REVOGAÇÃO DO TESTAMENTO
DECLARAÇÃO TÁCITA
INTERPRETAÇÃO DO TESTAMENTO
IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
ÓNUS DE ALEGAÇÃO
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PRINCÍPIO DA RAZOABILIDADE
Sumário


A incompatibilidade prevista no n.º 1 do art. 2313.º do CC não se restringe à incompatibilidade material ou jurídica das disposições testamentárias, abrangendo, também, a incompatibilidade intencional das duas vontades do testador.

Texto Integral


Revista nº 1894/21.1T8CSC.L1.S1

Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça:


*


AA intentou contra BB acção declarativa sob a forma comum, pedindo que seja:

a) declarada a revogação tácita do testamento celebrado em 29-12-1995 a fls. 39 verso e 40 do livro de Notas para Testamentos Públicos e Escrituras de Revogação nº 57 do Cartório Notarial de ..., por efeito do testamento posterior, de 15-10-2019, lavrado a folhas 107 do livro T-21 do Cartório Notarial do Dr. CC;

b) declarada a falsidade da escritura de habilitação de herdeiros celebrada em 16-11-2020, no Cartório Notarial do Dr. DD, de fls. 34 a fls. 35 do livro de notas para Escrituras diversas nº ...15 do indicado Cartório;

c) declarada a nulidade do registo de aquisição a favor da ré, com a AP. ...94, de 2021.01.28, do prédio urbano sito na Rua ..., freguesia de..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº ...12 da freguesia de ..., ordenando-se o respetivo cancelamento;

d) reconhecida a autora como única e universal herdeira de EE, nos termos do testamento celebrado em 15-10-2019, no Cartório Notarial do Dr. CC, em ..., assistindo-lhe o direito a suceder na totalidade dos bens que integram a herança daquela; e

e) em consequência, seja reconhecido o direito de propriedade da autora sobre o prédio urbano sito na Rua ..., freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº ...12 da freguesia de ..., inscrito na matriz predial urbana da mesma freguesia, sob o artigo ...94, e respetivo recheio, adquirido por sucessão testamentária de EE.

A ré contestou e reconveio, pedindo:

1) Que se julgue totalmente improcedente, por não provada, a presente acção; e,

2) Que julgue procedente e provada a reconvenção, e por via dela se decrete nulo ou se decrete a anulação do testamento outorgado por EE, em 15 de outubro de 2019, outorgado a Fls. 107.° e 107.° v.° do Livro T-21, do Cartório Notarial do Dr. CC, sito na Alameda ..., em ..., bem como declare a falsidade da escritura de habilitação de herdeiros, outorgada no dia 13 de agosto de 2020, no mesmo Cartório Notarial, condenando-se a autora/reconvinda a entregar à herança todos os bens que desta recebeu e que se encontram na sua posse.

A autora respondeu, pugnando pela improcedência da acção e terminando como na petição.

Depois de realizada a audiência final, foi proferida sentença em 1º instância que julgou a acção parcialmente procedente e, consequentemente, declarou:

i) revogado tacitamente o testamento celebrado em 29-12-1995 pela testadora EE constante de fls. 39 verso e 40 do livro de Notas para Testamentos Públicos e Escrituras de Revogação nº 57 do Cartório Notarial de ..., por efeito do testamento posterior, de 15-10-2019, lavrado a folhas 107 do livro T-21 do Cartório Notarial do Dr. CC;

ii) nulo o registo de aquisição a favor da ré, com a AP. ...94, de 2021.01.28, do prédio urbano sito na Rua ..., freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº ...12 da freguesia de ..., e ordeno o respetivo cancelamento;

iii) a autora como única e universal herdeira de EE, nos termos do testamento celebrado em 15-10-2019, no Cartório Notarial do Dr. CC, em ..., assistindo-lhe o direito a suceder na totalidade dos bens que integram a herança daquela.

No mais, a 1.ª instância julgou improcedente a reconvenção deduzida pela ré contra a autora e, consequentemente, absolveu a autora reconvinda dos pedidos contra si formulados pela ré reconvinte.

Inconformada com essa decisão, a ré interpôs recurso de apelação que foi admitido e julgado totalmente procedente por acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa proferido em 26-09-2024, o qual revogou a sentença recorrida, na parte objecto de recurso, e, em consequência, julgou a acção totalmente improcedente, absolvendo a ré do pedido.

Irresignada, veio a autora interpor o presente recurso de revista pedindo a revogação do acórdão recorrido, mantendo-se a sentença proferida pelo tribunal de 1.ª instância.

Para o efeito, alinhou, em remate da sua alegação, as seguintes conclusões:

“1. No recurso de apelação, a Ré, ali Recorrente,nãosatisfez suficientemente o ónus de especificação dos concretos da matéria de facto e dos concretos meios probatórios que impunham decisão diversa, uma vez que se limitou a impugnar em bloco diversos pontos que considerou incorretamente julgados, mas sem indicar, facto por facto, os concretos meios de prova que fundamentam essa pretensão, tal como decidido pelo Supremo Tribunal de Justiça nos Acórdãos de Acórdão de 02.02.2022 (processo n.º 1786/17.9T8PVZ.P1.S1) e de 05.09.2018 (processo n.º 15787/15.8T8PRT.P1.S2);

2. Assim, não obstante ter entendido que não se mostrava necessária a apreciação da matéria de facto, o Tribunal da Relação violou o disposto no artigo 640.º, n.º 1, alínea b), e n.º 2, alínea a), do CPC;

3. A violação ou errada aplicação da lei de processo é fundamento de revista, nos termos previstos no artigo 674.º, n.º 1, alínea c), do CPC, pelo que deverá ser julgada inadmissível a apelação efetuada pela Ré Recorrida no que respeita à impugnação da matéria de facto, por não ter sido cumprido o ónus imposto no artigo 640.º, n.º 1, alínea b), também do CPC;

4. Ainda que assim não se entenda, sempre se dirá que a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, efetuada pela Ré Recorrida no recurso de apelação, teria necessariamente que improceder, dado que a prova produzida não impunha decisão diversa, tal como exigido pelo artigo 662.º, n.º 1, do CPC;

5. Nos presentes autos está em causa o testamento outorgado por EE em 15.10.2019, por meio do qual instituiu a Autora como sua “única e universal herdeira”, mais declarando que “tem assim concluído este testamento, o primeiro que faz”, e apurar se este testamento (que é posterior) revogou tacitamente o testamento anterior outorgado em 29.12.1995, por meio do qual EE legou a casa da ... ao FF, com quem vivia em união de facto;

6. No Acórdão recorrido, o Tribunal da Relação considerou que não se verifica a necessidade de interpretar o testamento de 15.10.2019, por entender que o mesmo não permite dúvidas, acrescentando que a prova complementar apenas é admitida quando o contexto do testamento não permita determinar a vontade do testador;

7. Nessa sequência, o Tribunal da Relação entendeu que não se verifica incompatibilidade jurídica entre o primeiro testamento, que instituiu o legado da casa da ..., e o segundo, que instituiu a Autora ora Recorrente como única e universal herdeira, uma vez que estes dois instrumentos não são, em abstrato, incompatíveis, decidindo que não se verificou a revogação tácita do primeiro testamento pelo segundo, julgando procedente a apelação, revogando a sentença e julgando totalmente improcedente a ação;

8. Contudo, como bem observou o Tribunal de 1.ª instância, está em causa nestes autos apurar a incompatibilidade intencional entre os dois testamentos, com a consequente revogação tácita do primeiro;

9. É entendimento pacífico da doutrina e da jurisprudência que o artigo 2187.º do Código Civil estabelece o princípio de que, na interpretação do testamento, se impõe procurar a real intenção do testador, de acordo com o que parecer mais ajustado à sua vontade, devendo o julgador socorrer-se da prova complementar, com o limite da inadmissibilidade da vontade que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa;

10. Estepreceitoconsagraatesesubjetivista na interpretação dos testamentos, pelo que o intérprete deve, acima de tudo, procurar a vontade real do testador, não apenas em caso de dúvida sobre a interpretação das disposições testamentárias, mas “na interpretação das disposições testamentárias”, atendendo, para esse efeito, ao contexto do testamento e à prova completar para dilucidar todas as questões interpretativas, só assim se logrando cumprir o desígnio do artigo 2187.º do Código Civil;

11. Por seu turno, o artigo 2313.º do Código Civil estabelece, no número 1, a propósito da revogação tácita, o princípio de que “o testamento posterior que não revogue expressamente o testamento anterior revogá-lo-á apenas na parte em que for com ele incompatível”;

12. Trata-se de apurar se, com a elaboração de testamento posterior, o testador pretendeu revogar o primeiro, mesmo que não declare expressamente essa sua intenção, sendo o verdadeiro fio condutor da revogação a relação lógica das duas declarações, para o que deverá igualmente atender-se à prova extrínseca relativa à vontade do testador, com o limite imposto pelo artigo 2187.º do Código Civil ao mínimo de correspondência no contexto, ainda que imperfeitamente expressa;

13. A revogação tácita não decorre apenas da incompatibilidade jurídica, bastando também, para tanto, uma simples incompatibilidade ou inconciliabilidade

intencional nas duas vontades testamentárias do autor, embora ambas materialmente exequíveis;

14. Nesse sentido, veja-se o Sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 21.09.1993 (processo n.º 083806, acessível em www.dgsi.pt) que decidiu que “a revogação tácita do testamento pode revelar-se na incompatibilidade material ou na incompatibilidade intencional do testamento posterior com o primeiro”

15. Na interpretação do testamento de 15.10.2019, outorgado por EE deverão ser tidas em conta a deixa testamentária propriamente dita, que instituiu a Autora como “única e universal herdeira”, e também a declaração realizada pela testadora de que este testamento “é o primeiro que faz”;

16. A dúvida interpretativa e que se impõe dilucidar assenta em apurar se, com este testamento, a testadora pretendeu manter o legado anterior – decorrente do testamento de 29.12.1995 – ou se, pelo contrário, este segundo testamento posterior tinha intenção revogatória, tendo em conta a total omissão de qualquer referência ao primeiro testamento (de 29.12.1995) e a declaração inserta no segundo testamento (de 15.102019) de que este é o “primeiro que faz”;

17. O esclarecimento da questão colocada, por forma a determinar a vontade da testadora, deverá ser efetuado por recurso ao texto (e contexto) do próprio testamento e à prova extrínseca, conforme decorre do artigo 2187.º do Código Civil;

18. Desde logo, o texto da disposição testamentária, que se refere à Autora, ora Recorrente, como a “única e universal herdeira”, indica a instituição de apenas um herdeiro (único), com afastamento de quaisquer outros interessados, a título universal, com extensão a todo o património (universal);

19. Por outro lado, esta disposição testamentária (única e universal herdeira) e a declaração de EE que este testamento “é o primeiro que faz” impõe que se averigue, com recurso à matéria de facto provada nos autos, a vontade da testadora, designadamente por omitir por completo o primeiro testamento;

20. Em especial deverão ser tidas em conta as circunstâncias concretas e contemporâneas da outorga do testamento de 15.10.2019, com destaque para o facto de, como resulta dos autos, o mesmo ter sido outorgado por EE cerca de 10 meses após a morte, em 25.12.2018, de FF, o companheiro com quem tinha vivido em união de facto durante muitos anos e a favor de quem a testadora havia efetuado o legado da casa da ..., com o propósito de assegurar que, por morte da testadora, este pudesse continuar a gozar e fruir da casa que havia sido residência comum do casal (cfr. factos 12 e 13);

21. Releva igualmente que se provou que para EE, com a morte do seu companheiro FF, o primeiro testamento, de 29.12.1995, e o legado a favor deste da casa da ... tinha perdido todo o seu valor e, bem assim, a intenção transmitida por EE, nomeadamente, à Autora, ao seu sobrinho e ao Advogado por si contratado, de que, por sua morte, todos os seus bens deveriam reverter para a Autora, incidindo a sua preocupação, no que respeita ao destino dos bens, sobretudo sobre a casa da ... que pretendia deixar à Autora (cfr. factos 42, 37 e 39);

22. Para além disso, importa ter presente que as relações entre a testadora e a Ré Recorrida se deterioram após a morte do FF, devido a divergências relativamente ao processo de partilha dos bens da herança deste, tendo os contactos entre ambas sido pautados por um clima de conflito e, essencialmente, mediados através de um Advogado que EE contratou, tendo esta última procedido à doação a favor da Ré Recorrida da casa de ..., que lhe havia sido legada por FF, por não querer manter mais relações e conflitos com aquela e que, desde então, e ainda antes da outorga do testamento de 15.10.2019, EE deixou de manter relações com a Ré Recorrida, comentando com terceiros que a tinha como uma pessoa que só se interessava pelos bens, gananciosa e com mau caráter, sem que tivesse qualquer intenção de lhe deixar quaisquer bens (cfr. factos 20, 22, 24 e 26 dos factos provados);

23. Por fim relevam também os factos relacionados com a utilização dada à casa da ... da testadora,comautorização desta, após EE ter mudado a sua residência para um lar, tendo transmitido ao referido sobrinho o desejo de que ele ali se instalasse, passando a residir na casa da ..., aproveitando o facto de a mesma se encontrar desocupada (factos 27, 32 e 34 dos factos provados);

24. De tudo isto decorre, de forma inequívoca, a vontade de EE de que a casa da ... revertesse, por sua morte, a favor da sua irmã, a ora Autora, o que tem correspondência no testamento de 15.10.2019 ao instituir a Autora como sua “única e universal herdeira”, omitindo o anterior testamento e declarando que este é “o primeiro que faz”;

25. A interpretação da disposição testamentária que instituiu a Autora como única e universal herdeira no sentido de que está em causa a totalidade do património, com exclusão de quaisquer terceiros (e com exclusão de qualquer legado), coincide com os factos provados nos autos, nomeadamente com a vontade transmitida pela testadora ao seu Advogado que a acompanhou na outorga daquele testamento e a quem havia instruído no sentido de que todos os seus bens deveriam reverter para a Autora (cfr. factos 37 e 65);

26. Do mesmo modo, a declaração, efetuada por EE, de que o testamento de 15.10.2019 “é o primeiro que faz”, aliada à convicção de que o testamento anterior (e o legado instituído a favor de FF), de 29.12.1995, havia perdido todo o seu valor, demonstram, sem sombra de dúvidas, uma intenção revogatória deste testamento;

27. Para isto releva também que a testadora se encontrava na posse das suas faculdades, com entendimento sobre todas as questões que lhe diziam respeito, nomeadamente sobre a sua pessoa e bens (cfr. facto 66), pelo que, ainda que pudesse ter-se “esquecido” que havia outorgado o primeiro testamento, na hipótese avançada pelo Tribunal da Relação, tal só poderá significar que o segundo testamento, de 15.10.2019, tinha efetivamente uma intenção revogatória e não co-existencial, dado que tal “esquecimento” apenas pode significar que não lhe atribuiu relevância;

28. De resto, como se provou, a própria testadora estava convencida de que, com a morte do companheiro FF, o testamento outorgado em 29.12.1995 e o legado em favor deste da casa da ... tinha perdido todo o seu valor (cfr. facto 42), o que, por si só, é bem demonstrativo da sua verdadeira intenção no que respeita ao destino da totalidade dos seus bens, incluindo da Casa da ...;

29. E provou-se também que a testadora comentou com terceiros que não tinha qualquer intenção de deixar quaisquer bens à Ré Recorrida, que tinha por uma pessoa que só se interessava pelos bens, gananciosa e com mau carácter (cfr. facto 26);

30. O fio condutor lógico entre os dois testamentos - que se sucederam no tempo, com um intervalo de 24 anos entre ambos, e outorgados em circunstâncias totalmente diferentes, sendo que o motivo que havia levado à outorga do primeiro havia entretanto desaparecido, com a morte do companheiro FF, bem como a factualidade acima indicada – demonstra inequivocamente uma evidente incompatibilidade intencional entre o segundo testamento, de 15.10.2019, e o primeiro, de 29.12.1995, não podendo deixar de se concluir que ocorreu uma revogação tacita deste último, por força daquele, nos termos previstos no artigo 2313.º do Código Civil;

31. Ao decidir de modo diverso, o Tribunal da Relação violou o disposto nos artigos 2187.º e 2313.º do Código Civil, pelo que deverá ser revogado, mantendo-se a Sentença proferida pelo tribunal de 1.ª instância e declarada a revogação tácita do testamento celebrado em 29.12.1995, por efeito do testamento posterior de 15.10.2019, e nulo o registo de aquisição da casa da ... a favor da Ré, Recorrida, ordenando-se o respetivo cancelamento, e, por fim, declarada a Autora Recorrente como única e universal herdeira de EE, nos termos do testamento celebrado em 15.10.2019, assistindo-lhe o direito a suceder na totalidade dos bens que integram a herança daquela”.

A ré respondeu ao recurso pugnando pela sua total improcedência.

Cumpre decidir.

A 1.ª instância considerou provados os seguintes factos:

“1. Em ...-06-1930 nasceu a testadora EE, natural de ..., freguesia de ..., também conhecida por GG.

2. Já maior, em 1952, EE foi viver para Inglaterra onde casou com HH, em ...-01-1955, passando a chamar-se EE.

3. O referido casamento foi dissolvido por divórcio decretado em ...-03-1972, tendo EE anteriormente regressado a Portugal em 1970.

4. Por essa altura, EE adquiriu a casa da ..., correspondendo esse imóvel ao prédio urbano descrito na....ª Conservatória do Registo Predial de... sob o nº ...12/20201124, constituindo este seu bem próprio.

5. Após 1970, EE passou a viver em união de facto com FF, conhecido por FF, à data já divorciado, e pai da ré BB, sua única filha, tratando-se como marido e mulher.

6. A casa da ... passou a ser o lugar da residência habitual de EE e de FF, tendo ambos aí realizado, ao longo dos mais de 40 anos que viveram juntos, diversas obras de melhoramento, nomeadamente transformando a casa inicial numa moradia de 2 pisos que aumentaram a sua área e conforto.

7. Na sua vida em comum, EE e FF gozavam e fruíam ainda de dois imóveis próprios deste, nomeadamente, de uma casa de habitação, com dependência e pátio, sita em ..., nos limites da freguesia de ..., em ..., que destinavam a férias, e uma fracção autónoma designada pela letra U correspondente ao 4º andar, letra B, do prédio urbano sito na Praça ..., freguesia e concelho de ..., destinada a atelier de pintura de EE.

8. EE nunca teve filhos de qualquer dos seus relacionamentos.

9. Em 29-12-1995, EE legou por testamento público ao seu companheiro FF, “o prédio urbano composto de casa de habitação, sito à Rua ...” (a casa da ...), “com todo o seu recheio”, e “o veículo automóvel de que seja proprietária à data do seu falecimento”, declarando ser o primeiro testamento que fazia.

10. Em 29-12-1995, FF legou por testamento público à sua companheira EE, “uma casa de habitação com dependência e pátio, sita ao ..., limite da freguesia de ...”, concelho de ..., e “a fracção autónoma designada pela letra “U”, correspondente ao quarto andar - B do prédio urbano sito na Praça ..., limite da freguesia e concelho de ...”, acrescentando que “estes bens poderão ser vendidos pela legatária se e na medida em que disso necessite, mas o que restar à sua morte reverterá para a filha do testador e sua única herdeira legitimária”, correspondente à ré, declarando ser o primeiro testamento que fazia.

11. Mais tarde, em 06-03-2007, FF, por testamento público, declarou que, “por conta da sua quota disponível lega a EE, divorciada, consigo residente há mais de 30 anos, metade de todos os seus bens móveis”, acrescentando “que mantém todos os legados feitos no testamento” referido em 10.

12. Em ...-12-2018 faleceu FF, sobrevivendo-lhe a companheira EE e deixando como única herdeira legitimária a ré, sua filha.

13. Em 15-10-2019, EE outorgou testamento público no qual instituiu como “sua única e universal herdeira” a autora, sua irmã, AA, declarando na altura que “tem assim concluído este testamento, o primeiro que faz”.

14. Em ...-08-2020 faleceu EE no estado de divorciada, sem quaisquer descendentes ou ascendentes, sendo proprietária da casa da ....

15. Em 13-08-2020 foi outorgada a escritura de habilitação de herdeiros de EE, instruída com o testamento de 15-10-2019, e que habilitou a autora como sua única e universal herdeira.

16. Em 16-11-2020, foi lavrada outra escritura pública de habilitação de herdeiros da mencionada EE, na qual, para além do testamento de 15-10-2019, se indica ter a testadora deixado o testamento de 29-12-1995 sem fazer referência ao pré-falecimento do legatário FF, tendo esta escritura sido promovida no interesse da ré pelas suas advogadas, respectivas outorgantes, II, JJ e KK.

17. Em dia 18-11-2020, a ré procedeu à entrega no Serviço de Finanças de declaração para efeitos de liquidação do imposto do selo, na qual declarou a transmissão a seu favor, por óbito de EE, da propriedade plena da casa da ....

18. Em 28-01-2021, a ré procedeu ao pedido de registo de aquisição da casa da ... a seu favor, que foi efetuado com a AP....94 da mesma data.

19. A ré, após a morte de seu pai LL, no Natal de 2018, teve conhecimento dos testamentos deixados por este referidos em 10. e 11., e ficou desagradada devido aos legados efectuados por este em favor de EE.

20. Depois da morte de FF, as relações entre EE e a ré deterioraram-se devido a divergências relativamente ao processo de partilha dos bens da herança deste.

21. Poucos dias após a morte de FF, a ré compareceu na casa da ..., e levou alguns bens pessoais pertencentes ao seu falecido pai e alguns bens móveis que lhe pertenciam, mas que tinham mobilado a casa comum, tendo EE manifestado a terceiros o seu desagrado com a atitude da ré.

22. Depois disso, os contactos entre EE e a ré por causa do processo de partilhas dos bens da herança de FF foram pautados por um clima de conflito e, essencialmente, mediados através de um advogado que EE contratou.

23. Tais conflitos deveram-se, em especial, à ré pretender que os saldos das contas bancárias inscritas em contas comuns do seu pai com EE fossem partilhados de acordo com a presunção legal aplicável e o que resultava dos testamentos, enquanto EE entendia que deveriam ser partilhados de forma distinta, de acordo com quem constava inscrito como 1º titular dessas contas e segundo o que considerava serem contas com fundos seus e contas com fundos pertencentes ao seu falecido companheiro.

24. Neste contexto, e apesar de constar do testamento de FF referido em 10. que a casa de ... correspondia a um legado deixado a seu favor enquanto fosse viva e que se disso necessitasse poderia proceder à respectiva venda, EE procedeu à doação da ... em favor da ré, por não querer manter mais relações e conflitos com esta, tendo a ré assegurado o pagamento dos respectivos encargos.

25. Nessa sequência, EE procedeu à retirada dos seus bens da casa de férias, tendo-se deslocado a ... para o efeito, na companhia da autora e do filho desta, seu sobrinho MM, nunca mais aí tendo regressado.

26. Desde então, e antes ainda da outorga do testamento referido em 13., EE deixou de manter relações com a ré e comentou com terceiros que tinha a ré como uma pessoa que só se interessava pelos bens, gananciosa e com mau carácter, sem que tivesse qualquer intenção de lhe deixar quaisquer bens.

27. No verão de 2019, devido ao seu estado de saúde físico e por não ser aconselhável permanecer sozinha na casa da ..., EE instalou-se na residência para idosos B... Senior Residence, no ..., onde a autora, sua irmã, e alguns familiares, já residiam.

28. EE esteve na referida residência de 14-08-2019 até à data da sua morte, ainda que, no período inicial, continuasse a manter contacto com a casa da ..., onde ocasionalmente se deslocava e passava algum tempo.

29. No período posterior à morte do seu companheiro FF, EE passou a ter uma relação mais próxima com a autora e com o filho desta MM, seu sobrinho e afilhado de batismo.

30. O sobrinho MM passou a acompanhar regularmente a tia EE, nomeadamente acompanhando-a nas idas ao hospital ou a consultas médicas, levando-a à casa da ... e auxiliando-a no tratamento dos seus assuntos do dia-a-dia, tais como o pagamento de despesas e outros.

31. Por essa altura, MM não tinha uma residência própria e encontrava-se temporariamente alojado num pequeno apartamento sito na zona de ..., mas sem grandes condições, nomeadamente, para receber os seus filhos.

32. EE transmitiu, então, ao sobrinho MM o desejo de que este se instalasse na casa da ..., ali passando a residir, aproveitando o facto de a casa se encontrar desocupada.

33. Em consequência, em Setembro de 2019, MM fixou a sua residência habitual na casa da ..., com a autorização de EE.

34. O referido MM passou a aí habitar, nela dormindo, fazendo as suas refeições, e nela recebendo os seus amigos e familiares, incluindo os seus filhos que passaram a aí permanecer nas alturas em que viviam com o pai.

35. MM passou igualmente, a assegurar a manutenção da casa em bom estado de conservação, seja no que respeita ao imóvel e respetivo recheio, seja no que respeita ao logradouro.

36. EE teve quatro irmãos, NN, OO, PP e a autora AA, sendo esta a única dos irmãos sobreviva à data da elaboração do testamento.

37. EE fez saber, nomeadamente perante a autora, o seu sobrinho e o advogado que contratara, a vontade de que, por sua morte, todos os seus bens deveriam reverter para a autora, sua única irmã sobreviva.

38. O património de EE era constituído pela casa da ..., que representava o bem de maior valor sentimental, para além do respetivo recheio, bem como por contas e aplicações financeiras e um veículo automóvel datado de 2014.

39. A preocupação de EE, no que respeita ao destino dos seus bens, incidia sobretudo sobre a casa da ..., onde tinha vivido depois de regressar a Portugal e que queria deixar à autora, sua irmã, manifestando que gostaria que o sobrinho continuasse a nela residir conforme já vinha sucedendo.

40. Numa das deslocações do lar à casa da ..., juntamente com a autora e o seu filho, EE referiu-se ao testamento por si outorgado em 15-10-2019, referido em 13., bem como a procurações outorgadas a favor da autora e de uma cunhada, que mantinha guardadas no cofre, sem mencionar a existência de qualquer testamento anterior.

41. E não exibiu, nem naquela ocasião, nem posteriormente, qualquer cópia do testamento outorgado em 29-12-1995, referido em 9., ao qual também não fez qualquer referência.

42. Para EE, com a morte do seu companheiro FF, o testamento outorgado em 29-12-1995, referido em 9., e o legado em favor deste da casa da ..., tinha perdido todo o seu valor.

43. Após a morte de EE, a autora passou a gozar e fruir da casa da ..., incluindo do respetivo recheio, por considerar que a mesma lhe pertencia, atento o que lhe havia sido transmitido pela sua irmã e os termos do testamento referido em 13.

44. Nesse sentido, a autora deu indicação ao seu filho MM de que deveria continuar a habitar na casa da ..., dela se servindo para esse efeito, incluindo dos bens móveis que constituem o recheio, por tal corresponder à vontade de EE.

45. A autora desconhecia o testamento de 29-12-1995, referido em 9., cuja existência nunca lhe tinha sido mencionada por EE, tendo esta, após a morte de FF, por diversas vezes afirmado a sua vontade de que a autora lhe sucedesse em todos os seus bens.

46. A ré conviveu com EE desde o início da relação de facto desta com o seu pai FF, nos inícios dos anos 70, quando a ré tinha menos de 15 anos de idade, e embora não vivesse com o pai e a companheira, era presença habitual na casa da ... e na casa de ..., em ..., onde passavam, nomeadamente, férias.

47. A ré conhecia bem a vida de casal do pai e de EE e conviveu regularmente com ambos até à morte do seu pai.

48. A relação da ré com EE, até à morte do pai da ré, era de respeito e afecto mútuo, tendo a ré chegado a dar assistência a EE quando esta, por alturas de 2013, caiu na casa da ... e partiu um braço, auxiliando-a nas necessidades diárias e acompanhamento médico durante cerca de 15 dias.

49. EE numa dedicatória de um livro de que era co-autora, editado em Dezembro de 2017 escreveu na dedicatória “à KK, filha e amiga”.

50. Ao longo dos mais de 40 anos da relação de união de facto entre EE e FF, este foi o principal sustento do agregado, auferindo rendimentos elevados das funções empresariais que desempenhou.

51. EE, por sua vez, dedicou-se a uma carreira artística da qual obtinha alguns rendimentos da venda das suas obras, ainda que inferiores aos do companheiro.

52. EE teve ao longo da sua vida uma longa carreira artística com algum relevo, nomeadamente, na área das artes plásticas, tendo fundado, com outros artistas, os grupos P... e V..., e feito diversas exposições, sendo o seu falecimento objecto de uma nota à imprensa pela Ministra da Cultura.

53. Ao longo dos anos em EE e LL viveram juntos, a primeira veio a receber montantes provenientes da venda de uma casa da família em ..., alguns dividendos de uma sociedade familiar que se extinguiu e foi herdeira por morte do pai e da mãe, tendo recebido alguns valores das respectivas heranças.

54. EE e FF fizeram, em 1995, os testamentos recíprocos referidos em 9. e 10., devido à relação de afeto mútuo e recíproco que nutriam entre ambos e em razão da relação que tinham um para com o outro, funcionando reciprocamente para o caso de um deles morrer primeiro.

55. Após a morte de FF, foi apresentado, em 29-01-2019 no Serviço de Finanças de ..., a declaração para efeitos de liquidação do imposto do selo, na qual a ré declarou, por óbito de seu pai, e constando como beneficiários a própria ré e EE, ter este deixado os bens aí relacionados, que incluíam para além de bens imóveis, saldos de diversas contas bancárias e de aplicações em certificados de aforro, nos termos do doc. nº 1 junto com a contestação.

56. Na elaboração desses testamentos foram assessorados por profissionais e foi um acontecimento na vida de ambos que foi celebrado por ambos e do conhecimento de alguns familiares.

57. Antes da morte de FF, a relação entre EE e a autora sua irmã não era assídua nem tão próxima como posteriormente ao falecimento do companheiro desta.

58. EE, no ano de 2020, tinha vivos alguns filhos dos seus irmãos falecidos, incluindo, as sobrinhas QQ e RR, com quem manteve ao longo da vida convívios constantes e regulares e por quem nutria afeto e apreço.

59. O filho da autora MM, nascido em ...-10-1958, teve no passado, nomeadamente, problemas de alcoolismo dos quais recuperou em 2014, após um período de internamento numa instituição, tendo-se antes divorciado da mãe dos seus filhos em 2009, factos que eram do conhecimento de EE.

60. Antes da morte de FF, não tinha um convívio tão próximo de EE como as suas primas QQ e RR.

61. A autora, à data da outorga do testamento de EE referido em 13., tinha cerca de 93 anos de idade.

62. EE sofreu com a morte do companheiro FF e ficou triste por esse facto.

63. EE, à data da outorga do testamento referido em 13., tinha dificuldades de locomoção, devido a um problema no joelho, e sofria de um problema de coração que deixou arrastar devido a ter de dar apoio ao seu companheiro, e ao qual foi operada posteriormente, em 10-02-2020, na Cuf ..., sem que tais circunstâncias afectassem as suas faculdades mentais e a decisão dos assuntos da sua vida.

64. Dias antes da outorga do testamento, em 29-09-2019, na Casa ..., em ..., a autora esteve presente no lançamento de um livro, por si preparado com a ajuda de amigos e que dedicou ao seu companheiro, contendo uma retrospectiva da sua obra artística, tendo na altura recebido os convidados, conversado com estes e assinando exemplares do livro.

65. da outorga do testamento referido em 13., tendo uma das testemunhas sido o advogado contratado por EE a quem esta havia instruído que todos os seus bens deveriam reverter para a autora.

66. EE à data da outorga do testamento referido em 13. e, inclusive, até à data da sua morte, manteve-se lúcida, orientada e autónoma, manifestava a sua vontade de forma livre e esclarecida, demonstrando entendimento sobre todas as questões que lhe diziam respeito, nomeadamente, sobre a sua pessoa e bens.”

Do incumprimento do ónus de alegação previsto no art. 640º, nº 1, al. b), do CPC por parte da ré apelante.

O tribunal recorrido considerou que a ré apelante impugnou de forma eficaz a decisão sobre a matéria de facto, com observância, portanto, dos requisitos legais contidos no artigo 640º do CPC. Afirma-se a esse respeito que “na alínea OOOOOO) das suas conclusões, elencou os factos a alterar e a redacção que devem passar a ter. Nas precedentes alíneas RRR) a NNNNNN), a recorrente explicita os meios de prova que conduzem às pedidas alterações, no que respeita aos depoimentos, identifica as passagens das gravações que alicerçam a sua pretensão, e analisa detida, crítica e conjugadamente os vários meios probatórios.”

Entendeu, porém, a Relação que, “mesmo mantendo-se a matéria de facto tal como considerada pelo tribunal a quo, o recurso da ré é procedente, e a acção improcedente.” Concluiu que o “o conhecimento da impugnação da matéria de facto seria inútil”, abstendo-se de apreciar tal matéria.

No seu recurso de revista, a autora invoca que a ré, no seu recurso de apelação, não cumpriu de forma satisfatória o ónus imposto pelo artigo 640º, nº 1, al. b), do CPC, uma vez que procedeu a uma impugnação em bloco da decisão proferida sobre diversos pontos da matéria de facto, não indicando, concretamente, para cada facto (ou conjunto de factos) a prova produzida, designadamente testemunhal, que impunha decisão diversa da que foi proferida pois, apesar de a ré ter efectuado uma extensa apreciação da prova, transcrevendo excertos dos depoimentos, apelando aos documentos, fazendo considerações e procurando retirar conclusões, omitiu, quanto a cada um dos factos cuja decisão impugnou, qual o concreto meio de prova, depoimento ou documento, em que baseava a sua impugnação. E, por fim, alega a aqui recorrente que a ré, na sua apelação, formulou conclusões, enunciando “em bloco” os factos cuja decisão pretendia ver alterada, sem qualquer indicação, facto por facto, da prova em que se baseava para fundamentar a requerida alteração.

Dispõe o art. 640º, nº 1, do CPC que:

“1 - Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2 - No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a. Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

(…)”

Na interpretação deste normativo, o STJ tem seguido, essencialmente, um critério de proporcionalidade e de razoabilidade, entendendo que os ónus enunciados no art. 640º do CPC pretendem garantir “uma adequada inteligibilidade do fim e do objecto do recurso e, em consequência, facultar à contraparte a possibilidade de um contraditório esclarecido” (cfr. Ac. STJ de 18.1.2022, proc. 701/19.0T8EVR.E1.S1, em www.dgsi.pt) Conforme se sintetizou no Ac. STJ de 31.3.2022, proc. 2525/18.2T8VNF-B.L1.S1 a apreciação da satisfação das exigências estabelecidas no art. 640º do CPC deve consistir na aferição se da leitura concertada da alegação e das conclusões, segundo critérios de proporcionalidade e razoabilidade, resulta que a impugnação da decisão sobre a matéria de facto se encontra formulada num adequado nível de precisão e seriedade, independentemente do seu mérito intrínseco.”

No caso concreto, verificado o teor do recurso de apelação interposto pela aqui ré recorrida, podemos concluir, porém, que não se encontra cabalmente preenchida a exigência contida na alínea b) do nº 1 do art. 640º do CPC. Apesar de indicar concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, a apelante não indicou qual o ponto ou quais os pontos da matéria de facto impugnados a que se reporta cada um dos meios probatórios indicados e que justificam a alteração da decisão que incidiu sobre esses factos.

Na interpretação do disposto na al. b) do nº 1 do art. 640º do CPC, o STJ tem entendido, ainda, que não se mostra cumprida integralmente a exigência prevista nessa disposição legal quando o recorrente não indica que provas concretas de entre as várias a que alude se destinam a impugnar este ou aquele facto concreto de entre os que foram impugnados” (cfr. Ac. STJ de 15.12.2020, proc. 194/16.3T8VRM.G1.S1). Deve o recorrente, ao impugnar a matéria de facto, formular “uma compreensível correlação entre os meios probatórios invocados e os concretos pontos da matéria factual impugnados” (Ac. STJ de 15.1.2019, proc. nº 462/15.1T8VFR.P1.S2).

Ora, verifica-se que, no caso dos autos, a ré apelante omitiu essa correlação entre os meios probatórios invocados e os concretos pontos da matéria factual impugnados.

Com efeito, nas alegações do recurso de apelação, a ré procede a uma extensa apreciação da prova, mencionando vários meios probatórios, os quais também menciona nas suas conclusões, desde a cópia dos testamentos outorgados por FF, companheiro da testadora (referidos nas conclusões P) a V) desse recurso), aos depoimentos de várias testemunhas (SS, TT, MM, UU, VV, QQ, RR, WW e XX), assinalando as respetivas passagens da gravação relevantes, tendo também transcrito excertos desses depoimentos (assinalados nas conclusões EEE) a NNNNNN), além de outros documentos como o livro escrito pela testadora em 2017 e a dedicatória do mesmo dirigida à ré.

Tendo a ré apelante indicado na conclusão OOOOOO) do seu recurso de apelação os concretos pontos de facto impugnados (20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 32, 33, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 44, 45 56 e 65) e a decisão que deveria ser proferida sobre os mesmos (considerando-se alguns factos constantes da factualidade provada como não provados e alterando-se a redacção de outros pontos nos termos aí consignados), em lado algum do seu recurso, a apelante estabeleceu a ligação entre os vários meios probatórios por si indicados e cada um dos pontos da factualidade provada que são por si impugnados. Ou seja, a aqui ré apelante não discriminou, de entre os vários meios probatórios que indicou, os aptos a mudar a decisão quanto a cada um dos concretos pontos de facto que impugnou.

É verdade que se pode ler no sumário do Ac. STJ de 14.1.2021, proc. 1121/13.5TVLSB.L2.S1, publicado na base de dados do IGFEJ, que “embora, a impugnação da matéria de facto deva, em princípio, especificar, relativamente a cada facto impugnado, quais os meios de prova que justificam um diferente resultado de prova, nada impede que, quando as razões invocadas para a alteração de vários factos, sejam precisamente as mesmas, essa indicação seja dirigida, em bloco, a toda essa factualidade. Necessário é, que seja compreensível quais os meios de prova e quais as razões pelas quais o impugnante sustenta que o resultado da prova, relativamente a esses factos, deve ser alterado” (no mesmo sentido veja-se o acórdão do STJ de 17.11.2020, proc. 846/19.6T8PNF.P1.S1, também disponível, como os outros vindos de citar, na base de dados).

Porém, a possibilidade referida no citado acórdão depende, em primeiro lugar, da circunstância de ser possível apurar da leitura das alegações de recurso quais os concretos pontos de facto que compõem cada bloco de factos indicado, o que não sucede no caso em apreço. E, em segundo lugar, respeitando o referido bloco a diferentes realidades factuais, depende do facto de a alegação contida no recurso discriminar quais os meios probatórios que fundamentam a alteração da decisão que incidiu sobre cada uma das realidades factuais em causa. Na verdade, e como se sustentou no Ac. STJ de 20.11.2014, proc. 67/09.6TBVPA.P1.S1, não cabe ao tribunal “adivinhar, calcular ou supor, a partir de uma impugnação insuficiente, o sentido da impugnação que o recorrente teria porventura em vista”. Foi essa a situação provocada pelo apelante no caso dos autos.

Em face do exposto, cremos que nesta parte assiste razão à autora recorrente quanto à inadmissibilidade do recurso de apelação interposto pela ré, no que respeita à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, por não ter sido cumprido o ónus de alegação previsto no art. 640º, nº 1, al. b), do CPC. Assim, e independentemente da pertinência para a decisão da causa da factualidade provada impugnada pela ré e seja qual for a solução jurídica aplicável, não deve aquela impugnação ser apreciada.

Fica, assim, definitivamente assente a factualidade provada pela 1.ª instância.

Da revogação tácita do testamento.

Assenta a questão central em discussão nos autos em saber se, nos termos previstos no art. 2313º, nº 1, do Código Civil, o testamento outorgado por EE em 29.12.1995, por meio do qual esta legou a casa da ... ao pai da ré, FF, foi tacitamente revogado pelo testamento posterior outorgado pela mesma em 15.10.2019, através do qual instituiu a autora como sua “única e universal herdeira”, declarando, ainda, que “tem assim concluído este testamento, o primeiro que faz”,

No acórdão recorrido, concluiu-se que a leitura de ambos os testamentos outorgados por EE “não suscita qualquer dúvida hermenêutica, sendo, por isso, ilegítimo alterar o seu texto com recurso a supostas intenções/vontades percecionadas ou transmitidas pelas testemunhas ouvidas em audiência”, pois, referindo-se ao segundo testamento outorgado em 2019, “dizer-se que, com as declarações constantes deste testamento, a testadora quis revogar o primeiro, é algo que não tem qualquer correspondência no texto, considerando cada parte ou o conjunto do mesmo. Tal interpretação do testamento de 2019 não é, portanto, válida.”

Argumenta-se, para o efeito, que “a autora foi instituída única e universal herdeira no segundo testamento. A ré é legatária, em representação de seu pai, falecido antes da testadora, por força do primeiro testamento. Ambos os testamentos são de tal forma simples e claros que não há forma de dizer que a testadora quis por força deles algo de diferente do que deles consta, muito menos que quis algo que não tem na letra dos mesmos um mínimo de correspondência. (…) São absolutamente compatíveis: o legado retira-se da herança; o herdeiro único e universal recebe o que restar da herança, cumpridos os legados e outros ónus ou obrigações. Assim o estabelece o artigo 2068º do CC (…).”

Ao invés, sustenta a recorrente que a revogação tácita de um testamento “não decorre apenas da incompatibilidade jurídica, bastando também, para tanto, uma simples incompatibilidade ou inconciliabilidade intencional nas duas vontades testamentárias do autor, embora ambas materialmente exequíveis”, pois, “trata-se de apurar se, com a elaboração de testamento posterior, o testador pretendeu revogar o primeiro, mesmo que não declare expressamente essa sua intenção, sendo o verdadeiro fio condutor da revogação a relação lógica das duas declarações, para o que deverá igualmente atender-se à prova extrínseca relativa à vontade do testador, com o limite imposto pelo artigo 2187º do Código Civil ao mínimo de correspondência no contexto, ainda que imperfeitamente expressa.” Salienta que “a dúvida interpretativa e que se impõe dilucidar assenta em apurar se, com este testamento, a testadora pretendeu manter o legado anterior – decorrente do testamento de 29.12.1995 – ou se, pelo contrário, este segundo testamento posterior tinha intenção revogatória, tendo em conta a total omissão de qualquer referência ao primeiro testamento (de 29.12.1995) e a declaração inserta no segundo testamento (de 15.10.2019) de que este é o primeiro que faz”. Argumenta que “desde logo, o texto da disposição testamentária, que se refere à Autora, ora Recorrente, como a “única e universal herdeira”, indica a instituição de apenas um herdeiro (único), com afastamento de quaisquer outros interessados, a título universal, com extensão a todo o património (universal); por outro lado, esta disposição testamentária (única e universal herdeira) e a declaração de EE que este testamento “é o primeiro que faz” impõe que se averigue, com recurso à matéria de facto provada nos autos, a vontade da testadora, designadamente por omitir por completo o primeiro testamento.”

Destaca a recorrente as seguintes circunstâncias concretas e contemporâneas da outorga do testamento de 15.10.2019: a) Tal testamento ter sido outorgado por EE cerca de 10 meses após a morte, em 25.12.2018, de FF, o companheiro com quem tinha vivido em união de facto durante muitos anos e a favor de quem a testadora havia efetuado o legado da casa da ..., com o propósito de assegurar que, por morte da testadora, este pudesse continuar a gozar e fruir da casa que havia sido residência comum do casal (cfr. factos 12 e 13); b) Para EE, com a morte do seu companheiro FF, o primeiro testamento, de 29.12.1995, e o legado a favor deste da casa da ..., tinha perdido todo o seu valor (facto 42); c) A intenção transmitida por EE, nomeadamente, à Autora, ao seu sobrinho e ao Advogado por si contratado, de que, por sua morte, todos os seus bens deveriam reverter para a Autora, incidindo a sua preocupação, no que respeita ao destino dos bens, sobretudo sobre a casa da ... que pretendia deixar à Autora (factos 37 e 39); d) As relações entre a testadora e a Ré Recorrida deterioram-se após a morte do FF, devido a divergências relativamente ao processo de partilha dos bens da herança deste, tendo os contactos entre ambas sido pautados por um clima de conflito e, essencialmente, mediados através de um Advogado que EE contratou, tendo esta última procedido à doação a favor da Ré Recorrida da casa de ..., que lhe havia sido legada por FF, por não querer manter mais relações e conflitos com aquela, além que, desde então, e ainda antes da outorga do testamento de 15.10.2019, EE deixou de manter relações com a Ré Recorrida, comentando com terceiros que a tinha como uma pessoa que só se interessava pelos bens, gananciosa e com mau caráter, sem que tivesse qualquer intenção de lhe deixar quaisquer bens (factos 20, 22, 24 e 26); e) Factos relacionados com a utilização dada à casa da ... pelo sobrinho da testadora, com autorização desta, após EE ter mudado a sua residência para um lar, tendo transmitido ao referido sobrinho o desejo de que ele ali se instalasse, passando a residir na casa da ..., aproveitando o facto de a mesma se encontrar desocupada (factos 27, 32 e 34).

Do exposto conclui a recorrente que “decorre, de forma inequívoca, a vontade de EE de que a casa da ... revertesse, por sua morte, a favor da sua irmã, a ora Autora, o que tem correspondência no testamento de 15.10.2019 ao instituir a Autora como sua “única e universal herdeira”, omitindo o anterior testamento e declarando que este é “o primeiro que faz”. Pois “a interpretação da disposição testamentária que instituiu a Autora como única e universal herdeira no sentido de que está em causa a totalidade do património, com exclusão de quaisquer terceiros (e com exclusão de qualquer legado), coincide com os factos provados nos autos, nomeadamente com a vontade transmitida pela testadora ao seu Advogado que a acompanhou na outorga daquele testamento e a quem havia instruído no sentido de que todos os seus bens deveriam reverter para a Autora (cfr. factos 37 e 65); do mesmo modo, a declaração, efetuada por EE, de que o testamento de 15.10.2019 “é o primeiro que faz”, aliada à convicção de que o testamento anterior (e o legado instituído a favor de FF), de 29.12.1995, havia perdido todo o seu valor, demonstram, sem sombra de dúvidas, uma intenção revogatória deste testamento”.

Vejamos.

Do art. 2179º, nº 1, do CC decorre que o testamento é “o acto unilateral e revogável pelo qual uma pessoa dispõe, para depois da morte, de todos os seus bens ou de parte deles”.

A revogabilidade do testamento constitui, assim, uma característica essencial deste negócio jurídico unilateral, reforçada pelo disposto no art. 2311º do CC em cujo nº 1 se prevê que “o testador não pode renunciar à faculdade de revogar, no todo ou em parte, o seu testamento”, acrescentando o nº 2: “tem-se por não escrita qualquer cláusula que contrarie a faculdade de revogação.” Como se escreveu, a este propósito, na sentença de 1.ª instância, “tratando-se de um negócio jurídico de natureza pessoal e com efeitos mortis causa, importa que o testador não fique limitado ou condicionado na sua liberdade de dispor dos seus bens por morte e até que esta sobrevenha, prevalecendo o propósito de assegurar que a sua última vontade seja respeitada. Daí que o legislador, desde há muito, tenha assegurado a revogabilidade do testamento, segundo a antiga fórmula usque ad supremum exitum vitae, ou seja, até ao último sopro de vida (cfr. Pires de Lima e Antunes Varela, ob. cit., pág. 488).”

A revogação de um anterior testamento pode ser total, no caso de abranger a sua totalidade ou parcial no caso de apenas revogar algumas das suas disposições.

A doutrina e a jurisprudência têm também distinguido três modalidades de revogação do testamento quanto à forma de a mesma operar: real, expressa e tácita.

A revogação real resulta de o testador praticar actos que inutilizam o testamento ou tornam impossível a execução de certa disposição (cfr. Oliveira Ascensão, Direito Civil – Sucessões, 4.ª ed., Coimbra Editora, 1989, pág. 88), encontrando-se a primeira situação (inutilização do testamento) prevista no art. 2315º do CC e segunda (impossibilidade de execução de disposição testamentária) no art. 2316º (alienação ou transformação da coisa legada). A revogação expressa encontra-se, por sua vez, prevista no art. 2312º do CC segundo o qual a mesma “só pode fazer-se declarando o testador, noutro testamento ou em escritura pública, que revoga no todo ou em parte o testamento anterior”. E a revogação tácita contemplada no art. 2313º, nº 1, do CC, segundo o qual “o testamento posterior que não revogue expressamente o anterior revogá-lo-á apenas na parte em que for com ele incompatível”.

Importa-nos, para o caso, a revogação tácita prevista no art. 2313º, nº 1 do CC.

Sobre esta disposição legal, afirmam Pires de Lima e Antunes Varela (Código Civil Anotado, vol. VI, Coimbra Editora, 1998, pág. 491) que “a revogação tácita do testamento ou da disposição testamentária, como a própria designação tácita desde logo sugere, é a que, não assentando no propósito directamente manifestado pelo testador de eliminar o testamento ou a disposição testamentária anterior, resulta apenas da contradição ou incompatibilidade existente entre as duas declarações e da circunstância de uma delas ser de data posterior à outra. É um fenómeno paralelo ao que acontece no domínio da produção ou actividade legislativa (revogação tácita da lei), a propósito do qual se prescreve no nº 2 do artigo 7º que «a revogação pode resultar de declaração expressa, da incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes ou da circunstância de a nova lei regular toda a matéria da lei anterior». E é o conceito correspondente a este, mas na esfera das disposições de última vontade, que o n.° 1 do artigo 2313º retrata, quando alude à incompatibilidade substancial entre o testamento posterior e o testamento anterior — e em que o verdadeiro fio condutor da revogação é a relação lógica das duas declarações.”

O referido nº 1 do art. 2313º corresponde ao art. 1756º do antigo Código de Seabra segundo o qual “a feitura de segundo testamento, que não mencione o primeiro, só revogará este na parte que lhe for contrária”, sendo que já na vigência do anterior Código Civil, a referida disposição legal suscitava dúvidas na interpretação da parte que restringe a revogação tácita às disposições “contrárias”, o que corresponde, na norma actual, à interpretação do que deve entender-se por disposições “incompatíveis”.

A propósito do art. 1756º do Código de Seabra, afirmava José Tavares, na sua obra “Sucessões e Direito Sucessório”, 2ª ed., Lisboa, Portugal - Brasil, 1922, a pág. 522, , que a referida dificuldade de interpretação, reduzida à sua expressão mais simples, era a de saber se “a contrariedade exigida pela lei é só a incompatibilidade material das disposições, ou a simples incompatibilidade intencional das duas vontades do testador?”, respondendo assim: “atendendo ao que deve ser o verdadeiro pensamento da lei, que não pôde deixar de se harmonisar com o próprio conceito da revogação, como mudança da vontade do testador, entendemos que por disposições contrárias devem entender-se todas as que mostrem uma vontade oposta da parte do testador. Não é, pois, necessário que as disposições dos testamentos anteriores e posteriores sejam simultaneamente inexequíveis; mas basta que revelem claramente no espírito do testador o propósito de invalidar as primeiras. De modo que o decidir que um testamento contem, ou não, disposições contrarias ás de um outro, é sempre uma questão de interpretação da vontade do testador, que pertence ao prudente juízo dos tribunaes, o que melhor se pôde verificar pelo exame de alguns casos de contrariedade”.

Também esta doutrina se mostrou sufragada, já na vigência do actual Código Civil, por Oliveira Ascensão (ob. cit., pág. 89) que alude igualmente à necessidade de interpretar o testamento, com o recurso a prova extrínseca, para apurar o âmbito da “incompatibilidade” entre testamentos: “(…) é tácita a revogação operada pela elaboração de testamento posterior incompatível com o primeiro, mesmo que o testador não declare expressamente a sua intenção de revogar aquele. Se a incompatibilidade não for total, a revogação considerar-se-á feita apenas em parte (art. 2313.°/1). Mas também aqui pensamos que a interpretação do testamento, com o recurso à prova extrínseca, nos pode levar a concluir que se operou uma revogação total.”

Mais recentemente. Menezes Leitão em “Direito das Sucessões”, Almedina, 2021, a pág. 271, adoptou semelhante entendimento, afirmando, a propósito da “incompatibilidade” de disposições testamentárias previstas no nº 1 do art. 2311º do CC que a mesma “não tem que ser material, bastando que a mesma revele uma intenção diferente do testador. Assim se o testador deixa um legado a uma pessoa e num segundo testamento lega o mesmo objecto a outra pessoa, embora fosse materialmente possível que os dois ficassem como co-legatários do mesmo objecto, é manifesto que a intenção do testador é a revogação da anterior disposição. Da mesma forma, se a herança for toda distribuída em legados em dois testamentos diferentes, o facto de ocorrer uma nova distribuição implica naturalmente a revogação tácita da anterior. Não haverá, porém, incompatibilidade se houver sucessivas disposições diferentes a favor da mesma pessoa, como na hipótese de o testador num primeiro testamento deixar a um sobrinho um prédio, num segundo testamento uma quantia em dinheiro e num terceiro testamento títulos de crédito, uma vez que é possível acumular estes legados. Também no caso de o testador no primeiro testamento deixar ao sobrinho um prédio e noutro lhe deixar a quota disponível da herança, nada impede que se considere ser intenção do testador que o prédio seja incluído na quota disponível da herança, assim se compatibilizando os dois testamentos”.

Também o STJ tem entendido que a revogação tácita do testamento se pode revelar numa incompatibilidade intencional, para o que se mostra necessário interpretar a vontade real do testador no sentido de apurar a sua intenção de revogar o testamento anterior, à luz dos critérios previstos no art. 2187º do CC. Nesse sentido, pode ver-se acórdão do STJ de 21.9.1993, proc. 083806, assim sumariado: “(…) IV. A revogação tácita do testamento pode revelar-se na incompatibilidade material ou na incompatibilidade intencional do testamento posterior com o primeiro.”

Realçando que a aferição da revogação tácita de um testamento depende de um “juízo interpretativo com um grau de probabilidade seguro, no sentido de verificar uma vontade revogatória por parte do testador, nos testamentos posteriores”, pronunciou-se, anda, o acórdão do STJ de 30.9. 2003, proc. 03A460, acessível, como os anteriores, em www.dgsi.pt).

Do mesmo modo, no Ac. STJ de 20.5. 2015, proc. 2085/09.5TBGDM.P1.S , este inédito, foi afirmado que “perante a sucessão de instrumentos notariais é fulcral indagar o que subsiste afinal como expressão da vontade da testadora à hora do seu decesso o que ditará a sorte da acção. (…) A problemática em presença coloca-nos o tema da interpretação dos testamentos cujos princípios orientadores constam do artigo 2187° do Código Civil; (…) Em resumo poderá dizer-se que aqui vigora o primado da vontade do testador e que na busca desse desiderato pode inclusive o intérprete socorrer-se de prova complementar; terá contudo a solução a que se chegar de ostentar um mínimo de correspondência no contexto do testamento”.

Tendo em vista o propugnado entendimento, que se acompanha, importa ter em conta, no caso sub judice, o teor de cada um dos testamentos em causa nos autos.

No primeiro testamento público de 29.12.1995, a testadora, EE, declarou o seguinte:

“(…) que faz o seu testamento pela seguinte forma:

- Lega ao Sr. FF, divorciado, consigo habitualmente residente na morada acima indicada, os seguintes bens:

a) um prédio urbano composto de casa de habitação, sito à Rua ..., freguesia de ..., concelho de ..., inscrito (…), com todo o seu recheio; e

b) O veículo automóvel de que seja proprietária à data do seu falecimento.”

No segundo testamento outorgado em 15.10.2019, EE declarou o seguinte:

“1. Institui sua única e universal herdeira AA, irmã dela testadora.

2. E tem assim concluído este testamento, o primeiro que faz.”

De acordo com o art. 2030º, nº 1, do CC, os sucessores são herdeiros ou legatários, estatuindo o nº 2 que herdeiro é o que sucede na totalidade ou numa quota do património do falecido e legatário o que sucede em bens ou valores determinados.

Atento o teor dos dois testamentos, a compatibilidade material ou jurídica entre os respectivos textos é indiscutível e foi afirmada de modo coincidente pelas instâncias.

No primeiro testamento foram instituídos legados a favor de FF. Tendo este falecido antes da testadora, o mesmo deixou em sua representação a única filha, ora ré. Com efeito, de acordo com o disposto no art. 2041º, nº 1 do CC, gozam do direito de representação na sucessão testamentária os descendentes do que faleceu antes do testador ou do que repudiou a herança ou o legado, se não houver outra causa de caducidade da vocação sucessória. Ora, não se verifica qualquer outra causa de caducidade da vocação sucessória, nos termos previstos no art. 2317º do CC, nem se verifica qualquer das excepções à representação indicadas no nº 2 do art. 2042º do mesmo código.

No segundo testamento, a testadora instituiu a sua irmã, ora autora, sua herdeira pelo que, como foi salientado na sentença, a mesma sucede no património daquela, visto por um prisma universal, o que não impede que dessa universalidade de bens sejam excluídos bens determinados, objecto de outra modalidade de sucessão, como é o caso dos legados (cfr. Inocêncio Galvão Telles, Direito das Sucessões, Coimbra Editora, 6.ª edição, págs. 186 a 190).

Assim, do ponto de vista jurídico, as disposições de ambos os testamentos são simultaneamente exequíveis, não se verificando qualquer incompatibilidade entre a atribuição dos legados à ré, enquanto descendente do legatário, e a instituição da autora como herdeira no que se refere aos demais bens que compõem a herança. De acordo com o disposto no art. 2068º do CC: “A herança responde pelas despesas com o funeral e sufrágios do seu autor, pelos encargos com a testamentaria, administração e liquidação do património hereditário, pelo pagamento das dívidas do falecido, e pelo cumprimento dos legados”. E, por isso, numa situação dessas, como se escreveu no acórdão recorrido: “o legado retira-se da herança; o herdeiro único e universal recebe o que restar da herança, cumpridos os legados e outros ónus ou obrigações.”

Assim, do ponto de vista estritamente material e jurídico, atendendo à exequibilidade das disposições testamentárias em confronto, não existe qualquer incompatibilidade, pelo que não se verifica a revogação tácita com base nesse fundamento.

Porém, como decorre da doutrina e da jurisprudência acima indicadas, com as quais concordamos, a incompatibilidade prevista no nº 1 do art. 2313º do CC não se restringe à incompatibilidade material ou jurídica das disposições testamentárias, abrangendo, também, a incompatibilidade intencional das duas vontades do testador.

Ou seja, por disposições “incompatíveis” devem entender-se todas aquelas que mostrem uma vontade oposta da parte do testador. No caso concreto dos autos, são aquelas que revelem uma mudança da vontade da testadora no segundo testamento em relação ao primeiro no sentido da revogação deste . E para decidir se existe essa incompatibilidade intencional, é imperioso que se interprete a vontade real do testador, se necessário com recurso à prova extrínseca ou complementar, conforme previsto no art. 2187º do CC.

Em matéria de interpretação do testamento, dispõe o referido art. 2187º, nº 1, do CC, o seguinte: “Na interpretação das disposições testamentárias observar-se-á o que parecer mais ajustado com a vontade do testador, conforme o contexto do testamento.”

Segundo o nº 2, “é admitida prova complementar, mas não surtirá qualquer efeito a vontade do testador que não tenha no contexto um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa”

Entendem a doutrina e a jurisprudência que o nº 1 do art. 2187º do CC consagra expressamente a posição subjectivista em matéria de interpretação das disposições testamentárias, mantendo a linha de orientação que já vinha do art. 1761º do Código de Seabra, ao invés da perspectiva objectivista que preside à interpretação dos negócios inter vivos nos termos do disposto no art. 236º, nº 1, do CC.

A propósito, afirma-se no Ac STJ de 25.5.2023, proc. 1504/18.4T8PVZ.S1, que nos negócios inter vivos “estamos perante, pelo menos, duas partes e as respectivas declarações negociais, sendo bilaterais, são também receptícias; logo, há que atender aos interesses dos destinatários e à interpretação que estes fazem daquelas; assim, vale a vontade manifestada tal como é justificadamente compreendida e interpretada pelo destinatário (teoria da impressão do destinatário)”, enquanto “tal não acontece no testamento em que a declaração é unilateral; aqui não há destinatário directo e imediato cujo interesse deva ser protegido; a declaração deve valer de acordo com a vontade do testador. Dito de outro modo: enquanto ali estamos perante, pelo menos, duas partes em conflito de interesses, propugnando cada uma delas interpretações contraditórias ou divergentes das declarações negociais de que são reciprocamente declarantes e destinatários, no caso do testamento, sendo a declaração sempre unilateral, importa averiguar o entendimento e, por via deste, a vontade do respectivo autor.”

Citando Emílio Betti, na Teoria Geral do Negócio Jurídico, tomo II, 1969, pág.. 304, a propósito de testamentos, pode ler-se no mesmo acórdão que “a meta principal da interpretação é, aqui, o pensamento do disponente, ainda que não se encontre exprimido de maneira adequada na declaração, desde que coincida, univocamente, com ela, e resulte de circunstâncias exteriormente reconhecíveis, no círculo social do disponente, mercê de ilações tiradas da experiência comum”. No entanto, “tratando-se o testamento de um acto formal, solene, objectivado num texto, não pode a interpretação prescindir deste elemento objectivo que funciona como seu ponto de partida.”

Conclui, assim, o referido aresto que “relevam, para apurar e reconstituir a vontade do autor do testamento, não só o respectivo texto, mas também quando se entenda que ele não manifesta correcta ou integralmente a sua vontade (e para que estes vícios sejam eliminados) o respectivo contexto à data da sua outorga e no qual se inspirou a vontade do testador, ou seja, começando pelo significado que ele atribuía às designações e expressões utilizadas e continuando pela sua maneira pessoal de ver e de encarar os problemas (as deixas testamentárias procuravam sempre solucionar problemas...), as suas opiniões pessoais, a sua cultura, os seus hábitos e comportamentos (sociais e religiosos), em suma, a sua mentalidade ao tempo do testamento, para concluir por "descobrir" a vontade expressa do testador”. Como se sintetiza num outro aresto do STJ de 14.7.2021, proc. 2010/12.6TBGMR.G2.S1 “a interpretação do testamento (em que a declaração é unilateral, não havendo destinatário directo e imediato cujo interesse deva ser protegido: a declaração deve valer de acordo com a vontade real e contemporânea do testador) assenta numa perspectiva subjectivista em que se procura reconstituir o pensamento do testador à data da outorga do testamento, devendo nessa função interpretativa partir-se do texto do testamento e do contexto em que o testador o outorgou, indagando do sentido que este, à data da outorga do testamento, atribuía às expressões que nele utilizou e da sua mentalidade (opiniões pessoais, cultura, hábitos e comportamentos sociais e religiosos).”

Igualmente, na doutrina, Manuel de Andrade, ainda na vigência do Código de Seabra, referia que o testamento devia ser “interpretado de acordo com a vontade do testador, mas não deduzida essa vontade apenas do contexto do testamento, isto é, dos seus termos. A intenção do testador deve ser procurada não só através do contexto do testamento, como através de quaisquer outros elementos que permitam reconstituí-la. Ela deve ser indagada por todos os meios idóneos. Mas só relevará como sentido decisivo do testamento quando se puder considerar melhor ou pior expressa, ou menos reflectida, nos termos do respectivo documento. Não se exige uma exacta correspondência entre a vontade testatória e os termos do testamento; basta uma qualquer correspondência, vaga e imperfeita que seja” (Teoria Geral da Relação Jurídica, vol. II, p. 167).

Também, entre vários outros autores no mesmo sentido, entende Galvão Telles que “a interpretação dos testamentos deve fazer-se, em primeira linha, pelo apuramento da vontade real e contemporânea do testador, usando para essa averiguação simultaneamente o contexto do testamento e a prova complementar ou extrínseca que sobre isso puder reunir-se. (...) Fixado, por esse modo ou com esses materiais, aquilo que efectivamente estava no pensamento do testador, não significa, porém, isto o termo do processo interpretativo, dado que sendo o testamento um acto formal ou solene, para que a vontade real ou verdadeira, assim apurada, seja atendível, necessário se torna que tenha, no contexto testamentário, um mínimo de correspondência, ainda que imperfeitamente expressa (...) Assim, a limitação contida no nº 2 do artigo 2187º do Código Civil não restringe o recurso a prova complementar, proibindo apenas que, com o uso de tais meios, se ultrapasse o processo de interpretação para apurar o que seria verdadeira alteração ou modificação informal do próprio testamento” (Anotação ao acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16.12.1986, in "O Direito", Ano 121º, 1989, IV, págs. 771 e ss.).

Se bem que a jurisprudência venha mantendo o entendimento do Assento nº 8/1954 de 19.10.1954, publicado no Diário do Governo, I série de 5.11.1954 (hoje com o valor de acórdão uniformizador de jurisprudência) no sentido de que “constitui matéria de facto, de exclusiva competência das instâncias, determinar a intenção do testador”, tem, no entanto, o Supremo entendido, que é da sua competência apreciar se o tribunal a quo observou devidamente as regras de interpretação que decorrem do art. 2187º do CC, porque uma coisa será apurar a vontade naturalística do de cujus outra, substancialmente diversa, será o apuramento do resultado da interpretação com a sua subsunção aos requisitos aludidos naquele normativo, por forma a obter o seu sentido e alcance” (cfr. Ac. STJ de 11.2.2020, proc. 933/13.4TBVCD.S1). Como também se decidiu no acima citado Ac. STJ de 25.5.2023, “a interpretação do testamento, no sentido da descoberta da vontade real do testador, pode constituir: (i) questão de direito, se feita única e exclusivamente com recurso ao texto do testamento, caso em que o STJ pode conhecê-la; (ii) questão de facto se for feita com recurso a prova complementar, e neste caso é da exclusiva competência das instâncias, mas sem prejuízo de o STJ poder sindicar, nos termos do art. 2187º, nº 2, do CC, a correspondência da vontade do testador assim determinada, com o contexto do testamento (no mesmo sentido, veja-se o citado acórdão de 8.5.2013).

É tendo em conta os contributos jurisprudenciais e doutrinais acima expostos que importa interpretar o teor do último testamento outorgado em 15.10.2019 e apurar se o mesmo revogou tacitamente o testamento anterior, valorando, para o efeito, não apenas o texto (com destaque para a parte em que a testadora declarou que a autora fica instituída como a sua única e “universal” herdeira, em conjugação com o segmento no qual declara que “tem assim concluído este testamento, o primeiro que faz”) mas também a factualidade dada como provada com relevância para o apuramento da vontade revogatória da testadora.

Ora. compulsado o teor do acórdão recorrido, verificamos que a Relação se focou apenas na compatibilidade jurídica entre as respectivas disposições dos testamentos em causa, sem valorar a factualidade dada como provada relativa à vontade real da testadora em conjugação com o texto do segundo testamento.

Porém, e como se afirma na sentença, julgamos que as referidas passagens do texto do testamento de 2019 devem ser conjugadas com a globalidade da matéria de facto provada, e, em particular, com a circunstância de ter ficado provado que, para a testadora, o anterior testamento por ela outorgado em 29.12.1995, perdera todo o seu valor (cfr. facto provado nº 42), em virtude do falecimento do seu companheiro, a que acrescem os factos provados relativos à sua expressa manifestação de vontade, transmitida a terceiros de que os seus bens, incluindo a casa da ..., fossem herdados pela sua irmã (cfr. facto provado nº 37), tendo, de forma correspondente a essa intenção, disponibilizado a mencionada casa ao filho da sua putativa herdeira, que era já idosa, o qual, com a sua autorização e por vontade dela (testadora), passou a habitar tal casa (cfr. factos provados nº 32 a 35 e 39).

Além disso, dos factos provados resulta que o primeiro testamento foi outorgado cerca de 24 anos antes do segundo, no contexto de uma relação de união de facto que a testadora manteve durante décadas com o seu companheiro FF. Foi nesse contexto que a testadora e o companheiro elaboraram, em razão do afecto que tinham um pelo outro, testamentos recíprocos para o caso de um deles morrer primeiro (cfr. facto provado nº 54). Compulsado o teor do primeiro testamento de EE, verificamos que, como sublinhou também a 1.ª instância, o mesmo tinha como principal objecto o legado da casa da ... em benefício do seu companheiro, imóvel que havia sido casa de morada de família de ambos e objecto de obras de remodelação na constância da união, em relação à qual a testadora tinha uma ligação sentimental, pelo que teria sido com esse sentido e propósito sentimental que havia sido deixada como legado, sentimento que nunca esteve presente em relação à ré.

Acresce que dos factos provados resulta que, na altura da outorga do testamento de 15.10.2019, a testadora tinha deixado de manter relações com a ré, devido a conflitos que surgiram, nomeadamente, com as partilhas da herança do seu companheiro e pai da ré, e feito, inclusive, comentários pouco abonatórios da ré, provando-se que não tinha qualquer intenção de deixar a esta quaisquer bens (cfr. factos provados nº 20 a 26), o que reforça claramente a conclusão (retirada na sentença da 1.ª instância) de que era contrária à vontade da testadora a subsistência do primeiro testamento e a disposição de que a mencionada casa da ... revertesse para a ré por efeito da consideração do legado e do direito de representação.

Assim, e de acordo com os factos provados, a vontade real da testadora, no momento em que outorgou o segundo testamento, era a de que todos os seus bens, incluindo o bem imóvel correspondente à casa da ... que tinha declarado, muitos anos antes, pretender deixar em legado ao seu companheiro, entretanto falecido, fossem herdados pela autora sua irmã. E essa vontade é incompatível com o entendimento de que o primeiro testamento e os legados a que este se referia se devem manter como válidos e em vigor.

Por outro lado, constata-se que a vontade real da testadora, assim apurada, tem um mínimo de correspondência no texto do testamento de 15.10.2019, ainda que imperfeitamente expressa, atenta a referência que aí é feita à vontade da testadora de que a autora fosse instituída como sua “única e universal herdeira” e de que era esse o seu “primeiro testamento”. Esta última referência está em conformidade com a vontade da testadora de considerar sem qualquer valor o testamento anterior. Sendo que a ausência de referência a esse testamento no texto do que foi outorgado em 2019 se explicará pela circunstância de a testadora considerar, porventura, que o testamento anterior perdera o seu valor com o falecimento do seu companheiro e beneficiário dos legados ali instituídos.

Podemos, assim, concluir que os factos provados e o texto do testamento outorgado em 2019 permitem interpretar a efectiva vontade da testadora nos termos do art. 2187º do CC, no sentido de dar como verificada uma situação de incompatibilidade intencional do testamento de 2019 com o primeiro de 1995, o que constitui fundamento de revogação tácita do testamento inicial, nos termos previstos no art. 2313º, nº 1, do CC.

Concluindo-se pela revogação tácita do testamento anterior outorgado em 1995, impõe-se concluir pela procedência integral do recurso de revista e pela consequente repristinação do decidido pela 1.ª instância, quer quanto à declaração dessa revogação tácita, quer quanto às respectivas consequências relativas à declaração da autora como única e universal herdeira de EE e à declaração de nulidade do registo de aquisição a favor da ré da casa da ....

Com efeito, com essa revogação, o testamento anterior deixa de produzir quaisquer efeitos, nomeadamente, no que se refere à disposição do bem imóvel correspondente ao prédio urbano descrito na ....ª Conservatória do Registo Predial de ... sob o nº ...12/20201124 (casa da ...), o qual tem inscrito um registo de aquisição em favor da ré, datado de 28.1.2021, mediante a AP.7794. Tal como se refere na sentença, tendo tal inscrição a favor da ré sido feita e instruída com um testamento de 1995 que foi revogado em 2019 e com base numa habilitação de herdeiros outorgada em 16.11.2020 (que se funda na validade do testamento de 29.12.1995), terá de se entender que o registo foi feito sem título bastante ou válido para o efeito. Aplicando o regime geral da nulidade da venda de bens alheios previsto no art. 892º do CC, que se aplicará a todas as situações de falta de legitimidade para a transmissão, pode concluir-se que a mencionada aquisição, levada a registo, não é juridicamente válida, não podendo ser, assim, aceite o legado uma vez que o testamento em que se funda, correspondente ao outorgado em 29.12.1995, foi considerado como revogado e não produziu quaisquer efeitos. Consequentemente, o respectivo registo de aquisição inscrito na Conservatória do Registo Predial deve ser declarado nulo, nos termos e para os efeitos do art. 16º, als. a) e c), do Código de Registo Predial, pelo que procede o pedido de nulidade da apresentação que titula o registo do imóvel em favor da ré, com o consequente cancelamento.

Relativamente à improcedência dos demais pedidos formulados pela autora e à improcedência da reconvenção, a sentença de 1.ª instância transitou em julgado, uma vez que nem a autora nem a ré recorreram dessa parte, que lhes foi desfavorável.

Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção em conceder a revista e, repristinando da decisão de 1.ª instância, julgar a acção parcialmente procedente, declarando-se:

a) revogado tacitamente o testamento celebrado em 29.12.1995 pela testadora EE constante de fls. 39 verso e 40 do livro de Notas para Testamentos Públicos e Escrituras de Revogação nº 57 do Cartório Notarial de..., por efeito do testamento posterior, de 15-10-2019, lavrado a folhas 107 do livro T-21 do Cartório Notarial do Dr. CC;

b) nulo o registo de aquisição a favor da ré, com a AP. ...94, de 2021.01.28, do prédio urbano sito na Rua ..., freguesia de ..., descrito na Conservatória do Registo Predial de ..., sob o nº ...12 da freguesia de ..., ordenando-se o respetivo cancelamento;

c) a autora como única e universal herdeira de EE, nos termos do testamento celebrado em 15.10.2019, no Cartório Notarial do Dr. CC, em ..., assistindo-lhe o direito a suceder na totalidade dos bens que integram a herança daquela.

Custas pela recorrida/ré.


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Lisboa, 29 de Abril de 2025

António Magalhães (Relator)

Anabela Luna de Carvalho

Nelson Borges Carneiro