570.º, n.º 3, do CPC.”
5. Inconformada, a ré interpôs recurso de apelação, com subida em separado, concluindo que:
“A. A Recorrente não se conforma com a decisão de não lhe ser reconhecida a isenção de custas; B. A ora Recorrente peticionou pelo reconhecimento da respetiva isenção de custas judiciais, nos termos do artigo 4.º, n.º 1, al. f) do Regulamento das Custas Processuais; C. Alegou, para o efeito, que é estatutariamente uma pessoa coletiva de utilidade pública administrativa, sem fins lucrativos e que no âmbito da presente ação atua exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respetivo estatuto, ou, desde logo, em ação com objeto instrumental aos seus fins; D. O Tribunal a quo, apenas por a SCML atuar na presente ação como entidade empregadora, entende que não está a atuar dentro das suas especiais atribuições e indefere o reconhecimento da isenção de que a Recorrente deve ser beneficiária; E. Como resulta dos autos, o Recorrido era trabalhador da Recorrente e desempenhava funções de “Técnico de Ação Educativa”, adstrito à Casa da Acolhimento da Fonte, equipamento que integra a Direção de Acolhimento e Desenvolvimento de Infância e Juventude da Recorrente Santa Casa da Misericórdia de Lisboa a qual tem como objetivo o acolhimento de crianças em perigo, visando a promoção e proteção dos seus direitos, tudo para a realização dos seus fins estatutários, nomeadamente em conformidade com o disposto no n.º 1 e na al.) b) e p) do n.º 3, tudo do artigo 4.º dos seus Estatutos; F. Pelo que, não se vislumbra outra conclusão que não seja que a relação contratual controvertida é decorrente das especiais atribuições da Recorrente, uma vez que é, inevitavelmente, realizada no cumprimento das obrigações estatutárias citadas e com vista ao seu cumprimento; G. Pelo que não procede o alegado argumento de que “Os créditos da execução do contrato (e a condenação no seu pagamento) é um interesse do empregador e não um interesse comunitário que lhe esteja conferido pela Lei ou pelos Estatutos.”, porquanto a SCML não pode prosseguir nem prossegue, outros fins que não os que expressamente estão previstos nos Estatutos; H. Assim sendo, apenas se pode concluir que a celebração do contrato de trabalho entre Recorrente e Recorrido, e os direitos e obrigações que advêm desta relação, é decorrente das especiais atribuições da SCML, uma vez que é realizada no cumprimento das obrigações estatutárias e com vista ao cumprimento das mesmas; I. Salvador da Costa, in “Regulamento das Custas Processuais”, Editora Almedina Coimbra, maio de 2011, na pp. 155, considera que, não obstante o condicionalismo da isenção às ações que decorram das especiais atribuições ou dos interesses confiados pelos seus Estatutos, estão igualmente abrangidas pela isenção de custas as ações cujo objeto for instrumental em relação aos fins estatutários; J. Além do mais, as atuações desenvolvidas pela SCML dizem respeito à prossecução dos seus fins estatutários, uma vez que a natureza da SCML não consente na distribuição de lucros, os quais, permanecem no património da SCML, com vista à sua utilização no âmbito das atividades decorrentes dos respetivos Estatutos (no mesmo sentido, vide Salvador da Costa, in Regulamento das Custas Processuais, Anotado e comentado, Almedina, 2011, 3.ª edição, pp. 152); K. Aliás, tal é reconhecido na decisão singular da 1.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, datada de 14/03/2013, que no âmbito do proc. 1967/12.1TVLSBA.L1, que julgou procedente o recurso e revogou o despacho que negava a atribuição da isenção de custas processuais à SCML, onde se pode ler que: “face ao estatuto da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, todos os rendimentos que possa conseguir têm que ser destinados aos fins humanísticos plasmados do citado artigo 4.º do DL 235/2008, de 3-12 e que reflectem a sua identidade [histórica] (…)”, pelo que também o juiz desembargador considerou a SCML abrangida pela isenção de custas quando o objeto da ação é instrumental em relação aos fins estatutários; L. E ainda o Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, no âmbito do proc. n.º 842/15.2T8SNT.L2, datado de 27/09/2017, que reconheceu à SCML, a isenção de custas. O Tribunal da Relação de Lisboa fundamentou a sua decisão, citando Salvador da Costa, in “Regulamento das Custas Processuais Anotado e Comentado”, Almedina, 4.ªedição, pp. 188 e 189, e justifica a concordância com a propensão para o entendimento do referido Autor, por o contrato objeto do litígio ter sido celebrado ao abrigo do regime jurídico das ajudantes familiares, sendo a SCML reconhecida como instituição de suporte para a atividade que no âmbito da ação social, procede à prestação de serviços de apoio domiciliário, concluindo, citando-se: “dúvidas não nos oferece que o mesmo é instrumental à realização de um dos fins estatutários da SCML”; M. Atente-se ainda ao entendimento do Tribunal da Relação de Lisboa, que, a este propósito, no âmbito do proc. nº 1480/13.0TTLSB-A.L1, que correu termos na 4ª Secção, em 9 de Julho de 2014 decidiu: “Quanto ao alegado argumento invocado no despacho impugnado de que a Ré não litiga no âmbito das suas especiais atribuições, salvo o devido respeito, o argumento não procede pois a SCML não pode prosseguir nem prossegue outros fins que não os que expressamente estão previstos nos seus Estatutos”; N. Toda e qualquer atuação da SCML é reconduzida à prossecução dos seus fins estatutários pois se assim não fosse tratar-se-ia de uma atuação ilegal violadora dos seus Estatutos; O. As pessoas coletivas privadas sem fins lucrativos, quando atuem exclusivamente, no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelos respetivos estatutos, como sucede com a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, estão isentas do pagamento de custas (artigo 4.º, nº 1, alínea f) do Regulamento das Custas Judiciais); P. Pelo que a decisão do Tribunal recorrido andou mal ao não concluir pela verificação do cumprimento dos requisitos inscritos na parte final do artigo 4.º, n. 1, al. f) do RCP, devendo, por conseguinte, a decisão ser substituída por outra que reconheça a isenção de custas à ora Recorrente. Q. Andou mal também porque ao condenar em multa no despacho que indefere a isenção de custas da ora Recorrente. R. A Recorrente requereu, com a Contestação, a isenção de custas, pelo que até o Tribunal se pronunciar pelo seu deferimento, esta não era devida. S. Só após o despacho de indeferimento notificado deve correr prazo para pagamento das custas e, só após este, sem que o pagamento das custas tenha sido feito, é que é a aplicação de multa pode ser equacionada, sem prejuízo da Recorrente poder, como está a acontecer, recorrer de tal decisão. T. Pelo que não devia o Tribunal a quo proceder, no mesmo despacho, à apreciação do requerido, pronunciando-se pela eventual procedência ou não da requerida isenção de custas, e condenar em multa, pois o pagamento até esse momento ainda não era devido.”
Termina peticionado que seja dado provimento ao recurso.
6. Não houve contra-alegações.
7. O Tribunal a quo proferiu sentença, julgando a ação parcialmente procedente, e condenou a ré a pagar ao autor:
“a.a) o valor de €725 (setecentos e vinte e cinco euros, a título de desconto ilegal de aviso prévio correspondente a 30 dias; a.b) o valor de € 23,90 (vinte e três euros e noventa cêntimos), a título de trabalho suplementar por força da formação frequentada fora do horário de trabalho; a.c) juros de mora, à taxa legal em vigor, contabilizados desde a data de vencimento de cada uma das prestações supra identificadas, desde as datas dos respetivos vencimentos até integral e efetivo pagamento, à taxa legal supletiva anual em vigor em cada momento e que é atualmente de 4% ao ano. b) Absolvendo-se a ré do demais pedido.”
Em sede de custas, as partes foram condenadas, nos seguintes termos:
“Custas por autor e ré na proporção do decaimento, que se fixa em 50,41% e 49,59%, respetivamente (sem prejuízo da isenção subjetiva do autor) - arts. 527.º, n.º 1 e 2 do CPC; 1.º, n.º 2, al. a), do CPT e4.º, n.º 1, al h) do RCP.”
8. A ré, notificada para esclarecer se mantinha interesse no recurso, respondeu que pretendia ver reconhecido o seu direito à isenção de custas.
9. O Ex.º Sr. Procurador-Geral Adjunt emitiu parecer no sentido do recurso merecer provimento.
II – Objeto do recurso
Resulta das disposições conjugadas dos arts. 639.º, n.º 1, 635.º e 608.º, n.º 2, todos do Código de Processo Civil (CPC), aplicáveis por força do disposto pelo art.º 1.º, n.ºs 1 e 2, al. a) do Código de Processo do Trabalho (CPT), que as conclusões delimitam objetivamente o âmbito do recurso, no sentido de que o tribunal deve pronunciar-se sobre todas as questões suscitadas pelas partes (delimitação positiva) e, com exceção das questões do conhecimento oficioso, apenas sobre essas questões (delimitação negativa).
Assim, fixam-se como questões a decidir:
(i)saber se a ré que é uma IPSS está ou não isenta de custas numa ação declarativa emergente de contrato de trabalho em que se discutem créditos salariais;
(ii) saber se é devida a multa a que alude o art.º 570 n.º 3 do CPC.
III- Fundamentação de Facto
Os factos relevantes para a decisão do recurso são os que resultam do relatório a que se procedeu.
IV- Fundamentação de Direito
O Tribunal a quo, considerando que os créditos laborais em causa nos autos, relativos à execução de um contrato de trabalho, são um interesse do empregador e não um interesse comunitário que esteja conferido à SCML, entendeu que a recorrente, não podia gozar da isenção de custas prevista no art.º 4º, nº 1, al. f), do Regulamento das Custas Processuais (RCP).
Contra este entendimento se insurge a recorrente, defendendo estar isenta do pagamento de custas, e particularmente da taxa de justiça, tudo com base nos argumentos que, em síntese, refere nas suas conclusões das alegações de recurso que acima se deixaram transcritas.
Vejamos.
Como regra geral e como resulta do preceituado no art.º 1º do RCP todos os processos estão sujeitos a custas.
Esta regra comporta a exceção prevista no artigo 4º do RCP que elenca o regime da isenção de custas processuais, referindo-se o nº 1 às entidades que dela podem beneficiar (isenções subjetivas), e no nº 2 aos processos (isenções objetivas), sem prejuízo do que a este propósito estipulam os n.ºs 3 a 6 do citado art.º 44º.
O artigo 4º, nº 1, al. f ) do RCP estabelece que estão isentos de custas “[a]s pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos, quando actuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelo respectivo estatuto ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável”.
Por ser relevante, para a decisão da primeira questão a resolver, cita-se o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, proferido no processo n.º 558/11.9TNCBR-A.C1, de 10.09.2013, disponível in www.dgsi.pt, onde se refere que “(…) o benefício da isenção é reconhecido às pessoas coletivas privadas sem fins lucrativos desde que: 1.- Actuem, no processo, exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições; ou 2.- Actuem, no processo, “para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelos respectivos estatutos ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável”. Qualquer actuação no processo fora destas condições não beneficia da isenção de custas.”
Esclareça-se que se entende que considerar que estão isentas de custas as pessoas coletivas privadas sem fins lucrativos, porque prosseguem sempre, indireta e instrumentalmente, as atribuições e interesses que lhes cabem, esvazia a previsão legal da alínea f) do n.º1 do art.º 4 do RCP e descarateriza os objetivos prosseguidos com o estabelecimento de condicionantes.
Afastando-se do entendimento baseado numa interpretação meramente literal e demasiadamente redutor e suscetível de retirar à norma quase todo o seu efeito útil, «refere Salvador da Costa (Regulamento de Custas Processuais Anotado e Comentado, pp. 143 e ss.): “A isenção em apreço é motivada pela ideia de estímulo ao exercício de funções públicas por particulares que, sem espírito de lucro, realizam tarefas em prol do bem comum, o que à comunidade aproveita e ao Estado incumbe facilitar.
Trata-se, porém, de uma isenção subjectiva de custas que aproveita às referidas pessoas colectivas, condicionada às circunstâncias de não terem fins lucrativos e de actuarem no âmbito das suas especiais competências ou para defender os interesses que lhes estão especialmente conferidos. (…) Mas trata-se de uma isenção de custas condicional, na medida em que só funciona em relação aos processos concernentes às suas especiais atribuições ou para defesa dos interesses conferidos pelo seu estatuto ou pela própria lei. Nesta perspectiva, pode parecer que esta isenção não abrange as acções que tenham por objecto obrigações ou litígios derivados de contratos que essas pessoas celebrem com vista a obter meios para o exercício das suas atribuições. Todavia, se o objecto de tais acções for instrumental em relação aos fins estatutários dessas entidades, propendemos a considerar serem abrangidas pela isenção de custas. Esta isenção está, porém, limitada pelo que se prescreve nos n.ºs 5 e 6 deste artigo.” »1
Importa, assim, relevar que, apenas nas ações emergentes de relações jurídicas estabelecidas, com vista à prossecução das atribuições especiais da pessoa coletiva em causa, quer por serem a sua «decorrência natural», quer por traduzirem a sua concretização, ou por serem necessárias à mesma, poderá haver lugar à isenção de custas.2
Nas suas conclusões de recurso, refere a recorrente que o recorrido desempenhava funções de “Técnico de Ação Educativa”, adstrito à Casa da Acolhimento da Fonte, equipamento que integra a Direção de Acolhimento e Desenvolvimento de Infância e Juventude da Recorrente Santa Casa da Misericórdia de Lisboa, a qual tem como objetivo o acolhimento de crianças em perigo, visando a promoção e proteção dos seus direitos, tudo para a realização dos seus fins estatutários, nomeadamente em conformidade com o disposto no n.º 1 e na al.) b) e p) do n.º 3, tudo do artigo 4.º dos seus Estatutos; para concluir que “a relação contratual controvertida é decorrente das especiais atribuições da Recorrente, uma vez que é, inevitavelmente, realizada no cumprimento das obrigações estatutárias citadas e com vista ao seu cumprimento.”
O art.º 4 do DL, n.º 253/2008, de 3/12 estabelece quais os fins estatutários da ré, a saber: “1 - A SCML tem como fins a realização da melhoria do bem-estar das pessoas, prioritariamente dos mais desprotegidos, abrangendo as prestações de acção social, saúde, educação e ensino, cultura e promoção da qualidade de vida, de acordo com a tradição cristã e obras de misericórdia do seu compromisso originário e da sua secular actuação em prol da comunidade, bem como a promoção, apoio e realização de actividades que visem a inovação, a qualidade e a segurança na prestação de serviços e, ainda, o desenvolvimento de iniciativas no âmbito da economia social. 2 - A SCML desenvolve ainda as actividades de serviço ou interesse público que lhe sejam solicitadas pelo Estado ou outras entidades públicas. 3 - Para a realização dos seus fins estatutários, a SCML: a) Cria, organiza e dirige estabelecimentos e serviços no âmbito das suas actividades, ou que lhe sejam atribuídos através de acordos de gestão celebrados com entidades privadas, públicas e sociais; b) Desenvolve e prossegue modalidades de acção social em todas as valências nomeadamente nas áreas da infância e juventude, da família e comunidade, da população idosa, das pessoas portadoras de deficiência e de outros segmentos populacionais desprotegidos; c) Desenvolve e prossegue actividades de promoção de saúde, prevenção e tratamento da doença, de reabilitação e prestação de cuidados continuados; d) Promove, apoia e incentiva o voluntariado; e) Institui e participa na criação e funcionamento de estabelecimentos de ensino e de formação; f) Promove a realização de estudos e a investigação nas suas áreas de actuação; g) Cria ou participa na criação de outras pessoas colectivas privadas; h) Participa em associações ou correspondentes organismos, nacionais e internacionais, que visem objectivos similares; i) Aconselha, informa e apoia os cidadãos e respectivas famílias na realização efectiva dos seus direitos no acesso a bens e serviços de natureza social, no âmbito dos seus fins estatutários; j) Desenvolve modelos de boas práticas nas intervenções sociais, com avaliação da sua eficiência e qualidade, e colabora, através da sua divulgação e promoção, na modernização e progressiva melhoria das condições de funcionamento dos estabelecimentos sociais privados; l) Promove e actualiza a informação respeitante ao sector da economia social e aos equipamentos e serviços de apoio social, no âmbito dos seus fins estatutários; m) Promove e apoia tecnicamente a criação e desenvolvimento de projectos e organizações no âmbito da economia social; n) Apoia, quando solicitada pelos estabelecimentos públicos e privados de apoio social, a auto regulação na promoção da qualidade, defesa do ambiente e condições de segurança, assim como a responsabilidade social, através do apoio à implementação dos respectivos sistemas de gestão e da certificação dos mesmos, em conformidade com os acordos celebrados para o efeito; o) Assegura, quando se mostre necessário, a tutela e curatela dos menores, interditos e inabilitados apoiados pela SCML, nos respectivos termos legais; p) Exerce as competências legais em matéria de protecção de crianças e jovens em perigo e de adopção; q) Cumpre os encargos decorrentes de doações, heranças ou legados dos seus benfeitores; r) Assegura a gestão do seu património imobiliário e aplica as suas disponibilidades financeiras do modo mais adequado à obtenção das receitas necessárias à prossecução dos seus fins, sempre sem prejuízo do respeito pelas obrigações assumidas e que impendem sobre os respectivos bens; s) Assegura a exploração dos jogos sociais do Estado, referidos no artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 56/2006, de 15 de Março, em regime de exclusividade para todo o território nacional, e a consequente distribuição dos resultados líquidos, podendo, de igual modo, explorar outros jogos que venham a ser criados; t) Exerce as demais competências necessárias à prossecução dos seus fins. 4 - A SCML desenvolve formas de acção cultural adequadas, nomeadamente através de museus, exposições, visitas, conferências e iniciativas análogas, com vista ao pleno aproveitamento, divulgação e fruição pública do seu património histórico e artístico.
No caso dos autos, apenas resulta incontroverso que a recorrente é pessoa coletiva privada sem fins lucrativos e que, o recorrido trabalhador desta, desempenhava as funções de “Técnico de Ação Educativa”, na Casa da Acolhimento da Fonte 33, e que, a presente ação tinha por objeto obrigações decorrentes desse contrato de trabalho que a recorrente celebrou com a recorrida.
Desconhece-se, no entanto, a atividade prosseguida Casa da Acolhimento da Fonte, designadamente que seja um equipamento que integra a Direção de Acolhimento e Desenvolvimento de Infância e Juventude da Recorrente Santa Casa da Misericórdia de Lisboa e que tenha como objetivo o acolhimento de crianças em perigo, cfr. alínea b), do n.º 3 do art.º 4º.
A recorrente nada alegou, neste sentido, quando solicitou a isenção de custas, nem existe factualidade alegada e demonstrada da qual resulte que estivesse em causa a contratação do autor resultasse do exercício das competências legais da ré em matéria de proteção de crianças em perigo, cfr. alínea p), do n.º 3 do art.º 4º.
Por outro lado, também não foi referido pela ré, que a atividade por si desenvolvida, na Casa de Acolhimento da Fonte, no âmbito da qual o recorrido desempenhou as suas funções, era totalmente desprovida de intuito lucrativo, nomeadamente por serem os serviços gratuitos, sem subvenções do Estado ou de outras entidades.
Assim, dos factos apurados apenas se conclui que, o litígio existente entre o autor e ré é comum a qualquer pessoa coletiva privada sem fins lucrativos da mesma natureza, ou mesmo de outra, não tendo conexão direta, instrumental ou exclusiva, com as especiais atribuições da recorrente.4
Não podemos, pois, inferir que estamos perante qualquer atuação respeitante ao âmbito das especiais atribuições da recorrente, para defesa dos interesses que especialmente lhe estão conferidos pelo respetivo estatuto, razão pela qual se entende que o que foi discutido nos autos – créditos salariais - nada tem a ver com o interesse público estatutariamente reconhecido à recorrente.
E, tratando-se, nos autos, de um tipo de ação comum a qualquer trabalhador e entidade empregadora, a recorrente não beneficia da isenção do pagamento de custas, pelo que improcede o seu recurso, nesta parte.
*
A ré insurge-se, ainda, relativamente à aplicação de multa, por entender que só após o despacho de indeferimento de isenção de custas ser notificado é que deve decorrer prazo para pagamento das custas e, só após este, sem que o pagamento das custas tenha sido feito, é que é a aplicação de multa era devida.
Em causa está a determinação para a recorrente proceder ao pagamento da multa a que alude o art.º 570, n.º 3 do CPC, que a recorrente liquidou.
Vejamos.
Conforme determina o art.º 13º do RCP, a taxa de justiça é paga nos termos fixados no Código de Processo Civil, sendo paga integralmente e de uma só vez por cada parte ou sujeito processual, salvo disposição em contrário resultante da legislação relativa ao apoio judiciário.
O pagamento da taxa de justiça faz-se até ao momento da prática do ato processual a ela sujeito, devendo o interessado entregar o documento comprovativo do pagamento ou realizar a comprovação desse pagamento, juntamente com o articulado ou requerimento, em conformidade com o disposto no art.º 14º do RCP.
A falta de pagamento da taxa de justiça devida determina a aplicação do regime cominatório previsto no Código de Processo Civil, e estando em causa a falta de pagamento da taxa de justiça devida pela apresentação da contestação, aplica-se o regime previsto no art.º 570º CPC.
De acordo com o n.º 3 do art.º 570 do CPC “[n]a falta de junção do documento comprovativo do pagamento da taxa de justiça devida ou de comprovação desse pagamento, no prazo de 10 dias a contar da apresentação da contestação, a secretaria notifica o interessado para, em 10 dias, efetuar o pagamento omitido com acréscimo de multa de igual montante, mas não inferior a 1 UC nem superior a 5 UC.”
No caso dos autos, a recorrente não efetuou o pagamento da taxa de justiça devida pela apresentação da contestação, nem apresentou o respetivo comprovativo na oportunidade a que alude o art.º 14º do RCP.
Contudo, tendo a recorrente requerido que lhe fosse reconhecida a isenção de custas, impunha-se ao Tribunal a quo a prolação de decisão sobre a questão suscitada e a notificação para proceder ao pagamento da taxa de justiça devida pela apresentação da contestação,
Ou seja, o pagamento da multa a que alude o art.º 570º, n.º 3 do CPC só seria devido, se notificada a recorrente da decisão que não lhe reconheceu ter direito a isenção de custas, e notificada para proceder ao pagamento da taxa devida pela contestação, a recorrente não tivesse procedido ao pagamento desta taxa.
Em face do exposto, assiste razão à recorrente nesta parte.
V- Responsabilidade pelas custas
Tendo a recorrente decaído parcialmente no recurso interposto as custas serão por si suportadas, na proporção do decaimento que se fixa em 50%, art.º 527 n.º 1 e 2 do CPC.
VI – Decisão.
Em face do exposto, acorda-se em;
a. Confirmar a decisão recorrida, na parte em que considerou que a recorrida não está isenta de custas;
b. Revogar a decisão recorrida quanto ao pagamento da multa a que alude o art.º 570º, n.º 3 do CPC.
Custas do recurso a cargo da recorrida, na proporção do seu decaimento que se fixa em 50%.
Lisboa, 30 de abril de 2025
Alexandra Lage
Leopoldo Soares, com a seguinte declaração de voto: Subscrevo o presente acórdão por considerar que factualmente estamos perante situação diversa da verificada no acórdão em que fui relator, proferido em 12.2.2025 no processo n.º 28334/23.9T8LSB.L1.
Paula Pott
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1. Citação extraída do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, processo 864/14.2T8BCL.G1, DE 30.06.2016, disponível in www.dgsi.pt.
2. Ver Acórdão da Relação de Guimarães.
3. O local de trabalho do recorrido aparece identificado no contrato de trabalho, consultado no processo principal através do citius.
4. Veja-se o acórdão desta Relação proferido em 22/03/2017, proferido no processo n.º 22455/16.1T8LSB.L1-4, disponível in www.dgsi.pt, no qual se sumariou o seguinte:
“1.-De acordo com a al. f), do nº 1 do artigo 4º do RCP, as pessoas colectivas privadas sem fins lucrativos estão isentas de custas “quando actuem exclusivamente no âmbito das suas especiais atribuições ou para defender os interesses que lhe estão especialmente conferidos pelos respectivos estatutos ou nos termos de legislação que lhes seja aplicável. 2 – Actua fora das condições referidas na al. f) do n.º 1 do artigo 4º do RCP, a Ré, Instituição Particular de Solidariedade Social, no âmbito de uma acção em que é demandada para pagar diferenças salariais e uma indemnização por danos morais em virtude de contrato de trabalho alegadamente existente entre a Autora e a Ré.”f) Assim, e por atuar, no presente processo, exclusivamente no âmbito dos referidos fins Estatutários e suas especiais atribuições, assim defendendo os interesses que lhe são especialmente conferidos pelos respetivos Estatutos (…)”.