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TELECOMUNICAÇÕES
DADOS DE TRÁFEGO
METADADOS
Sumário
I. Quando se pretenda a obtenção de dados de tráfego respeitantes às telecomunicações – justamente pertinentes à facturação detalhada e localização celular, por isso aptos a fornecerem a posição geográfica do equipamento móvel relacionada com actos de comunicação – conhece aplicação o previsto no nº 2, do artigo 6º, da Lei 32/2008, na redacção conferida pela Lei n.º 18/2024, de 5 de Fevereiro. II. Vale por dizer que tais dados de tráfego, apenas podem ser conservados por força de anterior autorização judicial determinada por formação das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça. III. Perante a ausência de impulso para a conservação da antedita tipologia de dados junto do Supremo Tribunal de Justiça a existência desses dados, salvaguardados pelas operadoras ao abrigo de outras disposições legais e visando distintas finalidades, cumprimento de outras normas legais e com outras finalidades, não autoriza a respectiva utilização na específica sede processual penal. IV. Pelo que os dados de tráfego guardados pelos operadores de comunicação nos termos consentidos pela Lei nº 41/2004, de 18 de Agosto – que regula a conservação de dados pessoais para efeitos de facturação e pagamentos pelo período de 6 meses – não podem conhecer utilização probatória em sede de tramitação processual penal. Finalmente, aos dados em causa – de tráfego – também não é aplicável a Lei 109/2009, de 15/09, dita do Cibercrime, uma vez que apenas estatui quanto aos crimes informáticos, àqueles perpetrados com recurso a um sistema informático ou, finalmente, quando seja necessário recolher prova em suporte electrónico.
Texto Integral
Acordam, em conferência, na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório
1. Nos autos de inquérito em referência, o Ministério Público apresentou no Juízo de Instrução Criminal de Loures – Juiz 2, requerimento com o seguinte teor:
“ II. Com nota de muito urgente, remeta os autos ao Mmo. Juiz de Instrução, bem como o(s) (s) suporte(s) digital(ais), que se mostra(m) na contracapa dos autos, promovendo-se, nos termos do disposto no artigo 188.º, n.º 1 a 4 do Código de Processo Penal, que:
a. (…)
h) Determine, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 187.º, n.º 1, al. a) n.º 4., al. a), 189.º, n.º 2 e 269.º, n.º 1, als. e) e f), todos do Código do Processo Penal; artigo 210.º, n.º 1 e 2, al. b), por referência ao artigo 204.º, n.º 1, al. f) e n.º 2, als. a) e f), ex vi 202.º, al. b), todos do Código Penal; artigo 14.º da Lei 109/2009, de 15 de Setembro; e artigos 18.º, n.º 2, 26.º, n.º 1, 32.º, n.º 4 e 34.º, todos da Constituição da República Portuguesa, à respectiva operadora de telecomunicações que forneça, com urgência, as listagens em formato papel e digital (formato PDF e Excel) de todos os eventos de rede e dados de tráfego – registos completos de todas comunicações efectuadas e recebidas, com indicação dos n.ºs chamados, chamadores e associados e dos correspondentes IMSI’s e IMEI’s, bem como da respectiva localização celular, à hora e à duração de cada uma das comunicações ali descriminadas –, dos últimos 6 (seis) meses a contar da data de resposta ao ofício, dos números de telemóvel correspondentes aos seguintes cartões SIM:
Operadora de Telecomunicações ...
- ..., utilizado por AA;
- ..., utilizado por BB;
- ..., utilizado por CC;
- ..., utilizado por suspeito desconhecido;
- ..., utilizado por suspeito desconhecido, de alcunha DD;
- ..., utilizado por suspeito desconhecido, cunhado de DD;
Operadora de Telecomunicações ...
- ..., utilizado por suspeito desconhecido;
pelas razões aduzidas a fls. 2233 a 2235 do relatório policial, com as quais se concordam, para o qual se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido.
Com efeito, tal diligência mostra-se indispensável para apurar a concreta participação dos aludidos suspeitos na actividade ilícita sob investigação, designadamente, se os suspeitos/números estiveram no local onde ocorreram ilícitos com o mesmo modus operandi, nos quais participaram indivíduos com características físicas semelhantes às dos suspeitos identificados nos presentes autos, nomeadamente, os ocorridos nos passados dias .../.../2024 (que deu origem ao NUIPC 2358/24.7...) e .../.../2024 (que deu origem ao NUIPC 1304/24.2... PBCSC), bem como de outros ainda não apurados e cuja apensação se irá oportunamente determinar, como também o do dia .../.../2025 sob o NUIPC 21/25.0..., cuja apensação já foi determinada.
Na verdade, é nossa convicção que os suspeitos até agora identificados, para além dos que se encontram sob investigação nos presentes autos, praticaram mais roubos, considerando o modus operandi utilizado e as suas características físicas.
Conclui-se assim que, atendendo à tipologia de crime em investigação, só a conjugação de vários meios especiais de obtenção de prova poderá ajudar a perceber toda a actividade criminosa dos mesmos, identificar outros eventuais suspeitos e recolher a prova necessária à descoberta da verdade material.
Como se tem constatado nos autos, a utilização dos meios de investigação tradicionais é manifestamente insuficiente e apenas serviria para alertar ainda mais os autores dos factos, os quais já são por si extremamente alertados e conhecedores das técnicas de investigação criminal, considerando o vasto historial criminoso de alguns deles.
Como acima explanado, importa, pois, proceder à recolha de mais e melhores elementos probatórios susceptíveis de confirmar as suspeitas já existentes no que concerne à actividade ilícita desenvolvida pelos suspeitos e identificar os restantes suspeitos que eventualmente façam parte do grupo criminoso.
Acresce que, existe quanto aos factos sob investigação o perigo real e iminente de que continuem a ser praticados, como tem sucedido, e iludindo demais mecanismos ou instrumentos que permitam habilitar a presente investigação com os respectivos meios de prova.
Assim, atento o tipo de ilícito em causa nos autos e as circunstâncias subjacentes à prática do mesmo, as quais acarretam dificuldades probatórias acrescidas, mormente, o facto dos suspeitos actuarem com rapidez e com os rostos cobertos arrogando-se da qualidade de polícias, em muito dificultando o seu reconhecimento por parte dos ofendidos, é nosso entendimento que é absolutamente imprescindível e de interesse fulcral para o objecto da presente investigação, obter as listagens de tráfego telefónico dos últimos 6 (seis) meses dos números de telefone utilizados pelos suspeitos acima indicados.
(…)
*
Após, diligencie pela remessa/entrega dos autos ao OPC competente para continuação da investigação.
Após, sendo concordante o despacho do Mmo. Juiz de Instrução que vier a recair sobre a antecedente promoção, diligencie pela remessa/entrega dos autos ao OPC competente para continuação da investigação.
*
2. Na sequência de tal requerimento, em .../.../2025, foi proferido o seguinte despacho:
“Requerimento ref. 396630113, ponto h:
Foi publicada em Diário da República a Lei número 18/2024, de 5 de fevereiro, a qual procede à alteração da Lei número 32/2008, de 17 de julho, que transpõe para a ordem jurídica interna a Diretiva 2006/24/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 15 de março, relativa à conservação de dados gerados ou tratados no contexto da oferta de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis ou de redes públicas de comunicações, e da Lei da Organização do Sistema Judiciário, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de agosto.
Regula-se o acesso a metadados referentes a comunicações eletrónicas para fins de investigação criminal, sendo que, como se referiu no ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 7-3-2017, proc. número 1585/16.5PBCSC-A.L1-5, in www.dgsi.pt, “O regime dos artigos 187º a 189º, do CPP, aplica-se aos “dados sobre a localização celular”, obtidos em tempo real e intercepção das comunicações entre presentes, enquanto o consagrado na Lei nº 32/2008, de 17/07, tem como âmbito de aplicação os dados que concernem a comunicações relativas ao passado, ou seja, arquivadas.”
A Lei número 18/2024, de 5 de fevereiro surge na sequência do Acórdão número 800/2023, de 4 de dezembro do Tribunal Constitucional em que se declarou a inconstitucionalidade do artigo 2º do Decreto número 91/XV da Assembleia da República na parte em que se previa a conservação indiscriminada, por parte das operadoras de comunicações, dos dados de tráfego e de localização pelo período de três meses, para fins de investigação criminal.
Actualmente, e de acordo com a norma decorrente do número 2 do artigo 6º da Lei número 32/2008, com as alterações introduzidas pelo novo diploma, os dados de tráfego e localização apenas podem ser objeto de conservação mediante autorização judicial, por parte de uma formação das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça.
Donde decorre que, não tendo havido tal autorização, tais dados, ainda que conservados por qualquer outra razão, não podem ser transmitidos (artigo 9º do mesmo diploma).
No mesmo sentido se pronunciou recentemente o Tribunal da Relação de Lisboa em acórdão relatado por Amélia Carolina Teixeira, proferido no âmbito do processo número 41/24.2JBLSB-A.L1 deste tribunal, donde consta o seguinte sumário:
“I. Considerando que em causa estão dados de faturação detalhada e dados de localização celular, ou seja, dados de tráfego respeitantes às telecomunicações, que se identificam com dados especificados nos artigos 4.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho é inequívoco que tem aplicação o previsto no nº 2 do artigo 6º da mesma Lei, na redação dada pela Lei n.º 18/2024, de 5 de fevereiro.
II. O que significa que em relação aos dados de tráfego a que se reporta a promoção do Ministério Público, apenas podem ser objeto de conservação mediante autorização judicial, por parte de uma formação das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça.
III. Não tendo, no momento em que se previu como necessária e indispensável a conservação dos referidos dados para efeitos de investigação e repressão criminal, sido promovida junto do Supremo Tribunal de Justiça a autorização da sua conservação, tais dados, ainda que conservados pelas operadoras em cumprimento de outras normas legais e com outras finalidades, em particular, os dados de tráfego conservados pelos operadores nos termos consentidos pela Lei nº 41/2004, de 18 de Agosto [onde se prevê a conservação de dados pessoais para efeitos de faturação dos assinantes e pagamento das interligações, durante o período de 6 meses], não podem aqueles ser acedidos e transmitidos [para efeitos investigatórios] como pretende o recorrente.”
Termos em que, e por impossibilidade legal, se indefere o requerido.”
*
3. Inconformado com tal decisão, o Ministério Público veio interpor recurso, apresentando as seguintes conclusões (transcrição):
“III. DAS CONCLUSÕES
Concluindo, dir-se-á, pois, que:
1. No âmbito dos presentes autos investiga-se a prática, entre outros, dos crimes de roubo agravado, p. e p. pelo artigo 210.º, n.ºs 1 e 2, al. b), por referência ao artigo 204.º, n.º 1, al. f) e n.º 2, al. f), ambos do Código Penal, cuja moldura penal vai de 3 a 15 anos de prisão.
2. Por se ter considerado imprescindível para o apuramento da verdade material, por despacho datado de ........ 2025, o Ministério Público requereu ao Mmo. Juiz de Instrução que fosse determinado, nos termos dos artigos 187.º, n.º 1, al. a) e n.º 4, alínea a), 189.º, n.º 2 e 269.º, n.º 1, als. e) e f), todos do Código de Processo Penal, e do artigo 14.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro, a remessa das listagens e respectivas localizações celulares dos números de telemóvel utilizados pêlos suspeitos, relativo ao período dos últimos 6 (seis) meses.
3. Porém, por despacho da mesma data, o Mmo. Juiz de Instrução indeferiu o supramencionado requerimento, alegando, em síntese, impossibilidade legal, uma vez que na sequência da entrada em vigor da Lei n.º 18/2024, de 05.02, que alterou a Lei n.º 32/2008, de 17.07, mais concretamente, o artigo 6.º, n.ºs 2 e 7, a obtenção de tais dados carecia de autorização prévia de conservação por parte do Supremo Tribunal de Justiça.
4. O Ministério Público discorda desse entendimento, porque entende, salvo o devido respeito, que o mesmo efectuou uma interpretação errónea do disposto na Lei.º 18/2024, de 05.02, que alterou a Lei n.º 32/2008, de 17.07, aplicando esta última, em detrimento da conjugação dos diplomas aplicáveis ao caso em apreço, i. e., o Código de Processo Penal, a Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro (doravante, Lei do Cibercrime) e a Lei n.º 41/2004, de 18 Agosto, confundindo, assim, regimes jurídicos totalmente distintos.
5. Considerando a conjugação dos artigos 6.º e 7.º da Lei n.º 41/2004, de 18.08 e do artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26.07, é forçoso concluir que os operadores de comunicações electrónicas têm a faculdade de proceder à conservação dos dados de telecomunicações, nomeadamente, de tráfego e de localização celular, pelo período de 6 (seis) meses, contados após a conclusão da comunicação.
6. De onde se retira que a aludida conservação não é efectuada ao abrigo da Lei n.º 32/2008, de 17.07, razão pela qual a mesma não se aplica quando está em causa esse mesmo período de 6 (seis) meses.
7. A Lei n.º 18/2024, de 05.02 não revogou os artigos 11.º e 14.º da Lei do Cibercrime, nem os artigos 6.º e 7.º da Lei n.º 41/2004, 18.08, nem o artigo 10.º da Lei n.º 23/96, de 26.07, pelo que tais dispositivos legais se encontram em vigor.
8. Pelo que, quando verificados os pressupostos legais dos artigos dos artigos 187.º e 189.º do Código de Processo Penal, os dados de tráfego e de localização podem ser solicitados mediante requerimento do Ministério Público e despacho do Juiz de Instrução, sem estar dependente de pedido prévio de autorização judicial de conservação por parte do Supremo Tribunal de Justiça.
9. Por outro lado, a conservação, por 1 (um) ano (ou seja, por um período superior a 6 (seis) meses), de dados de tráfego e de localização para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves por parte das autoridades competentes, essa sim, apenas pode ser efectuada mediante autorização judicial do Supremo Tribunal de Justiça, nos termos da Lei n.º 32/2008, de 17.07.
10. Em termos práticos, a Lei n.º 32/2008, de 17.07, permite a conservação de dados de tráfego e de localização por mais 6 (seis) meses, para além daqueles que a Lei n.º 41/2004, de 18.08 permite, consubstanciando, no fundo, uma preservação alargada dos mesmos.
11. A conservação de dados de tráfego e de localização, por um período de 6 (seis) meses, ao abrigo da Lei n.º 41/2004, de 18.08, não se encontra ferida de inconstitucionalidade, nomeadamente, pelo Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/22, de 03.06, nem tão pouco foi derrogada pela Lei n.º 18/2024, de 05.02.
12. Na verdade, a Lei n.º 18/2024, de 05.02. apenas veio regulamentar e legitimar a conservação de dados de tráfego e de localização por um ano quando estão em causa «crimes graves», possibilidade que havia sido declarada inconstitucional quando feita nos termos da versão original da Lei n.º 32/2008, de 17.07.
13. Assim, quando está em causa um período de 6 (seis) meses, a conservação e obtenção de tais dados encontra-se subtraída da aplicação da Lei n.º 32/2008, de 17.07. e, consequentemente, dos respectivos formalismos impostos pela mencionada alteração legislativa.
14. A conservação normal de dados de tráfego e de localização por parte das operadoras de telecomunicações relativos a período igual ou inferior a 6 (seis) meses a contar da data da conclusão da comunicação é realizada ao abrigo da Lei n.º 41/2004, de 18.08;
15. A conservação alargada de dados de tráfego e de localização por parte das operadoras de telecomunicações relativos a período superior a 6 (seis) meses e inferior a 1 (um) ano a contar da data da conclusão da comunicação será realizada ao abrigo da Lei n.º 32/2008, de 17.07, mediante autorização judicial.
16. Acresce que, é entendimento do Ministério Público que a Lei n.º 32/2008, de 17.07, na redacção dada pela Lei n.º 18/2024, de 05.02, ainda não está a produzir efeitos no ordenamento jurídico nacional, porquanto, não se encontra devidamente regulamentada.
17. Na verdade, a Portaria n.º 469/2009, de 06 de Maio, que veio regulamentar a transmissão dos dados nos termos definidos no referido artigo 7.º, n.º 3 da Lei 32/2008, de 17/07, foi revogada pela Lei n.º 16/2022, de 16.08 (que aprovou a Lei das Comunicações Electrónicas), mais concretamente, na alínea d) do seu artigo 11.º.
18. De facto, embora o Acórdão n.º 268/22, de 19.04 do Tribunal Constitucional não se tenha pronunciado sobre o n.º 3 do artigo 7.º, afectou a eficácia da Portaria n.º 469/2009, de 06.05, uma vez que esta regulamentava a transmissão dos dados cuja conservação mereceu a censura do Tribunal Constitucional.
19. Pelo que, os operadores de comunicações electrónicas apenas se encontrarão sujeitos às obrigações impostas pela Lei n.º 32/2008, de 17.07, na redacção conferida pela Lei n.º 18/2024, de 05.02, a partir do nonagésimo dia após a publicação da Portaria a que se refere o n.º 3 do artigo 7.º (cf. artigo 18.º da Lei n.º 32/2008), o que até à presente data ainda não sucedeu.
20. No entanto, como acima se referiu, no âmbito e para a prossecução da sua actividade de prestador de serviços de comunicações electrónicas, as operadoras de telecomunicações armazenam nos seus sistemas dados pessoais dos seus clientes, incluindo dados de tráfego e de localização, nos termos permitidos pela Lei n.º 41/2004, de 18.08 (alterada e republicada pela Lei n.º 46/2012, de 29.08).
21. Assim, em conformidade com o disposto no artigo 6.º, n.ºs 2 e 3, da Lei n.º 41/2004, conjugado com o disposto no artigo 10.º, n.ºs 1 e 4 da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho (na redacção dada pela Lei n.º 24/2008, de 02.06), os dados de tráfego e de localização são conservados pelos operadores de comunicações electrónicas pelo prazo máximo de 6 (seis) meses, sem necessidade de autorização judicial.
22. Nestes termos, quando as listagens de tráfego e respectiva localização celular pretendidas se encontram dentro do período de conservação de 6 (seis) meses por parte das operadoras, mormente, para efeitos de facturação – tal como definido pela Lei n.º 41/2004, de 18.08 –, devem ser, como foram, requeridas pelo Ministério Público nos termos que constam da sua promoção, i. e., ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 187.º e 189.º do Código Penal e do artigo 14.º da Lei do Cibercrime, não estando dependentes de pedido de conservação prévio por parte do Ministério Público e posterior autorização judicial pelo Supremo Tribunal de Justiça.
23. No que respeita ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, datado de 20.06.2024, relatado por Amélia Carolina Teixeira, alegadamente proferido no âmbito do inquérito com o NUIPC 41/24.2JBLSB a que o Mmo. Juiz de Instrução faz referência para sustentar o seu entendimento, cumpre dizer que o Ministério Público conhece o dito acórdão, mas o NUIPC indicado padece de lapso, tratando-se, na verdade, do processo n.º 18/24.8JBLSB.
24. Na verdade, o douto acórdão proferido no âmbito do NUIPC 41/24.2JBLSB – também na sequência de recurso interposto pelo Ministério Público de igual decisão do mesmo Mmo. Juiz, saliente-se – tem data de 04.06.2024 e foi relatado por Maria José Machado, tendo sido votado por unanimidade, decidindo precisamente no sentido contrário ao do aresto referido pelo Mmo. Juiz, dando razão ao Ministério Público.
25. Ou seja, quando estão em causa dados preservados ao abrigo do disposto na Lei n.º 41/2004, de 18.08, isto é, durante 6 (seis) meses para efeitos de facturação, a sua transmissão pela empresa fornecedora dos serviços electrónicos em causa, não depende de autorização de conservação prévia por parte do STJ, uma vez que os mesmos já se encontram preservados e tal redundaria numa inutilidade e num desperdício de recursos.
26. De onde resulta que estamos perante uma oposição de julgados, pelo que urge ser proferido acórdão de fixação de jurisprudência.
27. Salvo o devido respeito por entendimento diverso, só este acórdão, datado de 04.06.2024 e relatado pela Exma. Sra. Desembargadora Maria José Machado, parece estar de acordo com a legislação em vigor e respeitar o Princípio da unidade do ordenamento jurídico, considerando o período relativamente ao qual o Ministério Público requereu as listagens de tráfego e de localização (últimos 6 (seis) meses).
28. Na verdade, que sentido faria o Supremo Tribunal de Justiça autorizar a conservação de dados que já se encontram legalmente conservados ao abrigo da Lei n.º 41/2004, de 18.08?
29. Mais, que sentido faria fazer depender a remessa de dados de tráfego e de localização celular de uma autorização de conservação do Supremo Tribunal de Justiça, os quais já se encontram legalmente conservados sem necessidade de autorização judicial porque contidos no período legal de conservação de 6 meses?
30. A nosso ver, nenhum, pois tal redundaria numa inutilidade e num desperdício de recursos.
31. A alteração decorrente da Lei n.º 18/2024, embora sem qualquer efeito prático ou vantagem para investigação criminal, visa permitir a conservação dos dados de tráfego e de localização celular para além dos 6 (seis) meses contados da data da conclusão da comunicação, o que não se pretende no caso em apreço, razão pela qual não é de aplicar a Lei n.º 32/2008, de 17.07.
32. O pretendido no supramencionado despacho datado de ........ 2025 é a obtenção de listagens telefónicas e localização celular relativas aos últimos 6 (seis) meses contados a partir da resposta ao ofício a remeter, ou seja, através da base de dados das empresas fornecedoras de serviços de telecomunicações, por força do disposto nos artigos 11.º e 14.º da Lei do Cibercrime e do artigo 6.º da Lei n.º 41/2004, de 18.08.
33. Efectivamente, por um lado, não se mostra ultrapassado o prazo legal de preservação de 6 (seis) meses – são as listagens desse período que são pretendidas e requeridas –, e por outro, a informação encontra-se disponível por defeito, para efeitos, entre o mais, de facturação, nos termos do acima mencionado dispositivo legal, encontrando-se esses dados armazenados num determinado sistema informático, acessível nos termos do disposto nos artigos 11.º e 14.º da Lei do Cibercrime.
34. Resulta com singela evidência que é a própria Lei n.º 32/2008, de 17.07, que afasta a aplicação do seu regime jurídico quando os dados cuja obtenção se pretende ainda se encontram conservados/disponíveis ao abrigo da Lei n.º 41/2004 de 18.08 (isto é, relativamente a um período de 6 (seis) meses) e possam ser obtidos através do regime das intercepções telefónicas (artigos 187.º e 189.º do Código de Processo Penal).
35. Na verdade, a Lei n.º 32/2008 de 17.07 na redacção dada pela Lei n.º 18/2024, de 05.02, não derroga o regime de conservação previsto pela Lei n.º 41/2004, de 18.08, antes pelo contrário, salvaguarda-o no n.º 2 do seu artigo 1.º.
36. No entendimento sufragado pelo Meritíssimo Juiz de Instrução, não obstante os dados de tráfego e de localização em causa estarem disponíveis para efeitos de facturação nos termos da Lei n.º 41/2004, de 18.08., e por conseguinte, estarem acessíveis por fazerem parte da actividade comercial das operadoras de telecomunicações, e não tão-só para efeitos de investigação de determinada tipologia de crime – como é o regime de conservação imposto pela Lei n.º 32/2008 de 17.07 –, o acesso a tal informação pela investigação criminal encontrar-se-ia vedado, independentemente, do período a que se referem, a não ser que seja cumprido o formalismo imposto pela Lei n.º 18/2024 de 05.02.
37. Seria paradoxal, que, para efeitos civis, as operadoras de telecomunicações pudessem usar livremente as listagens telefónicas e localizações celulares, preservadas nos termos da Lei n.º 41/2004, de 18.08, para proceder à cobrança judicial de facturas em atraso, mas, para efeitos de investigação criminal esse acesso estivesse vedado, ou, pelo menos, onerado com um pedido prévio de autorização de conservação de dados do Supremo Tribunal de Justiça que já se encontram conservados por defeito, conforme pugna o Meritíssimo Juiz de Instrução.
38. Pelo exposto, em nosso entendimento, a interpretação efectuada pelo Meritíssimo Juiz de Instrução, não só não tem qualquer respaldo na letra da Lei, uma vez que contraria frontalmente o previsto na Lei n.º 109/2009, de 15.09, na Lei n.º 41/2004, de 18.08 e na própria Lei n.º 32/2008, de 17.07, como também viola o Princípio da unidade do ordenamento jurídico.
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4. Ao recurso admitido foi atribuído efeito suspensivo e determinado que subisse imediatamente e em separado.
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5. Neste Tribunal, a Exma. Sra. Procuradora-Geral Adjunta pronunciou-se no sentido da procedência do recurso, acompanhando as alegações apresentadas em primeira instância.
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6. Proferido despacho liminar e colhidos os “vistos”, teve lugar a conferência.
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II- Questões a decidir:
Preceitua o art, 412.º, n.º 1, do CPPenal que “A motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”.
É consabido que, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso ou de nulidades que não se considerem sanadas, o objecto do recurso é definido pelas conclusões formuladas pelo recorrente na decorrência dos argumentos expendidos em sede de motivação.
Assim, as questões a decidir são as de saber se, se deve, ou não, ser deferido o requerimento formulado pelo Ministério Público de informação sobre dados de tráfego de operadoras de comunicação, bem como se a L 32/2008, está em vigor, atendo ao facto de a portaria que a regulamentava ter sido revogada.
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III. Fundamentação
Na hipótese dos autos o Ministério Público interpôs o presente recurso pretendendo a revogação da decisão recorrida, defendendo que ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 187.º, n.º 1, al. a) n.º 4., al. a), 189.º, n.º 2 e 269.º, n.º 1, als. e) e f), todos do Código do Processo Penal; artigo 210.º, n.º 1 e 2, al. b), por referência ao artigo 204.º, n.º 1, al. f) e n.º 2, als. a) e f), ex vi 202.º, al. b), todos do Código Penal; artigo 14.º da Lei 109/2009, de 15 de Setembro; e artigos 18.º, n.º 2, 26.º, n.º 1, 32.º, n.º 4 e 34.º, todos da Constituição da República Portuguesa, deve ser ordenada à respectiva operadora de telecomunicações o fornecimento, com urgência, das listagens em formato papel e digital (formato PDF e Excel) de todos os eventos de rede e dados de tráfego – registos completos de todas comunicações efectuadas e recebidas, com indicação dos n.ºs chamados, chamadores e associados e dos correspondentes IMSI’s e IMEI’s, bem como da respectiva localização celular, à hora e à duração de cada uma das comunicações ali descriminadas –, dos últimos 6 (seis) meses a contar da data de resposta ao ofício, dos números de telemóvel correspondentes a determinados cartões SIM que identifica.
O Sr. Juiz de Instrução indeferiu o pedido efectuado pelo Ministério Público, defendendo que o pretendido dizia respeito a dados de tráfego e de localização que somente poderiam ser fornecidos se tivesse sido solicitada a respectiva conservação através de autorização judicial por parte de uma formação das secções criminais do STJ, de acordo com o preceituado no art.º 6º, da L 32/2008, na redacção dada pela L 18/2014, de 05/02.
Do exposto decorre que o Ministério Público pretendia o acesso aos denominados dados de tráfego armazenados por uma determinada operadora de telecomunicações e não o acesso a dados gravados em tempo real, referentes a suspeitos da prática de crimes de roubo agravado.
Ora, dados de tráfego são, desde logo, como se pode ler no Ac. do STJ de de 25.5.2016, proferido no processo 171/12.3JBLSB.L1.S1, in www.dgsi.pt, “Os dados da facturação detalhada e os dados da localização celular que fornecem a posição geográfica do equipamento móvel com base em actos de comunicação, na medida em que são tratados para permitir a transmissão das comunicações (…), estando assim (…) abrangidos pela protecção constitucional conferida ao sigilo das telecomunicações.”
Por outro lado, TIAGO CAIADO MILHEIRO, in Comentário Judiciário do CPPenal, 4ª ed., Almedina, pág. 874, salientando a dificuldade de encontrar uma definição do que sejam concretamente dados de tráfego, uma vez que se trata de um conceito acolhido em diversos diplomas, nem sempre definido do mesmo modo, conclui que “(…) dados de tráfego consistem em dados relacionados com a realização de concretas comunicações/conversações (o que pressupõe a realização das mesmas) por meio de um sistema informático, através de uma rede de comunicações electrónicas ou no âmbito de um serviço de telecomunicações ou dados tratados para efeitos da comunicação ou facturação ou de prestação de serviços da sociedade de informação (…). Não incidem sobre o conteúdo, mas abrangem um conjunto de dados de onde é possível extrair informações da vária índole conexionados com o tráfego”.
Por outro lado, no seguimento do que se deixou exarado no Acórdão da Relação do Porto de 1.2.2023, P. 2748/22.0JAPRT-A.P1, relatado por JOÃO PEDRO PEREIRA CARDOSO, in ECLI, foi unicamente no que tange aos dados de tráfego armazenados e já não aos captados em tempo real que foi declarada a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, de alguns artigos da Lei 32/2008, de 17 de Julho
Com efeito, no sumário do citado Acórdão pode ler-se “À semelhança dos dados de conteúdo (escutas telefónicas), a interceção de dados de tráfego, incluídas localizações celulares, em tempo real, durante a investigação, pressupõe a interceção ou monitorização dos mesmos, à semelhança das escutas telefónicas, e não o recurso a base de dados de conservação ou armazenamento das operadoras relativas a todos os assinantes e utilizadores registados, situação, única, a que se refere o ac TC 268/2022 e a Lei nº 32/2008, de 17 de julho.”
Na verdade, concorda-se com o entendimento sobejamente explanado em diversa jurisprudência no sentido de que “No ordenamento jurídico português, como é assinalado no Acórdão do STJ de 6.9.2022, encontrava-se prevista uma trilogia de fontes de prova digital. A primeira prevista nos artigos 187.º a 190.º do CPP, relativa a interceções digitais visando captar e gravar conversações ou comunicações em trânsito, ou seja, a ocorrerem em tempo real (obtenção de dados de conteúdo). A segunda plasmada na Lei do Cibercrime (Lei 109/2009 de 15.9) atinente a pesquisa de dados eletrónicos preservados e conservados em sistemas informáticos constantes de telemóveis, computadores e outros equipamentos informáticos apreendidos. A terceira prevista na designada Lei dos Metadados (Lei 32/2008 de 17.7), respeitante a dados de tráfego, decorridos no passado, conservados ou armazenados pelas operadoras telefónicas (.../...; ... e ...) – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 9 de Maio de 2023, proferido no processo n.º 275/22.4GCSTB-A.E1, em que foi relatora BEATRIZ MARQUES BORGES, in ECLI.
Ora, no caso dos autos é relativamente à aplicação desta última Lei, mais concretamente no que tange ao disposto nos seus artigos 6º e 9º, na redacção introduzida pela L 18/2024, de 05/02, que existe o dissídio entre o recorrente e a decisão objecto de recurso.
Na verdade, as alterações legislativas introduzidas à citada Lei tiveram origem nos Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 268/2022 e 800/2023.
A propósito dos motivos que estiveram na origem dos citados Acórdãos do Tribunal Constitucional pode ler-se no Acórdão do TRE de 09/05/2023, supra citado, que “Em relação à Lei dos Metadados, que transpôs para a ordem jurídica interna a Diretiva 2006/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 15.3[2], verificou-se que, na sequência da declaração da sua invalidade pelo Tribunal de Justiça da União Europeia (Acórdão de 8.4.2014)[3], o Tribunal Constitucional Português (Acórdão do TC 268/2022 de 19.4.22) declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral do artigo 4.º da Lei dos Metadados em conjugação com o artigo 6.º e do artigo 9.º. Daqui resultou ter de se considerar prova proibida o acesso a metadados conservados pelos fornecedores de serviços de comunicações. Mas em que consistem estes metadados? Apesar de não abrangerem “dados de conteúdo das comunicações”, incluem “dados de base” e “dados de tráfego” armazenados. Quanto aos primeiros através deles consegue-se identificar o utilizador de certo equipamento (nome, morada, número de telefone). Já relativamente aos segundos que abarcam dados funcionais necessários ao estabelecimento de uma ligação de comunicação e os dados gerados pela utilização da rede obtém-se a localização do utilizador, a localização do destinatário, a duração da utilização, a data e hora da utilização e a frequência da utilização. Em relação a estes últimos, os “dados de tráfico”, o acesso a eles permite identificar em tempo real ou a posteriori (desde que os dados fiquem armazenados), como se disse os utilizadores, a sua localização, a frequência, a data, a hora e a duração das comunicações efetuadas ou tentadas efetuar. O Tribunal de Justiça da União Europeia (TJUE), a propósito da citada Diretiva 2006/24/CE do Parlamento Europeu e do Conselho de 15.3, entendeu que a obrigação imposta aos fornecedores de serviço de comunicação eletrónicas de conservarem dados gerados ou tratados no contexto de serviços de comunicação eletrónicas publicamente disponíveis constituía uma ingerência nos direitos fundamentais de proteção da vida privada (artigo 7.º da Carta Europeia dos Direitos Fundamentais da EU) e da proteção de dados pessoais (artigo 8.º CEDFUE). Para o TJUE a conservação generalizada e indiferenciada de todos os dados de tráfego e de todos os dados de localização de todos os assinantes e utilizadores registado em relação a todos os meios de comunicação eletrónica não se justificava numa sociedade democrática e era violadora da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. Na verdade, permitindo-se o armazenamento pelas operadoras telefónicas de todos aqueles dados qualquer pessoa que transportasse consigo o seu telemóvel ou outro dispositivo eletrónico de acesso à internet estava sempre sujeita a ser possível reconstituir aqueles que foram ao longo de um ano (no caso português) todos os lugares em que esteve, quanto tempo esteve em cada um desses lugares e cruzando essa informação com dados respeitantes a outros utilizadores com quem esteve, onde esteve quando esteve. O TJUE declarou, pois, como já acima assinalado, a invalidade da Diretiva 2006/24/CE na sua totalidade, considerando que os dados assim obtidos revelavam a todo o momento aspetos da vida privada e familiar dos cidadãos permitindo inferir com precisão informação detalhada sobre, designadamente, padrões de vida do individuo, círculos sociais de pertença, inclinações político partidárias, aspetos da vida pessoal (rotinas, hobbies, e até vulnerabilidades, por exemplo, em matéria de saúde). A este propósito, embora se possa afirmar que a informação contida em dados de tráfego e de localização é menos evasiva do que o conteúdo das comunicações em si mesmas, a verdade é que tais dados, apesar de revelarem aspetos da vida privada e familiar dos cidadãos, eram também bastantes úteis à investigação criminal. Através deles era possível obter pontos de referência em relação ao momento do crime, à localização do agente antes e depois do crime, às relações existentes entre eventuais suspeitos, itinerário de fuga e indiciação de outros suspeitos. Concomitantemente com esta mais valia para a investigação criminal, tais dados, todavia, permitiam, ainda, a leitura do passado de qualquer cidadão facilitando a identificação de pessoas que nem sequer eram suspeitas e que, em rigor, eram tratadas como potenciais criminosas. Por outras palavras, o armazenamento destes dados pressupunha que todo o cidadão utilizador de meios de comunicação seria, a título preventivo, de forma indiscriminada e de modo continuo e sistemático vigiado (mesmo pessoas cujas comunicações estivessem sujeitas a segredo profissional), não sendo tal tolerável nem justificado numa sociedade designada de democrática. O armazenamento destes metadados implicaria momentos distintos de agressão aos direitos fundamentais. Logo inicialmente com a imposição aos operadores de telecomunicações da obrigação de conservação de dados. Depois através do acesso e utilização por parte das entidades publicas competentes desses dados. Por fim, com o desconhecimento por parte dos cidadãos anónimos “apanhados” na investigação criminal que as suas comunicações haviam sido analisadas pelas entidades públicas competentes, sem sequer serem suspeitas da prática de qualquer ilícito. Em Portugal através da transposição daquela Diretiva 2006/24/CE os fornecedores de serviços de comunicações eletrónicas publicamente disponíveis (...; ... e ...), por força da Lei dos Metadados (Lei 32/2008 de 17.7), tinham o dever de conservar pelo período de um ano, os dados de tráfego e de localização de todas as comunicações eletrónicas, os quais vinham especificados no artigo 4.º do mesmo diploma, entretanto julgado inconstitucional. Antes da decisão do TJUE e do TC, perante os diversos meios de prova existentes, a doutrina e a jurisprudência portuguesa pugnavam pela necessidade de harmonizar os regimes previstos nos artigos 187.º a 189.º do CPP e na Lei nº 32/2008, de 17/07. A propósito desta temática cumpre referir, mais uma vez, que os artigos 187.º a 189.º do CPP têm o seu campo de aplicação na interceção de comunicações, obtida em tempo real, a decorrer, entre presentes. Já o regime da Lei dos Metadados tinha como âmbito de aplicação a obtenção de dados relativos ao passado, ou seja, conservados ou armazenados, em arquivo (cf. artigo 1.º, n.º 1 da Lei nº 32/2008, de 17/07). Tais meios de prova não podiam nem podem ser confundidos. O primeiro orientado para a finalidade de obtenção de “dados de conteúdo” em tempo real era e é regulado nos artigos 187.º a 190.º do CPP. O segundo estava previsto nos artigos 4.º, 6.º e 9.º da Lei dos Metadados (Lei 32/2008), agora declarados inconstitucionais nos termos do Acórdão TC nº 268/2022 de 19.4.2022, e que era destinado à obtenção de “dados de tráfego” armazenados pelas operadoras telefónicas, ou seja, relativos ao passado. É verdade que o artigo 189.º, n.º 2 do CPP também permite aceder a “dados de tráfego”, neste caso, dados sobre a localização celular ou de registos da realização de conversações ou comunicações. Neste caso, porém, o acesso é realizado em tempo real durante a investigação criminal e não por acesso a dados armazenados nem abarca um número indeterminado de utilizadores. No âmbito da previsão deste artigo também estão incluídos os “dados de base” relacionados, com a identificação dos titulares dos cartões de telemóvel, que, se tem entendido, não contenderem com a violação intolerável do direito à vida privada e à privacidade das comunicações”.
Idêntico entendimento é defendido no Ac do TRC de 12/10/2022, proferido no processo nº 538/22.9JALRA.C1, em que foi relator PAULO GUERRA, in ECLI, quando afirma que “Ora, a Lei nº 32/2008 não revogou o CPP, não sendo norma especial relativamente a ele. A necessidade de dotar os Estados integrantes da União Europeia de instrumentos eficazes de combate à criminalidade organizada e terrorismo, levou as instâncias comunitárias a optar pela harmonização dos quadros jurídicos dos países membros, aplicáveis a esta matéria. Desta forma, verificou-se igualmente a necessidade de criar a obrigação sobre as operadoras de telecomunicações de conservação de dados de tráfego e de localização, relativos às comunicações entre pessoas singulares ou colectivas, com vista à prevenção, combate e repressão da criminalidade (In «Crime e Punição» de HELENA RESENDE DA SILVA, pag. 13.) Na tradução e sequência dessas recomendações comunitárias, foi publicada a referenciada Lei n.º 38/2008, que possui por objecto a conservação e a transmissão de dados de tráfego e de localização, bem como, dados conexos, para fins de investigação, detecção e repressão de crimes graves. Este diploma, na focalização dos crimes graves, não revogou o regime do Código de Processo Penal, delineado nos artigos 189.º e 187.º n.º 1 deste compêndio legislativo, no que diz respeito à captura e obtenção processual desses dados, não existindo qualquer contradição substantiva insanável ou de relevo, entre os regimes legais que disciplinam a captura e intercepção de dados delineados na Lei n.º 32/2008 e nos artigos 187.º n.º 1, 189.º e 190.º do CPP. Estes regimes possuem áreas de aplicação não coincidentes, são substancialmente sobreponíveis, complementares e encontram-se simultaneamente em vigor. Com efeito, caso fosse intenção da Lei n.º 32/2008, revogar o regime do CPP, face ao melindre da matéria a disciplinar e em obediência à boa hermenêutica, o legislador tê-lo-ia dito de forma expressa e categórica, em homenagem às exigências de segurança e certeza na aplicação do direito. O objecto da Lei n.º 32/2008 diz respeito à conservação de dados para fins de investigação e repressão criminal dos crimes graves, que igualmente definiu e cujo âmbito delimitou, não sendo, assim, face às mais elementares regras da hermenêutica jurídica, uma lei especial em relação ao Código de Processo Penal. O facto de ter carácter avulso, «ad hoc», estar desinserida do Código de Processo Penal e descontextualizada de uma codificação ou léxico sistematizado, não lhe confere a natureza de especial. É uma lei com objecto bem definido, certo e seleccionado, bem diferente, da previsão legal do artigo 187º, nº 1 do CPP, que prevê e faz expressa alusão a alguns crimes que não serão propriamente socialmente graves. É óbvio que o legislador não pretendeu eliminar a obtenção legítima de dados de tráfico e localização em relação a outros crimes, designadamente, aqueles que se encontram previstos, residualmente, no artigo 187º, nº 1 do CPP, nomeadamente a criminalidade especialmente violenta [art.º 1º nº al. l) e 187º, nº 1, al. a)], o contrabando, o crime de ameaça com prática de crime ou de abuso e simulação de sinais de perigo, o crime de coacção, o crime de devassa da vida privada e perturbação da paz e sossego, quando cometidos através de telefone ou qualquer outro meio técnico (artigo 189º, nº 1, do CPP). De notar que a al a) do nº 1 do art.º 187º abrange todos os crimes referidos no seu nº 2 e incluídos no art.º 2º da Lei nº 32/2008. Não se verifica, portanto, qualquer incompatibilidade entre as novas disposições e as regras precedentes. Como não existe qualquer identidade formal ou material entre a previsão legal do artigo 2.º n.º 1 alínea a) da Lei n.º 32/2008 e o catálogo de crimes delineado no artigo 187º, nº 1 e 189º, do CPP - com a "virtual" excepção da alínea b) do artigo 187º, nº 1 -, razão pela qual, sendo estruturalmente diferentes as matérias e ilícitos focalizados, não se poderá afirmar, que aquele regime revogou este último, e muito menos, com base na regra da especialidade.”
Ora, em consequência da declaração de inconstitucionalidade proferida no Ac. 268/2022, de 19 de Abril, a Assembleia da República aprovou o Decreto n.º 91/XV, de 26 de Outubro de 2023, com o objectivo de modificar a Lei n.º 32/2008.
Algumas das normas do citado diploma legal foram submetidas, pelo Senhor Presidente da República, à apreciação do Tribunal Constitucional em sede de fiscalização preventiva, que no Acórdão n.º 800/2023, de 4 de Dezembro de 2023, se pronunciou no sentido da desconformidade constitucional da norma respeitante à conservação de dados de tráfego e de localização, em face do direito à reserva da vida privada e da protecção dos dados pessoais, considerando que unicamente havia sido modificado o prazo de conservação dos dados em causa; com efeito, o complexo normativo examinado continua a ter um âmbito subjectivo abrangente, ostentando as características de normas gerais e indiferenciadas, não selectivas, por não se dirigirem de forma directa, objectiva e não discriminatória a pessoas que tenham uma relação com os objectivos da acção penal, antes atingindo sujeitos relativamente aos quais não há qualquer suspeita de actividade criminosa.
Finalmente, foi publicada a Lei n.º18/2024, de 5 de Fevereiro de 2024, que na nova redacção dada ao artigo 6.º permitiu uma conservação genérica e indiferenciada para fins de investigação criminal dos dados de base – aqueles previstos no n.º 1, do artigo 4.º: (i) dados relativos à identificação civil dos assinantes ou utilizadores de serviços de comunicações publicamente disponíveis ou de uma rede pública de comunicações; (ii) demais dados de base; e (iii) endereços de protocolo IP atribuídos à fonte de uma ligação – mantendo-se, no seu n.º 1, o período de conservação de um ano, a contar da data da conclusão da comunicação.
Relativamente aos dados de tráfego e de localização, em obediência às decisões do Tribunal Constitucional a que supra se fez referência, a conservação para efeitos de investigação criminal deixou de ser generalizada, passando, ao invés, a ser possível unicamente a conservação especificamente dirigida, ficando dependente de prévia autorização judicial a respectiva ocorrência, a solicitar pelo MP junto do Supremo Tribunal de Justiça e competindo tal apreciação a uma formação de juízes junto das Secções Criminais, constituída pelos presidentes dessas secções e por um juiz designado pelo Conselho Superior da Magistratura, de entre os mais antigos destas secções – cfr. art.º 6º, 2 da L 32/2008, na redacção dada pela L 18/2024.
Diga-se, ainda, que relativamente a tais dados de tráfego selectivamente armazenados por decisão do STJ, apenas se poderá aceder em cada concreto processo, mediante autorização judicial a prestar pelo juiz competente, nos termos do preceituado no art.º 9º da Lei L 32/2008, na redacção dada pela L 18/2024.
A este propósito escreve TIAGO CAIADO MILHEIRO, in Comentário Judiciário do CPPenal, 4ª ed., Almedina, pág. 897, “Pendendo um inquérito criminal é ao juiz desse processo que se deve pedir o acesso e transmissão de dados previamente conservados ou para que no futuro sejam transmitidos. A conservação prevista nos nºs 3, 4, 5, e 7 do art.º 6º LCDCE situa-se no passado. São dados conservados para eventualmente virem a ser utilizados em futuras investigações criminais. Não existiu qualquer alteração de competência pela Lei 18/2024, de 05/02. O legislador nunca quis que uma formação especializada do STJ passasse a apreciar todos os pedidos de preservação e transmissão de dados conservados que continua a ser única e exclusivamente competência do juiz desse processo. O que quer é que a conservação de dados de tráfego e de localização (a serem utilizados eventualmente em futuros inquéritos criminais) passe pelo crivo de uma autorização judicial. O que está em causa é uma fiscalização prévia dos dados de tráfego e localização que podem ser conservados a título preventivo e cautelar para serem usados posteriormente em investigações criminais em que se revelem necessários.”
Contudo, das alterações introduzidas no diploma legal citado nada resulta que altere o antedito entendimento que vinha sendo defendido na jurisprudência relativamente às normas aplicáveis em cada caso e a que supra se fez referência.
Ou seja, a dados de tráfego armazenados continua a ter unicamente aplicação a Lei 32/2008, de 17 de Julho, com as alterações introduzidas pela Lei 18/2024 de 05/02, não podendo estes serem obtidos sob o manto fornecido pelos arts. 189º, 2 e 187º do CPPenal.
Por outro lado, aos citados dados também não é aplicável a designada Lei do Cibercrime (Lei 109/2009, de 15/09), na medida em que, como explicita SANTOS CABRAL, in CPPenal – Comentado, 2014, Almedina pág. 848, “A denominada Lei do Cibercrime contém um conjunto de disposições de natureza processual, aplicáveis não somente aos crimes informáticos ali previstos como também a todos os cometidos por meio de um sistema informático ou em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte electrónico”.
Com efeito, a este propósito refere-se ainda no Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 12/10/2022, supra citado que “Esta lei, transpondo para a ordem jurídica interna a Decisão Quadro nº 2005/222/JAI, do Conselho, de 24 de Fevereiro, relativa a ataques contra sistemas de informação, e adaptando o direito interno à Convenção sobre Cibercrime do Conselho da Europa, deu voz à necessidade de criar mecanismos processuais especificamente destinados a garantir e regular o modo de obtenção da chamada prova digital. Quanto ao seu objecto, a Lei 109/2009, de 15/9, estabelece disposições penais materiais e processuais, bem como as disposições relativas à cooperação internacional em matéria penal, relativas ao domínio do cibercrime e da recolha de prova em suporte electrónico (artº 1º). Esta Lei surgiu como um completo regime processual (geral) do cibercrime e da prova electrónica, na qual coexistem dois regimes processuais de recolha de prova em ambiente digital: o regime previsto nos artigos 11º a 17º, reportando-se à pesquisa e recolha de dados produzidos mas preservados, armazenados (dados informáticos, incluindo dados de tráfego), reportando-se depois os artigos 18º e 19º ao regime de intercepção de comunicações electrónicas, em tempo real, de dados de tráfego. Relativamente ao âmbito de aplicação das disposições processuais, estabelece o nº 1 do artº 11º que tais disposições se aplicam a processos relativos a crimes: “a) Previstos na presente lei; b) Cometidos por meio de sistemas informáticos; ou c) Em relação aos quais seja necessário proceder à recolha de prova em suporte electrónico”. O regime processual da Lei nº 109/2009 é aplicável à recolha de prova em suporte electrónico (informático) reportada a todos os dados que não estejam especificamente previstos no artigo 4º, nº 1, da Lei nº 32/2008, de 17 de Julho (Lei relativa a conservação de dados gerados ou tratados no contexto oferta de serviços de comunicações electrónicas), sendo que relativamente a estes últimos, o regime estabelecido na Lei nº 32/2008, constitui um regime especial relativamente ao regime processual geral que consta dos artigos 12º a 17º da Lei nº 109/2009. O argumento preponderante para que se considere que o regime processual estabelecido na Lei nº 32/2008 se trata de um regime especial que se sobrepõe às disposições processuais de caráter geral previstas nos artigos 12º a 17º da Lei nº 109/2009, é o de na definição do âmbito de aplicação das disposições processuais previstas nesta última Lei existir a expressa ressalva, no nº 2 do artigo 11º, a que essas disposições “não prejudicam o regime da Lei nº 32/2008, de 17 de Julho.” (cfr. Acórdão da Relação de Évora de 14/7/2020 (Pº 9/20.8GAMTL-A.E1).”
Por outro lado, deve também referir-se que não assiste razão ao recorrente quando defende a aplicação, ao caso dos autos, da Lei n.º 41/2004, de 18 de Agosto, que regula as relações estabelecidas entre as empresas de telecomunicações electrónicas e respectivos utentes.
Com efeito, no já citado Ac. do Tribunal da RC, de 12/10/2022, em que foi relator PAULO GUERRA, deixam-se muito claros os motivos da inaplicabilidade do citado diploma legal à tipologia de procedimentos que se analisam.
Na realidade aí se menciona que “A Lei nº 41/2004, de 18/8 visou e visa a protecção de dados pessoais e privacidade nas telecomunicações e aplica-se ao tratamento de dados pessoais no contexto da prestação de serviços de comunicações electrónicas acessíveis ao público em redes de comunicação públicas como se determina no seu art.º 1º, nº 2. Com a epigrafe “Inviolabilidade das comunicações electrónicas”, o seu artigo 4º, nº 1, dispõe que as empresas que oferecem redes ou serviços de comunicações electrónicas devem garantir a inviolabilidade das comunicações e respectivos dados de tráfego e o art.º 6º estipula como princípio geral que os dados de tráfego devem ser eliminados ou tornados anónimos quando deixem de ser necessários para efeitos de transmissão da comunicação. Note-se que este diploma afasta expressamente do seu âmbito de aplicação a prevenção, investigação e repressão de infracções penais, as quais são definidas em legislação especial, como se refere no nº 4 do artigo 1º, esclarecendo ainda no artigo 6º, n.º 7 o seguinte: «O disposto nos números anteriores não prejudica o direito de os tribunais e as demais autoridades competentes obterem informações relativas aos dados de tráfego, nos termos da legislação aplicável, com vista à resolução de litígios, em especial daqueles relativos a interligações ou à faturação. Desta forma, limita-se a aplicação da Lei à relação contratual, não nos sendo lícito lançar dela mão para efeitos de investigação criminal”.
No mesmo sentido, no Acórdão deste Tribunal da Relação de Lisboa, de 20 de Junho de 2024, proferido no processo n.º 18/24.8JBLSB-A.L1-9, em que foi relatora AMÉLIA CAROLINA TEIXEIRA, não publicado, ficou referido: «Com efeito, deve considerar-se que estamos perante diplomas com campos de aplicação distintos sendo também diferenciadas as finalidades prosseguidas: de um lado, está em causa a conservação dos dados para efeitos de faturação e proteção comercial (relação jurídica de natureza cível) e, do outro, a conservação de dados para efeitos de investigação e repressão criminal. Realça-se ainda a circunstância de a conservação dos dados para efeitos de faturação ficar sujeita ao consentimento do titular dos dados, em face do disposto no n.º 4 do citado artigo 6.º da Lei n.º 41/2004, consentimento esse que apenas é dado na medida do necessário e pelo tempo necessário à comercialização de serviços de comunicações eletrónicas, podendo ser revogado a todo o tempo».
E bem assim o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 7 de Dezembro de 2022, processo n.º 5011/22.2JAPRT-A.P1, in www.dgsi.pt: “(…) deve dizer-se, a este respeito, que não poderíamos considerar aplicável este regime abstraindo das razões que levaram à declaração de inconstitucionalidade dos referidos artigos 4.º e 9.º da Lei n.º 32/2008, de 17 de julho. Ou seja, não poderíamos aplicar o regime da Lei n.º 41/2004, de 18 de agosto, se dele resulta a mesma falta de garantias, no plano da investigação criminal, que levou à declaração de inconstitucionalidade dessa Lei nº 32/2008. De outro modo estaríamos a “deixar entrar pela janela aquilo a que o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 268/2022 fechou a porta.” Essa falta de garantias que levou à declaração de inconstitucionalidade das referidas normas da Lei n. 32/2008 não diz respeito apenas ao prazo de conservação dos dados de tráfego, pelo que não seria suprida essa inconstitucionalidade tão só pela redução a seis meses desse prazo (o que resultaria da aplicação da referida Lei n.º 41/2004). Diz respeito à ausência de notificação ao visado de que os dados conservados foram acedidos pelas autoridades de investigação criminal, a partir do momento em que tal comunicação não seja suscetível de comprometer as investigações nem a vida ou integridade física de terceiros.”
Ora, sendo assim, não pode deixar de se concordar com a conclusão a que se chegou em recente Acórdão do TRLisboa, não publicado, proferido no processo nº 103/24.6JBLSB-A.L1, em que foi relatora ANA MARISA ARNÊDO (e em que a aqui signatária interveio como Adjunta, que se tem vindo a seguir de perto quanto à sistematização e sentido): “Vale tudo por dizer que, versando o requerimento do recorrente sobre dados de tráfego atinentes às telecomunicações, no actual paradigma legal, independentemente de tais dados se mostrarem (já) conservados pelas operadoras de telecomunicações, para finalidades distintas, ao abrigo da Lei n.º 41/2004, de 18 de Agosto, a transmissão e o acesso aos mesmos, com o fito de investigação e repressão criminais, terá necessariamente de ser antecedida de autorização judicial de uma formação das secções criminais do Supremo Tribunal de Justiça. «Não tendo, no momento em que se previu como necessária e indispensável a conservação dos referidos dados para efeitos de investigação e repressão criminal, sido promovida junto do Supremo Tribunal de Justiça a autorização da sua conservação, tais dados, ainda que conservados pelas operadoras em cumprimento de outras normas legais e com outras finalidades, em particular, os dados de tráfego conservados pelos operadores nos termos consentidos pela Lei nº 41/2004, de 18.08. [onde se prevê a conservação de dados pessoais para efeitos de faturação dos assinantes e pagamento das interligações, durante o período de 6 meses], não podem aqueles ser acedidos e transmitidos [para efeitos investigatórios] como pretende o Recorrente. Com efeito, sendo decerto o legislador conhecedor da querela jurisprudencial instalada quanto à viabilidade ou não, para efeitos de investigação criminal, de acesso pelas autoridades de investigação criminal a dados conservados durante 6 meses pelas operadoras para efeitos de faturação e proteção comercial, não deixaria de ter presente o que vimos de referir distinguindo claramente, se essa tivesse sido a sua intenção, as situações e os regimes de conservação e de acesso consoante os dados conservados pretendidos respeitem ou não a período que se situe no aludido prazo de 6 meses sobre o início da conservação dos mesmos - Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 20 de Junho de 2024, processo n.º 18/24.8JBLSB-A.L1-9, antes citado e não publicado”.
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O recorrente veio ainda invocar a inaplicabilidade ao caso dos autos do preceituado na Lei n.º 32/2008, de 17.07, na redacção dada pela Lei n.º 18/2024, de 05.02, argumentando que a citada lei não se mostra devidamente regulamentada, pelo que ainda não pode produzir efeitos no ordenamento jurídico nacional.
Com efeito, refere que a Portaria n.º 469/2009, de 06 de Maio, que veio regulamentar a transmissão dos dados nos termos definidos no artigo 7.º, n.º 3 da Lei 32/2008, de 17/07, foi revogada pela Lei n.º 16/2022, de 16.08 (que aprovou a Lei das Comunicações Electrónicas), mais concretamente, na alínea d) do seu artigo 11.º.
Acrescenta que apesar de o Acórdão n.º 268/22, de 19.04 do Tribunal Constitucional não se ter pronunciado sobre o n.º 3 do artigo 7.º, afectou a eficácia da Portaria n.º 469/2009, de 06.05, uma vez que esta regulamentava a transmissão dos dados cuja conservação mereceu a censura do Tribunal Constitucional.
Assim, afirma que os operadores de comunicações electrónicas apenas se encontrarão sujeitos às obrigações impostas pela Lei n.º 32/2008, de 17.07, na redacção conferida pela Lei n.º 18/2024, de 05.02, a partir do nonagésimo dia após a publicação da Portaria a que se refere o n.º 3 do artigo 7.º (cf. artigo 18.º da Lei n.º 32/2008), o que ainda não ocorreu.
Deve dizer-se que, mais uma vez, não assiste razão ao recorrente.
Na realidade, como o próprio afirma, o art.º 7º, 3 da Lei 32/2008 não sofreu qualquer alteração introduzida pela Lei 18/2024, na medida em que tal norma não havia sido objecto de qualquer declaração de inconstitucionalidade por parte do Tribunal Constitucional.
Sempre se acrescentará, na sequência do defendido na Nota Prática nº 26/2024 do gabinete do cibercrime, do Ministério público, http://cibercrime.ministeriopublico.pt/, que se partilha do entendimento de que aí é feita apologia de que até publicação de nova portaria que substitua a Port. 469/2009, devem considerar-se repristinadas as normas de que dependia a produção de efeitos da L32/2008.
Com efeito, “A Lei nº 18/2024, de 5 de fevereiro, entrou em vigor no dia seguinte ao da sua publicação, 6 de fevereiro de 2024 – artigo 5º da Lei. O artigo 18º da Lei nº 32/2008, que a Lei nº 18/2024 não alterou, determina e determinava já anteriormente que este diploma apenas “produz efeitos 90 dias após a publicação da portaria a que se refere o nº 3 do artigo 7º” – como se referiu, esta norma impõe que a transmissão dos dados eventualmente conservados, ao abrigo desta lei, se processe “mediante comunicação eletrónica, nos termos das condições técnicas e de segurança fixadas em portaria”. Estas disposições, sublinha-se, constavam da versão originária da Lei nº 32/2008 e mantiveram-se intocadas após a intervenção da Lei nº 18/2024. No seu tempo, por via da publicação da Portaria nº 469/2009, de 6 de maio, a Lei nº32/2008 passou a produzir plenamente os seus efeitos. Sucede, porém, que aquela portaria foi expressamente revogada, pelo artigo 11º, alínea d), da Lei nº 16/2022, de 16 de agosto. Afigura-se que esta opção do legislador contrariou norma expressa: com efeito, o artigo 146º do Código do Procedimento Administrativo determina, no seu número 1, que os “regulamentos podem ser revogados pelos órgãos competentes para a respetiva emissão”. Isto é, de acordo com o Código do Procedimento Administrativo, uma portaria (corpo normativo que se integra no grupo dos regulamentos) não deveria ter sido revogada por uma Lei formal da Assembleia da República, uma vez que esta última não tem competência regulamentar. Mais ainda: o número 2 do mesmo artigo 146 estipula que “os regulamentos necessários à execução das leis em vigor ou de direito da União Europeia não podem ser objeto de revogação sem que a matéria seja simultaneamente objeto de nova regulamentação”. Isto é, para que legalmente tivesse sido permitida a revogação da Portaria nº 469/2009, deveria ter sido publicada, em simultâneo, uma nova portaria, que em substância a substituísse. Estas normas e princípios não foram respeitadas pelo legislador de 2022. Porém, precisamente para permitir a superação de lacunas e contradições que possam ter origem em situações desta natureza, o Código de Procedimento Administrativo inclui uma norma que pretende conferir eficácia àquelas disposições, ainda que as mesmas sejam violadas: o número 3 do artigo 146º determina que, caso aquelas normas sejam violadas, “consideram-se em vigor, para todos os efeitos, até ao início da vigência do novo regulamento, as normas regulamentares do diploma revogado de que dependa a aplicabilidade da lei exequenda”. Isto é, mesmo tendo a Portaria nº 469/2009 sido expressamente revogada pela Lei nº 16/2022, de forma automática e por mera operação da lei, devem considerar-se repristinadas as normas nela incluídas das quais dependia a produção de efeitos da Lei nº 32/2008. Serão, pois, tais normas (até publicação de uma nova portaria) que terão que utilizar-se para dar efeito ao artigo 7º da Lei nº 32/2008. Desta solução legal resulta que a Lei nº 32/2008, além de estar em vigor, produz plenamente os seus efeitos.”
Face ao exposto, tem necessariamente de se considerar que o despacho recorrido não merece qualquer censura.
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IV. Decisão:
Nestes termos, acordam os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar totalmente improcedente o recurso interposto, confirmando a decisão recorrida.
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Sem custas, por delas o recorrente estar isento (cfr art.º 4º, 1, al. a) RCProcessuais).
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Lisboa, 24 de Abril de 2025
Rosa Maria Cardoso Saraiva
Ivo Nelson Caíres B. Rosa
Paula Cristina Bizarro