I – Se a sentença de divórcio não se pronunciar sobre o destino da casa de morada de família, do seu trânsito em julgado não resulta a caducidade da decisão de atribuição provisória da casa se morada de família.
II – Transitada em julgado a sentença que dissolveu o casamento por divórcio, sem que tenha havido acordo quanto ao destino da casa de morada de família até à partilha, tendo-se substituído tal acordo pela decisão proferida neste incidente, a decisão provisória de atribuição da casa de morada de família terá necessariamente os mesmos efeitos que o acordo, nomeadamente o previsto no nº 2, do artº 1775º, do Código Civil, vigorando também para o período posterior à pendência do processo.
III – O princípio do inquisitório na jurisdição voluntária não afasta o ónus de alegação dos factos e da apresentação de prova pelas partes.
IV – Não se vislumbrando a possibilidade de utilização da casa por ambos os cônjuges de forma autónoma, por muito que ambos necessitem da casa, esta terá de ser atribuída apenas a um deles, não se podendo condenar os cônjuges a uma comunhão forçada que já não interessa a nenhum.
V – Para decidir a qual dos cônjuges atribuir a casa de morada de família, recorrendo ao princípio orientador consagrado no artº 1793º, nº 1, do Código Civil, deve o julgador atender às necessidades de casa um dos cônjuges e aos interesses dos filhos do casal.
VI – A atribuição provisória da casa de morada de família não implica necessariamente o pagamento de uma renda, justamente, em primeiro lugar, por se tratar de uma decisão provisória e, por outro lado, porque o incidente está sujeito a critérios de equidade, mais do que a legalidade estrita, tudo dependendo do condicionalismo concreto em que se encontram as partes.
(Sumário elaborado pela Relatora)
Recorrente AA
Recorrida BB
Juiz Desembargador Relator: Anabela Marques Ferreira
Juízes Desembargadores Adjuntos: Hugo Meireles
Luís Manuel Carvalho Ricardo
Sumário (da responsabilidade do Relator – artº 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)
(…).
Acordam os juízes que nestes autos integram o coletivo da 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Coimbra:
Nos autos principais, de divórcio sem consentimento do outro cônjuge, que correram termos no Juízo de Família e Menores de ... – Juiz 1, intentado por AA contra BB, veio esta, após ter sido citada para a ação, requerer a atribuição provisória da casa de morada de família.
Na diligência de tentativa de conciliação realizada nesses autos, ambos os cônjuges manifestaram o interesse de que a casa lhes fosse provisoriamente atribuída, tendo sido proferido despacho decidindo, para além do mais, que:
---Na presente audiência, os cônjuges manifestaram o propósito de se divorciarem por mútuo consentimento, tendo apresentado os acordos previstos nos artºs 1775º, al.s a) a d), do Código Civil e artº 994º, nº 1, al.s b), c), d) e f), do Código de Processo Civil, pese embora subsista a questão do destino da casa de morada de família, para efeitos de residência até à venda ou partilha.---
¨¨----Assim, atenta a posição assumida pelas partes, manifestando o sério propósito de não restabelecerem a sociedade conjugal e a vontade de se divorciarem por mútuo consentimento, encontrando-se por isso reunidos todos os pressupostos legais, convolo a presente Ação de Divórcio Sem Consentimento do Outro Cônjuge em Divórcio por Mútuo Consentimento, nos termos do disposto no artº 931º nº 5, do C.P.C..-
----Uma vez que não há acordo quanto ao destino da casa de morada de família e constituindo tal questão uma questão do divórcio, concedo a cada uma das partes o prazo de 10 (dez) dias para fundamentar a sua pretensão relativa ao destino da casa de morada de família e alegar as razões de facto e de direito em que sustentam tal pretensão, devendo, em tais alegações, apresentar logo a prova.
----Cada uma das partes, disporá ainda do prazo de dez dias para se pronunciar acerca do pedido que venha a ser formulado pela parte contrária.---
----Por uma questão de transparência e clareza processual, tal questão será tramitada por apenso, de acordo com as regras aplicáveis aos incidentes da instância, apenas sendo admitidos dois articulados relativa a cada pretensão, devendo as partes indicar/condensar toda a prova a produzir, nos articulados que vierem a ser apresentados.---
----A sentença a decretar o divórcio e a apreciar os acordos nesta data alcançados será proferida depois de resolvida a questão controvertida relativa ao destino da casa de morada de família.---
Foi formado apenso de incidente de atribuição de casa de morada de família, tendo os Requerentes AA e BB, requerido mutuamente que lhe seja atribuída a casa de morada de família, sendo que o primeiro veio alegar que sempre foi vítima de violência doméstica, sendo maltratado pela esposa que se auto-agride para incriminar o marido, que por tais factos já tentou o suicídio, tendo chegado a estar internado, sendo que também sofre de depressão, tristeza e ansiedade, não dispõe de outro local para residir, não tem capacidade financeira para financiar outra residência, não tem apoio dos filhos, diversamente do que sucede com a esposa, que é apoiada pela filha.
Por sua vez, a requerente veio alegar que é vítima de violência doméstica por banda do marido, que este a impede de fruir a casa de morada de família, que não tem recursos económicos para financiar outra habitação e não dispõe de qualquer outra, que não tem carro e que a casa onde vive está próxima de todos os locais que habitualmente frequenta para fazer face às suas necessidades, nomeadamente de saúde, uma vez que padece de diversos problemas de saúde em tratamento.
Foi produzida prova e proferida sentença, decidindo:
Pelo exposto, decido:
- julgar improcedente o pedido formulado por AA e absolver CC de tal pedido,
- julgar procedente o pedido formulado por BB e, em consequência, atribuir o uso da casa de morada da família em exclusivo a BB até à venda ou partilha.
Entretanto, nos autos principais, por decisão já transitada em julgado, o casamento dos Requerentes foi declarado dissolvido por divórcio, onde se diz, para além do mais, que:
Assim, face ao acordo dos cônjuges quanto à conversão da presente acção de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, à inexistência de filhos menores e de animais de companhia, à prescindibilidade recíproca de alimentos devidos a cônjuges, ao património comum já relacionado, à decisão já proferida acerca do destino da casa de morada de família, ao disposto nos art. 1775º e 1778º do CC, e porque os presentes autos evidenciam o sério propósito de divórcio por parte dos requerentes (vide, a propósito do regime anteriormente vigente, Guilherme de Oliveira, RLJ, ano 130, p. 137 e seg.), o Tribunal declara dissolvido por divórcio o seu casamento de ../../1979 (vide assento de casamento de fls. 7) e homologa os acordos supra-referidos, condenando as partes no cumprimento do acordado.-----
O Requerente AA interpôs recurso da sentença de atribuição da casa de morada de família, concluindo, nas suas alegações, que:
(…).
A Recorrida BB respondeu ao recurso, concluindo, nas suas contra-alegações, que:
(…).
II – Objeto do processo
Da conjugação do disposto nos artºs 635º, nºs 3 e 4, 637º, nº 1 e 639º, todos do Código de Processo Civil, resulta que são as conclusões do recurso que delimitam os termos do recurso (sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso - artº 608º, nº 2, ex vi artº 663º, nº2, ambos do mesmo diploma legal), não vinculando, porém, o Tribunal ad quem às soluções jurídicas preconizadas pelas partes (artº 5º, º 3, do Código de Processo Civil). Assim:
Questões a decidir:
1) Da caducidade do presente procedimento
2) Da insuficiência dos factos julgados provados e não provados
3) Da atribuição da casa de morada de família a ambos os ex-cônjuges
4) Da atribuição da casa de morada de família à Requerente BB
5) Do caráter gratuito da atribuição da casa de morada de família
Factos julgados provados na sentença recorrida:
1 – As partes contraíram entre si casamento católico, sem convenção antenupcial, no dia ../../1979, na Capela Pública do lugar de ..., freguesia ..., concelho ..., tendo a nubente, à data, a idade de 23 anos e tendo o nubente, à data, a idade de 24 anos.
2 – A 11.02.2024, foi atribuído a BB o estatuto de vítima especialmente vulnerável em inquérito criminal por ela instaurado contra o marido, por factos passíveis de consubstanciarem o crime de violência doméstica contra ela perpetrado.
3 - A 31.03.2024, foi atribuído a AA o estatuto de vítima especialmente vulnerável em inquérito criminal por ele instaurado contra a esposa, por factos passíveis de consubstanciarem o crime de violência doméstica contra ele perpetrado.
4 – No ano de 2023, BB auferiu pensões de velhice no montante global de 5013,66€ (cinco mil e treze euros e sessenta e seis cêntimos), recebendo, no decurso do corrente ano de 2024, o montante mensal de 385,97€ (trezentos e oitenta e cinco euros e noventa e sete cêntimos), a título de pensão de velhice.
5 – Por referência ao ano de 2023, AA declarou, para efeitos fiscais, um rendimento de 6351,92€ (seis mil trezentos e cinquenta e um euros e noventa e dois cêntimos), proveniente de pensões, bem como um rendimento de 2258,16€ (dois mil duzentos e cinquenta e oito euros e dezasseis cêntimos) obtido no estrangeiro.
6 - Por referência ao ano de 2023, BB declarou, para efeitos fiscais, um rendimento de 5013,66€ (cinco mil e treze euros e sessenta e seis cêntimos), proveniente de pensões.
7 - No processo de divórcio, as partes relacionaram, a título de património comum do casal, um prédio urbano (casa de morada de família) inscrito na matriz sob o nº ...66, da União de Freguesias ... e ..., com o valor patrimonial de trinta e oito mil e vinte e um euros e noventa cêntimos, para além de três prédios rústicos sitos na mesma freguesia.
7 - No processo de divórcio, ambos os cônjuges declararam prescindir de alimentos devidos a cônjuge.
8 – Para efeitos de intervenção no processo de divórcio, foi concedida a BB protecção jurídica na modalidade de dispensa de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
9 - AA esteve internado em contexto hospitalar desde 11.02.2024 até 29.02.2024, na sequência de entrada no Serviço de Urgência do Hospital ... após intoxicação voluntária com cerca de 200 ml de produto herbicida, com vista ao suicídio, na sequência de conflito conjugal.
10 – AA encontra-se sujeito a medicação antidepressiva, neuroléptica, antidislipidemiante e antidiabética, tendo-lhe ainda sido prescrita a 29.02.2024 a seguinte medicação: mirtazapina 15 mg (0+0+0+1), risperidona 1 mg (1/2+0+0+0), Vitaminas do complexo B 1 comp ao PA, lorazepam 2.5 mg 1 comp. em SOS.
11 - AA é seguido em consultas no Departamento de Psiquiatria e Saúde Mental do Hospital de ....
12 - AA não se relaciona com os filhos, já maiores de idade e com vidas autónomas dos pais, tendo os filhos cortado relações com o pai.
13 – Na sequência dos factos participados no inquérito por violência doméstica que corre termos contra AA, a esposa passou a residir, provisoriamente, a partir de Abril de 2024, na casa da filha em ..., a qual não manifesta disponibilidade para acolher a mãe na sua casa em termos definitivos.
14 – A casa da filha das partes apenas dispõe de três quartos para a pernoita da filha das partes, do marido e dos dois filhos, os quais tiveram de alterar a sua organização familiar para permitir a pernoita de BB na sua casa, com perda de conforto e de privacidade do agregado familiar.
15 – Antes de Abril de 2024, as partes residiam no prédio urbano inscrito na matriz sob o nº ...66, da União de Freguesias ... e ..., descrito na CRP ... sob o nº ...12, o qual passou a ser fruído exclusivamente por AA desde então.
16 - BB sofre há anos de depressão e artrites, sendo acompanhada em consultas de neurologia e medicina física e reabilitação, frequenta a hidroginástica e toma medicação regular.
17 – Cada consulta de neurologia, em número não superior a duas por ano, importa um custo de cem euros.
18 - As consultas de Medicina Física e Reabilitação são gratuitas, assim como a hidroginástica.
19 – Entre a casa de morada de família e a piscina, onde frequenta a hidroginástica três vezes por semana, BB gasta em cada viagem 2,45€ (dois euros e quarenta e cinco cêntimos), gastando semanalmente quantia não inferior a 14,40€ (catorze euros e quarenta cêntimos) nessas deslocações.
20 - BB gasta em medicação, cerca de 50,00€ (cinquenta euros) mensais, tendo despendido, no ano de 2023, 847,34€ (oitocentos e quarenta e sete euros e trinta e quatro cêntimos) em despesas de saúde.
21 - AA realiza, quando surgem, trabalhos remunerados, e fiscalmente não declarados, na agricultura e na construção civil por conta de terceiros.
22 - AA tem carta de condução e conduz veículo automóvel.
23 – No dia 08.03.2024, AA emitiu declaração de venda, em benefício de terceiro, para fins de registo, do veículo automóvel de marca Opel que costuma conduzir.
24 – Nos inquéritos instaurados contra as ora partes, por factos passíveis de consubstanciarem o crime de violência doméstica, ainda não foi aplicada medida de coacção.
25 – As partes sempre tiveram uma relação conjugal conflituosa, com muitas discussões e berros, e já aconteceu o requerente chamar “puta” à esposa.
26 – Os problemas de saúde de BB impedem-na de desenvolver actividades que importem esforço físico.
27 - BB não desenvolve actividade remunerada.
Factos julgados não provados na sentença recorrida:
- AA despenda sessenta e cinco euros mensais com medicação, deslocações para consultas ao Hospital Psiquiátrico de ...
- AA não tenha meios financeiros/rendimentos para arrendar um alojamento ou não consiga realojar-se por qualquer outra forma,
- AA agrida fisicamente a esposa e a chame de “esgadelhada” e “gatuna”,
- AA feche a água da companhia, desligue o gás do esquentador, coloque a chave da porta no interior da porta da casa, retire a chave do correio do seu local habitual para impedir que a esposa possa fruir da casa de morada de família,
- a requerente se auto-agrida para incriminar o marido,
- a requerente disponha de qualquer outra habitação, para além da casa de morada de família, onde possa residir em permanência, com condições de conforto adequadas à sua condição física.
B) De Direito
No título dedicado ao divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, dispõe o artº 931º, nº 9 (anterior nº 7), do Código de Processo Civil, que:
Em qualquer altura do processo, o juiz, por iniciativa própria ou a requerimento de alguma das partes, e se o considerar conveniente, pode fixar um regime provisório quanto a alimentos, quanto à regulação do exercício das responsabilidades parentais dos filhos e quanto à utilização da casa de morada da família; para tanto, o juiz pode, previamente, ordenar a realização das diligências que considerar necessárias.
Trata-se de matéria extensa, mas regulada se forma sintética, o que originou vasto campo de dúvidas, que vêm sido resolvidas pela doutrina e pela jurisprudência, nem sempre de forma convergente.
Vejamos.
1) Da caducidade do presente procedimento
A primeira questão que o recurso nos coloca é a da caducidade dos presentes autos, em consequência do trânsito em julgado da sentença de divórcio.
Uma vez que a norma descreve o regime como sendo provisório, tem obrigatoriamente de ter um limite temporal, que a lei não diz expressamente qual é.
Trata-se de um vexatia questio que tem sido resolvida de formas diferentes, situando-se tal limite no trânsito em julgado da sentença de divórcio, no trânsito em julgado da sentença a proferir na ação principal (instaurada no prazo de 30 dias), a providência a que alude o artº 990º, do Código Civil[1], ou com a partilha dos bens do extinto casal.
Para uma resenha pormenorizada dos vários entendimentos que vêm sendo sufragados, ver acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 31 de Janeiro de 2023, proferido no processo nº 51/21.4T8TMR.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
Contudo, desde já consignamos seguir o entendimento deste mesmo acórdão, o qual decidiu que:
I- Os efeitos da decisão proferida na pendência da ação de divórcio que, à luz do incidente previsto no n.º 7 do artº. 931º do CPC, fixa o regime provisório de utilização da casa de morada de família, não caducam (automaticamente) com o trânsito da sentença que decretou o divórcio entre os cônjuges, mas tão-só, e salvo acordo entretanto ocorrido entre aqueles sobre a matéria, com o trânsito em julgado da sentença proferida na ação instaurada (por qualquer um deles), ao abrigo artº. 990º do CPC, destinada a fixar/regular definitivamente aquela utilização ou então com a partilha dos bens do dissolvido casal (se a casa for objeto dessa partilha e/ou dos acordos nela ocorridos a esse propósito).
Entendemos, pois, que não pode ser a sentença de divórcio a fixar o limite temporal da atribuição provisória da casa de morada de família, pois que tal sentença nunca fixa (salvo havendo homologação de acordo) o seu destino; só uma ação que o faça pode ter a virtualidade de fazer caducar a providência.
Mas atenhamo-nos às particularidades deste caso concreto.
De acordo com o disposto no artº 1779º, nº 2, do Código de Processo Civil, o divórcio sem o consentimento do outro cônjuge pode ser convolado em divórcio por mútuo consentimento; foi o que aconteceu no caso em análise.
Ora, o divórcio por mútuo consentimento pressupõe a existência de acordo quanto ao destino da casa de morada de família – artºs 1775º, nº 1, al. d), do Código Civil, e 994º, nº 1, al. f), do Código de Processo Civil.
Contudo, o Tribunal a quo fez substituir tal acordo pela decisão proferida neste incidente, tendo condenado o Recorrente, também nos autos de divórcio, a cumprir a decisão aqui proferida, só assim se podendo entender o segmento da sentença supratranscrito:
Assim, face ao acordo dos cônjuges quanto à conversão da presente acção de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, à inexistência de filhos menores e de animais de companhia, à prescindibilidade recíproca de alimentos devidos a cônjuges, ao património comum já relacionado, à decisão já proferida acerca do destino da casa de morada de família, ao disposto nos art. 1775º e 1778º do CC, e porque os presentes autos evidenciam o sério propósito de divórcio por parte dos requerentes (vide, a propósito do regime anteriormente vigente, Guilherme de Oliveira, RLJ, ano 130, p. 137 e seg.), o Tribunal declara dissolvido por divórcio o seu casamento de ../../1979 (vide assento de casamento de fls. 7) e homologa os acordos supra-referidos, condenando as partes no cumprimento do acordado.-----
No sentido da possibilidade de homologação do acordo de divórcio ainda que não haja acordo quanto aos demais pontos (embora com divergente entendimento quanto à questão da caducidade da decisão provisória), ver acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Maio de 2021, proferido no processo nº 4905/19.7T8MTS.P1.S1, disponível em www.dgsi.pt, onde se diz:
V - Se em processo de divórcio sem consentimento em que os cônjuges estabeleceram acordo sobre o propósito de se divorciarem, o tribunal julgou improcedentes os pedidos do cônjuge no sentido de lhe serem fixados alimentos e atribuída a casa de família, em virtude de para lá do pedido aquela nada ter alegado para fundamentar a sua pretensão, depois de julgar esses pedidos improcedentes o juiz pode decretar o divórcio homologando aquele acordo.
Daquela sentença de divórcio não foi interposto recurso, pelo que já transitou em julgado, tendo-se então consolidado o entendimento de que a decisão provisória substitui o acordo quanto ao destino da casa de morada de família.
Deste modo, a decisão provisória terá necessariamente os mesmos efeitos que o acordo, nomeadamente o previsto no nº 2, do artº 1775º, do Código Civil, o qual dispõe que Caso outra coisa não resulte dos documentos apresentados, entende-se que os acordos se destinam tanto ao período da pendência do processo como ao período posterior.
Assim, também por esta via, cumpre julgar o recurso improcedente, nesta parte.
2) Da insuficiência dos factos julgados provados e não provados
Entende o Recorrente que o juiz a quo, apenar de nenhuma das partes lho ter solicitado, deveria ter averiguado, por sua iniciativa, se a casa poderia ou não ser utilizada de forma autónoma por ambos os cônjuges, sendo atribuída aos dois.
Consequentemente, requer que os autos baixem à 1ª instância para que se proceda a tal averiguação.
Também aqui o Recorrente carece de razão, uma vez que o princípio do inquisitório na jurisdição voluntária não afasta o ónus de alegação dos factos e da apresentação de prova pelas partes.
Como nos diz António José Fialho, “Conteúdo e limites do princípio inquisitório na jurisdição voluntária”, Petrony, 2017, pág. 85:
Na verdade, mesmo num processo inquisitório pleno, a instrumentalidade de um procedimento de natureza cognitiva e vinculado a uma função decisória, não pode deixar de ter em conta a pretensão formulada e "a definição exata e concreta do litígio trazido a juízo❞.
Em função de outros elementos recolhidos no processo, da própria iniciativa dos interessados e dos fins que visa alcançar, os poderes de investigação oficiosa do juiz apenas devem ser exercidos quando demonstrem a existência de "uma utilidade presumida", ou seja, que sejam adequados e necessários "à descoberta da verdade material e à correta decisão da causa".
Deste modo, o objetivo prosseguido com o processo especial escolhido e que se mostre adequado à finalidade pretendida deve constituir um limite ao poder inquisitório do tribunal. (sublinhado nosso)
Ver também, entre outros, o recente acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra de 14 de Janeiro de 2025, proferido no processo nº 5642/18.5T8VIS-J.C1, disponível em www.dgsi.pt, onde se diz:
I – Prevalecendo nos processos de jurisdição voluntária, o princípio do inquisitório, o poder de conhecimento dos factos está dependente da sua alegação pelas partes ou de que os mesmos cheguem ao seu conhecimento no decurso da instrução do processo, ainda que por indagação oficiosa.
Ou, num sentido ainda mais restritivo, acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 6 de Maio de 2021, supra referido:
VI - O poder o juiz ordenar realizar de diligências nos termos do art. 931.º, n.º 7, do CPC e 1778.º-A, n.º 4, do CC, resulta de ser da sua iniciativa fixar um regime provisório quanto a alimentos, à regulação das responsabilidades parentais ou quanto à utilização da casa de família, pois, se não o fez oficiosamente, cabe em regra a quem requeira essa fixação o ónus de alegar os factos e a presentar prova.
Também António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, “Código de Processo Civil anotado”, volume II, Almedina, 2021, pág. 377:
13. Os poderes instrutórios atribuídos na parte final do nº 7 não se destinam a
dispensar o ónus da prova das partes, que se mantém, mas a possibilitar uma decisão
mais equitativa quanto às pretensões formuladas, dada a natureza dos interesses
em causa. Tais poderes instrutórios atribuídos ao juiz permitem completar a prova
oferecida pelas partes, mas não substituí-la (RP 16-1-14, 228/13).
Acresce que, neste caso, não tendo as partes dito em lugar algum que a casa poderia ser utilizada por ambos os ex-cônjuges, não estando de facto a ser utilizada por ambos, tendo ambos requerido a sua atribuição em exclusivo e sendo da normalidade da vida que as casas, em regra, não permitem diversas utilizações autónomas, só com verdadeiros poderes da adivinhação poderia o juiz a quo lembrar-se de averiguar tal facto.
Assim, também nesta parte, improcede o recurso.
3) Da atribuição da casa de morada de família a ambos os ex-cônjuges
Requer o Recorrente que, improcedendo os pontos anteriores, seja a casa atribuída a ambos os cônjuges, por ser possível e ambos necessitarem dela.
Num caso semelhante ao dos autos, decidiu o Tribunal da Relação do Porto, no acórdão de 29 de Setembro de 2022, proferido no processo nº 17360/21.2T8PRT.P1, disponível em www.dgsi.pt, que:
IV - Em caso de necessidade, a atribuição do uso da casa de morada da família é feita apenas a favor de um dos cônjuges ou ex-cônjuges, e não a ambos.
V - Excecionalmente, será de admitir a entrega da casa a ambos os cônjuges quando seja premente a necessidade de ambos e a casa tenha caraterísticas peculiares no sentido de que funciona como se de duas residências se tratasse, cada uma delas com autonomia física e funcional, de tal modo que permita que cada uma das partes desenvolva uma residência autónoma e independente enquanto perdurar a medida.
Aqui, como ponto prévio, há que ter em conta que não houve recurso da matéria de facto, pelo que não os factos têm de ser considerados tal como constam da sentença recorrida.
Assim, não se vislumbra a possibilidade de utilização por ambos de forma autónoma.
Quanto ao mais, efetivamente, resulta da matéria de facto apurada que ambos os ex-cônjuges são pessoas com poucos recursos económicos e com graves problemas de saúde.
Não obstante, de tais factos não pode resultar uma justiça salomónica, com a atribuição da casa a ambos, acabando por não servir a nenhum deles.
Na verdade, por muito que ambos necessitem da casa, terá se ser atribuída apenas a um deles, não se podendo condenar os cônjuges a uma comunhão forçada que já não interessa a nenhum.
É o que resulta do disposto nos artºs 1793º e 1105º, do Código Civil, que estabelecem princípios orientadores nesta matéria, bem como da inequívoca finalidade do procedimento.
Neste sentido, Nuno de Salter Cid, “Sobre a atribuição judicial provisória do direito de utilizar a casa de morada de família” in Julgar – nº 40 – 2020, pág. 61, onde nos diz:
No fim e no fundo, quem requer a “atribuição provisória da casa” na pendência do processo (art. 931.º, n.º 7, CPC) pretende, outrossim, que lhe seja provisoriamente concedido o direito de a utilizar com exclusão do outro, quer se verifique ou não simultâneo ou sucessivo pedido de “atribuição da casa” (arts. 1105.º e 1793.º CC e art. 990.º CPC)24.
Reiterando, agora de modo mais sucinto, que adiante não irei ocupar-me da hipótese de se tratar de casa arrendada, acrescentarei todavia que, em qualquer caso, apesar das inúmeras variantes, há características comuns: entre ambos os cônjuges não existe comunhão de vida nem há o propósito, da parte de um ou de ambos, de a restabelecer; instaurado o divórcio, o juiz tentou sem êxito conciliá-los e não foi possível obter o acordo deles quanto à utilização da casa na pendência do processo; esta matéria (pelo menos esta) reclama decisão judicial que fixe regime provisório quanto àquela utilização por um deles sem a presença do outro, porque há circunstâncias atendíveis para tanto. (sublinhado nosso)
E também António Santos Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 376.
Deste modo, também nesta parte, improcede o recurso.
4) Da atribuição da casa de morada de família à Requerente BB
De igual modo, questiona o Recorrente a atribuição provisória da casa de morada de família à Recorrida, por entender que não é quem dela mais precisa.
Efetivamente, mais uma vez recorrendo ao princípio orientador consagrado no artº 1793º, nº 1, do Código Civil, deve o julgador atender às necessidades de casa um dos cônjuges e aos interesses dos filhos do casal.
No caso em apreço, neste ponto, mais uma vez se salienta que não houve recurso da decisão da matéria de facto.
Isto posto, não podemos deixar de manter, também nesta parte, a sentença recorrida, uma vez que, não obstante, como já se disse, resultar da matéria de facto apurada que ambos os ex-cônjuges são pessoas com poucos recursos económicos e com graves problemas de saúde, necessário é concluir que é a Recorrida quem dela mais precisa.
Como nos diz António Santos Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 376:
O primeiro critério de decisão consiste na aferição da necessidade da casa, devendo o tribunal determinar qual dos cônjuges, sopesado o condicionalismo pessoal, suporta maior sacrifício com o afastamento da sua morada de família (RC 6-5-07, 317/05)…
Também, entre outros, o recente acórdão deste Tribunal da Relação de Coimbra de 10 de Setembro de 2024, proferido no processo nº 176/23.9T8PBL.C1, disponível em www.dgsi.pt, onde se diz:
II – Na ponderação dos critérios de decisão, de atribuição provisória da utilização da casa de morada de família, inexiste uma hierarquia deles, devendo aquela ser atribuída ao (ex)cônjuge que mais precise da casa.
Efetivamente, concordamos com a sentença recorrida, quando afirma:
Ora, face às concretas condições de vida e rendimentos de cada parte, afigura-se que é mais premente a necessidade da requerente em continuar a residir na dita casa, desde logo devido aos menores rendimentos que aufere, uma vez que os rendimentos fiscalmente declarados pelo marido são substancialmente superiores aos seus, mais resultando da prova produzida que o requerente também aufere rendimentos não fiscalmente declarados, em montante não apurado, por trabalhos que realiza por conta de terceiros.
Mais resulta da prova produzida que a requerente não dispõe de condições físicas para desenvolver actividades que importem esforço físico, diversamente do requerente que ainda trabalha na agricultura e na construção civil.
O requerente dispõe assim de um rendimento que lhe permite sobreviver, bem como é capaz de desenvolver actividades remuneradas.
Considerando, por outro lado, que a requerente apenas está temporariamente acolhida na casa da filha, em detrimento das condições de conforto e privacidade do agregado desta, e que não resulta da factualidade apurada que disponha de qualquer outra casa onde possa residir, verifica-se que os rendimentos pela mesma auferidos inviabilizam a sua própria subsistência se tiver de financiar outro alojamento.
Sendo tendencialmente as mesmas as idades das partes, a requerente é a parte com a situação mais fragilizada, quer em termos pessoais, nomeadamente no que tange às condições de saúde e à capacidade de auferir rendimentos, quer em termos económicos, pelo que dúvidas não existem em afirmar que, tendo em conta as condições sócio-económicas das partes, a requerente se encontra mais carecida de poder permanecer na casa de morada da família do que o requerente, que ali permanece sozinho desde abril de 2024.
Deste modo, também nesta parte, improcede o recurso.
5) Do caráter gratuito da atribuição da casa de morada de família
Finalmente, entende o Recorrente que, a manter-se a sentença no demais, deverá ser fixada à Recorrida a obrigação de pagamento de uma renda ao Recorrente, no montante de € 500,00.
Também nesta parte deixou o legislador a questão em aberto, o que tem suscitado a discussão e opiniões divergentes e até extremadas, desde a defesa de que deverá haver sempre uma compensação, até à defesa de que nunca poderá existir qualquer pagamento.
Defende o recorrente a aplicação do disposto no artº 1793º, do Código Civil, não podendo deixar de ser fixada uma renda.
Decidiu o Tribunal a quo que:
Cumpre aqui salientar que, no que se refere à eventual fixação de uma renda pela ocupação exclusiva da casa, não foi invocado o seu valor locatício, nem foi produzido qualquer meio de prova que permita a fixação de um valor.
Efetivamente assim é mas, mesmo que assim não fosse, sempre haveria de atribuir a casa a título gratuito, atenta a manifesta impossibilidade de a Recorrida efetuar qualquer pagamento[2].
Atente-se que se provou que:
4 – No ano de 2023, BB auferiu pensões de velhice no montante global de 5013,66€ (cinco mil e treze euros e sessenta e seis cêntimos), recebendo, no decurso do corrente ano de 2024, o montante mensal de 385,97€ (trezentos e oitenta e cinco euros e noventa e sete cêntimos), a título de pensão de velhice.
20 - BB gasta em medicação, cerca de 50,00€ (cinquenta euros) mensais, tendo despendido, no ano de 2023, 847,34€ (oitocentos e quarenta e sete euros e trinta e quatro cêntimos) em despesas de saúde.
26 – Os problemas de saúde de BB impedem-na de desenvolver actividades que importem esforço físico.
27 - BB não desenvolve actividade remunerada.
Entendemos que o disposto no artº 1793º, do Código Civil, não é necessariamente aplicável no caso da atribuição provisória da casa de morada de família, justamente, em primeiro lugar, por se tratar de uma decisão provisória.
Por outro lado, porque o presente incidente está sujeito a critérios de equidade, mais do que a legalidade estrita, tudo dependendo do condicionalismo concreto em que se encontram as partes.
Neste sentido, ver, entre outros, acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 29 de Setembro de 2022, supra referido, onde se diz:
II - O incidente da atribuição provisória do uso da casa de morada da família não se confunde com o processo de atribuição do direito ao arrendamento da casa de morada da família a um dos cônjuges ou ex-cônjuges.
III - Na falta de um critério legal específico para a atribuição do uso da casa de morada da família a um dos cônjuges ou ex-cônjuges, é de ponderar, com as devidas adaptações, o critério legal previsto nos art.ºs 1105º e 1793º do Código Civil para a atribuição do direito ao arrendamento a um dos cônjuges da casa de morada da família, onde releva, sobretudo, a sua necessidade.
VI - A eventual fixação de uma compensação económica (e respetivo montante), a prestar pelo cônjuge beneficiário do uso da casa de morada da família a favor do outro cônjuge, depende das circunstâncias do caso concreto, a apreciar de forma cautelosa e prudente, considerando sempre que se trata de uma medida provisória e cautelar.
Também acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 13 de Outubro de 2016, proferido no processo nº 135/12.7TBPBL-C.C1.S1, disponível na mesma base de dados:
I. A medida provisória e cautelar de atribuição da casa de morada de família pode ou não comportar, em função de uma valoração judicial concreta das circunstâncias dos cônjuges e atentas as exigências de equidade e de justiça, a fixação de uma compensação pecuniária ao cônjuge privado do uso daquele bem, pressupondo esta atribuição a título oneroso, quando decretada, uma aplicação analógica do regime que está previsto para a atribuição definitiva da casa de morada de família.
II. Na verdade, ao limitar-se a prescrever a possibilidade de o juiz proferir decisão provisória acerca da utilização da casa de morada de família na pendência do processo, a norma do art.do nº7 do art. 931º do CPC é suficientemente ampla, indeterminada e flexível para consentir, em função de uma valoração prudencial das circunstâncias pessoais e patrimoniais dos cônjuges, quer numa atribuição do bem imóvel a título gratuito, quer numa atribuição a título oneroso, fundada em razões de equidade e justiça, estabelecida por analogia com o regime que está legalmente previsto para a atribuição definitiva da casa de morada de família.
No mesmo sentido, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, ob. cit., pág. 376.
Deste modo, improcede totalmente o recurso interposto.
IV - Decisão
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores da 3ª Secção deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso, mantendo a decisão recorrida.
Custas pelo Apelante – artºs 527º, nºs 1 e 2, 607º, nº 6 e 663º, nº 2, todos do Código de Processo Civil.
Coimbra, 8 de Abril de 2025
Com assinatura digital:
Anabela Marques Ferreira
Hugo Meireles
Luís Manuel Carvalho Ricardo
[1] Neste sentido, ver, entre outros, DD, “As providências previstas no artigo 31º, nº 7 do Código de Processo Civil – Natureza e procedimentos” in “Direito de Família – Vária”, Centro de Estudos Judiciários, Outubro de 2018, pág. 49, disponível na página da web desta instituição.
[2] Numa interessante aproximação do não pagamento de contrapartida ao regime provisório de alimentos, ver Nuno de Salter Cid, ob. cit, pág. 69.