I - De acordo com o art. 24.º, n.º 1, do RJCS, “o tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exatidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador”.
II - Em caso de incumprimento doloso deste dever (ou ónus), o tomador do seguro ou o segurado sofre as consequências da anulação do contrato por iniciativa do segurador e, na hipótese de incumprimento negligente, da alteração do contrato proposta pelo segurador, ou da cessação do contrato pelo segurador que demonstre que nunca celebraria qualquer contrato em ordem à cobertura de riscos relacionados com os factos omitidos ou declarados sem exatidão (cf. arts. 25.º e 26.º do RJCS).
III - A adequada delimitação do risco a segurar depende da exatidão e completude das informações prestadas pelo tomador do seguro ou pelo segurado.
IV - Afigura-se censurável a omissão de que padecia de diabetes, porquanto o conhecimento geral do risco que essa doença representa para a saúde podia e devia ter conduzido o segurado a declarar ao segurador o respetivo diagnóstico.
Acordam no Supremo Tribunal de Justiça,
I – Relatório
1. AA intentou ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra Crédito Agrícola Vida, Companhia de Seguros, S.A., e Caixa de Crédito Agrícola Mútuo dos Açores, C.R.L., pedindo o seguinte:
a) que fosse julgado ter sido ilegalmente declarada pela 1.ª Ré a anulação do contrato de seguro efetuado pelo irmão da Autora em benefício da 2.ª Ré;
b) que a 1.ª Ré fosse condenada a reconhecer a validade daquele contrato e, consequentemente, a pagar à 2.ª Ré a totalidade do crédito referente ao prémio de seguro à data da morte do irmão BB da Autora;
c) que a 2.ª Ré fosse condenada a reconhecer o direito da Autora e, consequentemente, a devolver-lhe todos os montantes relativos às prestações mensais do crédito à habitação segurado, que foram sendo pagas pela Autora desde o falecimento de seu irmão BB até à liquidação integral do montante que então ainda estiver em dívida;
d) que ambas as Rés fossem condenadas solidariamente no pagamento dos juros de mora sobre a totalidade do montante devido à Autora à data da morte do seu irmão e não pago.
2. Apara o efeito, a Autora AA alegou, em síntese, que:
- o seu (falecido) irmão BB - do qual é única e universal herdeira - contraiu um empréstimo para habitação, junto da 2.ª Ré Caixa de Crédito Agrícola Mútuo dos Açores, C.R.L., no montante global de 80.000,00 €, tendo contratado celebrado um seguro de vida com a 1.ª Ré;
- informada do óbito de BB, a 1.ª Ré, Crédito Agrícola Vida, Companhia de Seguros, S.A., recusou-se a cumprir o contrato de seguro, invocando a sua anulação com base na prestação de falsas declarações pelo falecido aquando da celebração do contrato;
- a Autora continua a pagar as prestações do mútuo, tendo já liquidado a quantia de 5.768,69 €.
3. A 2.ª Ré, Caixa de Crédito Agrícola Mútuo dos Açores, C.R.L., apresentou contestação, em que se defendeu por exceção dilatória (ilegitimidade processual) e por impugnação.
4. Também a 1.ª Ré, Crédito Agrícola Vida, Companhia de Seguros, S.A., apresentou contestação, defendendo-se por exceção perentória - a anulação/ “nulidade do contrato de seguro” celebrado com o falecido BB, por o mesmo ter prestado falsas declarações aquando da respetiva celebração - e por impugnação.
5. Notificada para o efeito, a Autora AA, a 8 de março de 2022, respondeu às exceções invocadas pelas Rés, pugnando pela sua improcedência.
6. Foi dispensada a realização de audiência prévia e proferido despacho saneador, em que se considerou improcedente a exceção de ilegitimidade processual da 2.ª Ré Caixa de Crédito Agrícola Mútuo dos Açores, C.R.L., assim como o despacho de identificação do objeto do litígio e enunciação dos temas de prova.
7. A 17 de junho de 2022, foram juntos aos autos documentos requisitados ao Centro de Saúde ....
8. Realizou-se a audiência de discussão e julgamento.
9. De seguida, o Tribunal de 1.ª Instância, por sentença, decidiu o seguinte:
“Em face do exposto:
1. Declaro a nulidade do contrato de seguro que BB celebrou com a CRÉDITO AGRÍCOLA VIDA, COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. em 03.05.2018, traduzido na apólice n.º ...01.
2. Em razão dessa nulidade e pelos efeitos que dela decorrem determino que a CRÉDITO AGRÍCOLA VIDA, COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. restitua à Autora AA todos os montantes que por conta dele recebeu a título de prémio e que se apurará em execução de sentença;
3. Absolvo as Rés CRÉDITO AGRÍCOLA VIDA, COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. e CAIXA DE CRÉDITO AGRÍCOLA MÚTUO DOS AÇORES dos pedidos que contra ela a Autora formulou.
Custas pela Autora. Registe e notifique.”
10. Não conformada com a decisão, a Autora AA interpôs recurso de apelação, preconizando a revogação da sentença e a sua substituição por decisão que “considere provados e não provados os factos nos termos das conclusões antes apresentadas.”
11. A 1.ª Ré, Crédito Agrícola Vida, Companhia de Seguros, S.A., apresentou alegação de resposta, sustentando a improcedência do recurso e requerendo a ampliação do âmbito do âmbito do recurso, ao abrigo do art. 636.º do CPC.
12. A 2.ª Ré, Caixa de Crédito Agrícola Mútuo dos Açores, C.R.L., não apresentou contra-alegações.
13. Foi proferido despacho de admissão do recurso pelo Tribunal de 1.ª Instância, pronunciando-se nos termos do art. 617.º, n.º 1, do CPC, sobre a nulidade arguida no que qualificou de “recurso ampliado”, no sentido do indeferimento da respetiva arguição “uma vez que o Tribunal apenas fez operar oficiosamente os efeitos jurídicos decorrentes da nulidade, como é sua obrigação, pelo que se mantém o decidido”.
14. As partes foram convidadas a pronunciarem-se sobre a inadmissibilidade legal da requerida ampliação do âmbito do recurso, nada tendo dito.
15. Por acórdão de 6 de janeiro de 2023, o Tribunal da Relação de Lisboa decidiu o seguinte:
“Pelo exposto, decide-se conceder provimento ao recurso, revogando-se, em consequência, a sentença recorrida, e, em substituição da mesma, decide-se julgar parcialmente procedente a ação intentada por AA e, assim:
a) declarar ilegal a anulação do contrato de seguro efetuada pela 1.ª Ré (CRÉDITO AGRÍCOLA VIDA, COMPANHIA DE SEGUROS, S.A.), julgando improcedente a exceção de nulidade/anulabilidade desse contrato de seguro;
b) condenar a 1.ª Ré a reconhecer a validade de tal contrato de seguro e, consequentemente, a pagar à 2.ª Ré (CAIXA DE CRÉDITO AGRÍCOLA MÚTUO DOS AÇORES) a quantia a liquidar correspondente ao montante do crédito à habitação em dívida à data da morte do segurado BB até ao limite do capital seguro então em vigor, absolvendo aquela (1.ª) Ré do mais peticionado;
c) condenar a 2.ª Ré a restituir à Autora a quantia de 72.080,19 €, bem como a que vier a ser liquidada atinente às prestações do mútuo que pagou desde o falecimento daquele segurado até 30-12-2021;
d) condenar a 2.ª Ré a pagar à Autora os juros de mora, à taxa legal, que se vençam sobre as quantias referidas em c), desde a data do trânsito em julgado do presente acórdão.
Mais se decide condenar ambas as Rés-Apeladas no pagamento das custas da ação e do recurso, na proporção de metade cada uma.”
16. Não conformada, a 1.ª Ré, Crédito Agrícola Vida, Companhia de Seguros, S.A., interpôs recurso de revista, formulando as seguintes Conclusões:
“I. Age com dolo quem, perfeitamente consciente da obrigação de responder com verdade e da importância da sua resposta para a apreciação do risco em contrato de seguro que pretendia celebrar, quando questionado direta e expressamente sobre se sofria de diabetes, colesterol ou triglicéridos, responde negativamente, sabendo que padecia de tais doenças, diagnosticadas apenas 43 dias antes.
II. Não decidiu corretamente o Tribunal da Relação de Lisboa, ao julgar procedente o recurso da Autora, ora Recorrida, revogando a decisão do Tribunal de 1.ª Instância que havia julgado procedente a exceção de anulabilidade do contrato de seguro invocada pela Ré, ora Recorrente, condenando-a, agora, no acionamento das garantias do referido contrato.
III. Ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo no acórdão referido, resulta da matéria de facto provada (mesmo com as alterações da matéria de facto efetuadas no acórdão recorrido) que BB, quando celebrou o contrato com a Recorrida, estava ciente das patologias que sofria, bem como que prestou falsas declarações à Recorrente de forma dolosa.
IV. Com efeito, a matéria de facto provada no ponto 29 da matéria de facto, refere expressamente a data da consulta de 21.03.2018 na Unidade de Saúde da Ilha ..., (cfr. email desta unidade de saúde de 17.06.2022) onde tal diagnóstico foi transmitido ao referido BB:
“…21-03-2018 Dra. CC
09:00 É diabético de novo
A
DIABETES TIPO 2 (T90)
ALTERAÇÃO DO METABOLISMO DOS LÍPIDOS (T93)
P
Quer fazer só dieta…”
V. Facto esse que [para além das próprias médicas de família (cujo depoimento se encontra parcialmente transcrito no acórdão recorrido) e do Tribunal de primeira instância] a própria Recorrida aceitou por requerimento de 26.09.2022, onde referiu expressamente que “resulta com muitíssima probabilidade para a A, que sim, o seu irmão teria tido conhecimento, em momento anterior à celebração do contrato com a ora R. que teve resultados positivos para diabetes II numa das análises que realizou”.
VI. E que foi aceite também pelo próprio Tribunal a quo, quando, relativamente a esta matéria, ao apreciar as circunstâncias da referida consulta de 21.03.2018, acaba por concluir que BB – nas palavras do próprio Tribunal a quo -“foi confrontado (…) com um diagnóstico que não esperava” (pag. 31 in fine)…
VII. Tal facto, em qualquer caso, sempre resultaria igualmente das regras de experiência comum, na medida em que, tendo ficado provado que BB “tinha dislipidemia e diabetes mellitus, pelo menos, desde 21-03-2018” (facto provado n.º 29), e tendo esta data sido fixada, como referido, por referência à consulta supra referida (e não, por exemplo, à da realização de quaisquer exames cujo resultado pudesse desconhecer), sempre seria da normalidade das coisas que, em consulta, a respetiva médica lhe tivesse transmitido – como efetivamente transmitiu - o conhecimento sobre a existência das patologias.
VIII. Demonstrado que ficou também que, meros 43 dias depois de ter sido informado sobre as doenças, quando foi questionado expressa e especificamente sobre as mesmas, respondeu que delas não padecia (cfr. facto provado 30 e 31), e considerando que a gravidade das doenças em causa é do conhecimento geral e comum (e normalmente incluídas nos chamados “fatores de risco”) - designadamente a diabetes, cuja cronicidade e gravidade são de conhecimento geral de qualquer homem médio, designadamente de alguém com educação superior, como é o caso de BB, professor de História - apenas se pode concluir que tal resposta negativa foi dolosa, pois não só o diagnóstico estava fresco na sua memória, como o mesmo tinha perfeita consciência da importância de responder com verdade às perguntas efetuadas pela Recorrente relativamente a uma doença cuja gravidade – como qualquer outra pessoa – conhecia.
IX. Ademais, ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo, não é necessário que o segurado tenha “intenção de obter uma vantagem” para considerar verificado o dolo previsto no n.º 1, do art.º 25 do RJCS, mas sim, e apenas, para decidir sobre a devolução dos prémios no caso previsto no n.º 5 do mesmo artigo.
X. Mesmo admitindo que o dolo referido no art.º 25.º, n.º 1, do RJCS, é o chamado “dolo-negocial”, melhor definido no art.º 253.º do Código Civil, não era exigível à Recorrida a prova de qualquer intenção de obter uma vantagem, bastando a prova da consciência de estar a induzir a parte contrária em erro, incluindo por simples omissão.
XI. O que se verifica no caso dos presentes autos, onde uma das partes não só omite conscientemente o seu dever (previsto no art.º 24.º do RJCS) de informar sobre as doenças “de risco” de que padece, como ativamente redige uma resposta falsa num documento entregue à contraparte, consciente da importância da informação solicitada e da sua relevância para os termos do negócio.
XII. Mesmo admitindo – sem conceder – que não estava demonstrado que o segurado agiu com dolo, sempre permitiriam os factos provados concluir que o mesmo agiu, pelo menos, de forma negligente, já que, no mínimo, tinha a obrigação de ter respondido com verdade às questões constantes do questionário clínico, de que tinha conhecimento (ainda que - sem conceder – as tivesse desvalorizado), caso em que o Tribunal a quo deveria ter aplicado o disposto no n.º 4 do art.º 26.º do RJCS, reduzindo proporcionalmente o valor da quantia pagar pela Recorrida, a liquidar em incidente de liquidação de sentença.
XIII. Ao decidir como decidiu, o Tribunal a quo, violou o disposto nos artigos 607.º, números 3 e 4 e 662.º, n.º 1, do Código de Processo Civil e o disposto nos artigos 24.º, n.º 1, 25.º, n.ºs 1 e 3, 26.º, n.º 4, al. a), do Regime Jurídico do Contrato de Seguro, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril.
XIV. Por outro lado, ao reconhecer que o segurado teve conhecimento das doenças omitidas em momento anterior à celebração do contrato de seguro (cfr, designadamente pag. 31 in fine do acórdão recorrido: “foi confrontado (…) com um diagnóstico que não esperava”), mas, contraditoriamente, fundamentar a decisão com a ausência de prova de tal facto, referindo que não estava verificado o dolo por não ter ficado “provado que o segurado, à data em que preencheu o dito questionário, estivesse ciente de que padecia efetivamente das duas aludidas patologias”, o acórdão recorrido ficou a padecer da nulidade prevista no art.º 615.º, c) do CPC.
Termos em que, com o douto suprimento de V.Exas., se requer seja concedido provimento ao presente recurso de Revista, revogando-se o douto Acórdão recorrido, como é de inteira JUSTIÇA.”
17. A Autora AA apresentou contra-alegações.
18. O recurso foi admitido pelo Senhor Desembargador-Relator.
19. Por acórdão de 9 de novembro de 2023, o Tribunal da Relação de Lisboa, em conferência, decidiu o seguinte:
“Por todo o exposto, acorda-se em julgar não verificada a nulidade do acórdão invocada na alegação do recurso de revista.
Notifique e, após, conclua de imediato, a fim de ser proferido, pela ora Relatora, despacho sobre o requerimento de interposição de recurso de revista (cf. art. 641.º do CPC).”
II – Questões a decidir
Atendendo às conclusões do recurso, que, segundo os arts. 608.º, n.º 2, 635.º, n.º 4 e 639.º, do CPC, delimitam o seu objeto, e não podendo o Supremo Tribunal de Justiça conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser em situações excecionais de conhecimento oficioso, está em causa a questão de saber se o falecido segurado incumpriu dolosamente o seu dever de declaração inicial do risco nos termos previstos no art. 24.º do Regime Jurídico do Contrato de Seguro (doravante RJCS), aprovado pelo DL n.° 72/2008, de 16 de abril, ao não ter declarado que padecia de diabetes de tipo 2 e de dislipidemia.
III – Fundamentação
A) De Facto
Após as alterações introduzidas pelo Tribunal da Relação de Lisboa, foram dados como provados os seguintes factos:
“1. No dia ... de setembro de 2020, faleceu BB, solteiro, maior, com o NIF ...50.
2. Sucedeu-lhe, como única e universal herdeira sua única irmã, AA, com o NIF ...69, casada no regime de comunhão de adquiridos com DD e com ele residente na Rua ..., freguesia de ..., concelho de ....
3. O falecido BB celebrara com a Caixa de Crédito Agrícola Mútuo dos Açores, 2.ª Ré, um contrato de mútuo, denominado Crédito à Habitação, através do qual obteve o financiamento para construção da sua então casa de habitação própria e permanente.
4. Para garantia do bom e pontual pagamento das prestações do mútuo, o falecido BB oferecera a hipoteca do imóvel, nesta se integrando as benfeitorias a edificar.
5. O falecido BB celebrara ainda um contrato de seguro de vida, denominado Seguro Proteção Crédito à Habitação com a 1.ª Ré, a que corresponde a apólice n.º ...01 e segurado o capital de 80.000 € (oitenta mil euros), do qual, em consequência de sinistro abrangido pelo contrato, era beneficiária a instituição de crédito, 2.ª Ré que, em consequência, seria integralmente ressarcida do mútuo em dívida à data do sinistro.
6. O imóvel adquirido pelo falecido BB que constitui o prédio urbano encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... e inscrito na respetiva matriz predial urbana no art.º...35 P.
7. A Autora, logo após o falecimento de seu irmão BB, e por ser a sua única e universal herdeira, acionou a apólice de seguro junto da 1.ª Ré, com escritório na sede da 2.ª Ré, já que o sinistro morte, entre outros, é abrangido pelo mencionado contrato de seguro,
8. na expetativa de vir a companhia de seguros, 1.ª Ré, a liquidar integralmente o crédito devido por seu irmão à instituição bancária 2.ª Ré, à data do falecimento deste.
9. A companhia de seguros e 1.ª Ré, por carta de 13-04-2021, respondeu à Autora, nos termos que se citam: «... após análise da documentação clínica que nos foi entregue ..., veio a apurar-se que o Sr. BB sofria de dislipidemia e diabetes mellitus, pelo menos desde 21/03/2018, com medicação para o efeito...Assim, aquando da subscrição da adesão ao seguro CA Proteção Crédito Habitação, 03/05/2018, o Senhor BB omitiu deliberada e intencionalmente as doenças que tinha... Assim, a adesão do Sr. BB ao contrato de seguro titulado pela apólice supra referenciada é nula - anulação que aqui se invoca -, pelo que não há lugar ao pagamento de qualquer valor por parte da Crédito Agrícola Vida.».
10. A autópsia, realizada a ...-09-2021, considerou que a situação que levou ao falecimento do irmão da Autora “harmoniza-se com uma etiologia médico-legal suicida”.
11. A Autora viu-se obrigada a pagar à 2.ª Ré as mensalidades do referido empréstimo que se iam vencendo, o que foi acontecendo através da conta bancária que aquele seu irmão mantinha na referida 2.ª Ré.
12. Os pagamentos das prestações do empréstimo foram efetuados através e com o saldo existente na conta à ordem que o irmão da Autora detinha junto da Ré.
13. BB subscreveu e celebrou com a 1.ª Ré o seguro de vida mencionado em 5., o que fez através do preenchimento e subscrição, em 03-05-2018, da Declaração Individual de Adesão ao Seguro de Grupo celebrado com a co - Ré Caixa de Crédito Agrícola Mútuo dos Açores, CRL (doravante designada por “CCAM”).
14. Preenchendo também o respetivo Questionário Clínico, na mesma data.
15. Prestando, assim, as informações, as declarações e os dados relativos ao seu estado de saúde que constam desses documentos.
16. Tendo a sua adesão ao referido seguro de grupo sido aceite pela Ré nos termos do respetivo Certificado Individual de Adesão, que lhe foi enviado.
17. E ficando o contrato a reger-se pelas respetivas Condições Gerais e Especiais que lhe foram entregues.
18. O seguro de vida em questão tinha um Capital Seguro inicial de 80.000,00 € para as coberturas de “Morte”, “Morte por Acidente”, “Morte por Acidente de Circulação”, “Invalidez Definitiva para a Profissão ou Actividade Compatível” e “Invalidez Definitiva para a Profissão ou Actividade Compatível por Acidente”.
19. E tinha como primeira beneficiária a referida CCAM “Pelo montante em dívida à data da ocorrência do risco coberto pela Apólice, tendo como limite o capital contratado” e, para o capital seguro remanescente (caso existisse), seriam beneficiários em caso de morte “Herdeiros legais” e, em caso de invalidez, o próprio BB.
20. Para efeitos da aceitação da proposta de adesão ao seguro, aquando da assinatura da referida Declaração Individual de Adesão, BB declarou aí expressamente perante a Ré:
“...estar inteiramente esclarecido e ciente do dever que tem de declarar com verdade e com exactidão sobre todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pela CA Vida, mesmo relativamente a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pela CA Vida para o efeito, bem como declara estar perfeitamente ciente das consequências do incumprimento desse seu dever, e declara ter respondido com inteira verdade às perguntas constantes desta Declaração Individual de Adesão, sendo os dados e informações fornecidos pelo Signatário da sua inteira e exclusiva responsabilidade, ainda que a Declaração Individual de Adesão tenha sido preenchida por terceiro(s) e por si apenas assinada.”.
21. Bem como aí declarou também expressamente:
“(...) ter tomado conhecimento de todas as informações necessárias à celebração do presente contrato, e que tomou conhecimento das condições aplicáveis ao mesmo, designadamente, as constantes das Informações Pré-contratuais que constam da presente Declaração Individual de Adesão, bem como as constantes das condições gerais da apólice e das Condições Especiais, assim como das constantes das suas Condições Particulares, com elas concordando inteiramente.”
22. BB tomou também conhecimento das informações pré-contratuais relativas à “DECLARAÇÃO INICIAL DE RISCO”, constantes da própria Declaração Individual de Adesão, onde se pode ler o seguinte:
“O Tomador do Seguro, o Segurado e a Pessoa Segura, estão obrigados, antes da celebração do Contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheçam e razoavelmente tenham por significativas para a apreciação do risco pela CA Vida, mesmo relativamente a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pela CA Vida para o efeito.
Em caso de incumprimento doloso deste dever, o Contrato, ou a Adesão ao Contrato em causa, é anulável mediante declaração enviada pela CA Vida ao Tomador do Seguro ou ao Segurado, consoante se trate dum incumprimento do Tomador de Seguro ou se trate dum incumprimento do Segurado/Pessoa Segura. Não tendo ocorrido sinistro, a declaração referida no número anterior deve ser enviada no prazo de 3 (três) meses a contar do conhecimento daquele incumprimento. A CA Vida não está obrigada a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso ou no decurso do período de três meses referido, seguindo-se o regime geral da anulabilidade. A CA Vida tem direito ao prémio devido até ao final do Contrato ou até ao final do referido prazo de três meses, consoante haja ou não dolo com o propósito de obter uma vantagem, salvo se, neste último caso, a CA Vida ou um seu representante tiverem concorrido com dolo ou negligência grosseira.
Em caso de incumprimento com negligência deste dever, a CA Vida pode, mediante declaração a enviar ao Tomador do Seguro ou ao Segurado, consoante o caso, no prazo de 3 (três) meses a contar do seu conhecimento: a) propor uma alteração do Contrato/Adesão, fixando um prazo, não inferior a 14 dias, para o envio da aceitação ou, caso a admita, da contraproposta; b) fazer cessar o Contrato/Adesão, demonstrando que, em caso algum, celebra contratos para a cobertura de riscos relacionados com o facto omitido ou declarado inexactamente. O Contrato, ou a Adesão em causa, cessa os seus efeitos 30 (trinta) dias após o envio da declaração de cessação ou 20 (vinte) dias após a recepção pelo Tomador do Seguro/Segurado da proposta de alteração, caso este nada responda ou a rejeite, sendo o prémio devolvido pro rata temporis atendendo à cobertura havida. Se, antes da cessação ou da alteração do Contrato/Adesão, ocorrer um sinistro cuja verificação ou consequências tenham sido influenciadas por facto relativamente ao qual tenha havido omissões ou inexactidões negligentes, a CA Vida: cobre o sinistro na proporção da diferença entre o prémio pago e o prémio que seria devido, caso, aquando da celebração do Contrato, tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexactamente; ou, demonstrando que, em caso algum, teria celebrado o Contrato se tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexactamente, não cobre o sinistro e fica apenas vinculado à devolução do prémio.”,
23. Bem como que tomou conhecimento das cláusulas das Condições Gerais da Apólice, onde a cláusula 2.ª, sob a epígrafe “Incontestabilidade”, estabelece que:
“As declarações prestadas pelo Tomador do Seguro, pelo Segurado e pela Pessoa Segura, tanto na Declaração Individual de Adesão, como nos demais documentos exigidos para a avaliação do risco, designadamente a Declaração de Saúde, Questionário Clínico e eventuais exames médicos, servem de base ao presente contrato e fazem parte integrante do mesmo, o qual é incontestável após a sua entrada em vigor, sem prejuízo do estabelecido sobre a nulidade ou anulabilidade do contrato.”
24. E onde os n.ºs 1 e 2 da Cláusula 5.ª e a cláusula 6.ª determinam o seguinte: “Cláusula 5ª – Dever de declaração inicial do risco
1. O Tomador do Seguro, o Segurado e a Pessoa Segura estão obrigados, antes da celebração do Contrato, a declarar com exactidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pela CA Vida.
2. O disposto no número anterior é igualmente aplicável a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pela CA Vida para o efeito.
(...) Cláusula 6ª - Incumprimento doloso do dever de declaração inicial do risco
1. Em caso de incumprimento doloso do dever referido no número 1 da Cláusula anterior, o Contrato, ou a Adesão ao Contrato em causa, é anulável mediante declaração enviada pela CA Vida ao Tomador do Seguro ou ao Segurado/Pessoa Segura, consoante se trate dum incumprimento do Tomador do Seguro ou se trate dum incumprimento do Segurado/Pessoa Segura.
2. Não tendo ocorrido sinistro, a declaração referida no número anterior deve ser enviada no prazo de 3 (três) meses a contar do conhecimento daquele incumprimento.
3. A CA Vida não está obrigada a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso referido no número 1 da presente Cláusula ou no decurso do prazo previsto no número anterior, seguindo-se o regime geral da anulabilidade.
4. A CA Vida tem direito ao prémio devido até ao final do prazo referido no número 2 da presente Cláusula, salvo se tiver concorrido dolo ou negligência grosseira sua ou do seu representante.
5. Em caso de dolo do Tomador do Seguro, do Segurado ou da Pessoa Segura com o propósito de obter uma vantagem, o prémio é devido até ao termo do Contrato.”
25. BB assinou os referidos documentos com perfeito conhecimento das declarações que havia proferido ao assiná-los, e da sua importância para a celebração do contrato em causa.
26. Documentos esses que, uma vez preenchidos e assinados, foram analisados e apreciados pela primeira Ré, tendo sido por esta aceite celebrar o referido contrato de seguro com base nas informações aí prestadas pelo mesmo.
27. Sucede que, aquando do preenchimento e assinatura do referido Questionário Clínico, BB, designadamente às perguntas sobre se “Toma ou tomou alguns medicamentos ou qualquer outro tipo de medicamento com ou sem receita médica?” e se “tem ou teve alguma das seguintes doenças ou distúrbios: METABÓLICAS: Diabetes, colesterol, triglicéridos, ácido úrico/gota, bócio, tiróide ou outros distúrbios hormonais”, respondeu que “Não”.
28. Questionário este que tinha por finalidade o esclarecimento da Ré sobre o seu real estado de saúde e, consequentemente, possibilitar a correta avaliação do risco a segurar.
29. No entanto, após a análise da documentação clínica entregue à Ré, designadamente o Relatório da Médico Família (Assistente), Dra. CC, veio a apurar-se que o BB tinha dislipidemia e diabetes mellitus, pelo menos, desde 21-03-2018.
30. Nada tendo, no entanto, o mesmo declarado sobre tais patologias aquando da subscrição do seguro.
31. Aquando da subscrição da adesão ao seguro, BB não declarou que padecia das doenças referidas em 29.
32. Se a Ré soubesse (que não soube) da real situação clínica de BB, preexistente à data da celebração do contrato, e ainda assim, decidisse aceitar celebrar o seguro, seria sempre com condições diferentes das que veio a contratar, designadamente, quanto a exclusões e prémios,
33. Uma vez que, nesse caso (de decidir, ainda assim, contratar o seguro com BB) o seguro ficava sempre com causas de exclusão adicionais,
34. Para além de ficar, também, com prémios de seguro mais elevados.
35. Em 30-12-2021 a Autora solicitou à segunda Ré a liquidação antecipada do empréstimo n.º ...36, o que veio a ocorrer no mesmo dia, liquidando-se o montante global de 72.080,19 €.
36. A garantia hipotecária que existia sobre o imóvel foi cancelada, mediante entrega de distrate na outorga da escritura de compra e venda.”
Também depois das alterações introduzidas pelo Tribunal da Relação, foram dados como não provados os seguintes factos:
“a) O irmão da Autora, à data da celebração do contrato de seguro celebrado com a 1ª Ré, não sabia nem poderia saber e muito menos “omitiu deliberada e intencionalmente”, que padecia das doenças que fundamentaram a declaração unilateral de nulidade do contrato de seguro celebrado, a saber, dislipidemia e diabetes mellitus.
b) As análises clínicas que identificaram aquelas indicadas patologias ocorreram em 3 de setembro de 2018.
c) A última consulta médica realizada antes daquelas análises clínicas ocorreu a 4 de junho de 2018.
d) Só na consulta seguinte à obtenção do resultado das referidas análises clínicas que realizou em 3 de Setembro de 2018, poderia ter sido o falecido irmão da Autora informado pela sua médica assistente, que padecia daquelas supra indicadas patologias, consulta que ocorreu em 18 de novembro de 2019.
e) Os exames efectuados pelo falecido irmão da Autora, foram realizados em data posterior a 21-03-2018, mais precisamente em: 3-9-2018, 30-1-2019, 25-10-2019 e 18-6-2020.
f) O suicídio deveu-se a questões do foro psiquiátrico, para as quais contribuiu a pressão profissional que sentiu em resultado de ser professor e de se ter de adaptar ao fim de mais de trinta anos de ensino presencial ao ensino à distância em virtude das medidas de contenção da pandemia por Covid-19.
g) Se a Ré soubesse da real situação clínica de BB, preexistente à data da celebração do contrato não teria, sequer, aceite celebrar o contrato de seguro com o mesmo.
h) Em 03-05-2018, BB tomava medicação para a dislipidemia e diabetes mellitus, pelo menos desde 21-03-2018, e encontrava-se submetido a tratamentos. - ADITADO PELA RELAÇÃO
i) A atuação de BB descrita em 31. foi deliberada e intencional.”
B) De Direito
Verificam-se, in casu, os requisitos gerais de admissibilidade do recurso de revista regra ou normal interposto pela 1.ª Ré, Crédito Agrícola Vida, Companhia de Seguros, S.A.. Com efeito, é tempestivo, a Recorrente tem legitimidade e a decisão (acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 1 de junho de 2023) é recorrível. A alegação recursória foi apresentada com as respetivas conclusões (cf. arts. 629.º, n.º 1, 631.º, 638.º, 639.º, 641.º e 671.º, n.º 1, do CPC).
Inobservância dolosa ou não, pelo falecido segurado, do dever (ou ónus) de declaração inicial do risco nos termos previstos no art. 24.º do RJCS
1. De acordo com o art. 24.º (“Declaração inicial do risco”), n.º 1, do RJCS, “o tomador do seguro ou o segurado está obrigado, antes da celebração do contrato, a declarar com exatidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador”. Por seu turno, conforme o n.º 2, do mesmo preceito, tal é igualmente aplicável a circunstâncias cuja menção não seja solicitada em questionário eventualmente fornecido pelo segurador para o efeito. Por fim, segundo o n.º 3, "(O) segurador que tenha aceitado o contrato, salvo havendo dolo do tomador do seguro ou do segurado com o propósito de obter uma vantagem, não pode prevalecer-se: a) Da omissão de resposta a pergunta do questionário; b) De resposta imprecisa a questão formulada em termos demasiado genéricos; c) De incoerência ou contradição evidentes nas respostas ao questionário; d) De facto que o seu representante, aquando da celebração do contrato, saiba ser inexacto ou, tendo sido omitido, conheça; e) De circunstâncias conhecidas do segurador, em especial quando são públicas e notórias."
2. Em caso de incumprimento doloso do dever (ou ónus) estabelecido no art. 24.º, n.º 1, do RJCS, o tomador do seguro ou o segurado sofre as consequências da anulação do contrato por iniciativa do segurador e, na hipótese de incumprimento negligente, da alteração do contrato proposta pelo segurador, ou da cessação do contrato pelo segurador que demonstre que nunca celebraria qualquer contrato em ordem à cobertura de riscos relacionados com os factos omitidos ou declarados sem exatidão (cf. arts. 25.º e 26.º do RJCS).
3. Sobre as "Omissões ou inexactidões dolosas" rege o disposto no art. 25.º do RJCS, de acordo com o qual: "1 - Em caso de incumprimento doloso do dever referido no n.° 1 do artigo anterior, o contrato é anulável mediante declaração enviada pelo segurador ao tomador do seguro. 2. Não tendo ocorrido sinistro, a declaração referida no número anterior deve ser enviada no prazo de três meses a contar do conhecimento daquele incumprimento. 3. O segurador não está obrigado a cobrir o sinistro que ocorra antes de ter tido conhecimento do incumprimento doloso referido non.° 1 ou no decurso do prazo previsto no número anterior, seguindo-se o regime geral da anulabilidade. 4. O segurador tem direito ao prémio devido até ao final do prazo referido no n° 2, salvo se tiver concorrido dolo ou negligência grosseira do segurador ou do seu representante. 5- Em caso de dolo do tomador do seguro ou do segurado com o propósito de obter uma vantagem, o prémio é devido até ao termo do contrato."
4. Já o art. 26.° do RJCS regula, em termos menos gravosos para o tomador do seguro ou para o segurado as "Omissões ou inexactidões negligentes". Segundo este preceito, "1. Em caso de incumprimento com negligência do dever referido non.° 1 do artigo 24°, o segurador pode, mediante declaração a enviar ao tomador do seguro, no prazo de três meses a contar do seu conhecimento: a) Propor uma alteração do contrato, fixando um prazo, não inferior a 14 dias, para o envio da aceitação ou, caso a admita, da contraproposta; b) Fazer cessar o contrato, demonstrando que, em caso algum, celebra contratos para a cobertura de riscos relacionados com o facto omitido ou declarado inexactamente. 2. 0 contrato cessa os seus efeitos 30 dias após o envio da declaração de cessação ou 20 dias após a recepção pelo tomador do seguro da proposta de alteração, caso este nada responda ou a rejeite. 3. No caso referido no número anterior, o prémio é devolvido pro rata temporis atendendo à cobertura havida. 4. Se, antes da cessação ou da alteração do contrato, ocorrer um sinistro cuja verificação ou consequências tenham sido influenciadas por facto relativamente ao qual tenha havido omissões ou inexactidões negligentes: a) O segurador cobre o sinistro na proporção da diferença entre o prémio pago e o prémio que seria devido, caso, aquando da celebração do contrato, tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexactamente; b) O segurador, demonstrando que, em caso algum, teria celebrado o contrato se tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexactamente, não cobre o sinistro efica apenas vinculado à devolução do prémio."
5. O dever (ou ónus) de declaração inicial do risco, consagrado no art. 24.º, n.º 1, do RJCS, obriga o tomador do seguro ou o segurado a declarar com exatidão, antes da celebração do contrato de seguro, todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por relevantes para a apreciação do risco pelo segurador.
6. Trata-se de um dever (ou ónus) pré-contratual, essencial para a formação do contrato e para garantir que o segurador tenha conhecimento de todos os fatores revestido de relevância para a determinação do risco e, consequentemente, do prémio a cobrar.
7. Está, pois, em causa, a relevância do risco no âmbito das informações preliminares, maxime, das declarações que o tomador do seguro ou o segurado está obrigado a transmitir ao segurador antes da celebração do contrato
8. Importa, pois, apreciar se a omissão/inexatidão em apreço (i.e, a não declaração, pelo segurado, que padecia de diabetes de tipo 2 e de dislipidemia) deve ser considerada dolosa, porquanto apenas nessa hipótese existe fundamento para a anulação do contrato de seguro, anulação que foi comunicada pelo segurador, sobre o qual recai o ónus da alegação e da prova dos factos essenciais para esse efeito.
9. Trata-se de um dever (ou ónus) – de “(…) de declarar com exatidão todas as circunstâncias que conheça e razoavelmente deva ter por significativas para a apreciação do risco pelo segurador” - cujo cumprimento é exigido pela confiança ou fidúcia em que repousa o contrato de seguro, especialmente por respeitar a um pressuposto essencial da configuração da obrigação do segurador. Na verdade, o tomador de seguro ou o segurado encontra-se na posse da informação essencial para a devida individualização e delimitação do risco a segurar, nada restando ao segurador senão confiar nas declarações daquele. Trata-se, pois, de um contrato por “uberrima fides”. É um dever (ou ónus) de verdade.
10. Com efeito, a adequada delimitação do risco a segurar encontra-se dependente da exatidão e completude das informações prestadas pelo tomador do seguro ou pelo segurado, devendo este não só responder com zelo ao questionário eventualmente apresentado pelo segurador, como também prestar espontaneamente informações que, em boa-fé, se afigurem pertinentes para o propósito em causa (cf. art. 24.º, n.º 2, do RJCS).
11. Muito embora o responsável pelo cumprimento deste dever (ou ónus) nem sempre esteja em condições de avaliar adequadamente o risco representado por certo facto1, de um lado e, de outro, não seja razoável esperar que aja como "guardião do segurador"2, deve, em todo o caso, comportar-se com a "honestidade própria do cidadão comum, que não tem de acentuar quanto lhe seja desfavorável"3. Não parece legítimo que um segurado, que recebe formalmente a notícia de que padece de diabetes menos de dois meses antes das negociações destinadas à celebração do contrato de seguro, omita tal diagnóstico na sua declaração inicial.
12. A razoabilidade da perceção do caráter significativo de determinada informação para a apreciação do risco pelo segurador é balizada pelo critério do bonus pater famílias, assim como pelo bom senso ou senso comum4. Note-se que o legislador estabeleceu o sistema de declaração espontânea, fundado na assimetria informativa entre o tomador do seguro ou segurado e o segurador.
13. Não se trata, portanto, no caso em apreço, de interpretar com rigor as potenciais consequências da doença referida, pois isso não será de esperar do paciente comum ou médio. Trata-se antes de compreender como relevante para a avaliação do risco a cobrir pelo segurador num seguro de vida o diagnóstico de uma patologia que, como é do conhecimento geral, perturba quotidianamente o funcionamento regular do corpo humano, sendo até suscetível de o comprometer com gravidade.
14. Tal como mencionado pelo acórdão recorrido, perante a factualidade considerada como provada, pode dizer-se que não está demonstrada uma situação passível de configurar um "dolo qualificado", pois nada ilustra que o segurado BB, irmão da Autora, ao preencher o questionário, tivesse a intenção de obter uma determinada vantagem. Aliás, um tal facto nem foi alegado e nem provado pelas Rés.
15. Além disso, não tendo resultado provado que o segurado BB omitiu deliberada e intencionalmente ao segurador que padecia de diabetes de tipo 2 e de dislipidemia, também não se pode considerar verificado o dolo simples (causa do erro em que o segurador incorreu).
16. Acresce que, apesar de, via de regra, ter conhecimento privilegiado do risco, o tomador de seguro ou o segurado não é, a priori, a pessoa mais indicada para saber quais as informações relevantes cuja transmissão ao segurador se impõe, aquelas que são passíveis de modelar o conteúdo do contrato de seguro.
17. Por conseguinte, ficou por demonstrar o preenchimento de um pressuposto do direito que o Réu segurador exerceu, i.e., do direito à anulação do contrato de seguro em apreço.
18. Com efeito, dos factos dados como provados não se retira que o segurado BB enganou a Ré Crédito Agrícola Vida, Companhia de Seguros, S.A., tendo conscientemente feito uma declaração incorreta quanto a tais patologias – omitindo-as -, assim a induzindo ou mantendo em erro (mesmo sem daí pretender retirar qualquer vantagem). Aliás, não está sequer provado que o segurado, quando completou o referido questionário, estivesse ciente de que padecia efetivamente das duas patologias mencionadas (DM e dishpidemia). É que não se provou igualmente que tomasse qualquer medicação para as tratar, não se podendo, por isso, dizer que tenha emitido uma declaração conscientemente falsa.
19. Assim, atendendo à prova produzida nos autos, crê-se não existir dolo na conduta do segurado BB. De facto, nada permite afirmar que este não comunicou ou omitiu intencionalmente à contraparte a informação respeitante à sua doença. Afigura-se razoável que, tratando-se de um primeiro diagnóstico e não tendo naquele momento sido prescrita medicação para o efeito, o segurado pudesse considerar que a circunstância não se revelava ainda ameaçadora da sua condição de saúde, não era pertinente.
20. Já será censurável, todavia, o juízo de pertinência efetuado pelo segurado BB a propósito daquela informação, uma vez que, conforme mencionado supra, o conhecimento geral ou comum do risco que a diabetes representa para a saúde podia e devia tê-lo levado, de acordo com a diligência in casu exigível, a declarar ao segurador o respetivo diagnóstico.
21. Configurou-se, deste modo, um incumprimento negligente do dever (ou ónus) da declaração inicial do risco previsto no art. 24.º do RJCS, com as consequências em abstrato fixadas no art. 26.º, n.º 1, do mesmo diploma legal: podendo o segurador "propor uma alteração do contrato, fixando um prazo, não inferior a 14 dias, para o envio da aceitação ou, caso a admita, da contraproposta" [al. a)] ou "fazer cessar o contrato demonstrando que, em caso algum, celebra contratos para a cobertura de riscos relacionados com o facto omitido ou declarado inexatamente" [al. b)].
22. Consubstanciando-se a morte do segurado no sinistro – i.e., a verificação do evento futuro e incerto - previsto no art. 26.º, n.º 4, do RJCS, a consequência jurídica que a lei atribui à sua verificação, neste contexto, é a da respetiva cobertura na proporção da diferença entre o prémio pago e o prémio que seria devido no caso de, aquando da celebração do contrato de seguro de vida, o segurador ter conhecido o facto omitido ou declarado inexatamente [cf. al. a)], ou a não cobertura e a devolução do prémio, na hipótese de o segurador demonstrar que, em caso algum, teria concluído o contrato se tivesse conhecido o facto omitido ou declarado inexatamente pelo tomador do seguro ou pelo segurado [cf. al. b)]. Reitere-se, nesta sede, que uma circunstância apenas pode ser considerada como significativa se o segurador concreto não tivesse celebrado o contrato, ou tivesse celebrado o contrato condições diversas, na hipótese de haver tido tempestivamente conhecimento daquela mesma circunstância.
23. Aqueles efeitos estão dependentes do estabelecimento de um nexo de causalidade: i.e., de acordo com a lei, deve tratar-se de um sinistro "cuja verificação ou consequências tenham sido influenciadas por facto relativamente ao qual tenha havido omissões ou inexatidões negligentes" (art. 26.º, n.º 4, do RJCS), cabendo ao segurador o respetivo ónus de alegação e prova5. No caso sub judice, o segurador não logrou fazer essa prova, tendo resultado da autópsia realizada a confirmação de uma etiologia suicida, indiferente, portanto, às consequências físicas da patologia omitida na declaração inicial de risco pelo segurado.
24. Na verdade, "no caso de ocorrência de sinistro que em nada se relacione com aquelas circunstâncias (assim se concluindo na falta de prova em contrário), o segurador será obrigado a cobrir o dano, independentemente do incumprimento do tomador do seguro ou do segurado"6.
25. Pelo que não assiste razão ao segurador Crédito Agrícola Vida, Companhia de Seguros, S.A.: neste caso, uma redução proporcional da prestação a seu cargo. Não pode, pois, a esta Ré eximir-se à sua prestação, devendo cobrir os prejuízos decorrentes da verificação do risco.
IV – Decisão
Nos termos expostos, acorda-se em julgar improcedente o recurso de revista interposto por Crédito Agrícola Vida, Companhia de Seguros, S.A., confirmando-se o acórdão recorrido.
Custas pelo Recorrente.
Notifique-se.
29-04-2025
Maria João Vaz Tomé (Relatora)
Pedro de Lima Gonçalves
Jorge Leal
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2. Cf. António Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, Coimbra, Almedina, 2025, p. 632.↩︎
3. Cf. António Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, Coimbra, Almedina, 2025, p. 632.↩︎
4. Cf. António Menezes Cordeiro, Direito dos Seguros, Coimbra, Almedina, 2025, p. 632.↩︎
5. Cf. Filipe de Albuquerque Matos, Uma outra Abordagem em torno das Declarações Inexactas e Reticentes no âmbito do contrato de seguro. Os arts. 24.º a 26.º do Dec.-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, Coimbra, Coimbra Editora, 2010, pp. 636-637.↩︎
6. No mesmo sentido, vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21 de novembro de 2019 (Filipe Caroço), Proc. n.º 765/17.0T8AMT.P1 - disponível para consulta in www.dgsi.pt.↩︎