I - No que diz respeito às pessoas referidas nas als. a) e b) do n.º 1 do art.º 152.º do Código Penal, o preenchimento do tipo legal de violência doméstica exige uma determinada relação afetiva entre o agente e a vítima. Porém, não exige de todo que nessa relação a vítima se encontre numa posição de «subordinação existencial» ou numa «posição de inferioridade e/ou dependência» relativamente ao agente.
II - O que importa é que o agente, no âmbito e por força de um relacionamento conjugal ou análogo, ainda que já terminado, de modo reiterado ou não, inflija maus tratos físicos ou psíquicos à vítima, afetando desse modo a sua dignidade pessoal e humana.
III - Mostra-se também irrelevante para o preenchimento do tipo que o arguido tenha praticado os factos reagindo a uma nova relação sentimental da ofendida e até a uma eventual traição.
IV - A argumentação desenvolvida no recurso a esse propósito não é aceitável nos tempos atuais, afronta a dignidade da mulher, enquanto mulher, refletindo, tal como os factos provados, a imagem de um mundo que já não existe e que felizmente deixou de existir.
V - Uma mulher ou ex-mulher não é propriedade do arguido, nem de ninguém. Nada legitima qualquer mau trato físico ou psicológico por parte de alguém que se se sinta enganado ou tenha até sido efetivamente enganado pela companheira/o ou ex-companheira/o.
(Sumário da responsabilidade do Relator)
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação do Porto
II. RELATÓRIO
Nos presentes autos de processo comum e com a intervenção do Tribunal Singular, por sentença de 5.12.2024, foi decidido:
a) CONDENAR o arguido AA pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pela al. a), do n.º 1, do artigo 152.º, do Código Penal, na pena de 2 (dois) anos de prisão;
b) SUSPENDER a execução da pena de prisão aplicada ao arguido, referida em A), pelo período de 2 (dois) anos, subordinada:
B1) a regime de prova e plano de reinserção social a elaborar e fiscalizar pela DGRSP, com incidência na prevenção do risco de reincidência e de o mesmo manter uma atividade integrada socialmente e remunerada;
B2) à condição de o arguido não proceder a qualquer contacto voluntário e de sua iniciativa com a ofendida BB, a não ser no que se revelar estritamente necessário à resolução de questões relativas ao exercício das responsabilidades parentais relativas aos filhos menores de ambos.
c) CONDENAR o arguido no pagamento, a BB, da quantia de € 2.000,00 (dois mil euros), a título de arbitramento oficioso de reparação dos prejuízos sofridos com o crime de violência doméstica;
d) CONDENAR, ainda, o arguido no pagamento das custas do processo, que se fixam em 2 UC’s (duas unidades de conta) e demais encargos com o processo (cf. Os artigos 513.º e 514.º, ambos do Código do Processo Penal, e da tabela III do Regulamento das Custas Processuais, com referência ao artigo 8.º, n.º 9 do mesmo diploma).
Termina a motivação do recurso com as seguintes conclusões [transcrição]:
1. O que fez o arguido no dia 16 de Junho (arremessar a bicicleta) não é mais do que uma reacção normal de marido traído, ao ver a mulher com o amante dentro do carro escassos 2 dias após descobrir a traição.
2. E o mesmo se diga no dia 27 de Junho, a sua reacção (verbal) é perfeitamente consentânea com o choque e humilhação sofridos.
3. Por conseguinte, não compreendemos como é que o Tribunal concluiu pela violência doméstica e desvalorizou completamente a reacção do marido traído… isto é factual, salvo o devido respeito.
4. Portanto, à luz das circunstâncias enunciadas, com atenção aos pormenores – dos tais “certos detalhes” podemos chegar à conclusão de que a queixosa muito provavelmente falta à verdade, sendo o seu depoimento empolado, sustentado em si própria, e é frontal e categoricamente contrariado pelas evidências apuradas (foi apanhada em flagrante em duas ocasiões – 16 e 27 de Junho – pelo marido).
5. Desta forma, sendo patente, à luz dos critérios de apreciação da prova expostos em supra, a “credibilidade racional” da inocência do arguido, impõe-se – desde logo por esta razão – a sua absolvição: in dúbio pro reo.
6. Diz a Acusação que “Também a partir dessa data, o arguido profere, para BB, as seguintes expressões: “juro pela vida dos meus filhos e pelo meu tio que está debaixo de terra, que é verdade que não és propriedade minha, mas se não fores minha, não és de mais ninguém”; “se for lá para dentro, como e bebo à tua pala, mas tu vais para debaixo de terra”, bem como, “és uma puta”; “és uma vaca”; “és uma porca”.
7. Salvo o devido respeito, semelhante descrição de acontecimentos, dada a indefinição temporal que encerra, não permite o contraditório, impossibilitando qualquer defesa – daí à condenação é um passo, pois nos dias de hoje é tudo violência doméstica e a culpa, claro, é sempre do marido…
8. E, considerando a previsão do artigo 152.º do Código Penal, a exigência de uma delimitação factual que permita a subsunção àqueles conceitos genéricos é uma preocupação quotidiana de quem acusa, defende e julga, que não pode ser desvirtuada por abusivas e, portanto, inaceitáveis, generalizações.
9. Sem prescindir e admitindo por mera hipótese académica como provados os factos em que assentou a sentença objecto de recurso, constatamos, claramente, que o recorrente não praticou o crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, do CP.
10. Com efeito, para que se verifique o referido crime, é necessário que o sujeito passivo se encontre, para com o agente, numa relação de “subordinação existencial”.
11. Ou seja, a vítima tem que se encontrar numa posição de inferioridade e/ou dependência em relação ao agente.
12. Acontece que, da prova produzida não resulta que a queixosa tenha uma posição de subordinação existencial para com o recorrente.
13. Por outro lado, tendo ficado demonstrado que o arguido procurou apenas reagir quando soube a verdade acerca do adultério (espremido, espremido, tudo gira à volta disso), resulta que o comportamento do recorrente assentou em motivações não censuráveis, pelo que estamos perante uma situação de falta de consciência da ilicitude não censurável, que opera como causa de exclusão da culpa, nos termos do art. 17º, nº 1, do CP.
14. Convenhamos que não é fácil a um marido ter a certeza quase absoluta que a mulher o trai com outro homem, e, confrontando-a com a situação em duas ocasiões (16 e 27 de Junho) aquela fugir a 7 pés e sem lhe dar uma explicação cabal, virando o bico ao prego e sangrando-se em saúde…
15. No que respeita à indicação das provas, consta da sentença recorrida que «Assim, de acordo com a conjugação dos elementos de prova mencionados supra e, ainda, com o princípio da livre apreciação da prova, concluiu este tribunal pela ocorrência dos factos nos termos supra descritos (e nos termos que se deram como provados em 1) a 21))». Antecedem-se sínteses das declarações da queixosa e dos depoimentos das testemunhas ouvidas em audiência.
16. Ora, e ressalvado sempre o devido respeito por opinião contrária, não se mostra feita a indicação completa das provas, nem, em absoluto, o exame crítico das mesmas, que formaram a convicção do tribunal.
17. A desvalorização do adultério é de difícil compreensão, como também é de difícil compreensão descrever a testemunha CC como o “actual companheiro” da queixosa, sabendo perfeitamente o Tribunal que esta era casada quando se envolveu com aquele.
18. A livre convicção do Tribunal não se impôs nem impõe e revela fragilidades dignas de reparo, salvo o devido respeito.
19. Num cenário entre marido e mulher como este, inquinado por questões pessoais e mal resolvidas, perante versões contraditórias e sem prova clara, substancial e inequívoca dos factos, não se compreende como pôde o Tribunal atribuir maior credibilidade à versão da queixosa, ao ponto de afastar a dúvida razoável e concluir pela demonstração da realidade dos factos – que é um juízo de certeza – na decisão condenatória.
20. Mais se impunha que o Tribunal a quo fizesse menção crítica ao adultério, porque ele mina a credibilidade da queixosa, como é de meridiana clareza para qualquer leigo. E mina, por uma razão muito simples: é que o cenário de “violência doméstica” tem uma razão de ser que a queixosa omitiu, o que devia suscitar ao Tribunal as maiores reservas.
21. Danos no carro e injúrias nestas circunstâncias não são violência doméstica.
22. A falta de exame crítico das provas, imposto pelo art.º 274.º, n.º 2, do C. Processo Penal, e a consequente insuficiência da fundamentação determina, nos termos do art. 379º, nº 1, a), a nulidade da sentença.
23. Normas jurídicas violadas: artº 17º, nº 1 e artº 152º do CP; artº 341º nº 1 do CC; artº 97º, nº 5, artº 127º, artº 374º, nº 2, artº 379º, nº 1 e 2 e artº 402 do CPP.
Nestes termos e nos mais de Direito, cujo douto suprimento se invoca, deve ser dado provimento ao presente recurso e, por via dele, ser revogada a Sentença recorrida e, em consequência ser o arguido absolvido do crime de violência doméstica em que foi condenado, bem como do respetivo pedido de Indemnização Civil.
Sem formular conclusões alega, em síntese, o seguinte:
A preciação e valoração da prova produzida
O Princípio in úbio pro reo.
A nulidade da sentença
Em regra e não obstante o disposto no art. 410º, n.º 2 do CPP, quanto à matéria de conhecimento oficioso, o processo de formação da convicção do julgador não pode ser sindicado em sede de recurso, na medida em que se refere a algo que deriva da sua íntima convicção e, naturalmente, sujeito a uma margem de discricionariedade.
Compreendem-se as considerações expendidas pelo recorrente sobre o que deveria ou não ter sido dado como provado, uma vez que se fundamentam na sua própria e compreensivelmente interessada valoração das provas produzidas, no entanto, não podem proceder em detrimento da convicção crítica, isenta, imparcial e objectiva que presidiu à apreciação e valoração da prova feita pelo Tribunal A Quo.
Vislumbra-se-nos, pois, que aquele não terá atendido ao princípio fundamental da livre apreciação da prova em vigor no nosso direito processual penal (cfr. art. 127º do CPP).
Ao contrário do que é alegado pelo recorrente, no caso sub judice, da sentença recorrida resulta que o Tribunal apreciou criticamente a prova, fundamentando de forma lógica e coerente a sua convicção. Em toda a motivação existe uma intenção de objectividade.
O Tribunal indicou fundamentos suficientes de modo a que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção quanto aos factos dados como provados.
As razões e motivos onde o Tribunal se baseou para formar a sua convicção estão bem elencados e explanados na motivação, e facilmente perceptíveis, ao contrário do que é alegado pelo recorrente.
Considerou o Tribunal A Quo, em suma, que o depoimento da ofendida se revelou credível e coerente, circunstanciado temporal e espacialmente, sem exageros ou empolamentos, o que conduziu à reconstrução histórica dos factos praticados pelo recorrente. Mais resulta daquela motivação, que o depoimento desta testemunha não mereceu quaisquer reservas, não tendo suscitado dúvidas que colocassem em causa a sua credibilidade.
Pelo que, ao contrário do que é alegado pelo recorrente, entendemos que bem andou o Tribunal A Quo ao considerar e valorar este depoimento, pois, com efeito, analisado o mesmo, constata-se que, tal como referido na sentença recorrida, não revelou empolamento ou exagero na narrativa, ou demonstrou intenção de prejudicar o recorrente, limitando-se a descrever aquilo que presenciou, percepcionou e sentiu com a prática dos factos, até corrigindo as imprecisões constantes da acusação ou declarando não se recordar de alguns pormenores.
Lida a restante motivação, resulta existir uma explanação lógica e cuidada do motivo pelo qual se deu credibilidade à testemunha ouvida em audiência, CC, presente aquando da prática dos factos, portanto, com directo conhecimento dos mesmos.
Ora, ao contrário do que alega o recorrente, também aqui a sentença recorrida enumera, de forma cristalina, as razões pelas quais decidiu valorar o depoimento apresentado por esta testemunha, o qual se revelou claro, isento e coerente, sendo bem entendível o percurso lógico-dedutivo realizado pelo Tribunal A Quo ao valorar tal depoimento.
Não tem razão o recorrente ao afirmar que o depoimento “do amante de mulher casada deve merecer as maiores reservas, até pela razão simples, de que é altamente provável que aquele seja instrumentalizado pela queixosa (..)” e que “não tem aptidão moral (que não se confunde com a legal) para depor como testemunha em processo-crime por violência doméstica, um indivíduo que tinha – à data dos supostos factos – uma relação amorosa com a ofendida, que era casada com o arguido.”
Quer, assim, o recorrente, colocar em crise o depoimento desta testemunha pela circunstância de existir um relacionamento amoroso com a ofendida à data da prática dos factos. É de realçar que o Tribunal também se deu conta da circunstância desse relacionamento, todavia, soube fazer a destrinça entre o que era relevante em termos da prova para os factos dados como provados, o que ficou bem patente e explícito na motivação no que diz respeito ao depoimento em causa. Em boa verdade, não é a circunstância da testemunha manter um relacionamento amoroso com a ofendida que, à partida, abala a sua credibilidade e seriedade. Com efeito, é o desenrolar do seu relato acerca dos factos, em audiência de julgamento, que permite aferir tal credibilidade. E no caso sub judice as declarações da testemunha em causa foram merecedoras de tal credibilidade pela forma como depôs, que se revelou isenta, séria e coerente, narrando serenamente aquilo que presenciou e foi praticado pelo recorrente, bem como o efeito de tal prática sobre a ofendida. Colocar em causa tal depoimento, pela forma como decorreu, somente pela circunstância da testemunha ter um relacionamento amoroso com a ofendida, seria contra as mais elementares regras e princípios da apreciação da prova. O que o Tribunal não fez, e bem, antes tendo analisado tais declarações de forma crítica e imparcial, tal como decorre da motivação da sentença recorrida.
Alega, ainda, o recorrente, que o raciocínio da apreciação da prova também poderá comportar o seu silêncio, usado legalmente no decurso da audiência de julgamento, da possibilidade de estar a falar a verdade, não obstante tal silêncio.
Ora, o recorrente remeteu-se ao silêncio, nada dizendo ou esclarecendo acerca dos factos, no uso do direito legalmente conferido. No entanto, se bem que o silêncio não poderá prejudicar o arguido, o certo é que também não o beneficia face à produção de prova que se demonstra credível, séria e condizente com a realidade, feita no desenrolar da audiência de julgamento. Sendo que o Tribunal não valora tal silêncio, apenas se limita a constatar que o arguido usou da sua prerrogativa legal e nada mais.
Face ao silêncio, não poderá ser feita qualquer apreciação ou valoração do mesmo, muito menos aquele que o recorrente pretende, da possibilidade de estar a falar a verdade, não obstante tal silêncio.
Face ao que foi exposto, no que concerne à prova produzida e valoração da mesma, entendemos que não assiste razão ao recorrente, pois que, na verdade, o que o Tribunal A Quo fez foi analisar globalmente o material probatório produzido, conjugando-o entre si e que lhe permitiu reconstruir historicamente os factos, chegando à conclusão que o recorrente os praticou.
Sendo perfeitamente perceptível, para qualquer um, o raciocínio lógico- dedutivo efectuado para o apuramento dos factos provados.
Resulta da sentença recorrida que não existiu qualquer dúvida criada no espírito da Julgadora ao estabelecer a factualidade provada, sendo a prova produzida segura no sentido da culpabilidade daquele.
Assim sendo, temos para nós que a factualidade apurada não foi resultado de uma convicção puramente subjectiva, emocional ou imotivável da Juiz A Quo, mas, ao invés, e conforme se extrai da motivação, resultou de uma convicção pessoal, em todo o caso objectivável e motivável, conforme é exigido pelo art. 374º, n.º 2 do CPP, não se verificando a nulidade da sentença, também invocada pelo recorrente. Com efeito, da forma como se encontra estruturada, a sentença recorrida obedeceu aos requisitos legais para a sua elaboração, inexistindo a alegada insuficiência da fundamentação alegada pelo recorrente, nomeadamente no que concerne ao exame crítico das provas.
Não se nos afigura que a sentença recorrida padeça, assim, de qualquer erro ou vício na apreciação e valoração da prova, na medida em que os factos dados como provados e não provados se apresentam com bastante clareza e precisão, encontrando-se em perfeita consonância com a lógica motivação.
Com efeito, o que efectivamente vem alegado pelo recorrente não é uma situação que se subsuma à incorrecta apreciação da prova, mas antes a forma como o Tribunal procedeu à valoração da mesma, o que fez em conformidade com o princípio consagrado no art. 127º do CPP.
Pelo que deverá improceder, nesta parte, o recurso interposto pelo recorrente.
III – Do recurso sobre a matéria de direito
Os factos dados como provados no ponto 14 da sentença recorrida, estão balizados temporalmente, ou seja, a partir de 16.06.2023, o que resulta do ponto 13 dos factos provados.
Pese embora não se tenha logrado apurar os dias concretos, o certo é que a partir daquela data o recorrente começou a proferir as ditas expressões à ofendida BB. Factos esses que foram dados como provados na sequência da prova produzida em sede de audiência de julgamento, pelo que o Tribunal A Quo tinha, necessariamente, que os ter em consideração e concluir pela sua verificação. Pelo que, existindo um marco temporal a partir do qual os mesmos ocorreram, não está prejudicada o direito de defesa do arguido, nem o contraditório relativamente aos mesmos. Sendo certo que, a pretender contraditá-los, designadamente a sua prática a partir da data em causa, poderia o arguido tê-lo feito em audiência de julgamento, o que não fez.
As diferentes alíneas do n.º 1 do art. 152º do CP devem ser analisadas separadamente, na medida em que enquanto umas pressupõem uma relação de intimidade, seja ela presente ou passada, não exigindo coabitação ou vulnerabilidade, outras estabelecem como condição para o seu preenchimento que esteja em causa uma vítima particularmente indefesa e que exista coabitação.
Ora, no presente, foi dado como provado a inexistência de coabitação, sendo que a vítima, pese embora ainda casada com o recorrente à data da prática dos factos, já não residia na mesma casa com o recorrente, do mesmo fazendo vida separada.
O que se exige é a relação conjugal, presente ou passada, estabelecida entre vítima e agressor e a prática por parte deste de factos que consubstanciam maus tratos psíquicos, verbais, emocionais e à liberdade. Factos esse que resultaram provados, razão pela qual foi o recorrente condenado nos termos daquele normativo legal.
Acresce que as condutas pelas quais foi condenado o recorrente não configuram qualquer causa de exclusão da culpa ou ilicitude, tal como por si alegado.
Não assiste razão ao recorrente ao considerar que os factos praticados assentaram em motivação não censurável, nomeadamente por eventual traição da ofendida, ainda sua mulher. Com efeito, não se poderá aceitar que os factos praticados pelo recorrente não sejam censuráveis por tal motivo, considerando-se como uma reacção aceitável por parte do mesmo.
O comportamento do recorrente é altamente censurável, por desproporcional e inadequado, não podendo ser encarado como uma reacção normal perante o eventual adultério, tal como defende no seu recurso.
Ao alegar que tal comportamento está conforme a normalidade, o recorrente não interiorizou a censurabilidade da sua conduta, alegando, inclusivamente, que “nada tem de especialmente violenta e foi bastante comedida, salvo melhor opinião”.
Na verdade tal conduta, bem como o demais que resultou provado, consubstancia a prática de maus tratos sobre aquela que ainda era sua mulher, nos termos do n.º 1 do art. 152º do CP, pelo que bem andou o Tribunal A Quo ao considerar como verificado o crime em referência, condenando o recorrente em conformidade.
Inexiste a alegada violação do art. 374º, n.º 2 do CPP, por falta do exame crítico das provas e insuficiência da fundamentação.
Em suma, não existe qualquer censura ou reparo a fazer à sentença recorrida, ao contrário do que é alegado pelo recorrente, a qual se encontra correctamente elaborada, não tendo violado quaisquer normas ou princípios legais.
Acompanhando a resposta da 1.ª Instância, pronuncia-se no sentido de que o Recurso interposto pelo arguido deve ser julgado improcedente e, consequentemente, deve manter-se integralmente a sentença recorrida.
Colhidos os vistos legais e efetuado o exame preliminar, foram os autos à conferência.
II. FUNDAMENTAÇÃO:
Objeto do recurso
Atento o disposto no art.º 412.º, n.º 1, do CPP, e como é consensual na doutrina e na jurisprudência, o âmbito do recurso é definido pelas conclusões que o recorrente extrai da sua motivação, sem prejuízo do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
No caso concreto, considerando tais conclusões, as questões suscitadas pela recorrente são as seguintes:
-> Impugnação da matéria de facto [ A preciação e valoração da prova produzida];
-> Princípio in dubio pro reo;
-> Direito ao contraditório e à defesa do arguido.
-> Enquadramento jurídico dos factos;
-> Nulidade da sentença;
-> Indemnização civil.
O Tribunal fundou a sua convicção na análise crítica do conjunto da prova produzida e examinada em audiência, de acordo com a sua livre convicção e as regras da experiência comum, tudo em observância do disposto nos artigos 127.º e 355.º ambos do Código de Processo Penal e como, doravante, se passará a explicitar.
Desde logo, cumpre referir que o arguido não prestou declarações, usando validamente da sua prerrogativa de se remeter ao silêncio.
Por sua vez, BB explicou, como se iniciou, desenvolveu e terminou o seu relacionamento com o arguido, bem como o comportamento que foi sendo por este adotado, tal como descrito nos factos provados.
Depôs de forma circunstanciada, sem exagero ou denotar pretender prejudicar o arguido, num discurso que se nos afigurou francamente espontâneo e circunstanciado, evidenciando os sentimentos que nutria por aquele, bem como a perceção que tem sobre este, enquanto pessoa (asseverando, neste âmbito, que gostava do arguido e que este é “ótima pessoa”).
Explicou o motivo que a fez querer terminar o casamento que contraiu com o arguido, bem como a conduta adotada por este, a partir desse momento.
Efetivamente, a tristeza, o pavor, o temor e a falta de segurança que passou a sentir após deixar de residir com o arguido e que verbalizou são reveladores da dinâmica da relação conjugal e dos factos que relatou.
Por outro lado, o rigor com que depôs ficou patente nos factos que relatou já não ter memória (como seja, de bloquear o arguido, nas redes sociais, ou de não ter entregue os seus filhos aos avós paternos, por receio) e, ainda, por reproduzir, de modo, seguro as expressões e os epítetos que lhe foram dirigidos.
A este respeito, cumpre referir que o teor das expressões que lhe eram dirigidas e epítetos com que era apodada são perfeitamente esclarecedores acerca do sentido e significado que possuem, bem como do alcance dos mesmos e visado pelo arguido, quando os pronunciou.
Anote-se, ainda, que são particularmente impressivos a angústia e o sofrimento que vivenciou quando se atenta que, a partir do momento em que comunicou ao arguido que não pretendia continuar a relacionar-se com o mesmo, passou a:
- sentir receio e pavor de estar sozinha;
- pedir a pessoas que acabara de conhecer para a acompanharem, onde quer que se dirigisse;
- sentir-se atemorizada quando percecionava a existência de ruídos provenientes de qualquer mota, logo reportando os mesmos à presença do arguido.
Por outro lado, são também reveladores da dinâmica do relacionamento conjugal entre o arguido e BB o sucedido em 16-06-2023 e em 27-06-2023.
Em primeiro lugar, afigura-se que em ambos os episódios a reação de BB foi a mesma, isto é, sair, imediatamente, do local em que encontrasse com o arguido.
Desde logo, a reação descrita é perfeitamente compreensível e justificada, principalmente quando terão sido as primeiras vezes em que o arguido terá visto BB depois de lhe comunicar que pretendia terminar a relação conjugal que mantinha consigo.
Ademais, em ambas as vezes que o arguido e BB se encontraram este adotou uma postura agressiva e de retaliação pela vontade daquela, de se separar de si.
Em segundo lugar, também de ambas as referidas vezes BB se dirigiu, no imediato, ao Posto da Guarda Nacional Republicana, onde relatou o sucedido.
Como se vê, o comportamento de BB assoma-se coerente, perfeitamente compreensível e compatível com a descrição que fez dos factos pelos quais o arguido vem acusado, e que se deram como provados, bem como com a descrição feita por aquela da dinâmica conjugal de ambos.
Ademais, do seu depoimento resultou evidente a preocupação e angústia que os comportamentos do arguido tivessem qualquer repercussão nos filhos de ambos, tanto mais que:
- manifestou mágoa pela circunstância de o arguido pensar que aquando do ocorrido em 16-06-2023 os filhos de ambos estavam presentes e, mesmo assim, não se ter coibido de agir nos termos que se deram como provados;
- apesar dos sentimentos de temor que relatou, afirmou ter de continuar a viver pelos filhos.
Por fim, não é de menosprezar que no decurso do relacionamento que manteve com o arguido, e pela forma como este se posicionava, BB, teve de deixar de participar da banda que integrava e que, após lhe anunciar pretender separar-se, acabou por vender o seu carro para não ser reconhecida por aquele, onde quer que estivesse, eliminou a sua conta de Facebook, nas redes sociais, e mudou de casa, com o objetivo de lograr, por fim, ter paz, distante daquele.
A demais prova produzida foi, neste âmbito, no mesmo sentido que as declarações de BB, corroborando, assim, o seu depoimento.
Referimo-nos, desde logo:
- ao teor do auto de notícia (constante dos autos a fls. 3-21);
- à certidão (constante dos autos a fls. 21-25);
- ao despacho do Ministério Público de 24-03-2022 e ao despacho de 29-03-2022 (constantes dos autos a fls. 106 a 111);
- bem como ao depoimento da testemunha CC.
Assim, CC, atual companheiro de BB depôs de modo claro e isento, descrevendo o modo e o momento em que se conheceram, bem como o estado emocional da mesma (de medo e fragilidade) e o comportamento que aquela adotou, em 16-06-2023 e em 27-06-2023, perante o arguido (de temor), factos que percecionou diretamente.
Efetivamente, reputamos perfeitamente natural que, face ao tempo que já decorreu, aliado ao contexto em que conheceu BB, tal testemunha não se recorde e nem tenha presente certos pormenores.
Todavia, é de referir que a seriedade com que a referida testemunha depôs é patente na inexistência de qualquer interesse seu nos presentes autos.
Por outro lado, é ainda de referir que tal testemunha não procedeu a qualquer empolamento dos factos pelos quais o arguido vem acusado tendo relatado, apenas, as situações a que assistiu e de que tem memória, e nada mais que isso, o que denota a moderação e o modo circunstanciado com que depôs acerca do sucedido.
Neste particular, é de referir que CC corroborou, no essencial, o depoimento prestado por BB, tanto acerca do sucedido em 16-06-2023 e em 27-06-2023, como a propósito da forma como aquela se sentiu, o que presenciou direta e pessoalmente.
Por outro lado, as discrepâncias patentes entre o relatado por BB e o depoimento de CC, foram, essencialmente, relativas a aspetos meramente laterais ou circunstanciais (por exemplo, a quem se deveu o facto de BB não ter parado aquando do ocorrido em 16-06-2023, se foi a recomendação da referida testemunha ou de mote próprio; se aquando do ocorrido em 27-06-2023, BB se encontrava no interior do seu veículo ou no exterior do mesmo; e se aquela não bloqueou, ou bloqueou, o contato telefónico do arguido), não sendo de molde a abalar a credibilidade dos respetivos depoimentos.
Trata-se, ao invés, de circunstância perfeitamente compreensível, à luz da extensão e natureza dos factos em apreciação, sendo certo que à data em que tais factos sucederam a testemunha e BB tinham, praticamente, acabado de se conhecer.
Ora, atendendo ao exposto, e ao facto de os factos em discussão nos presentes autos terem visado, diretamente, BB, nas discrepâncias que se verificaram entre o seu depoimento e o de CC, valorámos aquele, em detrimento deste, na medida em que aquela relatou os factos pelos quais o arguido vem acusado com maior precisão.
Por outro lado, assoma-se coerente o relatado por CC, a propósito de não saber o conteúdo das chamadas recebidas por BB, enquanto se deslocavam para o Posto da Guarda Nacional Republicana ..., depois do sucedido em 16-06-2023.
Na verdade, aquando do sucedido em 16-06-2023, BB e CC tinham particamente acabado de se conhecer, sendo certo que tais chamadas não eram atendidas com o telefone em alta voz.
Por outro lado, e apesar de não saber descrever, ao certo, o que arguido terá dito a BB, a testemunha descreveu, com precisão, o estado em que aquela ficou após ter recebido as referidas chamadas.
Do mesmo modo, apesar de CC ter afirmado não ter percecionado a existência do irmão do arguido, a segui-los até ao posto da Guarda Nacional de ..., aquando do ocorrido em 27-06-2023, verifica-se que a referida testemunha não detinha qualquer conhecimento acerca de quem a família do arguido.
Por outro lado, o depoimento das testemunhas de defesa inquiridas na audiência de julgamento, FF e GG, progenitores do arguido, não aportou qualquer relevância aos presentes autos.
Com efeito, FF declarou não ter presenciado quaisquer dos factos em apreciação, não sabendo, outrossim, concretizar qual a relação existente entre o arguido e BB, explicitando não se imiscuir na vida dos seus filhos.
Do mesmo modo, GG, relatou não ter conhecimento direto acerca dos factos pelos quais o arguido vem acusado, apenas sabendo o que o arguido lhe transmitiu a respeito do sucedido em 16-06-2023, isto é, que BB teria atropelado o arguido.
Tais testemunhas, referiram, por fim, que o arguido é respeitado no seu local de trabalho, bom filho e trabalhador.
Assim, de acordo com a conjugação dos elementos de prova mencionados supra e, ainda, com o princípio da livre apreciação da prova, concluiu este tribunal pela ocorrência dos factos nos termos supra descritos (e nos termos que se deram como provados em 1) a 21)).
No que toca aos factos constante dos pontos em 22) e em 23), o Tribunal entendeu dar como provado que o arguido é imputável e tem consciência dos atos que pratica, o que decorreu das circunstâncias que envolveram a sua atuação, das regras da normalidade e experiência comum, bem como de juízos de normalidade do acontecer, em concatenação com toda a prova produzida, designadamente do depoimento das testemunhas arroladas pela acusação e pela defesa.
Por sua vez, para prova dos factos que se deram como provados acerca das condições pessoais, familiares, sociais e económicas do arguido, baseou-se, o Tribunal, no relatório social do arguido de 06-11-2024 (cf. factos provados em 24) a 32)).
O Tribunal, baseou-se, igualmente, no teor do relatório social para dar como provado o facto referido em 33).
No que respeita aos antecedentes criminais, atendeu-se ao teor do certificado de registo criminal do arguido de 30-09-2024, junto aos autos (cf. facto provado em 34)).
Por fim, no que respeita à documentação junta, aos presentes autos, pelo arguido, assoma-se que a mesma não infirma as conclusões acima vertidas, mais concretamente:
- o assento de casamento do arguido e de BB, de onde decorre a data em que o mesmo foi celebrado;
- a petição inicial de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, intentada pelo arguido em 28-09-2023, onde constam espelhados os motivos pelos quais o arguido pediu que fosse decretado o divórcio do casamento que contraiu com BB;
- e a ata de tentativa de conciliação de 06-11-2023, no âmbito da qual, além do mais, se regularam as responsabilidades parentais de HH e II, filhos do arguido e de BB, bem como foi decretada a dissolução do casamento celebrado entre aqueles, passando a ser divorciados.
Vem o arguido acusado da prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, al. a), e n.º 2 do Código Penal.
Dispõe, o artigo 152.º, do Código Penal, que:
“1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade, ofensas sexuais ou impedir o acesso ou fruição aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
(…)
é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.”.
Se o facto for praticado contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima ou através de difusão, na internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento, o crime de violência doméstica é punido com pena de prisão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos, nos termos das alíneas a) e b), do n.º 2, do citado preceito legal.
Com efeito, a criminalização dos maus-tratos surgiu para prevenir as frequentes e por vezes, tão subtis quão perniciosas para a saúde física e psíquica e para o desenvolvimento harmonioso da personalidade ou para o bem-estar, formas de violência no âmbito da família.[1]
A necessidade prática de criminalização destas espécies de comportamentos, com a consequente responsabilização dos seus agentes, resultou da consciencialização social sobre a gravidade individual e social deste tipo de condutas.
Revelador de que o crime de violência doméstica tem sido objeto de constante interesse e atualização pelo legislador penal é o facto de o artigo 152.º, do Código Penal, ter vindo a sofrer constantes alterações, em função da evolução da consciência ético-social, em praticamente todas as alterações ao aludido Código.
O bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica é a integridade física e psíquica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e a honra.[2]
Com efeito, entende-se que o que verdadeiramente identifica e distingue este crime é o estado de tensão, subversão e medo suportado e vivido pela vítima, independentemente das causas dessa subversão, tendo em conta a afirmação, por outrem, de domínio sobre a sua vida, liberdade, segurança, honra ou, mesmo, o seu património.[3]
Anote-se, ainda, que este tipo de condutas tem lugar no seio de uma relação conjugal, formal ou de facto, familiar e incluindo relações de namoro, após a alteração do Código Penal, com a Lei n.º 19/2013, de 21-02, isto é, num círculo onde, por imperativo constitucional impera ou deveria imperar, o princípio da igualdade (cf. artigo 36.º da Constituição da República Portuguesa).
Conforme assinalámos, o tipo objetivo inclui as condutas de violência física, psicológica, verbal e sexual, que não sejam puníveis com pena mais grave por força de outra disposição legal.
Para além da agressão física, mais ou menos violenta, existe a agressão verbal infligida através de insultos; a agressão emocional infligida através do rebaixamento ou da inferiorização da condição humana da vítima; a agressão sexual, impondo comportamentos sexuais; a agressão económica, impedindo-se o livre acesso ou a gestão do dinheiro ou do património; a agressão à liberdade, obstaculizando-se a que a vítima se relacione livremente com a sua família, amigos ou colegas, ou de uma forma mais grave, condicionando a vivência da vítima pelo receio de concretização de ameaças contra a sua integridade física ou vida.
O sujeito passivo do crime só pode ser a pessoa que se encontra para com o agente na relação pressuposta no preceito incriminador.
A este propósito, consta, assim, sumariado o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 21-06-2023, prolatado no âmbito do processo com o n.º 28/22.0GCLRA.C1, em que foi relator o Desembargador Vasques Osório[4]:
“I – No entendimento dominante da doutrina, que seguimos, o crime de violência doméstica tutela a saúde física, psíquica, mental e moral.
II – O crime de violência doméstica é um crime específico impróprio, pois só pode ser cometido por quem possui determinada qualidade ou sobre quem recaia um dever especial, habitual, pois pressupõe a prática reiterada da mesma acção, sem prejuízo de a lei admitir o preenchimento do tipo com uma conduta única, e, dada a sua composição ‘poliédrica’, umas vezes de resultado, outras de mera actividade, umas vezes de dano, quanto ao bem jurídico, outras de perigo.
III – Devem ser incluídas no conceito de maus tratos físicos todas as condutas agressivas que visem atingir directamente o corpo da vítima, v.g., bofetadas, murros, pontapés, joelhadas, puxões de cabelos, empurrões, apertões de partes do corpo e pancadas ou golpes desferidos com objectos, acções normalmente preenchedoras do tipo do crime de ofensa à integridade física, e no conceito de maus tratos psíquicos as injúrias, as críticas destrutivas e/ou vexatórias, as ameaças, as privações da liberdade, as restrições, as perseguições e as esperas não consentidas.
IV – A qualificação de uma conduta como mau trato não depende da sua aptidão para preencher um determinado tipo de ilícito, designadamente uma ofensa à integridade física, da mesma forma que a aptidão de determinada acção para preencher este tipo legal não significa, per se, a verificação do crime de violência doméstica, tudo dependendo da «respectiva situação ambiente e da imagem global do facto».
V – O preenchimento do conceito de mau trato não exige que a concreta conduta violenta se traduza numa lesão grave ou num tratamento cruel ou brutal.
VI – A violência doméstica não deve ser entendida como o mero somatório das acções violentas, típicas ou atípicas, praticadas pelo agente contra a vítima, mas antes o que desse conjunto de acções, globalmente considerado, resulta e a sua aptidão para afectar de forma significativa a saúde física, psíquica e moral da vítima e, por essa via, a sua dignidade.
VII – A reiteração não é elemento imprescindível ao preenchimento do tipo objectivo da violência doméstica, embora seja pressuposta como conduta ‘norma’, e daí que o crime seja qualificado como crime habitual.
VIII – A execução é reiterada quando cada acto concreto, cada conduta parcelar, realiza parcialmente o evento, constituindo o somatório dos eventos parciais, o resultado, o evento unitário, o crime único.
IX – A reiteração traduz um estado de agressão permanente, não no sentido de que as condutas violentas sejam constantes, mas no sentido de que traduzem o comportamento padrão do agressor, através do qual se revela a relação de sobreposição do agente sobre a vítima, proporcionada pelo ambiente familiar ou de proximidade social, da qual resulta um tratamento incompatível com a sua dignidade.” (sublinhado nosso).
Quanto ao elemento subjetivo do tipo de crime em análise, o mesmo exige o dolo em qualquer das modalidades previstas no artigo 14.º do Código Penal.
Tecidas estas considerações, vejamos o que dimana dos autos.
Resultou provado que no decurso da relação conjugal do arguido com BB este lhe infligiu maus tratos consubstanciados numa vivência de permanente instabilidade, medo e pânico.
Do cotejo da factualidade que se deu como provada resultou que após contraírem casamento, em 19-02-2023, BB e o arguido deixaram de residir juntos a partir do dia 08-06-2023.
Neste âmbito, provou-se, ainda, que no dia 16-06-2023, quando BB circulava no seu veículo automóvel acompanhada de CC, foi surpreendida pelo arguido que circulava de bicicleta em sentido oposto ao seu, o qual invadiu a via de circulação desta, pegou e arremessou a sua bicicleta contra a viatura daquela causando-lhe danos.
Desta feita, BB, assustada, dirigiu-se ao Posto da Guarda Nacional Republicana ..., para relatar os factos, tendo recebido várias chamadas no seu telemóvel, do arguido, dizendo-lhe: “vi a cara do teu cavaleiro; diz aí ao teu cavaleiro que te vou matar a ti e a ele; tentaste-me atropelar; é desta que te vou matar.”.
De igual modo, durante toda essa noite, BB recebeu várias chamadas e mensagens no seu telemóvel, provenientes do arguido, dizendo-lhe que “os ia apanhar” e que “ia ao café”, por esta o ter tentado atropelar, até que resolveu eliminar as suas redes sociais.
Resultou igualmente provado que em 27-06-2023, o arguido e BB encontraram-se, altura em que este se lhe dirigiu dizendo que "é desta que te vou matar”; “és uma vaca”; “és uma puta”; “quando te apanhar vou-te matar” e que, nesta sequência, aquela se dirigiu para Posto da Guarda Nacional Republicana ..., altura em que o irmão do arguido percorreu o percurso atrás da mesma.
Ademais, o arguido proferiu para BB, expressões como: "juro pela vida dos meus filhos e pelo meu tio que está debaixo de terra, que é verdade que não és propriedade minha, mas se não fores minha, não és de mais ninguém”; “se for lá para dentro, como e bebo à tua pala, mas tu vais para debaixo de terra", bem como, "és uma puta”; “és uma vaca”; “és uma porca”.
Com efeito, da factualidade apurada resulta verificado um estado de degradação e enfraquecimento de BB, perante o arguido e os comportamentos por este adotados contra aquela, sua cônjuge à data dos mesmos.
Efetivamente, o arguido proferiu expressões vexatórias e humilhantes, insultava BB onde quer que a encontrasse, rebaixou-a e inferiorizou-a, importunando e obstaculizando à sua vivência, a qual receou que a concretização das ameaças que lhe eram dirigidas pelo arguido, seu cônjuge à data dos factos.
Mais se demonstrou que após 16-06-2023, BB recebeu várias chamadas e mensagens no seu telemóvel, provenientes do arguido, dizendo-lhe que “os ia apanhar” e que “ia ao café” e que, nesta sequência, resolveu eliminar as suas redes sociais, por o mesmo lhe fazer várias ameaças contra a sua integridade física e vida.
Pelo exposto, estando demonstrada a existência de uma relação conjugal e de terem existido de forma reiterada maus tratos psíquicos, verbais, emocionais e à liberdade, encontram-se preenchidos os elementos objetivos do tipo de crime em análise, previsto no artigo 152.º, n. º 1, alínea a), do Código Penal.
Evola, ainda, da factualidade provada que:
- o arguido agiu sempre com o propósito de maltratar a saúde da BB, deixando-a sempre em constante sobressalto pela segurança da sua integridade física ou da sua vida, provocando-lhe permanente situação de instabilidade, medo e pânico perante os seus comportamentos de intimidação e perseguição;
- o arguido, em toda a sua atuação, agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas pela lei penal.
Cumpre, pois, apurar se perante a factualidade apurada o arguido cometeu o crime que lhe é imputado, sendo condenado em conformidade.
Determina o n.º 2, do artigo 152.º, do Código Penal, que:
“2 - No caso previsto no número anterior, se o agente:
a) Praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima; ou
b) Difundir através da Internet ou de outros meios de difusão pública generalizada, dados pessoais, designadamente imagem ou som, relativos à intimidade da vida privada de uma das vítimas sem o seu consentimento;
é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.”.
De facto, da factualidade provada não evola qualquer factualidade passível de ser integrada nas citadas alíneas.
Em face ao exposto, atendendo à factualidade dada como provada, e sem necessidade de tecer demais considerações, dúvidas se não oferecem quanto ao não preenchimento das circunstâncias agravantes, pelo que a moldura abstratamente aplicável é de 1 (um) ano a 5 (cinco) anos.
Impugnação da decisão de facto.
O arguido alega que o recurso tem por objeto toda a matéria de facto.
A matéria de facto pode ser sindicada por duas vias.
Através da chamada revista alargada, de âmbito mais restrito, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no n.º 2 do art.º 410.º do CPP [insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; e erro notório na apreciação da prova].
Ou através da impugnação ampla a que se reporta o art.º 412.º, n.ºs 3, 4 e 6, do CPP.
Considerando a alegação recursiva, o arguido não impugna a matéria de facto através de nenhuma daquelas vias, limitando-se, como veremos, apenas a questionar a convicção do Tribunal a quo.
Desde logo, não argui nenhum dos vícios decisórios previstos no art.º 410.º, n.º 2, do Código Penal. A existência desses vícios tem que resultar do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo admissível recorrer a elementos estranhos à sentença recorrida, ainda que existentes nos autos e provenientes do próprio julgamento[5]. Ou seja, o Tribunal de recurso não pode examinar nem consultar quaisquer outros elementos do processo. Por exemplo, não pode socorrer-se de declarações e depoimentos prestados em julgamento. Constituem, pois, vícios de lógica jurídica ao nível da matéria de facto, que tornam impossível uma decisão logicamente correcta e conforme à lei[6]. Sendo aqueles vícios de conhecimento oficioso, ainda que o recurso verse sobre a matéria de direito[7], importa referir que a sentença recorrida não enferma de qualquer um. Efetivamente, nenhum deles resulta do respetivo texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum.
O arguido também não impugna a matéria de facto pela via da impugnação ampla.
A impugnação ampla visa, pois, uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal relativamente aos concretos «pontos de facto» que o recorrente considera incorretamente julgados, através da avaliação (ou reavaliação) das provas que, em seu entender, imponham decisão diversa da recorrida[8].
Porque não se trata de um novo julgamento, não cabe à Relação reapreciar toda a matéria factual dada como provada ou não provada na primeira instância, nem analisar toda a prova ali produzida e documentada nos autos.
A reapreciação é segmentada e parcelar[9]. Circunscreve-se, apenas e tão só, aos pontos de facto que o recorrente individualiza obrigatoriamente no recurso como estando, em seu entender, incorretamente julgados, cabendo-lhe, também, indicar as concretas provas de onde resultem os alegados erros de julgamento e que impõem decisão diversa. Daí que não lhe baste formular genericamente a sua discordância quanto ao julgamento da matéria de facto e apontar o sentido que deve ser dado à prova[10].
Como estabelece o art.º 412.º, n.º 2, als. a), b) e c), do CPP, sobre ele recai o ónus de especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados e a especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida. O ónus deve ser observado para cada um dos factos impugnados. Como escreve Paulo Pinto de Albuquerque[11] é imposto ao recorrente que relacione o conteúdo especifico do meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorretamente julgado.
Também porque não se trata de um novo julgamento, constituindo apenas um remédio para os vícios do julgamento em primeira instância, faltando-lhe a imediação e a oralidade da prova, a reapreciação deve ser particularmente cuidadosa, não pode o Tribunal da Relação fazer tábua rasa da livre apreciação da prova em que assentou o juízo do tribunal recorrido[12]. Com efeito, como é sublinhado no Ac. STJ de 12.06.2008[13], a natural falta de oralidade e de imediação com as provas produzidas em audiência, circunscrevendo-se o «contacto» com as provas ao que consta das gravações, constitui uma importante limitação a considerar na sindicância da matéria de facto no âmbito da impugnação ampla. Face a essa limitação, o tribunal de recurso, em sede de impugnação ampla da matéria de facto, só pode alterar o decidido pela primeira instância se as provas indicadas pelo recorrente impuserem decisão diversa da proferida e não apenas se a permitirem[14]. Por exemplo, imporão decisão diversa, com a consequente alteração do decidido, sempre que a convicção do julgador da primeira instância mostre ser contrária às regras da experiência, da lógica e aos conhecimentos científicos[15]. Em suma, quando tiver na sua base erros de tal modo evidentes e óbvios que tornem a decisão inaceitável.
No caso concreto, o recorrente refere que o recurso tem como objeto toda a matéria de facto. É manifesto que não deu integral cumprimento ao ónus de especificação que lhe é legalmente imposto pelo art.º 412.º, n.º 3, als. a) e b), do CPP. Desde logo, não especifica os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados. Por outro lado, não indica nenhuma prova concreta de onde resultem eventuais erros de julgamento, que nem sequer especifica, e que impõem decisão diversa. Ou seja, não faz a necessária correspondência da prova com qualquer concreto facto provado ou não provado. Em suma, limita-se, apenas a questionar a convicção do Tribunal a quo, fazendo considerações de natureza subjetiva sobre a prova produzida, carecidas, aliás, de qualquer sentido e completamente despropositadas [v.g. a testemunha CC não tem aptidão moral (que não se confunde com a legal) para depor como testemunha em processo-crime por violência doméstica, um indivíduo que tinha - à data dos supostos factos – uma relação amorosa com a ofendida, que era casada com o arguido; a boa interpretação da norma e dos princípios que atravessam o nosso processo penal deverão conduzir à asserção de que o depoimento do amante de mulher casada deve merecer as maiores reservas; infelizmente há mulheres que não olham a meios, tudo servindo de estratégia para alcançar os seus fins (de resto indicar como testemunha o seu próprio amante é de um refinado cinismo); a queixosa muito provavelmente falta à verdade, sendo o seu depoimento empolado, sustentado em si própria, e é frontal e categoricamente contrariado pelas evidências apuradas (foi apanhada em flagrante em duas ocasiões (16 e 27 de Junho) pelo marido)]. É certo que convoca o depoimento da testemunha CC, todavia sem o relacionar com qualquer facto concreto, mas apenas para provar o que diz ser o adultério da ofendida, sem associar esse depoimento com qualquer facto impugnado.
Ao proceder do modo descrito, e não sendo admissível o convite para correção, o recorrente inviabilizou a reapreciação da prova e o conhecimento da impugnação de facto, posto que a este tribunal ad quem não é lícito superar as omissões imputáveis ao recorrente.
Assim sendo, mostra-se inviabilizada a alteração da matéria de facto.
De todo o modo, como resulta da motivação da decisão de facto, no caso em apreço o Tribunal a quo fundamentou a sua decisão relativamente ao factualismo provado e não provado com base na prova produzida em audiência. Explicou de forma exaustiva e clara as razões que o levaram a decidir no sentido que decidiu, sendo possível conhecer o processo de formação da sua convicção, obtida com o benefício da imediação e da oralidade, que falta a este Tribunal de recurso. Nenhuma censura merece, pois, a motivação da decisão de facto.
O arguido, na alegação recursiva sobre a decisão de facto, invoca a violação do princípio in dubio pro reo.
O referido princípio , corolário do princípio constitucional de presunção de inocência até transito em julgado da sentença (cf. art.º 32.º, n.º 2, da CRP), “constitui uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver a certeza sobre os factos decisivos para a decisão da causa”[16]. Trata-se, pois, de um princípio que tem a ver com a questão de facto, seja ao nível dos “pressupostos do preenchimento do tipo de crime”, seja ao nível dos “factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, e não com a questão de direito. Isto é, “vale só em relação à prova da questão de facto e já não a qualquer dúvida suscitada dentro da questão de direito. Aqui a única solução correcta residirá em escolher, não o entendimento mais favorável ao arguido, mas sim aquele que juridicamente se reputar mais exacto”[17].
Em suma, impõe que a dúvida na decisão de factos incertos favoreça o arguido. Ou seja, obriga o julgador a valorar sempre um non liquet em favor do arguido[18]. A sua violação exige, pois, “que o julgador tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido”[19]. Esse estado de dúvida quanto aos factos que devia dar por provados ou não provados, terá que resultar da decisão, onde deverá ser exprimido, com o minino de clareza, pelo julgador[20].
Como refere o Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 12.09.2018[21], a violação do princípio “in dubio pro reo” exige que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num estado de dúvida quanto aos factos que devia dar por provados ou não provados. Como também refere, o Tribunal de recurso apenas pode censurar o uso feito desse princípio se da decisão recorrida resultar que o tribunal a quo - e não os sujeitos processuais ou algum deles - chegou a um estado de dúvida insanável e que, face a ele, escolheu a tese desfavorável ao arguido (…). Dito de outro modo, refere o Prof. Roxin, que “o princípio não se mostra atingido quando, segundo a opinião do condenado, o juiz deveria ter tido dúvidas, mas sim quando condenou apesar da existência real de uma dúvida”. “Derecho Processal Penal”, Editores del Puerto, Buenos Aires, pág. 111. Ou seja, como assinala o Supremo Tribunal de Justiça no Ac. de 05.07.2007[22], “o princípio «in dubio pro reo», não significa dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos”. (….) “A sua violação pressupõe um estado de dúvida no espírito do julgador”.
Embora o arguido tenha invocado a violação do princípio in dubio pro reo, certo é que não ficou demonstrado que o Tribunal a quo decidiu contra si apesar de ter ficado na dúvida. Com efeito, o Tribunal a quo não expressa qualquer estado de dúvida. Aliás, foi particularmente seguro e firme. Temos, assim, que faltando o necessário estado de incerteza do Tribunal recorrido, se mostra afastada a violação do princípio in dúbio pro reo associado ao princípio da inocência.
De todo o modo, independentemente de o Tribunal recorrido não ter expressado incerteza, fazendo o confronto dos factos provados com a prova produzida, não vemos que se imponha qualquer estado de dúvida.
Inexiste, pois, qualquer violação do princípio in dubio pro reo.
Improcede, assim, o recurso quanto à impugnação da decisão de facto.
Recurso sobre a matéria de direito.
Visando questionar o enquadramento jurídico-penal dos factos, arguido começa por referir que consta da acusação que “Também a partir dessa data, o arguido profere, para BB, as seguintes expressões: "juro pela vida dos meus filhos e pelo meu tio que está debaixo de terra, que é verdade que não és propriedade minha, mas se não fores minha, não és de mais ninguém"; "se for lá para dentro, como e bebo à tua pala, mas tu vais para debaixo de terra", bem como, "és uma puta"; "és uma vaca"; "és uma porca”. Alega que semelhante descrição de acontecimentos, dada a indefinição temporal que encerra, não permite o contraditório, impossibilitando qualquer defesa – daí à condenação é um passo, pois nos dias de hoje é tudo violência doméstica e a culpa, claro, é sempre do marido… Argumenta que se impõe concluir que a descrição da conduta do arguido considerada provada se mostra algo indefinida, vaga e genérica, tanto em relação ao tempo e ao lugar da prática dos factos, como relativamente aos próprios factos integradores das ofensas e respectivas motivação e consequências, não se encontrando esclarecido qualquer elemento relativo à forma e intensidade como foram proferidas, também se desvalorizando, a motivação da conduta em causa, sendo certo que não se encontra assente qualquer facto integrador do elemento subjectivo constitutivo do tipo legal. Argumenta também que essa alegada imprecisão da matéria de facto provada colide com o direito ao contraditório, enquanto parte integrante do direito de defesa do arguido, constitucionalmente consagrado, traduzindo aquela uma mera imputação genérica, que a jurisprudência deste Supremo Tribunal tem entendido ser insusceptível de sustentar uma condenação penal.
Vejamos.
A factualidade a que o arguido se refere ficou provada no ponto 14. dos factos provados, que não foi impugnado nos termos previstos na lei. Contrariamente ao alegado, a factualidade em causa encontra-se devidamente balizada em termos temporais [a partir de 17-06-2023], como resulta claro do factualismo provados no ponto 13. Efetivamente, mostra-se ali provado que No dia 17-06-2023, pelas 11:00 horas, BB deslocou-se ao Posto da Guarda Nacional Republicana ... para denunciar factos já relatados no dia 16-06-2023, pelas 20:40 horas, naquele Posto. Estando, desde a acusação, perfeitamente definido o marco temporal a partir de quanto o arguido proferiu as expressões que constam do ponto 14. não vemos, com todo o respeito, como podem estar prejudicados o direito ao contraditório e o direito à defesa. Estando definido o marco temporal e sendo as expressões proferidas pelo arguido tudo menos indefinidas, vagas e genéricas podia perfeitamente exercer aqueles direitos. Se não o fez foi porque não quis.
Não se mostra, pois, violado o direito ao contraditório e o direito à defesa do arguido.
Alega também o arguido que, admitindo por mera hipótese académica como provados os factos em que assentou a sentença objecto de recurso [factos esses que como vimos não impugnou nos termos legais], não praticou o crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, do CP. Para o efeito, começa por alegar que a ofendida não se encontra numa relação de “subordinação existencial”, ou seja, numa posição de inferioridade e/ou dependência relativamente a ele, que considera ser necessário para o preenchimento do tipo.
Acrescenta ter ficado demonstrado que procurou apenas reagir quando soube a verdade acerca do adultério (espremido, espremido, tudo gira à volta disso), de onde resulta que o seu comportamento assentou em motivações não censuráveis, pelo que estamos perante uma situação de falta de consciência da ilicitude não censurável, que opera como causa de exclusão da culpa, nos termos do art. 17º, nº 1, do CP. Argumenta que não é fácil a um marido ter a certeza quase absoluta que a mulher o trai com outro homem, e, confrontando-a com a situação em duas ocasiões (16 e 27 de Junho) aquela fugir a 7 pés e sem lhe dar uma explicação cabal, virando o bico ao prego e sangrando-se em saúde… Argumenta também que a atitude da ofendida é de um refinado cinismo, foi claramente provocatória e destinada a obter uma reacção esperada por parte dele arguido, a qual, bem vistas as coisas, nada tem de especialmente violenta e foi até bastante comedida, salvo melhor opinião.
Vejamos.
Nos termos do disposto no art.º 152.º, n.º 1, do Código Penal, pratica o crime de violência doméstica quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais:
a) Ao cônjuge ou ex-cônjuge;
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação;
c) A progenitor de descendente comum em 1.º grau; ou
d) A pessoa particularmente indefesa, nomeadamente em razão da idade, deficiência, doença, gravidez ou dependência económica, que com ele coabite.
No que diz respeito às pessoas referidas nas als. a) e b), o preenchimento do tipo legal de violência doméstica exige uma determinada relação afetiva entre o agente e a vítima. Porém, contrariamente ao que sustenta o arguido, não exige de todo que nessa relação a vítima se encontre numa posição de «subordinação existencial» ou numa «posição de inferioridade e/ou dependência» relativamente ao agente.
Com efeito, como refere o TRE de 26.09.2017[23], cuja jurisprudência perfilhamos, não é elemento do tipo legal de violência doméstica que a ofendida tenha uma posição de relação de «subordinação existencial» ou seja, uma posição de inferioridade e/ou dependência com o recorrente, pois apesar de constituir uma realidade sociológica presente em muitas das situações de violência doméstica previstas no art. 152.º do C. Penal, isso não significa que as esgote ou que constitua elemento típico de cuja demonstração depende a responsabilidade penal do agente.
O que importa é que o agente, no âmbito e por força de um relacionamento conjugal ou análogo, ainda que já terminado, de modo reiterado ou não, inflija maus tratos físicos ou psíquicos à vítima, afetando desse modo a sua dignidade pessoal e humana, como aconteceu no caso concreto. Efetivamente, como resulta dos factos provados, é manifesto que o comportamento do arguido é atentatório da dignidade humana da ofendida e da sua saúde física e psíquica, o que, aliás, aquele sabia.
Para o preenchimento do tipo, mostra-se também irrelevante que o arguido tenha praticado os factos reagindo a uma nova relação sentimental da ofendida e até a uma eventual traição. Com todo o respeito, choca a argumentação desenvolvida no recurso a esse propósito. Não é aceitável nos tempos atuais, afronta a dignidade da mulher, enquanto mulher, refletindo, tal como os factos provados [vg. factualidade do ponto 14.], a imagem de um mundo que já não existe e que felizmente deixou de existir. Importa esclarecer o arguido que sua mulher ou ex-mulher não é propriedade sua, nem de ninguém, aliás. Nada legitima qualquer mau trato físico ou psicológico por parte de alguém que se se sinta enganado ou tenha até sido efetivamente enganado pela companheira/o ou ex-companheira/o. Como assinala a Senhora Procuradora-Geral Adjunta no seu parecer as palavras do arguido transportaram-nos para a década de 1950, 1960, antes ainda do Dec. Lei nº 47344 de 25/11/1966…, e apontam uma falta de consciência critica avassaladora, e nenhum arrependimento sobre o seu provado comportamento. Diremos, até, que nos transportam para muito antes desses tempos. Para tempos sinistros em que a mulher não passava de um objeto, sem direitos, vivendo subjugada e à mercê da vontade e dos caprichos do marido. Esses não são os nossos tempos.
Em suma, os factos praticados pelo arguido preenchem os elementos típicos, objetivos e subjetivos, do crime de violência doméstica, previsto e punido pela al. a), do n.º 1, do artigo 152.º, do Código Penal, não se encontrando a sua conduta coberta por qualquer causa de exclusão da culpa ou da ilicitude.
Improcede, assim, o recurso também quanto à questão do enquadramento jurídico-penal dos factos.
Nulidade da sentença.
Alega o recorrente que a sentença recorrida é nula por falta de fundamentação.
Em primeira linha, sustenta que não se mostra feita a indicação completa das provas, nem, em absoluto, o exame crítico das mesmas, que formaram a convicção do tribunal. Em síntese, refere que não se mostram indicadas, de forma completa, as provas, porque a indicação da prova documental é deficiente. Com efeito, constando dos autos vários documentos seleccionados, o tribunal a quo valorou-os a todos (!) sem qualquer fundamentação lógica ou racional. Questiona que todos os documentos referidos na motivação tenham sido relevantes, pois que alguns serão absolutamente irrelevantes para o objecto do processo. E, por outro lado, existem nos autos documentos que contrariam a versão da Acusação, e em aspectos de manifesta relevância (por exemplo, a p.i. do Divórcio comprometedora para a versão do MºPº por retirar credibilidade moral à queixosa, salvo melhor opinião). Argumenta que a desvalorização do adultério é de difícil compreensão, como também é de difícil compreensão descrever a testemunha CC como o “actual companheiro” da queixosa, sabendo perfeitamente o Tribunal que esta era casada quando se envolveu com aquele.
Em segunda linha, sustenta que também não se mostra feito o exame crítico das provas que fundaram a convicção do tribunal recorrido. Na verdade, tal exame crítico não pode traduzir-se numa simples afirmação como a que acima se transcreveu, como se de uma profissão de fé do tribunal se tratasse. Argumenta que não basta apenas a realização de súmulas de declarações e depoimentos prestados em audiência, sem qualquer referência à credibilidade que cada um tenha merecido ao tribunal e as razões do respectivo merecimento, como sucede nos autos. Diz que se impunha que o tribunal a quo tivesse exposto, ainda que de forma concisa, todo o raciocínio lógico-dedutivo, incluindo a necessária articulação dos meios de prova que valorou e porquê, que conduziu a sua convicção no sentido de ter o arguido cometido os factos - o que não fez, salvo melhor opinião! Argumenta que num cenário entre marido e mulher como este, inquinado por questões pessoais e mal resolvidas, perante versões contraditórias e sem prova clara, substancial e inequívoca dos factos, não se compreende como pôde o Tribunal atribuir maior credibilidade à versão da queixosa, ao ponto de afastar a dúvida razoável e concluir pela demonstração da realidade dos factos - que é um juízo de certeza - na decisão condenatória. Acrescenta que se impunha que o Tribunal a quo fizesse menção crítica ao adultério, porque ela mina a credibilidade da queixosa, como é de meridiana clareza para qualquer leigo. E mina, por uma razão muito simples: é que o cenário de “violência doméstica” tem uma razão de ser que a queixosa omitiu, o que devia suscitar ao Tribunal as maiores reservas.
Conclui que o tribunal a quo não indicou completamente as provas que serviram para formar a sua convicção (falta de especificação da prova documental) nem efectuou o exame crítico das mesmas, limitando-se a efectuar súmulas das declarações do arguido e dos depoimentos das testemunhas sem indicação mínima sobre a credibilidade merecida por cada meio de prova, e a invocar alguns documentos dos autos (que são vários), desta forma impossibilitando o tribunal de recurso de perceber e apreciar a bondade dos critérios lógicos que seguiu e inviabilizando a correcta apreciação da impugnação da matéria de facto e de Direito apresentada pelo arguido. Remata que a falta do exame crítico das provas, imposto pelo art. 374º, nº 2, do C. Processo Penal, e a consequente insuficiência da fundamentação determina, nos termos do art. 379º, nº 1, a), a nulidade da sentença.
Vejamos.
O recorrente confunde por completo o que seja o vício de falta ou insuficiência da fundamentação. Como resulta da alegação recursiva, no fundo mais não faz do que voltar a questionar a convicção do Tribunal a quo e os factos provados [o que, oportunamente não fez nos termos legais, como vimos], e até parece sustentar que alguns factos, na sua perspetiva, relevantes, faltarão para uma correta decisão. Censura inclusivamente o Tribunal a quo por, na sua perspetiva pessoal, não ter valorado o adultério por forma a retirar credibilidade moral à queixosa e, ao que parece, descrever, segundo ele indevidamente, a testemunha CC como o “actual companheiro” da queixosa (se bem percebemos, defende que o facto de a ofendida estar casada com ele quando se envolveu com aquela testemunha impede que esta seja descrita pelo Tribunal a quo como “actual companheiro”).
Com todo o respeito, nada se enquadra no alegado vício de falta de fundamentação da sentença.
No termos do disposto nos art.ºs 374.º, n.º 2, e 379.º, n.º 1, al. a), do CPP, a sentença deve conter, sob pena de nulidade, a fundamentação constituída, além do mais, pela enumeração dos factos provados e não provados e a indicação dos motivos que alicerçam a decisão de facto, incluindo o exame crítico da prova que contribuiu para a formação da convicção do tribunal.
No âmbito do exame crítico da prova o tribunal indica as razões de ciência extraídas das provas, os motivos que justificaram determinada opção por um meio de prova em detrimento de outros, explica as razões que justificaram a atribuição de credibilidade a determinados depoimentos testemunhais, e explicita a valoração conferida a documentos e exames. Ou seja, constitui a exteriorização do raciocínio que desenvolveu sobre os meios de prova em que assentou a formação da sua convicção sobre a matéria de facto.
Essa exigência legal não impõe, todavia, que seja produzida uma exaustiva indicação de todo o raciocínio lógico, nomeadamente uma referência discriminada e detalhada relativamente a cada facto provado e não provado, mas antes imperioso é que a sentença contenha a menção das provas relevantes para a consolidação dos factos provados e não provados e a indicação dos elementos que, em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos, constituem o substrato racional que orientou a formação da convicção do tribunal em determinado sentido.
Sempre que a motivação da decisão de facto observa o condicionalismo legal a sentença faculta aos sujeitos processuais o conhecimento e análise do percurso lógico ou racional desenvolvido pelo tribunal que alicerçou a decisão da matéria de facto, assim como permite ao tribunal superior sindicar o decidido em primeira instância.
In casu, a sentença recorrida discrimina em sede de motivação de facto as provas em que assentou a formação da convicção do tribunal sobre os factos provados e não provados, indica as razões que levaram o tribunal a valorar tais provas e explicita de forma exaustiva o raciocínio lógico e dedutivo subjacente à decisão de facto.
Assim, a sentença recorrida contém a indicação dos motivos que alicerçam a decisão de facto, incluindo o exame crítico da prova relevante para a formação da convicção do tribunal, observando o disposto no art.º 374.º, n.º 2, do CPP. Não padece, pois, da arguida nulidade.
Improcede, assim, o recurso também quanto à questão da nulidade da sentença.
Pedido de indemnização civil.
Alega o arguido que não tendo praticado o crime pelo qual foi condenado, deve ser absolvido do montante arbitrado oficiosamente de indemnização civil.
Todavia, mantendo-se a sentença recorrida no que concerne aos factos provados e ao enquadramento jurídico, o recurso também terá que improceder quanto à questão à indemnização arbitrada.
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto negar provimento ao recurso e, em consequência, confirmam a sentença recorrida.
Custas a cargo do arguido, fixando-se a taxa de justiça em 6 UC.