LOCAÇÃO FINANCEIRA
CLÁUSULA CONTRATUAL GERAL
DEVER DE INFORMAÇÃO
Sumário

I - A determinação da maior onerosidade da dívida, no âmbito da imputação de pagamento parcial, deve fazer-se a partir do concreto interesse do devedor;
II - O fumus boni iuris relevante no âmbito de um procedimento cautelar deve concretizar-se através da ponderação, sem excepção, de todas as normas jurídicas de direito material vigentes, incluindo as relativas à matéria das cláusulas contratuais gerais;
III - Quando numa cláusula contratual geral se estabelece que o simples incumprimento pelo aderente confere ao proponente a possibilidade de imediatamente declarar a resolução do contrato, em desvio ao regime-regra consagrado no artigo 808º do Código Civil, impõe-se que o aderente seja expressamente esclarecido quanto a esse aspecto da contratação, nos termos do artigo 6º do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro;
IV - Em contrato de locação financeira mobiliária, a fixação do prazo razoável para cumprimento no âmbito de interpelação admonitória deve ser fruto da ponderação das concretas circunstâncias do caso, bem como do regime jurídico dos contratos que prosseguem similar escopo social.

Texto Integral

Proc. n.º 1200/24.3T8PVZ.P1





Acordam os Juízes que integram a 3ª secção do
Tribunal da Relação do Porto





Relatório:

“Banco 1..., SA – Sucursal em Portugal”, com sede na rua ..., Lisboa, intentou perante o juízo central cível da Póvoa de Varzim (…) a presente providência cautelar para entrega judicial, nos termos do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho, contra “A..., Ldª”, com sede na rua ..., ....
Alegou a requerente, em súmula, no requerimento inicial, que celebrou com a requerida 3 contratos de locação financeira referentes a 3 veículos automóveis, tendo a requerida incumprido a obrigação de pagar as rendas contratadas.
Afirma que, por tal motivo, a 19 de Abril de 2024 remeteu à requerida interpelação para pagamento, concedendo o prazo de 10 dias para que a requerida procedesse ao pagamento das quantias em dívida, no valor total de € 1 855,61.
Alega que, não obstante, a requerida procedeu ao pagamento apenas de parte das quantias em dívida, motivo pelo qual, por cartas de 03 de Maio de 2024, comunicou à requerida a resolução dos contratos.
Invoca a seu favor a norma consagrada no artigo 21º do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho.
Conclui pedindo:
- a não audiência da requerida previamente à tomada de decisão sobre a providência;
- a apreensão dos veículos automóveis de matrícula ..-..-PP, ..-..-UT e ..-..-UT, bem como os respetivos acessórios e documentos, com a sua subsequente entrega ao legal representante da requerente;
- a antecipação do juízo sobre a causa principal, nos termos do nº 7 do artigo 21º do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho.
Foi proferido despacho que indeferiu a dispensa de audiência prévia da requerida.
Citada, a requerida apresentou oposição, na qual, em súmula, reconhece a celebração dos contratos de locação financeira invocados pela requerente.
Não impugna os incumprimentos que a requerente lhe imputa.
Entende, no entanto, que as comunicações a que a requerente se refere são inidóneas a constituir interpelação admonitória pressuposto da resolução contratual.
Entende não se verificarem no caso os pressupostos da resolução contratual comunicada pela requerente, designadamente não tendo sido fixado um prazo suplementar razoável para cumprimento.
Afirma serem de diminuta relevância os incumprimentos apontados pela requerente, tendo mesmo a requerida, em Abril e Maio de 2024, procedido ao pagamento integral dos valores exigidos pela requerente.
Entende que a requerente não actua de boa fé ao pretender a resolução dos contratos de locação financeira com fundamento no não pagamento de valores diminutos e concedendo um prazo extremamente curto para a regularização da situação.
Invoca a aplicabilidade do regime das cláusulas contratuais gerais relativamente aos contratos celebrados com a requerente, afirmando não lhe ter sido explicado que o não pagamento de qualquer valor das rendas contratadas implicaria a resolução do contrato.
Pretende a exclusão do negócio da cláusula 19ª dos contratos.
Conclui pedindo a improcedência do pedido de restituição e o indeferimento do pedido de antecipação do juízo sobre a causa principal.
Ao abrigo do disposto no artigo 3º do Código de Processo Civil a requerente apresentou articulado em que se pronuncia quanto às excepções opostas pela requerida, pedindo a sua improcedência e concluindo como no requerimento inicial.
Produzida a prova indicada pelas partes, realizou-se a audiência de julgamento, após o que foi proferida decisão que, considerando não ter a requerente concedido à requerida um prazo razoável para regularização da situação, concluiu inexistir fundamento para a declaração de resolução, e indeferiu a providência.
É desta decisão que, inconformada, a requerente da providência interpôs recurso, terminando as suas alegações com as seguintes conclusões:
1- Vem a ora Recorrente apresentar as presentes Alegações, uma vez que não se conforma com o teor da douta Sentença proferida pelo Tribunal a quo, a qual, no seu entender, interpretou erroneamente e violou o disposto nos artigos 17.º e 21.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, alterado pelo Decreto-Lei nº 30/2008, de 25 de Fevereiro, respeitante ao Regime Jurídico do Contrato de Locação Financeira e artigos 783.º, 784.º, 785.º, 808.º do Código Civil, no que concerne à resolução dos contratos de locação outorgados, validade do prazo concedido nas cartas de interpelação, respectiva resolução e imputação dos valores transferidos pela Requerida às quantias em dívida decorrentes do incumprimento dos contratos;
2- Alegou a Recorrida em sede de Oposição, que os Contratos encontram-se sujeitos à aplicação do regime jurídico das cláusulas contratuais gerais, Decreto-Lei n.º 446/85, de 25 de Outubro, entendendo que a Requerente não cumpriu os deveres de comunicação do conteúdo, conforme lhe é imposto;
3- Sucede que, a aqui Recorrente cumpriu o estipulado no Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro, tendo dado conhecimento e informado a Requerida das cláusulas contratuais apostas nos contratos e do seu conteúdo;
4- Como resulta da prova produzida nos autos, nada indicia que a Recorrente, quer ao nível das negociações contratuais, quer aquando da celebração dos contratos incumpriu os deveres de informação que lhe incumbiam:
5- Tendo em conta toda a prova produzida, tanto documental, como testemunhal, entende a ora Recorrente que, salvo o devido respeito, a matéria de facto constante do facto não provado, foi incorretamente apreciada, tendo conduzido a uma decisão injusta e incoerente com toda a factualidade discutida e apurada nos autos;
6- Ora, como se constata pelos Contratos já juntos em anexo à Petição Inicial como Docs. 1, 5 e 9, o gerente da Recorrida, em representação e com poderes para o acto, procedeu à sua assinatura, bem como, à rubrica de todas as páginas, incluindo as páginas em que consta a Cláusula 19.ª que alegou ser nula;
7- Os Contratos encontram-se também acompanhados do respectivo reconhecimento de assinaturas, sendo que, a Recorrida não alegou a falsidade das assinaturas, dando-se as mesmos por aceites e confessadas;
8- Assim, salvo o devido respeito, ao contrário do entendimento sufragado pelo Tribunal a quo, as cláusulas contratuais em apreço foram comunicadas e explicadas integralmente, assegurando à Recorrida a possibilidade de uma tomada de conhecimento efetivo do respetivo conteúdo;
9- Os referidos deveres de comunicação e informação foram cumpridos no momento da celebração dos Contratos, isto é, no momento da emissão pela Recorrida da sua vontade negocial, sendo a cláusula em questão bastante clara quanto aos seus efeitos;
10- Ademais, caso assim não fosse e admitindo que a Recorrente poderia ter omitido os deveres de informação a que se encontra vinculada ou que a Recorrida não concordaria com o teor das cláusulas contratuais, como se explica que tenha outorgado três Contratos de Locação Financeira Mobiliária distintos, com a mesma cláusula, sendo que o 1.º Contrato foi outorgado a 13/12/2021 e os outros dois Contratos a 25/09/2023;
11- A duração da relação comercial e a celebração de vários Contratos entre a Recorrente e Recorrida, evidencia que a Recorrente sempre actuou sempre de boa-fé e cumpriu os deveres a que estava incumbida;
12- Bem como, permaneceu disponível para qualquer esclarecimento quanto ao conteúdo das cláusulas contratuais, o que nunca lhe foi solicitado;
13- Para que a tomada de conhecimento das cláusulas seja viável deverá apreciar-se o enquadramento do outorgante à luz do critério do homem médio, aferido em abstracto, nos termos do n.º 2 do artigo 487.º do CC;
14- Nesse sentido, se a mutuante desenvolveu uma actividade passível de promover o conhecimento das cláusulas contratuais gerais junto da contraparte, conformando-se para tanto com aquele padrão de diligência, ter-se-á por observada a regra da comunicação;
15- No caso em concreto encontramo-nos perante a celebração de Contratos com uma sociedade comercial e não com um consumidor;
16- Para todos os efeitos, deverá considerar-se que o conteúdo das cláusulas contratuais e terminologia aí utilizada, seria de fácil compreensão e tomada de conhecimento por parte da locatária, ora Requerida, enquanto sociedade comercial;
17- Refere até a Sentença recorrida que nos encontramos “no âmbito de obrigações contraídas por uma sociedade comercial e no âmbito de contratos celebrados que, em regra, não serão desconhecidos de quem actua no meio comercial”;
18- A própria expressão que levou a que o facto em questão fosse dado como não provado, ou seja, que não foi explicado à Recorrida “que a falta de pagamento de qualquer montante, por muito diminuto que fosse, implicaria a resolução do contrato”, foi alegado pela própria Recorrida em sede de Oposição e encontra-se imbuído de subjectividade;
19- Para todos os efeitos, não seria necessário encontrar-se expressamente previsto na cláusula um montante mínimo que permitisse a resolução/declaração de vencimento antecipado;
20- A cláusula é bastante clara, fundamentando o vencimento antecipado e resolução no incumprimento de qualquer obrigação imputável à Locatária;
21- Verifica-se, pois, que a Recorrida limitou-se a alegar genericamente que não lhe foi informada e explicada a cláusula em apreço e que não teria percepção de que qualquer incumprimento pudesse resultar na resolução dos contratos;
22- Contudo, como resultou do depoimento da testemunha Sr. AA “que afirmou ser o responsável financeiro de uma outra empresa com o mesmo sócio e gerente, integrando o mesmo “grupo”, na parte em que foi relatando ser do seu conhecimento que as três empresas de tal grupo (incluindo a requerida) a dada altura começaram a ter problemas de tesouraria; Tendo sido peremptório em afirmar que as rendas em divida, após as primeiras cartas, não foram pagas porque não existiam fundos para tal e não porque o gerente da requerida não tivesse entendido que o não pagamento poderia levar à resolução dos contratos.” (sublinhado nosso);
23- Assim sendo, entende a ora Recorrente, que não poderia o Tribunal a quo olvidar que os valores em mora não foram liquidados por dificuldades de tesouraria e não porque a Recorrida não se encontrava ciente das consequências do não pagamento e possibilidade de resolução contratual;
24- Não obstante, entendeu o Tribunal a quo que a “resolução dos contratos não poder ser aferida à luz da cláusula em questão, dado o seu carácter genérico, nos termos acima consignados, tal também não poderia suceder por força da nulidade da mesma ao abrigo do disposto no artigo 8º alíneas a) e b) do Decreto-Lei nº 446/85 de 25 de Outubro.”;
25- Sucede que, como acima exposto, não foi violado o devedor de informação imposto à Recorrente, nem tão pouco foram as cláusulas inseridas após a assinatura da contraente, nem tal se conclui em análise a qualquer elemento probatório;
26- Face ao exposto, salvo o devido respeito, considera a Recorrente que não se confirmou o alegado pela Recorrida, ao afirmar que não lhe foi dado conhecimento ou explicado o conteúdo das cláusulas contratuais;
27- Com efeito, da prova documental e testemunhal produzida, nada indiciou o não cumprimento pela Recorrente dos deveres de comunicação e de informação, pelo contrário;
28- Acrescente-se ainda, que não é em sede de procedimento cautelar que deverão ser decididas as questões materiais respeitantes ao cumprimento dos deveres de informação nos termos das Cláusulas Contratuais Gerais, ou do cumprimento ou incumprimento dos Contratos, bem como, a correspondente licitude ou ilicitude da declaração de vencimento antecipado e preenchimento das Livranças;
29- Na Oposição apresentada, a Recorrida não logrou sequer alegar a inexistência de pressupostos para apresentação do procedimento cautelar, devendo entender-se que a o mesmo encontra-se devidamente justificado face ao justo receio da Recorrente;
30- De tudo quanto se encontra exposto, entende a ora Recorrente que o Tribunal a quo fez uma incorrecta apreciação da prova documental, bem como, da prova produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, na medida em que deu por não provado que a Recorrente tenha cumprido os deveres que lhe eram impostos à luz do regime das Cláusulas Contratuais Gerais;
31- Tal conclusão retira-se dos meios probatórios à disposição do Tribunal a quo, nomeadamente prova documental e testemunhal, que impunha decisão diversa da ora recorrida;
32- Nos presentes autos, encontram-se verificados os requisitos impostos para o decretamento da presente providência;
33- É um dos pressupostos do procedimento cautelar, para situações análogas à aqui exposta, que o locatário não tenha procedido à restituição dos bens ao locador;
34- Encontra-se, igualmente, provado o segundo requisito exigido para o deferimento do procedimento cautelar: “resolução do contrato e não entrega do bem móvel -, não carecendo a requerente de provar o justificado receio de lesão do seu direito. Este receio (...) é presumido pela lei, pois que a não entrega da coisa locada, envolvendo a continuação do respectivo uso, determinará necessariamente a sua deterioração e desvalorização, com o inerente prejuízo para o seu proprietário.” – Ac. da Relação de Coimbra de 15-09-2009, in www.dgsi.pt, P. 76/09.5TVPRT.C1 (sublinhado nosso);
35- A respeito do valor de mercado dos veículos locados, importa referir que deverá ser efectuada uma análise da contraposição de interesses da Recorrente e da Recorrida, não podendo o prejuízo resultante da providência exceder o dano que com ela se pretende evitar;
36- De facto, a Recorrida em momento algum justificou em que termos a entrega dos veículos representará um prejuízo superior ao prejuízo que a Recorrente suporta;
37- Encontra-se aqui em causa o direito à restituição e, simultaneamente, o direito de propriedade da Recorrente, sendo esta particularmente afetada pela manutenção em poder do locatário dos referidos veículos automóveis, sendo facto notório aliás, que com o tempo e o uso, os mesmos se deterioram apreciavelmente e desvalorizam economicamente, afetando desta forma o conteúdo do direito de propriedade da locatária;
38- Por esta razão, foi requerida a entrega dos veículos à aqui Recorrente, de forma a evitar que com a sua contínua utilização pela Requerida, os mesmos se depreciem ao ponto de perderem qualquer valor económico que ainda conservem;
39- Em face do exposto, entende a Recorrente, que deveria ter sido decretada a entrega imediata dos bens locados;
40- Porém, como refere a Sentença recorrida, as questões suscitadas são referentes às interpelações dirigidas à Recorrida, que culminaram com a resolução dos Contratos, que o Tribunal a quo julgou inválida;
41- Mais uma vez, não pode a aqui Recorrente conformar-se com a Sentença proferida, conforme se verá;
42- Como se disse, em consequência do incumprimento no pagamento das rendas acordadas relativamente aos Contratos de Locação Financeira Mobiliária (Leasings) n.º ...52-000-01-7, n.º ...61-000-01 e n.º ...62-000-01, a ora Recorrente remeteu, a 19/04/2024, para a morada contratual da Requerida e do avalista, previamente ao envio das cartas de resolução, cartas de interpelação a comunicar os valores em mora decorrentes do incumprimento dos Contratos;
43- Para que que a locatária, ora Recorrida, e avalista procedessem ao pagamento das quantias em mora, foi concedido o prazo de 10 dias, conforme cartas e respetivos avisos de receção, juntos em anexo à Petição Inicial como Docs. 13, 14 e 15, cujo conteúdo se dá por reproduzido para todos os efeitos legais;
44- Conforme consta dos avisos de receção, as cartas em apreço foram recebidas pela Recorrida e avalista, nos dias 22/04/2024 e 23/04/2024, conforme resulta, aliás, dos factos dados como provados na Sentença recorrida com os n.ºs 22), 23) e 24);
45- Sucede que, pese embora as interpelações efetuadas, a Recorrida não regularizou a globalidade dos valores em mora por conta do incumprimento dos Contratos em apreço, que à data da submissão das cartas de interpelação, a 19/04/2024 ascendiam a:
- € 500,12 – Leasing n.º ...52-000-01-7;
- € 221,14 – Leasing n.º ...61-000-01;
- € 1 134,35 – Leasing n.º ...62-000-01;
46- Na verdade, a Recorrida apenas procedeu à liquidação do montante de € 484,75, no dia 19/04/2024;
47- Levantou-se assim a questão da imputação do valor recepcionado, entendendo a aqui Recorrente que mal esteve o Tribunal a quo, ao considerar que a referida quantia deveria ser imputada ao valor em dívida decorrente do Contrato de Locação Financeira Mobiliária n.º ...61-000-01;
48- Nos termos do n.º 1 do artigo 783.º do Código Civil “Se o devedor, por diversas dívidas da mesma espécie ao mesmo credor, efectuar uma prestação que não chegue para as extinguir a todas, fica à sua escolha designar as dívidas a que o cumprimento se refere.”;
49- Refere e bem a Sentença recorrida que a “(…) requerida também não alegou se e em que termos comunicou à requerente de que forma pretenderia fosse feita a imputação de tal pagamento, efectuado no período que mediou entre a interpelação para pagamento dos valores em divida e a comunicação das resoluções” (sublinhado nosso);
50- A respeito do artigo 784.º do CPC, refere a Sentença recorrida “Sem perder de vista que o legislador, após tutelar prioritariamente os interesses do credor, procurou tutelar, nesta parte, já os interesses do devedor, em ordem a que, entre várias dividas vencidas, se dê prevalência aquela que o devedor terá mais interesse em extinguir (nesse sentido, ANTUNES VARELA / PIRES DE LIMA, Código Civil Anotado, vol. II, 1986, p. 36 e ANTUNES VARELA, Das Obrigações em Geral, vol. II, Coimbra, 1999, p. 58). Nas palavras de MÁRIO JÚLIO ALMEIDA COSTA (Direito das Obrigações, Coimbra, 9ª edição, 2001, p. 956) “O entendimento deste preceito não levanta dúvidas especiais. Esclareçamos tão-só que a onerosidade ou gravosidade das dívidas – critério a atender em terceiro lugar – terá de ser apreciada pelo tribunal segundo as circunstâncias concretas de cada caso. Entre várias dividas, considera-se mais pesada para o devedor aquela cuja extinção lhe traga maiores vantagens. A diversos elementos haverá que recorrer no confronto da onerosidade das dívidas: se elas vencem juros e qual o montante destes, se existem ou não cláusulas penais, se o devedor responde a título principal ou apenas subsidiariamente, se o credor se encontra habilitado a promover uma execução imediata, etc.”.
51- Concluindo em seguida que “(…) estando em dívida valores vencidos relativos a três contratos distintos, mas sendo o valor pago (€ 484,75) suficiente para extinguir a dívida vencida relativamente a um deles – o interesse da requerida passaria manifestamente por imputar a referida quantia ao pagamento integral da divida menor (€ 221,14), referente ao contrato nº ...61-000-01, evitando assim as consequências onerosas e gravosas que vieram a ocorrer.”;
52- Neste ponto, não poderá a Recorrente concordar com o douto Tribunal a quo, tendo procedido, pois, à imputação do montante recebido à quantia em dívida decorrente do Contrato de Locação Financeira Mobiliária n.º ...52-000-01-7, que ascendia à data de elaboração das cartas de interpelação a € 500,12, uma vez que era este o Contrato que apresentava vencimento de rendas e de juros de mora com maior antiguidade, como se extrai dos extratos dos contratos em anexo às cartas de interpelação juntas à Petição Inicial como Docs. 13 a 15, dando cumprimento ao requisito subsidiário presente no n.º 1 do artigo 784.º do Código Civil;
53- Salvo o devido respeito, entende a Recorrente que mal esteve o Tribunal a quo ao considerar que a imputação deveria ter sido efectuada ao Contrato de Locação Financeira Mobiliária n.º ...61-000-01, não se descortinando qual o fundamento para a não aplicação dos restantes critérios subsidiários;
54- Com efeito, encontramo-nos perante 3 contratos com as mesmas garantias e cujas consequências resultantes da resolução são similares, e portanto, enquadrar-se-iam no caso de existência de “várias dívidas igualmente onerosas”, previsto no referido artigo;
55- Considerando o Tribunal a quo que “conforme resulta dos autos e teor dos contratos, todos os valores reclamados estavam vencidos e todos os contratos oferecem iguais garantias à requerente.”, devendo também considerar-se que apresentam dívidas igualmente onerosas para o devedor, haveria que proceder à aplicação dos seguintes critérios presentes no n.º 1 do artigo 784.º do Código Civil, nomeadamente, “entre várias dívidas igualmente onerosas, na que primeiro se tenha vencido; se várias se tiverem vencido simultâneamente, na mais antiga em data.” (sublinhado nosso);
56- Assim sendo, apesar de o Contrato de Locação Financeira Mobiliária n.º ...61-000-01 apresentar o valor em mora mais reduzido, não era o contrato que oferecia “menor garantia para o credor”, nem tão pouco representava a dívida “mais onerosa para o devedor” ou a que “primeiro se tenha vencido”;
57- Nestes termos, considera a aqui Recorrente, que bem esteve ao imputar o valor em dívida ao Contrato de Locação Financeira Mobiliária n.º ...52-000-01-7, no qual se verificou o vencimento de rendas em primeiro lugar;
58- Não obstante o já exposto, refere a Sentença recorrida “Sendo inequívoco que, independentemente do que se consignou relativamente ao contrato nº ...61-000-01, no que concerne aos restantes dois contratos existiam valores em divida, mostrando-se preenchida a condição contratual para o exercício do direito de resolução dos contratos por parte da requerente.”, pelo que, ainda que se pudesse considerar o indeferimento das providências cautelar requeridas em relação a esse Contrato, o que apenas se concede por mera cautela de patrocínio, as mesmas sempre teriam que ser decretadas relativamente aos Contratos n.º ...52-000-01 e n.º ...62-000-01;
59- Assim, não tendo sido liquidada a globalidade dos valores em mora no prazo concedido, a Recorrente procedeu à resolução dos contratos, ao abrigo da cláusula 19.ª, por meio de cartas registadas com aviso de receção, conforme cartas e respetivos avisos de receção juntos à Petição Inicial como Docs. 16, 17 e 18 e cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, sendo que o valor em dívida decorrente do incumprimento dos Contratos supra identificados ascendia, à data, a:
- € 15 031,84 – Leasing n.º ...52-000-01;
- € 41 381,64 – Leasing n.º ...61-000-01;
- € 52 992,05 – Leasing n.º ...62-000-01;
60- Nas referidas cartas de interpelação, a Recorrente apresentou também as livranças dadas em garantia do bom cumprimento dos contratos a pagamento, pelos valores supra identificados;
61- Como bem refere a Sentença recorrida, em análise aos recibos de envio das missivas, verifica-se que, “tais cartas, pese embora estejam datadas de 03/05/2024, foram remetidas apenas em 06/05/2024 e 07/05/2024, tendo sido recebidas umas em 08/05/2024 e outras em 09/05/2024 (nos termos que se provaram).” (sublinhado nosso);
62- Como resultava do artigo 39.º da Petição Inicial, a Recorrida liquidou no dia 13/05/2024, a quantia de € 2.270,69, que foi imputada ao contrato de leasing ...62-000-01, a quantia de € 1.134,30 imputada ao contrato de leasing ...61-000-01 e a quantia de € 304,90, imputada ao contrato de leasing ...52-000-01;
63- Estas quantias, como se verifica, foram já entregues pela Recorrida à Recorrente após a submissão das cartas de resolução dos Contratos e apresentação das livranças a pagamento, e também após a respectiva recepção das cartas pela Recorrida e avalista, que ocorreu a 08/05/2024 e 09/05/2024;
64- Refere a Sentença recorrida “Se assumimos que o valor de € 2.270,69 será irrelevante para aferir da regularidade da resolução, na medida em que foi pago após a comunicação da mesma à requerida, não poderemos deixar de notar, desde logo, que a requerente, aquando da resolução de cada um dos contratos deveria ter feito menção aos montantes que se encontravam então em divida e que justificavam a conclusão de que a requerida se encontrava em incumprimento, dando assim cobertura ao accionamento da clausula 19ª dos respectivos contratos.”, contudo, como ficou já exposto, a imputação não foi efectuada aos valores que se encontravam em mora à data de 19/04/2024, mas sim aos valores em dívida globais, resultantes da resolução dos contratos;
65- Decorria do n.º 1 do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, referente ao regime jurídico do Contrato de Locação Financeira, que “A mora no pagamento de uma prestação de renda por um prazo superior a 60 dias permite ao locador resolver o contrato, salvo convenção em contrário a favor do locatário.”;
66- Esta disposição foi revogada Decreto-Lei n.º 285/2001, de 03/11, aplicando-se agora o disposto no artigo 17.º “O contrato de locação financeira pode ser resolvido por qualquer das partes, nos termos gerais, com fundamento no incumprimento das obrigações da outra parte, não sendo aplicáveis as normas especiais, constantes de lei civil, relativas à locação.”;
67- Ora, a regra geral em termos de incumprimento é a que resulta n.º 2 do artigo 801.º do Código Civil "tendo a obrigação por fonte um contrato bilateral, o credor, independentemente do direito à indemnização, pode resolver o contrato e, se já tiver realizado a sua prestação, exigir a restituição dela por inteiro";
68- A resolução deve ser feita por declaração à outra parte, conforme resulta do n.º 1 do artigo 436.º do Código Civil, podendo as partes, num contrato de locação financeira, acordar expressamente os termos da respectiva resolução, como disposto no n.º 1 do artigo 432.º do Código Civil;
69- Como se depreende do conteúdo da Cláusula em apreço, não se encontra fixado contratualmente um prazo para a interpelação admonitória, devendo, para o efeito, ser concedido prazo que se considere razoável;
70- A Recorrente concedeu para o efeito o prazo de 10 dias à Recorrida e avalista para regularização dos valores em mora, em momento prévio à declaração de resolução dos contratos;
71- Tendo posteriormente procedido à resolução dos contratos e apresentação das livranças a pagamento, foi novamente concedido prazo de 10 dias para liquidação dos valores integrais em dívida, sob pena de acionamento das garantias concedidas e cobrança pela via judicial;
72- Cumpre ainda relevar, que as cartas a comunicar os valores em mora, bem como, as cartas de resolução contratual submetidas à Recorrida e avalista eram claras no seu conteúdo e consequência do incumprimento;
73- Não obstante terem ficado gorados os argumentos invocados pela Recorrida no que respeita às razões pelas quais não procedeu à liquidação dos valores em dívida, debruçou-se a douta Sentença sobre a validade do prazo de 10 dias concedido e se o mesmo poderá ser considerado “razoável”;
74- Mais uma vez se reitera, que foi concedido prazo de 10 dias em dois momentos distintos: - Relativamente às cartas a comunicar os valores em mora decorrentes do incumprimento dos Contratos, submetidas a 19/04/2024 e recepcionadas pela Recorrida e avalista a 22/04/2024 e 23/04/2024, foi concedido prazo de 10 dias para regularização dos valores em mora; - Quanto às cartas a comunicar a resolução dos contratos e nas quais se procedeu à apresentação das livranças a pagamento, submetidas a 06/05/2024 e recepcionadas pela Recorrida e avalista a 08/05/2024 e 09/05/2024, foi novamente concedido o prazo de 10 dias para liquidação dos valores em dívida, sob pena de prossecução da cobrança pela via judicial;
75- Mais, entre a recepção pela Recorrida e avalista das cartas de interpelação a solicitar a regularização dos valores em mora e a submissão das missivas de declaração de resolução dos contratos, decorreram, no mínimo 14 ou 15 dias, dependendo se a Recorrida ou avalista receberam as missivas a 22/04/2024 ou a 23/04/2024, respectivamente;
76- O prazo concedido deve ter-se como perfeitamente razoável, permitindo à Recorrida contactar a Recorrente, se assim pretendesse, de forma a indicar previsão para regularização dos valores em dívida, caso não lhe fosse possível a liquidação integral no decurso desse prazo;
77- Já no que respeita às cartas a comunicar a resolução dos Contratos e a apresentar as livranças a pagamento, não obstante o prazo de 10 dias conferido, com indicação do vencimento das livranças a 13/05/2024, a ora Requerente apenas deu entrada do competente requerimento executivo a 26/06/2024, que deu origem ao processo n.º 12802/24.8T8PRT, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Execução do Porto, Juiz 5;
78- Entre o envio das cartas de interpelação a comunicar a resolução dos contratos e a apresentar as livranças a pagamento e a apresentação de requerimento executivo, decorreram 44 dias;
79- Por sua vez, a presente providência cautelar apenas deu entrada a 10/09/2024, ou seja, 123 dias após submissão das cartas de 06/05/2024;
80- Observa-se assim um lapso de tempo considerável entre a submissão das cartas de interpelação e a cobrança pela via judicial, culminando com a apresentação do presente procedimento cautelar;
81- Sucede que, a Sentença recorrida, salvo o devido respeito, tece considerações quanto à razoabilidade do prazo face aos valores em dívida, mas é omissa quando à justificação de prazo que se poderia considerar razoável e sob que critérios deve ser apreciado essa razoabilidade;
82- Num momento inicial, considera o Tribunal a quo que o prazo de 10 dias será, em regra, razoável, passando depois a mencionar as consequências gravosas para a Recorrida que afastariam a admissibilidade desse mesmo prazo, as quais apenas seriam toleráveis num quadro de incumprimento reiterado;
83- Ora, resulta da própria Sentença recorrida como facto dado como não provado “d) A requerida pagou sempre as rendas anteriores nos respectivos prazos de vencimento, sem quaisquer atrasos.”;
84- Assim sendo, se existiram situação de mora anteriores, não compreende a Recorrente a conclusão do Tribunal a quo ao considerar o prazo concedido como não razoável, desconsiderando a aplicação do próprio critério utilizado para aferir a razoabilidade;
85- Com efeito, na decisão em apreço, o Tribunal a quo desconsiderou os depoimentos produzidos em sede de audiência de julgamento, tendo a testemunha Sr. BB afirmado “ter a razão de ciência própria de quem interveio directamente na feitura e acompanhamento dos contratos, foi descrevendo em que termos começaram a existir atrasos anteriores nos pagamentos, inclusive relativamente a um outro contrato de conta corrente.”;
86- Também a testemunha Sr. AA afirmou “ser o responsável financeiro de uma outra empresa com o mesmo sócio e gerente, integrando o mesmo “grupo”, na parte em que foi relatando ser do seu conhecimento que as três empresas de tal grupo (incluindo a requerida) a dada altura começaram a ter problemas de tesouraria.”;
87- Como anteriormente exposto, o n.º 1 do artigo 16.º do Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, previa a possibilidade da resolução do contrato pelo locador caso o locatário incorresse em mora no pagamento de uma prestação de renda por um prazo superior a 60 dias, tendo esta disposição sido revogada pelo artigo 5.º, do Decreto-Lei n.º 285/2001, de 3 de Novembro, resultando do seu preâmbulo que “A experiência colhida da aplicação do regime jurídico do contrato de locação financeira, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 149/95, de 24 de Junho, tem vindo a demonstrar que a disciplina de certos aspectos desse contrato, hoje regulada por normas imperativas, deve ser regulada pelas regras gerais de direito, quando as partes, no exercício da liberdade de conformação do conteúdo negocial, não estabeleçam as cláusulas contratuais que melhor se acomodem aos objectivos que visam prosseguir.”;
88- Após esta alteração legislativa, passou a ser prática usual a aposição de uma Cláusula que permite ao Locador resolver o contrato por falta de pagamento de uma prestação de renda, como é exemplo a Cláusula 19.º dos Contratos em apreço;
89- Refira-se ainda, que a Cláusula aposta nos Contratos não se reporta a um incumprimento genérico das obrigações globais impendentes sobre a Locatária, bem ao contrário, é consubstanciada pelo incumprimento de uma obrigação bem determinada e concreta que incumbe à Locatária, nomeadamente, o incumprimento pontual do pagamento das rendas, que se verificou no presente caso;
90- O n.º 1 do artigo 808.º do Código Civil, determina que o credor deve fixar um prazo adicional ou suplementar para que o devedor realize a prestação e que esse prazo deve ser razoável;
91- A interpelação admonitória deve conter três elementos:
a) a intimação para o cumprimento;
b) a fixação de um termo peremptório para o cumprimento;
c) admonição ou a cominação (declaração admonitória) de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida se não se verificar o cumprimento dentro daquele prazo;
92- Como se constata, as cartas de interpelação remetidas preenchem os requisitos indicados, encontrando-se nas mesmas a indicação dos valores em mora, intimação para a sua regularização, fixação de um prazo para a respectiva regularização e cominação de que a obrigação se terá por definitivamente incumprida caso não fosse regularizada no prazo indicado;
93- Porém, o legislador não define o que se entende por prazo razoável a conceder ao devedor para cumprimento da obrigação;
94- Estamos perante um conceito indeterminado, sendo impossível fixar um prazo legal certo para a generalidade das situações moratórias, pela compreensível razão de que esse prazo não pode ser sempre o mesmo, variando de acordo com as circunstâncias de cada caso concreto, sendo que, na presente situação, estamos perante uma interpelação admonitória em que foram concedidos 10 dias para regularização da situação de mora;
95- Não só decorreram os 10 dias concedidos nas primeiras missivas de interpelação, que foram recepcionadas pela Recorrida e avalista a 22/04/2024 ou 23/04/2024, como as missivas de resolução contratual só foram submetidas a 06/05/2024, ou seja, após 14 ou 15 dias da recepção das primeiras interpelações;
96- A definição de razoabilidade do prazo dependerá da ponderação deixada a cargo do credor, ora Recorrente, já que é este quem fixa o respectivo prazo, sujeitando-se, eventualmente, a posterior escrutínio do Tribunal;
97- Ora, como se compreende no presente caso, a prestação devida pela Recorrida era referente aos valores em mora decorrentes do Contrato, sendo, como admitido pela Sentença recorrida, valores que não eram excessivamente elevados, nem uma prestação que se pudesse configurar como de especial complexidade;
98- O prazo concedido, salvo o devido respeito, era idóneo a permitir à Recorrida o seu cumprimento, inserindo-se até, num quadro de reiterado incumprimento e probabilidade séria de futuros incumprimentos, face aos problemas de tesouraria reportados, como decorreu do depoimento das testemunhas em sede de audiência de julgamento;
99- Salvo o devido respeito, não se verifica qualquer violação das regras da boa-fé e, em conformidade, o prazo fixado pela Recorrente mostra-se como razoável para o cumprimento da obrigação ou, pelo menos, para que a Recorrida pudesse apresentar proposta de pagamento à Recorrente, o que não sucedeu no período que intermediou o envio das primeiras missivas até à resolução contratual;
100- Desta forma, face aos elementos probatórios referenciados, entende a aqui Recorrente, que se impunha uma decisão diferente do Tribunal a quo quanto à validade da resolução dos Contratos, desde logo porque o prazo deve ser considerado razoável à luz do próprio critério indicado na Sentença recorrida, ou seja, a existência de incumprimentos anteriores, que se encontram confirmados pelos extratos em anexo às cartas de interpelação, juntas como Docs. 13, 14 e 15, bem como, foram estes incumprimentos referidos nos depoimentos das testemunhas Sr. BB e Sr. AA;
101- Face ao exposto, deverá o facto não provado em f) ser eliminado do acervo da factualidade dada como não provada na Sentença recorrida, devendo o mesmo passar a constar da factualidade provada, face aos indícios claros de que a Recorrente cumpriu os deveres de informação decorrentes do Regime das Cláusulas Contratuais Gerais, bem como, deverá ser dado como provada a existência de incumprimentos anteriores, os quais foram referidos pelas testemunhas em sede de audiência de julgamento, o que muito respeitosamente se requer, devendo ser dado provimento ao presente recurso, revogando- se a douta Sentença recorrida.
Nestes termos e nos melhores de Direito, que V. Exas. Mui doutamente suprirão, deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se a douta sentença recorrida, que deverá ser substituída por outra que julgue procedente o Procedimento Cautelar em apreço e decrete as providências requeridas.
A requerida não apresentou contra-alegações.
O recurso foi admitido como de apelação por despacho proferido a 21 de Maio de 2025 [referência nº 469020876], a subir de imediato, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
No exame preliminar determinou-se a alteração do efeito atribuído ao recurso, fixando-se-lhe efeito suspensivo nos termos da alínea d) do nº 3 do artigo 647º do Código de Processo Civil.

Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.

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II - Fundamentação
Como é sabido, o teor das conclusões que o recorrente extrai da motivação que apresenta, onde sintetiza as razões da sua discordância com o decidido e resume o pedido (nº 4 do artigo 635º e artigos 639º e 640º, todos do Código de Processo Civil), delimita o objecto do recurso e fixa os limites do horizonte cognitivo do Tribunal Superior, sem prejuízo das questões que devem ser conhecidas oficiosamente.
Assim, atentas as conclusões da recorrente, mostram-se colocadas à apreciação deste tribunal as seguintes questões, enunciadas por ordem de precedência lógico-jurídica:
A) A impugnação da decisão sobre a matéria de facto;
B) A imputação do pagamento parcial de € 484,75;
C) A exclusão da cláusula 19ª dos contratos em apreço ao abrigo do disposto no artigo 8º do regime das cláusulas contratuais gerais;
D) A densificação, no caso, do conceito «prazo razoável» estabelecido no nº 1 do artigo 808º do Código Civil.
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Delimitado o objecto do recurso, importa conhecer a factualidade em que assenta a decisão impugnada.
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Factos Provados
(transcrição, apenas com a rectificação do ponto 25- da matéria de facto provada, pelos motivos que nesse ponto se indicam):
1- A requerente Banco 1..., S.A., Sucursal Em Portugal, em 13 de Dezembro de 2021, assumindo a qualidade de locadora e a requerida A... Lda., assumindo a qualidade de locatária, através de documento particular, declararam celebrar o contrato de locação financeira mobiliária (leasing) com o n.º ...52-000-01-7, nos termos que resultam do documento nº 1 junto com a petição inicial e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
2- No referido documento, a requerente, declarou, como locadora, dar à requerida, em locação financeira, o furgão, da marca Renault, Modelo ..., N.º de série ...97, com a matrícula ..-..-PP, fornecido pela entidade B..., S.A.
3- O preço do referido veículo ascendia a € 23.712,60, acrescido de IVA à taxa legal de 23%, no valor de € 5.453,90, perfazendo o valor de € 29.166,50.
4- A requerente, na qualidade de locadora, facultou a utilização de tal bem à sociedade requerida, tendo ficado acordado o pagamento de 60 rendas mensais, no valor de € 447,99, acrescidos de IVA à taxa de 23%, perfazendo o valor global de € 28.776,47, vencendo-se a primeira renda em 13/12/2021 e as restantes no dia 13 de cada mês, vencendo-se a última renda em 13/11/2026.
5- Mais acordaram as partes que as prestações acordadas seriam pagas mediante débito na conta de depósitos à ordem titulada pela requerida, com o IBAN ...28.
6- No referido documento foi ainda acordado a possibilidade de aquisição do veículo por parte da requerida, no final do prazo de locação, mediante pagamento à requerente do valor residual acordado de € 1.185,63, acrescidos de IVA à taxa de 23%.
7- Na cláusula 19ª do referido documento ficou a constar, entre o mais, o seguinte:
19. VENCIMENTO ANTECIPADO E RESOLUÇÃO:
19.1. Sem prejuízo de quaisquer outros direitos que lhe sejam conferidos por lei ou pelo presente contrato, o LOCADOR poderá resolver o contrato de locação financeira ou considerar automaticamente vencidas todas as obrigações ora assumidas pelo(s) LOCATARIO(S) e exigir o seu cumprimento imediato sempre que se verifique o incumprimento de qualquer obrigação que para si a resulte do presente contrato.
19.2. O vencimento antecipado decretado pelo LOCADOR (deverá ser comunicado por escrito ao(s) LOCATARI0(S) produzindo efeitos imediatos.
19.3. A falta de cumprimento pontual e atempado de qualquer das obrigações do(s) LOCATARIO(S) resultantes do presente financiamento confere ao LOCADOR a faculdade de considerar automaticamente exigível o cumprimento de quaisquer outras obrigações perante si assumidas pelo(s) LOCATÁRIO(S), ainda que não vencidas.
8- A requerente Banco 1..., S.A., Sucursal Em Portugal, em 25 de Setembro de 2023, assumindo a qualidade de locadora e a requerida A... Lda., assumindo a qualidade de locatária, através de documento particular, declararam celebrar o contrato de locação financeira mobiliária (leasing) com o n.º ...61-000-01, nos termos que resultam do documento nº 5 junto com a petição inicial e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
9- No referido documento, a requerente, declarou, como locadora, dar à requerida, em locação financeira, a carrinha, da marca Iveco, Modelo ..., N.º de série ...06, com a matricula ..-..-UT, fornecido pela entidade C..., S.A.
10- O preço do referido veículo ascendia a € 41.550,00, acrescido de IVA à taxa legal de 23%, no valor de € 9.556,50, perfazendo o valor de € 51.106,50.
11- A requerente, na qualidade de locadora, facultou a utilização de tal veículo à sociedade requerida, tendo ficado acordado o pagamento de 60 rendas mensais, no valor de € 896,61, acrescido de IVA à taxa de 23%, perfazendo o valor global de € 54.212,37, vencendo-se a primeira prestação em 25/09/2023 e as restantes no dia 25 de cada mês, vencendo-se a última renda em 25/08/2028.
12- Mais acordaram as partes que as prestações acordadas seriam pagas mediante débito na conta de depósitos à ordem titulada pela requerida, com o IBAN ...28.
13- No referido documento foi ainda acordado a possibilidade de aquisição do veículo por parte da requerida, no final do prazo de locação, mediante pagamento à requerente do valor residual acordado de € 1,00, acrescido de IVA à taxa de 23%.
14- Na cláusula 19ª do referido documento ficou a constar, entre o mais, o seguinte:
19. VENCIMENTO ANTECIPADO E RESOLUÇÃO:
19.1. Sem prejuízo de quaisquer outros direitos que lhe sejam conferidos por lei ou pelo presente contrato, o LOCADOR poderá resolver o contrato de locação financeira ou considerar automaticamente vencidas todas as obrigações ora assumidas pelo(s) LOCATARIO(S) e exigir o seu cumprimento imediato sempre que se verifique o incumprimento de qualquer obrigação que para si a resulte do presente contrato.
19.2. O vencimento antecipado decretado pelo LOCADOR (deverá ser comunicado por escrito ao(s) LOCATARIO(S) produzindo efeitos imediatos.
19.3. A falta de cumprimento pontual e atempado de qualquer das obrigações do(s) LOCATARIO(S) resultantes do presente financiamento confere ao LOCADOR a faculdade de considerar automaticamente exigível o cumprimento de quaisquer outras obrigações perante si assumidas pelo(s) LOCATÁRIO(S), ainda que não vencidas.
15- A requerente Banco 1..., S.A., Sucursal Em Portugal, em 25 de Setembro de 2023, assumindo a qualidade de locadora e a requerida A... Lda., assumindo a qualidade de locatária, através de documento particular, declararam celebrar o contrato de locação financeira mobiliária (leasing) com o n.º ...62-000-01, nos termos que resultam do documento nº 9 junto com a petição inicial e que aqui se dá por integralmente reproduzido.
16- No referido documento, a requerente, declarou, como locadora, dar à requerida, em locação financeira, a carrinha, da marca Iveco, Modelo ..., N.º de série ...12, com a matricula ..-..-UT, fornecido pela entidade C..., S.A.
17- O preço de tal veículo ascendia a € 51.785,00, acrescido de IVA, à taxa legal de 23%, no valor de € 11.910,55, perfazendo o valor de € 63.695,55.
18- A requerente, na qualidade de locadora, facultou a utilização de tal veiculo à sociedade requerida, tendo ficado acordado o pagamento de 60 rendas mensais, no valor de € 1.117,47, acrescido de IVA à taxa de 23%, perfazendo o valor global de € 67.521,12, vencendo-se a primeira prestação em 25/09/2023 e as restantes no dia 25 de cada mês, vencendo-se a última renda em 25/09/2028 e a última renda em 25/08/2028.
19- Mais acordaram as partes que as prestações acordadas seriam pagas mediante débito na conta de depósitos à ordem titulada pela requerida, com o IBAN ...28.
20- No referido documento foi ainda acordado a possibilidade de aquisição do veículo por parte da requerida, no final do prazo de locação, mediante pagamento à requerente do valor residual acordado de € 1,00, acrescido de IVA à taxa de 23%.
21- Na cláusula 19ª do referido documento ficou a constar, entre o mais, o seguinte:
19. VENCIMENTO ANTECIPADO E RESOLUÇÃO:
19.1. Sem prejuízo de quaisquer outros direitos que lhe sejam conferidos por lei ou pelo presente contrato, o LOCADOR poderá resolver o contrato de locação financeira ou considerar automaticamente vencidas todas as obrigações ora assumidas pelo(s) LOCATARIO(S) e exigir o seu cumprimento imediato sempre que se verifique o incumprimento de qualquer obrigação que para si a resulte do presente contrato.
19.2. O vencimento antecipado decretado pelo LOCADOR (deverá ser comunicado por escrito ao(s) LOCATARIO(S) produzindo efeitos imediatos
19.3. A falta de cumprimento pontual e atempado de qualquer das obrigações do(s) LOCATARIO(S) resultantes do presente financiamento confere ao LOCADOR a faculdade de considerar automaticamente exigível o cumprimento de quaisquer outras obrigações perante si assumidas pelo(s) LOCATÁRIO(S), ainda que não vencidas.
22- Declarando estar em representação da requerente, foram enviadas cartas pela D... – Sociedade de Advogados. R.L., em 19/04/2024, a CC e à requerida, para as moradas ali constantes, com o teor que resulta do documento nº 13 junto com a petição inicial, tendo tais cartas sido recebidas em 22/04/2024.
23- Declarando estar em representação da requerente, foram enviadas cartas pela D... – Sociedade de Advogados. R.L., em 19/04/2024, a CC e à requerida, para as moradas ali constantes, com o teor que resulta do documento nº 14 junto com a petição inicial, tendo a carta remetida para a morada que consta do contrato (Rua ..., ... ...) sido recebida em 23/04/2024 e as restantes em 22/04/2024.
24- Declarando estar em representação da requerente, foram enviadas cartas pela D... – Sociedade de Advogados. R.L., em 19/04/2024, a CC e à requerida, para as moradas ali constantes, com o teor que resulta do documento nº 15 junto com a petição inicial, tendo a carta remetida para a morada que consta do contrato (Rua ..., ... ...) sido recebida em 23/04/2024 e as restantes em 22/04/2024.
25- A requerida pagou o montante de € 484,75, no dia 19/04/2024, tendo ainda pago, no dia 13/05/2024, as quantias de € 2 270,69, € 1 134,30 e € 304,90 [rectificando-se este ponto da matéria de facto provada, assente por acordo, atento o alegado no artigo 39º da petição inicial (e re-afirmado na conclusão 62ª do recurso), expressamente aceite no artigo 53º da oposição – artigo 614º do Código de Processo Civil].
26- Declarando estar em representação da requerente, foram enviadas cartas pela D... – Sociedade de Advogados. R.L., datadas de 03/05/2024, mas remetidas apenas em 07/05/2024, a CC e à requerida, para as moradas ali constantes, com o teor que resulta do documento nº 16 junto com a petição inicial, tendo a carta remetida para a morada que consta do contrato (Rua ..., ... ...) sido recebida em 09/05/2024 e as restantes em 08/05/2024, tendo ali sido declarada a resolução e o vencimento antecipado do contrato n.º ...52-000-01-7.
27- Declarando estar em representação da requerente, foram enviadas cartas pela D... – Sociedade de Advogados. R.L., datadas de 03/05/2024, mas remetidas apenas em 06/05/2024, a CC e à requerida, para as moradas ali constantes, com o teor que resulta do documento nº 17 junto com a petição inicial, tendo a carta remetida para a morada que consta do contrato (Rua ..., ... ...) sido recebida em 08/05/2024 e as restantes em 07/05/2024, tendo ali sido declarada a resolução e o vencimento antecipado do contrato n.º ...61-000-01.
28- Declarando estar em representação da requerente, foram enviadas cartas pela D... – Sociedade de Advogados. R.L., datadas de 03/05/2024, mas remetidas apenas em 06/05/2024, a CC e à requerida, para as moradas ali constantes, com o teor que resulta do documento nº 18 junto com a petição inicial, tendo a carta remetida para a morada que consta do contrato (Rua ..., ... ...) sido recebida em 08/05/2024 e as restantes em 07/05/2024, tendo ali sido declarada a resolução e o vencimento antecipado do contrato n.º ...62-000-01.
29- A requerida ainda não entregou à requerente os veículos acima identificados.
30- A requerente procedeu ao cancelamento dos registos de locação financeira averbados em nome da requerida.
31- As cartas acimas referidas não se fizeram acompanhar de qualquer procuração outorgada pela requerente a conferir poderes de representação à sociedade de advogados acima referida.
32- A requerida instaurou um processo especial de revitalização, no qual foi proferido, em 04/10/2024, o despacho a que se refere o nº 5 do artigo 17º-C do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
33- Os documentos referidos em 1), 8) e 15) foram assinados por CC, por si e na qualidade de gerente da requerida A... Lda., tendo o mesmo rubricado todas as folhas, estando sua assinatura reconhecida por advogado.
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Factos Não Provados (transcrição):
a) porque as cartas acima identificadas foram remetidas pela mencionada sociedade de advogados, a requerida ficou com dúvidas sobre essas notificações que lhe foram dirigidas;
b) o gerente da requerida não entendeu que o não pagamento solicitado nas cartas referidas em 22- a 24- acarretaria a resolução dos contratos;
c) a Requerida é uma pequena empresa, com um único gerente que pode movimentar a conta bancária e este está, muitas vezes, no estrangeiro em trabalho;
d) a requerida pagou sempre as rendas anteriores nos respectivos prazos de vencimento, sem quaisquer atrasos;
e) as cartas referidas em 26- a 28- foram todas enviadas a 03/05/2024, sem prejuízo do que se provou quanto à data que figura nas cartas;
f) a requerente explicou ao gerente da requerida, CC, o teor da cláusula 19ª mencionada em 7-, 14- e 21-, nomeadamente que a falta de pagamento de qualquer montante, por muito diminuto que fosse, implicaria a resolução do contrato;
g) em que termos a requerente imputou os pagamentos referidos em 25-.
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A)
A recorrente questiona o juízo probatório que fundou a inclusão do ponto f) na matéria de facto não provada [a requerente explicou ao gerente da requerida, CC, o teor da cláusula 19ª mencionada em 7-, 14- e 21-, nomeadamente que a falta de pagamento de qualquer montante, por muito diminuto que fosse, implicaria a resolução do contrato], entendendo que deve ingressar no elenco dos factos provados.
E, como meios de prova que, na sua perspectiva, impõem [nº 1 do artigo 662º do Código de Processo Civil] decisão diversa da proferida, indica:
- os contratos de locação financeira juntos com o requerimento inicial, os 3 reconhecidamente assinados pelo gerente da requerida em momentos temporais distintos – distando mais de 1 ano e 6 meses entre a assinatura do primeiro contrato e a assinatura do último;
- a inexistência de qualquer elemento que indicie ter a recorrente em algum momento incumprido os deveres de informação que lhe incumbiam;
- a clareza e linearidade da cláusula em questão, de sentido razoavelmente imediato para qualquer normal contraente;
- o depoimento da testemunha AA, em concreto na parte em que este afirma que o incumprimento que motivou a comunicação de resolução dos contratos pela recorrente teve origem em dificuldades de tesouraria da requerida, e não no desconhecimento quanto ao sentido e alcance de qualquer cláusula contratual.
Com todo o devido respeito, a alegação da recorrente, nesta parte, encerra sucessivos equívocos, designadamente quanto ao sentido e alcance do regime fixado no Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro.
Mas vejamos.
Em primeiro lugar, a recorrente parece não atentar na óbvia e essencial distinção entre dever de comunicação [artigo 5º do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro] e dever de informação [artigo 6º do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro], tratando-os conjunta e indiferenciadamente [quando a lei sistematicamente os distingue – cfr alíneas a) e b) do artigo 8º do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro].
O dever de comunicação consubstancia-se na obrigação de comunicar à contraparte a mera existência do concreto clausulado que regulará o relacionamento e desenvolvimento contratual [«O dever de comunicação das cláusulas contratuais constante do artigo 5º do Decreto-lei nº 466/85 de 25 de Outubro destina-se a que o aderente conheça antecipadamente o conteúdo contratual, isto é, as cláusulas a inserir no negócio» - acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18 de Abril de 2006, processo nº 06A818, disponível em www.dgsi.stj.pt/]; o dever de informação antes incide sobre o esclarecimento do sentido e alcance das concretas cláusulas cuja existência deverá ter sido previamente comunicada.
E por isso se compreende que o dever de comunicação se dirija a todas as cláusulas, sob pena de exclusão do concreto contrato; enquanto o dever de informação, que pressupõe possuir o aderente a diligência e a inteligência próprias do cidadão médio ou comum, designadamente quanto à capacidade de compreensão do efectivo conteúdo da vinculação que está a assumir, antes apenas incide sobre os aspectos contratuais cuja aclaração se justifique à luz de um critério de normalidade, neles se incluindo aqueles sobre os quais o aderente solicite esclarecimentos razoavelmente aceitáveis.
Tudo isto tendo como pano de fundo, obviamente, a constatação do desnível de capacidade [económico-financeira, designadamente] entre 2 contraentes, potenciador da contracção da real liberdade e autonomia do mais fraco, e tentando garantir a este último o adequado e devido esclarecimento quanto ao significado da vinculação a que adere.
No caso dos autos obviamente não está em causa a comunicação da mera existência da cláusula 19ª dos contratos em presença, mas antes o esclarecimento quanto ao seu concreto significado.
Logo, a assinatura dos contratos pelo gerente da recorrida [independentemente se no mesmo momento temporal ou com uma distância de meses ou anos entre si] apenas nos diz que, razoavelmente, o aderente ficou a saber da existência do clausulado, designadamente da cláusula 19ª – mas não, obviamente, que ficou esclarecido quanto ao seu conteúdo, designadamente aceitando que a falta de pagamento de qualquer montante, por muito diminuto que fosse, implicaria a resolução do contrato.
Em segundo lugar, notoriamente irrelevante é que no processo inexistam elementos que indiciem o incumprimento dos deveres de comunicação e/ou informação por parte da recorrente – já que, no que respeita ao concreto facto em análise, o que se indaga é da prestação de esclarecimentos, ou seja, do cumprimento, e não do seu oposto.
Continuando, de todo incompreensível surge a ligação estabelecida pela recorrente entre o não pagamento das rendas mensais pela recorrida e o (des)conhecimento do sentido jurídico de determinada cláusula – que a recorrida não pagou no momento para o efeito contratualmente fixado constitui um facto, independentemente do que o motivou.
Coisa diversa será definir as consequências a extrair desse não pagamento, seja à luz do clausulado, seja à luz das regras legais imperativas e supletivas aplicáveis.
E daí obviamente decorre que a causa do não pagamento é absolutamente irrelevante quanto a saber se a recorrida razoavelmente ficou ciente do sentido de determinada cláusula [repete-se, a 19ª] no momento da outorga dos contratos.
Por último, a natureza supostamente clara e linear da cláusula 19ª seguramente relevará quanto a saber se era exigível impor à recorrente a prestação de qualquer esclarecimento e informação ao gerente da recorrida sobre as hipóteses que tal cláusula pretendia regular, bem como quanto às soluções e consequências que estabelecia, ou se, pelo contrário, seria razoável e normal esperar que o gerente da recorrida, utilizando de mediana diligência, inteligência e discernimento, pela mera leitura do clausulado sem dúvida se aperceberia que o não pagamento de seja que quantia fosse [designadamente € 1,00] conferiria à recorrente o direito à resolução dos contratos.
No entanto, e com todo o devido respeito, a concreta redacção da cláusula 19ª é óbvia e notoriamente indiferente quanto a saber se sobre ela algum esclarecimento foi em concreto solicitado ou de facto prestado – e é apenas quanto a esse plano de facto que o ponto f) da matéria de facto não provada se refere.
De tudo o que antecede facilmente resulta que da própria alegação da recorrente resulta, independentemente de ser ou não exigível a prestação de esclarecimentos quanto ao sentido e alcance da cláusula 19ª, que em concreto não foram prestados quaisquer esclarecimentos à recorrida sobre essa cláusula 19ª [veja-se o teor da conclusão 12ª do recurso, que nessa parte reproduz o teor do artigo 101º do requerimento de 28 de Outubro de 2024 (referência nº 40514749) - permaneceu disponível para qualquer esclarecimento quanto ao conteúdo das cláusulas contratuais, o que nunca lhe foi solicitado (sublinhado nosso)].
Pelo que não foi produzido meio de prova que imponha decisão diversa da proferida.
Nesta parte improcede o recurso.

B)
Recorrente e recorrida, a 13/12/2021 e 25/09/2023, celebraram 3 contratos de locação financeira mobiliária, pelos quais a recorrida se obrigou, entre o mais, a pagar as quantias mensais de € 447,99, € 896,61 e € 1 117,47 [a que acresceria IVA] – pontos 1- a 21- da matéria de facto provada.
A 18 de Abril de 2024, das prestações mensais a que a recorrida se vinculara, mostravam-se em dívida os valores de € 1 134,35, € 221,14 e € 500,12, num total de € 1865,61 [matéria expressamente alegada pela recorrente, não impugnada pela recorrida], motivo pelo qual a recorrente, no dia subsequente, 19 de Abril de 2024, à recorrida remeteu 3 cartas, uma referente a cada contrato, exigindo o pagamento e advertindo que, se a dívida não fosse satisfeita no prazo de 10 dias, procederia à resolução dos 3 contratos [pontos 22- a 24- da matéria de facto provada].
Mas nesse mesmo dia 19 de Abril de 2024, data da expedição da interpelação, a recorrida entregou à recorrente a quantia de € 484,75 [ponto 25- da matéria de facto provada], valor notoriamente insuficiente para assegurar o pagamento dos valores em dívida emergentes dos 3 contratos, não se tendo apurado [melhor, nem sequer houve alegação] qualquer declaração de imputação de pagamento feita pela recorrida.
O tribunal a quo decidiu que este pagamento parcelar deveria ser imputado, em primeiro lugar, ao pagamento da totalidade da dívida emergente de um dos contratos, no valor de € 221,14, purgando a mora relativamente a esse negócio.
A recorrente discorda, defendendo que a quantia de € 484,75 deverá antes ser imputada ao pagamento parcial da dívida de € 500,12, por ser a que possui data de vencimento mais antiga.
Tanto a decisão recorrida como a recorrente invocam a aplicação do regime supletivo fixado no artigo 784º do Código Civil, que assim dispõe - se o devedor não fizer a designação da dívida a que o cumprimento se refere, deve este imputar-se na dívida vencida; entre várias dívidas vencidas, na que oferece menor garantia para o credor; entre várias dívidas igualmente garantidas, na mais onerosa para o devedor; entre várias dívidas igualmente onerosas, na que primeiro se tenha vencido; se várias se tiverem vencido simultaneamente, na mais antiga em data.
Não havendo dúvida que os 3 contratos apresentavam dívidas vencidas igualmente garantidas para o credor, a discordância reside na definição do que seja a mais onerosa para o devedor – o tribunal a quo decidiu que seria a de € 221,14; a recorrida entende que as 3 dívidas seriam igualmente onerosas, na medida em que, defende, as «consequências resultantes da resolução são similares» [conclusões 53ª a 55ª do recurso].
Também aqui, com todo o devido respeito, a recorrente labora em notório equívoco.
Isto porque defende que a maior ou menor onerosidade da dívida deve ser aferida em abstracto, e não atendendo ao concreto interesse do devedor.
Repetem-se e sublinham-se as palavras do Prof. Almeida Costa a este propósito citado pelo tribunal a quo - a onerosidade (…) das dívidas (…) terá de ser apreciada pelo tribunal segundo as circunstâncias concretas de cada caso. Entre várias dividas, considera-se mais pesada para o devedor aquela cuja extinção lhe traga maiores vantagens [”Direito das Obrigações”, Coimbra Editora, 2001, página 956; esta é, também, a pacífica jurisprudência dos nossos tribunais superiores – cfr, por todos, o decidido pelo Tribunal da Relação do Porto no seu acórdão de 27 de Janeiro de 2022, processo nº 533/20.2T8FLS.P1, disponível em www.dgsi.jstj.pt].
Ora, e dir-se-á tratar-se de evidência, a utilização da quantia de € 484,75 para extinguir a totalidade do valor em dívida no âmbito de um determinado contrato é notoriamente, no caso concreto, a que traz as maiores vantagens à recorrida, na medida em que imediatamente extingue a possibilidade de resolução de um dos contratos [assim evitando perder a sua posição de locatária e todos os valores nesse âmbito anteriormente entregues], ao contrário do que sucede no caso da solução defendida pela recorrente.
Mais uma vez, é claro não assistir razão à recorrente.
E daqui linearmente decorre que desde logo quanto ao contrato de locação financeira nº ...61-000-01, a declaração de resolução e o pedido de restituição do veículo automóvel da marca “Iveco”, matrícula ..-..-UT não possui fundamento, daí decorrendo, quanto a este contrato e este veículo, a improcedência da remanescente alegação da recorrente.

C)
Em primeiro lugar cumprirá deixar claro não assistir qualquer razão à recorrente [mais uma vez] quando defende a impossibilidade de em sede de procedimento cautelar serem «decididas as questões materiais respeitantes ao cumprimento dos deveres de informação nos termos das Cláusulas Contratuais Gerais, ou do cumprimento ou incumprimento dos Contratos, bem como, a correspondente licitude ou ilicitude da declaração de vencimento antecipado e preenchimento das Livranças» [conclusão 28ª do recurso] – qualquer decisão cautelar assenta na aparência do direito invocado pelo requerente, e na definição de tal aparência devem ser convocadas todas as normas de direito material que ao caso relevem, incluindo, naturalmente, as normas consagradas no Decreto-lei nº 446/85, de 25 de Outubro.
Dito por outras palavras, o fumus boni iuris deve concretizar-se através da ponderação, sem excepção, de todas as normas jurídicas de direito material vigentes, sem prejuízo, obviamente, de a decisão que venha ser proferida no âmbito da providência nenhuma influência poder ter no julgamento da acção principal a que se refere [nº 4 do artigo 364º do Código de Processo Civil].

Isto posto, como acima se referiu, sobre a recorrente impendia o dever de, antes da celebração do contrato, e de acordo com as circunstâncias, informar a recorrida dos aspectos compreendidos no clausulado no negócio cuja aclaração se justificasse, prestando ainda todos os esclarecimentos razoáveis solicitados [nº 1 e 2 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro].
É que parece pacífico, designadamente entre as partes, que a cláusula em análise possui a natureza de disposição de conteúdo previamente elaborado pela recorrente ou por sua iniciativa, que a recorrida não teve a hipótese de influenciar [nºs 1 e 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro – será escusado recordar que o ónus da prova de que uma cláusula contratual resultou de negociação prévia entre as partes recai sobre quem pretenda prevalecer-se do seu conteúdo (nº 2 do artigo 1º do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro, na redacção dada pelo Decreto-Lei nº 220/95, de 31 de Agosto), constituindo este um caso de inversão do ónus da prova, não tanto decorrente do estabelecimento de presunção legal (já que aquele que pretender a aplicação do regime das cláusulas contratuais gerais nenhum facto terá que demonstrar como base da presunção), mas antes do reconhecimento de um caso de dispensa de prova (cfr nº 1 do artigo 344º do Código Civil): alegada a aplicação do regime das cláusulas contratuais gerais está o alegante dispensado de demonstrar qualquer facto como pressuposto dessa aplicação (designadamente a prévia elaboração das cláusulas, o facto de se destinarem a um número indeterminado de destinatários, ou a inexistência e impossibilidade de negociação anterior à subscrição), competindo antes àquele contra quem a alegação é feita, se pretender obviar à aplicação deste regime, alegar e demonstrar que aquela concreta cláusula resultou de negociação prévia à conclusão do acordo. A recorrida cumpriu o ónus de alegação quanto à cláusula 19ª dos contratos em apreço (artigos 84º e 85º da oposição), e, em contrário, neste ponto (ou seja, o de saber se a cláusula acima referida possui ou não a natureza de cláusula contratual geral), nada sequer alegou a recorrente (artigos 92º a 108º do requerimento apresentado a 28 de Outubro de 2024, referência nº 40514749)].
Constituindo a autonomia privada e a liberdade contratual os princípios-regra de que se deve partir no aferir da força vinculativa do conteúdo de qualquer acordo negocial, de há muito é igualmente pacífico que esse pressuposto dos contraentes como agentes dotados de igual liberdade, capacidade e autonomia muitas vezes constitui simples ficção descolada da realidade, designadamente nos casos em que a superioridade económica ou financeira, ou simplesmente a preponderância numa determinada área no mercado por parte de um dos contraentes, é de tal ordem que ao outro apenas se abre a possibilidade de aceitar ou recusar a celebração de um negócio cujo conteúdo não pode influenciar [e por vezes nem a recusa da outorga na prática lhe está aberta – vejam-se os casos dos monopólios ou quase-monopólios no fornecimento de bens essenciais (água, gás, luz, saneamento, etc)].
E, nessas hipóteses, deve impor-se controlo do conteúdo negocial, não só para protecção do contraente desproporcionadamente mais débil, mas sobretudo em socorro precisamente dos valores da autonomia privada e da liberdade contratual.
Isto porque, bem vistas as coisas, se se deve respeito a uma concreta vinculação contratual em função da liberdade e autonomia reconhecidas aos contraentes, esse respeito não o merece um plano contratual em que a liberdade e autonomia para uma das partes não existem ou estão fortemente limitadas.
É esta a génese do regime consagrado no Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro - «Constitui a liberdade contratual um dos princípios básicos do direito privado. Na sua plena acepção, ela postula negociações preliminares íntegras, ao fim das quais as partes, tendo ponderado os respectivos interesses e os diversos meios de os prosseguir, assumem, com discernimento e liberdade, determinadas estipulações». Mas «a realidade pode, todavia, ser diversa. Motivos de celeridade e de precisão, a existência de monopólios, oligopólios, e outras formas de concertação entre as empresas, aliados à mera impossibilidade, por parte dos destinatários, de um conhecimento rigoroso de todas as implicações dos textos a que adiram, ou as hipóteses alternativas que tal adesão comporte, tornam viáveis situações abusivas e inconvenientes» [preâmbulo do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro].
Não há notícia de à recorrente ter sido dirigido algum pedido de esclarecimento, pelo que notoriamente caímos fora do âmbito de aplicação do nº 2 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro.
Resta saber se, em face das circunstâncias do caso, a concreta redacção escolhida para o artigo 19º do clausulado justificava e impunha a prestação de específicas informações e esclarecimentos à gerência da recorrida quanto ao sentido desta cláusula, ainda que não solicitados – ou seja, se é de aplicar o nº 1 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro.
A questão centra-se na cláusula 19ª dos contratos celebrados, designadamente quanto à possibilidade de imediata resolução dos negócios pela recorrente no caso de qualquer incumprimento contratual, por mínimo que se apresente [recorde-se o teor literal da regra contratual em análise: «Sem prejuízo de quaisquer outros direitos que lhe sejam conferidos por lei ou pelo presente contrato, o locador poderá resolver o contrato de locação financeira ou considerar automaticamente vencidas todas as obrigações ora assumidas pelo locatário e exigir o seu cumprimento imediato sempre que se verifique o incumprimento de qualquer obrigação que para si resulte do presente contrato»].
Concorda-se com o tribunal a quo quando afirma desta estipulação decorrer «uma cláusula resolutiva expressa, passível de conferir à locadora (requerente) a faculdade de declarar a resolução dos contratos, logo que ocorra mora no cumprimento de algumas das prestações acordadas por parte do locatário, dispensando-a da interpelação admonitória prevista no artigo 808º do Código Civil, em ordem a converter a mora em incumprimento definitivo», em tese admissível «(…) por força do princípio da autonomia ínsito no artigo 405º do Código Civil, sem que exista disposição legal imperativa que o impeça».
Ora, como se referiu, a primeira barreira de protecção legal ao aderente é construída a partir da garantia de conhecimento, informação e esclarecimento imposta pelos artigos 5º e 6º do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro, procurando assegurar que em concreto lhe seja razoavelmente possível conhecer o significado e as implicações das cláusulas apresentadas, primeiro passo para a vinculação consciente enquanto concretização da autonomia individual como valor jurídico fundamental.
Pelo que devemos começar por perguntar se, atentas as circunstâncias e contexto em que ao gerente da recorrida foi apresentado o texto do clausulado [designadamente o período de tempo disponibilizado para análise do documento, bem como a concreta capacidade do gerente da recorrida para compreender o significado prático do ali escrito], e o concreto teor deste, era razoavelmente exigível ao aderente que tomasse consciência do sentido e alcance da cláusula 19ª – designadamente permitindo à recorrente destruir o negócio verificado que fosse qualquer tipo de incumprimento da parte da recorrida, sem a concessão de um prazo razoável para purgar a mora.
Claro que, quanto ao aderente, como decorrência do princípio da boa fé na formação dos contratos, sempre se exige o uso da diligência, inteligência e cuidado próprios do cidadão comum, seja na leitura e interpretação do clausulado, seja na solicitação dos esclarecimentos ou informações.
«Porém, essa constatação em caso algum poderá levar a admitir que o predisponente fique eximido dos deveres que o oneram, ou a conceber como legítima uma sua completa passividade na promoção do efectivo conhecimento das cláusulas contratuais gerais e, sobretudo, uma ausência de comunicação destas ao aderente com a antecedência necessária ao conhecimento completo e efectivo, até para que o mesmo possa exercitar o seu dever de diligência, nos apontados termos. Uma tal concepção conduziria à inversão não consentida da hierarquia legalmente estatuída entre os deveres do predisponente e do aderente» [acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13 de Setembro de 2016, processo nº 1262/14.1T8VCT-B.G1.S1, disponível em www.dgsi.jstj.pt].
No caso, simplesmente desconhecemos [por se tratar de matéria nem sequer alegada] a concreta antecedência com que o texto do clausulado foi disponibilizado para análise ao gerente da recorrida, embora pareça resultar da alegação da recorrente [artigo 100º do requerimento de a 28 de Outubro de 2024 (referência nº 40514749) - Os referidos deveres de comunicação e informação foram cumpridos no momento da celebração dos Contratos, isto é, no momento da emissão pela Requerida da declaração que a vincula] que aquele foi confrontado com o texto do clausulado no momento em que assinou os contratos.
Seja como for, indiscutível é que a recorrida celebrou com a recorrente três contratos idênticos relativos a 3 veículos diversos, datando um de 13 de Dezembro de 2021 e os outros dois de 25 de Setembro de 2023, sendo pelo menos razoável ponderar que, relativamente aos contratos celebrados a 25 de Setembro de 2023, a recorrida fundadamente supusesse que o teor do clausulado fosse idêntico ao que já havia subscrito cerca de 1 ano e 9 meses antes.
Apenas sucede que se tem por seguro que ao aderente medianamente diligente, sagaz, capaz e competente, não dotado de particulares conhecimentos na área jurídica, ainda que gerente de uma sociedade comercial, somente será exigível o conhecimento rudimentar de princípios básicos enformadores do ordenamento jurídico enquanto regras fundamentais ordenadoras da vida em comunidade que já se fundiram na experiência e senso comuns [por exemplo; cada um é livre de assumir as obrigações que quiser; os contratos são para cumprir; quem estraga paga; o direito de um começa onde caba o direito de outro; ninguém pode ser julgado 2 vezes pelo mesmo crime; etc], além de noções genéricas quanto ao equilíbrio de interesses que resulta da regulamentação legal relativa a certo tipo de situações jurídicas muito frequentes na vida corrente [por exemplo, quem não cumpre um contrato promessa paga o sinal em dobro; os filhos não podem ser deserdados por simples vontade dos pais; a posição do arrendatário e do trabalhador é legalmente favorecida face ao senhorio e ao empregador; etc].
Ora, entre estas últimas conta-se a ideia da estabilidade das relações jurídicas negociais enquanto opção jurídica fundamental tuteladora da paz social, do que decorre, por princípio, que o simples incumprimento não disponibiliza à contraparte o imediato fim da relação jurídica negocial em cujo quadro o incumprimento surge, antes para tal algo mais se exigindo [esta é a opção fundamental que se encontra na base de variadíssimas concretas soluções legais, como, por exemplo, as que resultam do artigo 292º, do artigo 293º, nº 3 do artigo 442º, do nº 2 do artigo 802º, do artigo 808º, do artigo 830º, do artigo 895º, do artigo 906º, do artigo 907º, do artigo 911º, do artigo 934º, do nº 2 do artigo 981º, do artigo 1048º, do artigo 1083º, dos artigos 1221º e 1222º, todos do Código Civil; do artigo 351º do Código do Trabalho; do artigo 5º da Lei nº 23/96, de 26 de Julho; etc, etc].
A cláusula 19ª dos contratos celebrados entre recorrente e recorrida frontalmente contraria esta regra geral, já que, manifestamente, confere à locadora financeira a possibilidade de imediatamente declarar a resolução do contrato mediante a constatação de um qualquer incumprimento por parte do locatário.
Nada obstará à validade de tal cláusula, desde que se conclua que as partes voluntariamente aderiram a essa solução.
E, para se concluir por essa adesão, obviamente necessário será afirmar que previamente se aperceberam da sua oposição àquele princípio geral estruturante do direito dos contratos.
Logo, por isso sem qualquer dúvida se afirma, juntamente com o tribunal a quo, que a concreta solução contratual pela recorrente escolhida verter na cláusula 19ª dos contratos em presença impunha o alerta ao gerente da recorrida para a divergência da vinculação que estava a assumir face à noção que perpassa a regulamentação geral das relações negociais – ou seja, notoriamente trata-se de um aspecto/solução compreendido na cláusula contratual geral em presença cuja aclaração/esclarecimento plenamente se justificava [nº 1 do artigo 6º do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro].
O que notoriamente não foi feito – para tal obviamente se considerando de todo insuficiente a simples entrega do formulário contendo as cláusulas contratuais na data em que os contratos foram assinados, ainda que um deles tenha sido assinado cerca de 1 ano e 9 meses antes dos restantes dois contratos, pelo simples motivo de não ser exigível ao gerente da recorrida que fizesse uma exegese da cláusula 19ª dos contratos ao ponto de se aperceber de uma solução contratual que literalmente dela não consta [no sentido de não se dizer tratar-se de solução que contraria o princípio geral na matéria], e que apenas resulta notória na sequência da sua ponderação e articulação no quadro das regras civis gerais relativas ao cumprimento e incumprimento.
Concluindo, e também aqui concordando com a decisão recorrida, não estando demonstrado o devido esclarecimento da aderente quanto ao sentido e alcance da cláusula 19ª dos contratos em presença, a solução resulta óbvia dos artigos 5º, 6º e 8º do Decreto-Lei nº 446/85, de 25 de Outubro – por não ser de esperar o seu conhecimento efectivo pela recorrida, deve excluir-se dos contratos celebrados entre recorrente e recorrida a cláusula contratual em apreço, especificamente na solução que confere à recorrente a faculdade de imediatamente declarar a resolução do contrato constatado que esteja o não pagamento de um qualquer valor, designadamente [como no caso] inferior ao de uma única das prestações mensais acordadas [na hipótese, quanto ao contrato nº ...52-000-01-7, mostrava-se em dívida a quantia de € 500,12, enquanto o valor mensal das prestações acordadas ascendia a € 551,08 (IVA incluído); quanto ao contrato nº ...62-000-01, estava em dívida € 1 134,35, enquanto o valor mensal das prestações acordadas ascendia a € 1 374,49 (IVA incluído); quanto ao contrato nº ...61-000-01, já vimos que na data da emissão da declaração de resolução nada se encontrava em dívida].
Também nesta parte improcede o recurso.

D)
Não obstante tudo o que acima ficou dito quanto à razoabilidade da solução contratual de imediatamente conferir à recorrente a possibilidade de resolução dos negócios com fundamento apenas na constatação do não pagamento de uma quantia inferior ao valor mensal das prestações contratadas, a verdade é que a própria recorrente aceitou que esse verdadeiramente não seria um procedimento totalmente adequado ao caso, e por isso concedeu à recorrida um prazo adicional de 10 dias para purgar a mora [pontos 22- a 24- da matéria de facto provada].
Ainda assim, o tribunal recorrido entendeu que, no caso, esse prazo de 10 dias não respeita as normas aplicáveis [face à exclusão da cláusula 19ª, no segmento acima indicado, o nº 1 do artigo 17º do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho, e o nº 1 do artigo 808º do Código Civil], por não ser «razoável», do que a recorrente obviamente discorda [conclusões 73ª a 101ª].
Vejamos.
É claro que «o conceito de prazo razoável ou adequado tem uma natureza indeterminada e carece de preenchimento valorativo. Há necessariamente uma dimensão casuística na apreciação da razoabilidade dos prazos fixados pela autora, devendo atender-se às circunstâncias do caso concreto e à boa fé» [acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23 de Abril de 2024, processo nº 4357/19.1T8LRA.C1.S1, disponível em https://juris.stj.pt/4357%2F19.1T8LRA.C1.S1/c2TLoeYl7qjt0JZnGTnLt_LIjWQ?search=EhE5E714sbSES2PDDLM].
Em primeiro lugar é necessário ter presente que nos movemos no âmbito de contratos de locação financeira [mais propriamente 2 contratos, já que, quanto ao contrato nº ...61-000-01, a total improcedência do recurso decorre já do acima referido em B)], ainda hoje regulados pelo Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei nº 265/97, de 02 de Outubro, pelo Decreto-Lei nº 285/2001, de 03 de Novembro, e pelo Decreto-Lei nº 30/2008, de 25 de Fevereiro, do seu artigo 17º decorrendo a aplicabilidade das regras gerais quanto à possibilidade de resolução do contrato e ao modo de a efectivar.
Regras gerais que, face à exclusão da aplicação da cláusula 19ª, como acima se concluiu em C), não se mostram afastadas por estipulação especial das partes.
Não oferecerá dúvida que para a transformação da mora em incumprimento definitivo é necessária a verificação de alguma das hipóteses previstas no artigo 808º do Código Civil, a que acrescerá, de acordo com doutrina e jurisprudência consolidadas, a recusa antecipada de cumprimento.
Evidentemente, o foco iluminador de todo o conjunto das soluções legais nesta matéria constituirá o interesse do credor na contratação, interesse que em concreto deverá retirar-se da normal função económico-social da correspondente obrigação assumida, do fim a que esta se destina.
A definição legal do contrato de locação financeira permanece imutável desde o início da vigência do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho [locação financeira é o contrato pelo qual uma das partes se obriga, mediante retribuição, a ceder à outra o gozo temporário de uma coisa, móvel ou imóvel, adquirida ou construída por indicação desta, e que o locatário poderá comprar, decorrido o período acordado, por um preço nele determinado ou determinável mediante simples aplicação dos critérios nele fixados].
E no essencial, mantém-se igual à do primeiro diploma que em Portugal definiu o tipo contratual em causa [nº 2 do artigo 2º do Decreto-Lei 135/79, de 18 de Maio].
Cada concreto contrato locação financeira tem na sua origem uma operação tripartida – o locatário, não podendo ou não querendo lançar mão da aquisição de um concreto bem [que, actualmente (desde o Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho), pode ser de equipamento ou de consumo], diligencia pela sua venda por terceiro a uma sociedade de locação financeira, assumindo perante esta a obrigação de pagar uma renda pela utilização que dele se obriga a fazer, abrindo para si a faculdade de adquirir o bem locado cumprido que esteja o plano de rendas acordado.
Portanto, na esfera do contrato de locação verdadeiramente surpreendemos 3 negócios – o de venda do bem pelo terceiro ao locador; o de locação propriamente dita; o de seguro.
Mas, nos 3 negócios, as obrigações reciprocamente assumidas espelham as especificidades do tipo contratual em análise:
- o locador compra o bem, mas é o locatário quem indica o vendedor com quem o locador contrata, escolhe o bem, recebe-o e utiliza-o durante o seu período de vida económica [artigo 1º Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho];
- o locador é o proprietário do bem, mas é o locatário que suporta todas as despesas relativas à importação, registo, transporte, seguro, instalação e reparação do bem locado [artigo 14º Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho];
- é o locatário, que não comprou, quem tem perante o vendedor direito de acção pelos vícios e inadequação da coisa, não lhe estando aberta a possibilidade de a esse título responsabilizar o comprador/locador [artigos 12º e 13º do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho];
- é sobre o locatário que, após a compra, corre o risco de perecimento da coisa [artigo 15º do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho];
- é em benefício do locador que o locatário contrato o seguro destinado a garantir o risco de deterioração ou perda da coisa locada.
Portanto, a locação financeira integra um grupo de negócios [juntamente com o renting, a venda a prestações com reserva de propriedade, certos tipos de mútuo, o lease-back; etc] que tem como causa social o financiamento para aquisição de um bem que desde o início do contrato apenas o locatário tem interesse em usar, representando para o locador financeiro o instrumento jurídico de rentabilização do capital que disponibiliza e pretende ver remunerado.
Ou seja, o nuclear interesse do locador financeiro na contratação reconduz-se à remuneração do capital que afectou à operação, perspectivando recuperar este acrescido do “preço” do dinheiro que é incorporado em cada uma das rendas contratadas.
Consequentemente, estando em causa o interesse no cumprimento de uma obrigação de natureza exclusivamente pecuniária, stricto sensu não existe impossibilidade de cumprimento, pelo que a perda de interesse do locador financeiro no negócio apta a fundar a resolução por incumprimento apenas poderá decorrer da quebra de confiança ínsita ao desrespeito pelo devedor também pelo novo prazo concedido para colocar um fim à mora.
E qual será o prazo suplementar de cumprimento que será razoável fixar, no equilíbrio entre, de um lado, manter o locador financeiro agarrado a um negócio tendo como contraparte alguém que surge já não tão confiável como no início; de outro, não destruir prematuramente as expectativas de manutenção do gozo e eventual aquisição de um bem no qual o locatário é o principal interessado ?
Atentemos nas especialidades do caso – relativamente a cada contrato, o locatário incumpriu o pagamento de quantia inferior ao valor de apenas uma das rendas contratadas.
Como lugar paralelo do sistema, vemos que, no caso da compra e venda a prestações com reserva de propriedade [negócio, como se disse, com função social muito similar à locação financeira], a falta de pagamento de uma só prestação que não exceda a oitava parte do preço nem sequer abre ao financiador a resolução do contrato, solução que encontra fundamento no empenho do legislador em «defender o comprador contra a perigosa sedução do pagamento a prestações e da máquina publicitária dos vendedores, e em atenuar as consequências da desigual condição económica dos contraentes» [Profs. Pires de Lima e Antunes Varela, in “Código Civil Anotado”, volume II, 1986, Coimbra Editora, página 235].
Assim, ponderando o reduzido valor em atraso [designadamente na relação com o valor total de cada negócio], e tendo presente que esse atraso, desde que purgado, é de todo insusceptível de beliscar a integral satisfação do interesse essencial que para o locador financeiro presidiu à decisão de contratar, afigura-se que prazo razoável, no caso, corresponderá ao período de tempo fixado entre 2 das prestações cujo cumprimento foi assumido pelo locatário – 30 dias.
Tendo a recorrente interpelado a recorrida para cumprimento através de cartas remetidas a 19 de Abril de 2024 [pontos 22- a 24- da matéria de facto provada], a 13 de Maio de 2024, dentro desse prazo de 30 dias, a recorrida satisfez integralmente os valores em dívida [ponto 25- da matéria de facto provada], revelando ser merecedora do recuperar da confiança necessária à manutenção da vigência dos contratos.
Do que resulta a falta de fundamento da declaração de resolução enviada pela recorrente também quanto aos contratos nº ...52-000-01-7 e nº ...62-000-01.
Ou seja, de todo não está demonstrada a aparência do direito da recorrente a nesta data reaver da recorrida os veículos automóveis que deu em locação financeira [artigo 21º do Decreto-Lei nº 149/95, de 24 de Junho].
O recurso improcede.
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Sumário – nº 7 do artigo 663º do Código de Processo Civil:
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III- Dispositivo:

Pelo exposto, acordam os Juízes que integram a 3ª secção deste Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao presente recurso, confirmando a decisão proferida em 1ª instância.

Mais se condena o recorrente nas custas do recurso – artigo 527º do Código de Processo Civil.

Notifique.













Porto, 10/4/2025.

António Carneiro da Silva
Isabel Rebelo Ferreira
Isabel Peixoto Pereira