A violação meramente negligente do dever contratual do transportador, por não equivaler, nos termos do art. 29.º, n.º 1, da CMR, ao dolo, não o impede de se prevalecer do direito à limitação da sua responsabilidade por perda do bem a transportar.
Acordam no Supremo Tribunal da Justiça:
1. Relatório.
Blocotelha – Steel Constructions, SA, propôs, no Juízo Local de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, contra Alfaloc – Transportes, Lda., acção declarativa de condenação, com processo comum, pedindo a condenação da última a liquidar-lhe a quantia de € 14 004,47, a título de indemnização pelo extravio do seu equipamento, acrescida de juros, à taxa legal de 5%, até efectivo e integral pagamento,, a quantia de € 29 123,89, a título de indemnização pelos prejuízos suportados em virtude do extravio da mercadoria por parte da Ré (aluguer de equipamento) e nos custos adicionais que venha a incorrer com o supra mencionado aluguer, desde a data da propositura da acção até efectivo e integral pagamento, cujo montante deverá ser apurado em sede de liquidação de sentença.
Fundamentou estas pretensões no facto de, no dia 5 de Abril de 2022, haver acordado com a ré, o transporte, pelo preço de € 121,58, de um equipamento seu de ..., no Reino Unido, para entregar na Alemanha, que se extraviou, tendo sido forçada a alugar outro equipamento, o que lhe custava cerca de 90 libras por dia, e de a ré, que assumiu a responsabilidade pelo extravio, ter proposto indemnizá-la pela quantia de € 310,04, sendo € 121,58 referentes ao valor do transporte e € 188,46 respeitantes ao valor da indemnização calculada nos termos do n.º 3 do art.º 23º da Convenção CMR, limitação de responsabilidade que, no caso, não é aplicável, dado que o material se extraviou por falta imputável à ré, que não empregou os cuidados a que estava obrigada no que tange à vigia e guarda do que lhe havia sido confiado.
Oferecido o articulado de contestação – no qual se invocou o abuso, pela autora, do direito, na modalidade de venire contra factum proprium – e concluída a instrução, discussão e julgamento da causa, a Sra. Juíza de Direito, com fundamento, designadamente, em que para efeitos da obrigação de indemnizar a nossa lei não estabelece distinção entre dolo e negligência, que tendo a ré agido com negligência inconsciente, aplica-se à situação vertente não o princípio da limitação da indemnização consagrado pelo n.º 3 do art.º 23.º da CMR, mas antes o princípio da reparação integral dos danos verificados, de acordo com a teoria da diferença, julgou improcedente a excepção do abuso do direito e condenou a demandada a pagar à autora uma indemnização no valor de € 12 311, 54, acrescida de juros à taxa de 5%, contados desde 26.05.2023 e até integral e efectivo pagamento e uma indemnização/compensação pelos danos patrimoniais (relativos aos montantes que a autora despendeu no aluguer de um equipamento de substituição) sofridos em consequência do extravio descrito nos factos provados, a liquidar em incidente de liquidação de sentença.
A demandada interpôs desta sentença recurso ordinário de apelação para o Tribunal da Relação de Coimbra - no qual impugnou, com fundamento no erro sobre provas, a decisão da matéria de facto – pedindo a sua revogação. Porém, aquele Tribunal, por acórdão de 14 de Janeiro de 2025, depois de julgar improcedente a impugnação da decisão da questão de facto, com fundamento em que se o art.º 29º n.º 1 da CMR refere que (…) se o dano provier de dolo seu ou falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja considerada equivalente ao dolo, e se o nosso ordenamento jurídico (a lei da jurisdição que julga o caso), no âmbito da legislação que regula exatamente o mesmo tipo de relação jurídica, ou seja, o transporte rodoviário de mercadorias, prevê expressamente que só a prova da existência de dolo por parte do transportador é que afasta a aplicação das disposições que excluem ou limitam a responsabilidade, há que concluir, que uma situação de simples negligência não é suficiente para excluir essas regras, que não existe qualquer facto de onde resulte uma conduta dolosa por parte da Ré que tenha sido causa do extravio do equipamento transportado, razão pela qual não se encontra verificada a exceção a que alude o n.º 1 do art.º 29º da CMR, pelo que é aplicável o limite indemnizatório previsto no n.º 3 do art.º 23º, da CMR que estabelece um teto máximo de indemnização pelo extravio da mercadoria transportada, que já foi pago, revogou a decisão recorrida e, julgando prejudicado o conhecimento das demais questões colocadas pela Ré no recurso interposto, absolveu-a dos pedidos formulados pela autora.
É este acórdão que a autora, apelada, impugna no recurso se revista, no qual pede a sua revogação e a manutenção da decisão condenatória contida na sentença da 1.ª instância.
Os fundamentos da revista, expostos nas conclusões, são os seguintes:
1. Reportam-se as presentes alegações ao recurso interposto pela Autora e ora Recorrente, do Acórdão proferido pela 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra, que decidiu revogar a Sentença emitida pelo Juízo Local Cível de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, e em consequência, absolveu a Ré dos pedidos formulados pela Autora;
2. A questão central (e única) das presentes alegações de recurso prende-se com a interpretação do
Doutro Tribunal da Relação de Coimbra, que entendeu ser de aplicar a limitação de responsabilidade prevista no n.º 3 do artigo 23.º da CMR, e, em consequência, absolveu a Recorrida dos pedidos contra si formulados, sendo que posição oposta teve o Tribunal de ... (sem mácula, na opinião da Recorrente), considerando não ser de aplicar tal regime limitativo de responsabilidade, face à conduta negligente daquela na realização do transporte contratado;
3. De acordo com a interpretação do Tribunal da Relação de Coimbra, deve ser a Recorrida absolvida
do pedido formulado pela Recorrente, porquanto se verifica que “(…) no âmbito do contrato de transporte rodoviário nacional de mercadorias, não existe uma equiparação da negligência (leve ou grosseira) ao dolo. Só uma atuação dolosa do transportador determina que o mesmo beneficie das disposições que excluem ou limitam a sua responsabilidade”;
4. Não pode a Recorrente aceitar tal entendimento, pois tem sido amplamente aceite pela nossa doutrina e jurisprudência, inclusive, deste Venerado Tribunal, que a mera negligência do transportador, é suficiente para afastar o limite indemnizatório previsto no n.º 3 do artigo 23.º da convenção CMR;
5. O entendimento de que em casos de responsabilidade civil contratual a negligência se deve equiparar ao dolo, não é perfilhada unicamente pelos nossos Tribunais da Relação (de norte a sul), pois também já este Venerado Tribunal se pronunciou no sentido de entender que neste tipo de transporte terrestre, ao qual se aplica a convenção CMR, basta existir negligência da transportadora para se verificar a “falta” que segundo a lei da jurisdição que julgar o caso seja considerada equivalente ao dolo, cuja alusão se faz no artigo 29.º n.º 1 da CMR;
6. Abraçando os ensinamentos dos Tribunais superiores, que sobre a matéria em causa vêm atendendo, maioritariamente, pela equiparação, em sede de responsabilidade civil contratual, da negligência ao dolo, entendemos que esta é a solução que mais se adequa aos termos da lei, pois não pode uma transportadora escudar-se atrás de um instituto que limita a sua responsabilidade, quando essa própria transportadora não age com a diligência que se lhe impõe, sob pena de se verificar abuso de direito;
7. Ao admitir-se que tal instituto poderia vigorar nesses moldes, estar-se-ia a premiar a imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão dos profissionais do sector, aos quais, por força do contrato de transporte que outorgam com os seus clientes, estão vinculados às legis artis, pelo que se impõe um elevado grau de zelo e cuidado na prossecução do contrato, bem como a assunção das responsabilidades àquele inerente;
8. O contrato de transporte não é um contrato de obrigação de meios mas sim de resultados, através
do qual o transportador está obrigado a entregar a mercadoria que lhe é confiada, no lugar de destino e no estado e quantidade recebida, pelo que não o fazendo, constitui-se em responsabilidade e na obrigação de indemnizar, sendo irrelevante se o transporte foi por si levado a cabo, ou por outrem por si contratado, sendo que nestes casos, responde o transportador pelo erros e omissões do seu subcontratado;
9. A limitação de responsabilidade imposta pela CMR, existe sim para os casos fortuitos, imprevistos e casuais, cuja verificação ocorre independentemente do grau de zelo, empenho e perícia empregue pelo transportador, e não para premiar a incúria e desídia do profissional do sector;
10. Dúvidas não restaram ao Tribunal de ..., da actuação negligente da Recorrida e seu agente, posição aceite pelo Tribunal da Relação de Coimbra, pois não a alterou;
11. Nunca poderia o Douto Tribunal da Relação de Coimbra inverter a decisão proferida pelo Tribunal da 1.ª instância, porquanto aquele Tribunal fez uma correcta e eximia aplicação do Direito, ao ter, in casu, equiparado a mera negligência ao dolo, no âmbito da responsabilidade civil contratual, -posição amplamente aceite pela nossa jurisprudência! - e consequentemente, condenado a Recorrida a pagar à Recorrente uma indemnização no valor de € 13.311,54, acrescida de juros à taxa de 5% contados desde 26/05/2023 até integral pagamento, bem como uma indemnização/compensação pelos danos patrimoniais (relativos aos montantes que a Recorrente despendeu no aluguer de um equipamento de substituição), sofridos em consequência do extravio descrito nos factos provados, a liquidar em incidente de liquidação de sentença;
12. A Sentença proferida pelo Tribunal de ..., é clara, linear e aplica eximiamente os preceitos legais que norteiam estas matérias, não merecendo, por isso qualquer censura, devendo a mesma manter-se na íntegra, o que se espera, mantendo-se, em consequência, a condenação da Recorrida, nos termos e com os fundamentos nela constantes, revogando-se, por isso, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra;
13. O Acórdão recorrido violou, entre outros, os artigos 17.º, 23.º e 29.º, todos da CMR e artigos 562.º, 566.º e 799.º, todos do Código Civil
Na resposta ao recurso, a demandada concluiu, naturalmente, pela sua improcedência.
2. Delimitação do âmbito objectivo do recurso e individualização da questão concreta controversa a resolver.
Considerando os parâmetros da competência funcional ou decisória deste Tribunal, tal como são definidos pelo objecto da acção, pelos casos julgados formados nas instâncias e pela impugnação do recorrente – e sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso - é uma só a questão concreta controversa que importa solucionar: a de saber se o acórdão impugnado deve ser revogado, com a consequente repristinação da decisão da 1.ª instância (art.ºs 635.º, n.º 4, e 639.º, n.º 1, e 608.º, n.º 2, ex-vi art.º 663.º, n.º 2, do CPC).
Realmente, não é objecto de controvérsia que entre a recorrente e a recorrida foi concluído um contrato de transporte - contrato de prestação de serviço que pode definir-se como aquele em que uma das partes (transportador) se obriga perante a outra (passageiro ou carregador), com ou sem retribuição, a deslocar, pessoas ou coisas, e a colocar aquelas ou a entregar estas, pontualmente, ao próprio ou a terceiro (destinatário), no local de destino1 – e um contrato de transporte, terrestre, de mercadorias, oneroso, de natureza comercial, por força do qual a recorrida se vinculou a uma obrigação principal de facere: a de deslocar, por estrada, de ..., em Inglaterra, para ..., na Alemanha, um equipamento da recorrente. Trata-se, nitidamente, de uma obrigação de resultado, e não de meios ou de garantia, dado que o seu cumprimento exacto implica, desde logo, a efectiva deslocação e a entrega do bem, nos termos convencionados.
É igualmente indubitável que o regime jurídico a que este contrato está submetido é, dados os elementos de estraneidade juridicamente relevantes que o marcam – a localização do lugar de carregamento e de entrega do bem em dois países diferentes, ambos vinculados pela Convenção de Genebra de 19 de Março de 1956, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 46 235, de 18 de Março, Relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR)2 - o definido por esta fonte de direito internacional privado convencional (art.º 1.º, n.º 1). Considerada a declarada finalidade uniformizadora da Convenção, a determinação do sentido e da compreensão das respectivas normas, excepto nos casos em que remeta expressamente para o direito interno dos Estados a ela vinculados, deve ser objecto de uma interpretação autónoma3, de harmonia com aquela finalidade e os princípios, designadamente da responsabilidade do transportador e da limitação dessa responsabilidade pelos quais nitidamente se orienta (art.ºs 17.º, n.º 1, e 23.º, n.ºs 3 e 4).
Também não está em causa a perda – total – do bem objecto mediato do contrato que a recorrida se obrigou a deslocar - perda que consiste na não entrega pelo transportador, daquele bem, que recebeu do expedidor, ao destinatário – considerando que está definitivamente adquirido para o processo que aquele bem se extraviou (art.º 17.º, n.º 1 da CMR). Aliás, não se discute sequer a responsabilidade da demandada ou da transportadora que subcontratou – mas apenas o título de imputação subjectiva daquela responsabilidade e, por via desse título, a medida ou o quantum da indemnização devida, i.e., se apesar da regra de que o transportador responde pelo valor da mercadoria perdida, este pode prevalecer-se da regra que, rígida e drasticamente, a limita, sendo certo que não se mostra adquirido para o processo que na declaração de expedição, tenha sido declarada um valor para a mercadoria superior ao daquele limite ou que tenha convencionado uma cláusula de interesse especial na entrega, excludente daquele mesmo limite (art.ºs 6.º, 17.º n.º 1, 23.º, n.ºs 1 e 2, 24.º e 26.º da CMR). Trata-se, somente, de saber se a actuação meramente negligente da recorrida, transportador, no cumprimento das obrigações que para ela emergem do contrato de transporte equivale, no contexto ou à luz da CMR, ao dolo para efeitos de exclusão do direito à limitação da responsabilidade correspondente – como decidiu o Tribunal de 1.ª instância – ou se um comportamento do transportador, marcado por aquele grau de negligência não preclude o seu direito à restrição do quantum respondeatur – como concluiu o acórdão recorrido (art.º 29.º, n.º 1).
3. Fundamentos.
3.1. Fundamentos de facto.
O Tribunal de que provém o recurso estabilizou os factos materiais da causa nos termos seguintes:
1. A autora é uma sociedade comercial sob a forma anónima que se dedica à Indústria de pré-fabricados, fabricação de elementos de construção em metal e de elementos de chapa para a construção de edifícios bem como a fabricação de coberturas metálicas autoportantes, construção civil e obras públicas, reparação de máquinas e veículos e comércio de acessórios.
2. A ré é uma sociedade comercial por quotas que se dedica ao transporte rodoviário ocasional de mercadorias; prestação de serviços complementares do transporte de mercadorias no âmbito da atividade transitária, armazenagem, logística, distribuição, representação e agenciamento de transportes terrestres, marítimos e aéreos, bem como a intervenção em operações de trading, designadamente mediante a representação e comercialização de produtos de importação e exportação; e, o exercício da atividade de prestação de serviços postais.
3. Em 05.04.2022, a autora solicitou à ré cotação para transporte de um equipamento sua pertença (Chave de Fendas elétrica manual DEM 28 TSX) a recolher em ..., Reino Unido e a entregar na Alemanha.
4. A autora acordou o transporte terreste com a ré a 06.04.2022 com tempo de trânsito estimado de 3 dias úteis após recolha, com recolha em ..., ..., United Kingdom e entrega em ... ..., Germany.
5. O transporte consistia numa importação com a recolha do equipamento no Reino Unido e envio do mesmo para Portugal, seguido de uma exportação (reenvio) de Portugal para a Alemanha.
6. O equipamento avariou enquanto a autora laborava numa obra que estava a desenvolver no país de recolha (Reino Unido), havendo necessidade de transportar o equipamento para a Alemanha com vista à sua reparação, retornando posteriormente o mesmo ao Reino Unido por forma a que a autora o pudesse voltar a utilizar na aludida obra.
7. A reparação do mesmo estimava-se estar concluída em 3 semanas (2 semanas para receção do equipamento e 1 semana para a sua reparação).
8. A ré aceitou fazer o transporte do equipamento, tendo sido atribuído ao equipamento a carta de porte n.º ...62.
9. Por força do acordo celebrado entre as partes, a autora entregou à ré a quantia de 121,58€.
10. Em Maio de 2022, a autora questionou a ré acerca da demora da devolução do equipamento, tendo sido informada da existência de dificuldades na localização do equipamento.
11. A autora informou a ré que a demora da receção e localização do equipamento estava a gerar custos para a autora e expressou a vontade de ser ressarcida das despesas e do custo do equipamento.
12. A autora alugou um equipamento equivalente para substituir o equipamento que necessitava de reparação, a partir de 07.04.2022, a fim de continuar os trabalhos em curso.
13. O aluguer do equipamento custava 90 libras por dia.
14. O equipamento foi considerado extraviado em 20.06.2022.
15. A ré emitiu duas notas de crédito:
a. A nota de crédito n.º 31210108, emitida em 15.06.2022, com vencimento em 15.07.2022 no valor do transporte correspondente a 121,58€.
b. A nota de crédito n.º 31210109, emitida em 15.06.2022, com vencimento em 15.07.2022 no valor de 188,46€, correspondente ao teto indemnizatório fixado no artigo 23.º, n.º 3, da CMR .
16. Em 10.05.2022, o equipamento semelhante ao extraviado custava 13.500€.
17. A autora recebeu as notas de crédito e procedeu ao desconto das mesmas.
18. Após o envio das notas de crédito ocorrido a 20.06.2022, a autora não comunicou à ré que não se considerava ressarcida nem indicou as despesas por si suportadas em virtude do extravio.
19. A ré subcontratou a transportadora United Parcel Service (doravante, UPS) para transportar o equipamento entre o Reino Unidos e a Alemanha.
20. O equipamento saiu das instalações do expedidor no dia 14.04.2022, e não antes porque a UPS não conseguiu recolher o equipamento junto do expedidor devido a engano do encarregado que levou a mercadoria novamente para o escritório.
21. Em 27.04.2022, chegada a mercadoria à alfândega a mesma ficou retida, uma vez que o expedidor não entregou a documentação necessária para a mercadoria poder sair da alfândega.
22. Nessa sequência, o equipamento foi reenviado para o expedidor.
23. A 13.05.2022 foi iniciado o processo de inquérito com vista à localização do equipamento.
24. A ré não conseguiu obter qualquer informação por parte da alfândega quanto à localização do equipamento, tendo ficado sem leitura de tracking.
25. A 13.05.2022, a ré informou a autora da dificuldade em localizar o equipamento.
26. A ré solicitou à autora contactos alternativos do expedidor.
27. Da carta de porte não constava o valor da mercadoria transportada.
28. A pedido da ré, a autora remeteu-lhe a fatura de aquisição do equipamento a fim de abrir o processo de inquérito.
29. Nessa fatura, datada de 17.11.2015, o valor do equipamento corresponde a 6.982€.
30. A autora forneceu a documentação solicitada pela ré aquando da contratação, não tendo sido requerida mais qualquer informação.
3.2. Fundamentos de direito.
A obrigação de deslocação constitui a obrigação nuclear ou típica do contrato de transporte, embora essa obrigação não se esgote no mero acto material de transferência física e espacial. O transportador, mais do que vinculado a transferir, v.g., coisas, entre pontos geográficos, obriga-se a fazê-las chegar incólumes ao local de destino, daí a qualificação desta obrigação do transportador como sendo uma obrigação de resultado e não simplesmente de meios. Quando o transportador extravia a coisa transportada é indiscutível o incumprimento da obrigação de deslocação que para ele emerge do contrato de transporte (art.ºs 792.º, n.º 1, a contrario, e 798.º do Código Civil).
A obrigação de transportar, por meios próprios ou alheios, a que o transportador se vincula pelo contrato de transporte pode, evidentemente, ser violada com dolo ou com negligência. O dolo comporta, nos termos gerais, um elemento cognitivo e um elemento volitivo: o transportador actua com dolo quando representa um facto que preenche a violação daquele dever contratual, mesmo que não tenha consciência da ilicitude: o transportador actua ilicitamente desde que tenha a intenção de realizar, ainda que não directamente, a violação do dever contratual e, por isso, mesmo que não possua consciência de que a sua conduta é contrária ao direito; o dolo é intenção, mas não é necessariamente conhecimento da antijuricidade da conduta. Valem aqui indiscutivelmente, todas as modalidade de dolo: o dolo directo, se a violação do dever contratual constitui a intenção do transportador; o dolo necessário, se aquela violação não é directamente querida, mas é desejada como efeito necessário da conduta e o dolo eventual, se a ofensa do dever contratual não é directamente desejada, mas é aceite como efeito eventual, mesmo que acessório, daquela conduta.
A negligência do transportador reconduz-se, nos termos gerais, ao desrespeito de um dever objectivo de cuidado ou diligência. Esta concepção da negligência é apropriada à violação dos deveres contratuais do transportador dado que requerem no seu cumprimento uma conduta diligente ou adequada e, por isso, essa violação pode decorrer da ofensa de um dever objectivo de cuidado. Como a negligência é aferida pela cognoscibilidade do resultado da conduta, se o transportador, apesar de prever o resultado da violação do dever contratual não o deseja, a negligência será consciente; será inconsciente se, não tendo previsto aquele resultado, não o quereria, se o tivesse conjecturado. A negligência do transportador é também sensível ao distinguo entre culpa leve e culpa grave ou grosseira, inspirada na clássica tripartição entre culpa lata, culpa levis e culpa levíssima - sendo certo que não está aqui em causa a relevância da negligência, consciente ou inconsciente, mas antes a qualificação ou graduação da culpa daquele contraente. Por culpa leve deve entender-se a conduta que não seria susceptível de ser praticada por um transportador médio, enquanto para que haja culpa grave, se deve reclamar uma conduta que só seria susceptível de ser realizada por um transportador especialmente negligente (art.º 487.º, n.º 2, ex-vi art.º 799.º, n.º 2, do Código Civil). Por negligência grave ou grosseira apenas se deve ter, portanto, o descuido, a incúria ou desatenção inexplicáveis que não teriam reflexo no padrão de comportamento mesmo daqueles transportadores que são pouco diligentes, a desconsideração imperdoável ou inexplicável, a incúria sem qualquer justificação, contrastada com o comportamento do comum dos transportadores, mesmo daqueles de reduzida diligência. Como a negligência grosseira deverá significar algo mais do que mera negligência, envolvendo uma conduta que revela um grau significativo de imprudência, a negligência é leve quando dizemos isso pode acontecer; é grave, severa ou grosseira quando temos de dizer, não se admite que tal aconteça4: o transportador só age com negligência grave ou grosseira se a violação da obrigação a que se vinculou se ficou a dever a uma atitude particularmente censurável de leviandade ou descuido perante o dever obrigacional, plasmando nele qualidades particularmente censuráveis de irresponsabilidade e insensatez.
O transportador é responsável, designadamente, pela perda, total ou parcial, da mercadoria a transportar (art.º 17.º, n.º 1, da CMR). Trata-se, segundo a orientação que se tem por preferível, não de uma simples presunção de culpa, mas mais ampla e gravosamente para a posição jurídica do transportador – como, com correcção, o acórdão recorrido observou - de uma presunção de responsabilidade5 que cobre todos os elementos da responsabilidade civil ex-contractu, com excepção do dano, que confere a esta responsabilidade um nítido cunho objectivo, pelo risco. Da circunstância de o transportador não ilidir esta presunção de responsabilidade – através da prova de uma qualquer causa liberatória ou de qualquer facto liberatório associado a riscos particulares - não decorre, porém, como corolário que não possa ser recusado, que seja culpado, antes significando, mais simplesmente, que é responsável - nem, muito menos, a exclusão automática da limitação do quantum respondeatur, que constitui o regime normal ou natural dessa responsabilidade (art.ºs 17.º, n.ºs 2 e 4, e 23 n.º 3, da CMR). De resto, mesmo a concepção daquela presunção como presunção de culpa, não colide ou não obsta, irremissivelmente, ao reconhecimento da possibilidade, de princípio, de o transportador se prevalecer da restrição do quantum indemnizatório, dado que, excepcionalmente, aquele só perde o direito à limitação da sua responsabilidade, se o dano provier de dolo seu ou de falta que lhe seja imputável e que, segundo a lei da jurisdição que julgar o caso, seja equivalente ao dolo (art.º 29.º, n.º 1, da CMR).
A exacta interpretação desta disposição tem dado lugar a uma jurisprudência desencontrada que – como nota o acórdão recorrido – se reparte, fundamentalmente, por duas orientações6: uma primeira que equipara a negligência ao dolo7, ou mais limitadamente, considerando a restrição da possibilidade de redução da indemnização aos casos de mera culpa, que faz equivaler a negligência grosseira ao dolo8; uma segunda que opera o distinguo entre o dolo e a negligência e que exige o dolo por parte do transportador, ou do sub-transportador, como conditio sine qua non para excluir as causas, gerais e especiais, da responsabilidade do transportador, a limitação da indemnização e as regras de inversão do ónus da prova9.
A interpretação que concluiu pela equivalência da mera culpa ou do comportamento meramente negligente ao dolo – com a consequente perda pelo transportador do direito à limitação da sua responsabilidade - transpõe, para o domínio da interpretação da CMR as especificidades do regime interno nacional da responsabilidade civil ex-contractu que, diz-se, equipara a mera culpa ao dolo e considera inaplicável à responsabilidade contratual da regra da limitação da indemnização no caso de essa responsabilidade se fundar na mera culpa (art.º 494.º do Código Civil). De harmonia com esta orientação – que foi nitidamente a adoptada pela sentença impugnada no recurso de apelação - a actuação meramente culposa ou negligente do transportador, ainda que meramente presumida, equivale ao dolo para efeitos de exclusão do direito à limitação da sua responsabilidade. Apesar do carácter particularmente espinhoso do problema, crê-se que existem boas razões para duvidar da impecabilidade de uma tal proposta de solução.
Em primeiro lugar, não se julga correcto que a presunção – de responsabilidade ou de culpa, conforme o entendimentos que se julgue preferível – que vulnera do transportador, se resolva, afinal, numa presunção de dolo, dado que, patentemente, a única coisa que a CMR presume é aquela responsabilidade ou esta culpa, mas não, seguramente, o dolo10 (art.º 17.º, n.º 1).
De seguida, a verdade é que a CMR reserva para si a definição – autónoma - das situações em que o transportador perde o benefício da limitação da sua responsabilidade e não remete essa mesma definição para a lex fori e só aceita a exclusão daquela limitação no caso de dolo ou de uma falta que, pela sua gravidade. equivalha ao dolo11. E, comprovadamente, a mera negligência, não constitui uma falta equivalente ao dolo, equivalência que, de resto, excluiria praticamente qualquer possibilidade de o transportador se prevalecer da limitação da sua responsabilidade, faculdade que constitui um elemento definidor do sistema específico da responsabilidade do transportador e que surge, de certo modo, como contrapartida da presunção de responsabilidade que o vulnera.
Depois é igualmente certo que, como, aliás, este Tribunal Supremo tem sublinhado, o Código Civil não deixa de considerar relevante o distinguo entre o dolo e a negligência em casos de responsabilidade contratual, como sucede, v.g., nos casos de mora do credor (art.ºs 814.º e 815.º), de exclusão da compensação (art.º 853.º, n.º 1, a)), de responsabilidade do doador (art.ºs 956.º e 957.º), de responsabilidade do comodante (art.º 1134.º) e de responsabilidade do mutuante (art.º 1151.º) e, de outro, que não falta doutrina que sustenta que a faculdade de redução da indemnização quando a responsabilidade assenta na mera culpa é também aplicável à responsabilidade ex-contractu12, ponto de vista que é também partilhado por alguma jurisprudência do Supremo13.
Neste contexto, o que se pode, realmente, discutir - aceitando-se como correcta a metodologia de transpor para a domínio da interpretação da Convenção CMR as soluções específicas do direito interno português no tocante à admissibilidade da limitação da responsabilidade do transportador - é, desde logo, se não haverá, decisivamente, que considerar, em vez do regime geral relativo à responsabilidade do devedor, o regime específico interno do contrato de transporte rodoviário de mercadorias, disposto no Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4 de Outubro, na sua redacção actual - que, segundo o respectivo preâmbulo adoptou regras de limitação de responsabilidade (….) que não reproduzindo exactamente o constante da CMR, atento o espaço geográfico em que se realizam os transportes a que se aplica o presente diploma, segue, no entanto, os mesmos princípios orientadores - do qual resulta que, no caso de perda, avaria ou demora na entrega, só o dolo do transportador o impede de ser fazer prevalecer das disposições que excluam ou limitam a sua responsabilidade, e, portanto, é claro e terminante em não admitir a perda do direito à limitação da indemnização de que seja devedor, no caso de ter actuado, na realização da sua prestação, com mera negligência ou negligência simples (art.ºs 20.º e 21.º).
E é exatamente esta a retórica argumentativa do acórdão recorrido, determinante da procedência do recurso de apelação, como decorre linearmente deste passo dele: se no âmbito da legislação que regula exatamente o mesmo tipo de relação jurídica, ou seja, o transporte rodoviário de mercadorias, prevê expressamente que só a prova da existência de dolo por parte do transportador é que afasta a aplicação das disposições que excluem ou limitam a responsabilidade, há que concluir, que uma situação de simples negligência não é suficiente para excluir essas regras.
Decisão que é correcta mesmo que se deva admitir, como parece razoável, como causa de exclusão do direito do transportador à limitação da responsabilidade, a relevância da negligência e da equiparação desta ao dolo - mas apenas nos casos de negligência grave ou grosseira, de harmonia com a máxima culpa lata dolo aequiparatur14. Realmente, parece ser de reconhecer que um comportamento do transportador caracterizado por um desrespeito particularmente intenso dos deveres de cuidado ou diligência presentes no caso e cuja observância, nas circunstâncias em que actuou, era capaz e lhe era exigível, portanto, por um grau essencialmente aumentado ou intensificado de negligência, pode ser equiparado ao dolo, para efeitos da exclusão do direito à limitação da responsabilidade regulada, tanto pela CMR, como pela norma específica correspondente de direito interno15 (art.ºs 29.º da CMR e 21.º do Decreto-Lei n.º 239/2003, de 4 de Outubro). Mas, comprovadamente, não é este sequer o caso do recurso, dado que a decisão da 1.ª instância apenas assaca à recorrida uma violação meramente negligente das suas obrigações contratuais de deslocação e de entrega da coisa objecto mediato do contrato de transporte rodoviário que aquela concluiu com a recorrente.
Adquirido, pelas razões apontadas, que a violação pelo transportador da sua obrigação contratual de proceder à deslocação do bem e à sua entrega ao destinatário com mera negligência não preclude o seu direito de se fazer prevalecer da limitação do quantum respondeatur que a CMR lhe reconhece, é meramente consequencial, de um aspecto, a conclusão da correcção da decisão impugnada e, de outro, a falta de bondade do recurso.
A proposição conclusiva mais saliente, que justifica a improcedência da revista, é a seguinte:
- A violação meramente negligente do dever contratual do transportador, por não equivaler, nos termos do art.º 29.º, n.º 1, da CMR, ao dolo, não o impede de se prevalecer do direito à limitação da sua responsabilidade por perda do bem a transportar.
A recorrente sucumbe no recurso. Essa sucumbência torna-a objectivamente responsável pela satisfação das respectivas custas (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
4. Decisão.
Pelos fundamentos expostos, nega-se a revista.
Custas pela recorrente.
2025.04.29
Henrique Antunes (Relator)
António Magalhães
Nelson Borges Carneiro
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2. Modificada pelo Protocolo de 5 de Julho de 1978,aprovado para adesão pelo Decreto n.º 28/88, de 6 de Setembro, e desenvolvida pelo Protocolo Adicional à Convenção relativa ao Contrato de Transporte Internacional de Mercadorias por Estrada (CMR), sobre a declaração de expedição eletrónica, de 20 de fevereiro de 2008, aprovado pelo Decreto n.º 20/2019, de 30 de julho.↩︎
3. José Luís Saragoça, O Contrato de Transporte Internacional Rodoviário de Mercadorias, Almedina, 2022, pág. 181.↩︎
4. Sinde Monteiro, A Responsabilidade por Conselhos, Recomendações ou Informações, 1989, pág. 567.↩︎
5. Januário da Costa Gomes, Sobre o Sistema próprio de Responsabilidade do Transportador de Mercadorias, in Temas de Direito dos Transportes, IV, Coimbra, 2018, pág. 449 e ss. e o O Acórdão de 12.10.2017 ou o persistente alheamento do STJ relativamente ao regime especifico da CMR, disponível em https://www.revistadireitodassociedades.pt/Archive/Docs/f6337161732260.pdf., Castello-Branco Bastos, Direito dos Transportes, Almedina, Coimbra, 2004, págs. 93 e 94. Diferentemente, o Ac. do STJ de 13.03.2025 (1822/22), José Engrácia Antunes, Direito dos Contratos Comerciais, cit., pág. 755 e António Menezes Cordeiro, Manual de Direito Comercial, colab. António Barreto Menezes Cordeiro, 5.ª edição, revista e actualizada, Coimbra, 2022, pág. 852.↩︎
6. Assim também, por último, o Ac. da RL de 11.03.2025 (541/21).↩︎
7. Acs. do STJ de 14.06.2011 (437/05), 05.06.2012 (3303/05), 15.05.2013 (9268/07) e 12.10.2017 (4858/12).↩︎
8. Acs. do STJ de 30.04.2019 (613/13), 25.11.2018 (98A566) 11.07.2013 (1168/07).↩︎
9. Acs. do STJ de 06.07.2006 (06B1679), 27.01.2005 (4499/04) e de 17.03.2005 (4657/04).↩︎
10. Ac. do STJ de 13.05.2025 (1822/22.↩︎
11. Januário da Costa Gomes, O Acórdão de 12.10.2017, cit., pág. 616.↩︎
12. V.g. Paulo Mota Pinto, Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, págs.938 e 939, nt. 2360, e 964, Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, II, 11.ª edição, Almedina, Coimbra, 2017, pág. 250, Pinto Monteiro, Cláusulas Limitativas e de Exclusão da Responsabilidade Civil, Almedina, Coimbra, 1985, págs. 95 e 96, Carneiro da Frada, Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, Coimbra, 2004, págs. 314 e 2006, Jorge Sinde Monteiro, Rudimentos da Responsabilidade Civil, RFDUP, Ano II, 2005, Coimbra, 2005, págs. 352 e 353 e Nuno Pinto Oliveira, Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra Editora, Coimbra, págs. 723 e 724,↩︎
13. Acs. do STJ de 18.10.1994 (084957) e de 13.03.2025 (1822/22).↩︎
14. Galvão Telles, Direito das Obrigações, 7.ª edição Coimbra, 1997, págs. 356 e 358.↩︎
15. Luís Maria de Vaz Pato Oom, A Responsabilidade Civil do Transportador Rodoviário de Mercadorias: Perspectiva Luso-Italiana, Dissertação de Mestrado, FDUL, Lisboa, 2004, págs., 86 e 87, Adriano Marteleto Godinho, A Responsabilidade do Transportador Rodoviário de Mercadorias, in Temas de Direito dos Transportes, Vol. I, Almedina, 2020, pág. 142 e Nuno Castello-Branco Bastos, Direito dos Transportes, Almedina, Coimbra, págs. 115 e 116; diferentemente, no sentido de que só releva o dolo, José Luís Saragoça, O Contrato de Transporte Internacional Rodoviário de Mercadorias, cit., pág. 147.↩︎