DESPACHO DE APERFEIÇOAMENTO
PODER VINCULADO
NULIDADE
PODER INQUISITÓRIO
DOCUMENTO ILEGÍVEL
Sumário

I – O proferimento do despacho pré-saneador, com o objectivo de convidar a parte a suprir as insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada (artigo 590º, nº 2, alínea b), e nº 4, do Código de Processo Civil), uma vez que o caso o justifique, constitui um poder-dever, ou poder vinculado, do tribunal.

II – Padecendo a petição inicial da falta de alegação de factos jurídicos, complementares ou concretizadores, essenciais à constituição do direito que, com a acção, se pretendia ver reconhecido, impunha-se que, findos os articulados, fosse proferido o despacho pré-saneador.

III – Se, não obstante a imperfeição da petição, o juiz proferiu um despacho saneador tabelar e deu sequência à instância, programando a audiência final, que veio a realizar, elaborando, a seguir, a sentença final de mérito, a julgar a acção improcedente, deve esta ser anulada, por padecer de vício; invalidade que se impõe aos actos depois do final dos articulados, por estar aqui a génese do vício, ainda que apenas àqueles actos que por este possam ser afectados.

IV – A mera indiciação de factos, na causa, cuja melhor demonstração pode ser facilmente obtida mediante prova suplementar, designadamente documental, convoca o juiz a fazer operar, nesse particular, os seus poderes inquisitórios (artigos 411º e 436º, nº 1, do CPC).

V – E se essa indemonstração se sustenta na ilegibilidade de um documento junto, onera ao juiz o dever de solicitar à parte a junção da sua cópia legível (artigo 441º, nº 1, do CPC).

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa:

I – Relatório

1. A… SA propôs uma acção declarativa contra AA a pedir que o réu fosse condenado a pagar-lhe a quantia de 17.632,71 € e juros vincendos até efectivo e integral pagamento (28.9.2021).
Alegou que, por contrato de cessão de carteira de créditos, em 27.12.2018, a C… SA cedeu à M… DAC os créditos «decorrentes da operação aqui peticionada» e que, em 12.4.2019, esta lhe cedeu “os presentes créditos».
Disse que, em 14.3.2008, o banco cedente celebrou com uma sociedade e com o réu um contrato de abertura de crédito, pelo valor inicial de 10.000,00 €, na forma de crédito associado a conta de depósitos aberta no banco, e que a quantia «foi efectivamente disponibilizada», tendo sido convencionada a garantia de livrança em branco, subscrita pela sociedade mutuária e avalizada pelo réu.
Mas o contrato foi resolvido «em virtude do incumprimento que ocorreu em 15.01.2014» (artigo 11º da petição); encontrando-se em dívida o valor de 11.440,85 € (artigo 12º da petição) e acrescendo juros, desde 15.1.2014 até 24.5.2021, no valor de 1.015,74 € (artigo 13º da petição).
Acrescentou que, em 10.8.2007, o banco cedente celebrou com a sociedade e com o réu um contrato de locação financeira imobiliária, tendo por objecto uma fracção autónoma, que se comprometeu a adquirir e a ceder-lhes, tendo o réu declarado «expressamente prestar o seu aval pessoal».
Mas «o contrato foi resolvido em virtude do incumprimento» (artigo 19º da petição); o capital em dívida é de 4.853,35 € (artigo 22º da petição) e acrescendo juros, desde 10.8.2007 até 24.5.2021, no valor de 322,77 € (artigo 23º da petição).

2. O réu foi citado editalmente.
E, a seguir, o ministério público (em 21.4.2023).

Não foi apresentada contestação.

3. A instância prosseguiu.

Foi junto um documento de cessão de créditos, de 31.7.2023, celebrado entre a autora e a empresa Z… SA, para atestar o título da transmissão, daquela para esta, dos créditos de que era titular.

Foi proferido o despacho saneador (tabelar); dispensada a condensação (filtro de objecto do litígio e dos temas da prova); e agendada a audiência final (2.11.2023).

Realizou-se, na data programada, a audiência final (4.12.2013).

4. A senhora juíza “a quo”proferiu a sentença final.
Julgou improcedente a acção.
Consignou, além do mais:

4.1. em julgamento de facto

(1.º). a respeito da abertura de crédito; como não provado que «a quantia emprestada foi efectivamente disponibilizada, mediante crédito processado na conta de depósitos à ordem […]» (artigo 7º da petição) – alínea b) factos não provados.
Para tanto, argumentou:
«[…] falta de prova suficiente sobre essa questão. O documento identificado como extracto constitui um print cuja autoria se desconhece, não sendo identificado o autor da transferência, sendo certo que do extracto não consta a transferência de €10.000,00 apenas mediante a sucessivo crédito de diversas quantias a conta à ordem apresenta um saldo de €10.000,00.».
(2.º). ainda a respeito da abertura de crédito; consignou não responder à alegação de que «o contrato [foi] resolvido, em virtude do incumprimento que ocorreu em 15.01.2014 – cfr. carta de interpelação junta como documento 5» (artigo 11º da petição);
(3.º). como a respeito da locação financeira; igualmente consignou não responder à alegação de que «o contrato foi resolvido, em virtude do incumprimento» (artigo 19º da petição);
- em ambos os casos «por ser matéria conclusiva e de direito».
(4.º). como não provada a cessão da carteira de créditos, de 27.12.2018, entre o banco e a M… (artigo 1º da petição) – alínea a) factos não provados.

Sustentou assim:
«[…] a autora não produziu prova suficiente de tal facto. Em primeiro lugar, juntou cópia ilegível do invocado contrato de cessão de carteira de créditos de 27.12.2018, o qual é ilegível tanto na versão junta electronicamente aos autos, como na versão impressa.
Note-se que no despacho que designou a audiência de discussão e julgamento as partes foram advertidas que a revelia não era operante e que se consideravam impugnados os factos alegados na petição inicial, pelo que cabia à autora o ónus de verificar a documentação junta e a sua legibilidade.».
(5.º). como não provado que a cessão de 12.4.2019 tenha coberto «os presentes créditos» (artigo 2º da petição) – redacção restritiva facto 1. provado.

Sustentou assim:
«A circunstância do anexo junto […] (veja-se folha 85 do documento 2 junto com a petição) constituindo uma lista com diversos valores pecuniários, sem identificação do devedor, nem correspondência de valores, não permite formar convicção positiva de que um dos créditos cedidos foi o aqui reclamado.».
(6.º). como não provado que a cessão de 31.7.2023 inclua «o crédito sub judice que é objecto nos presentes autos» (artigo 12º do requerimento associado a essa cessão) – redacção restritiva facto 2. provado.
Sustentou assim:
«Também quanto a esta cessão de créditos desconhece-se, por não ter sido produzida prova suficiente, sobre se os créditos reclamados nesta acção foram ali incluídos, veja-se igualmente a lista que se inicia a 52/438 do documento junto a 22.11.2023.».
(7.º). como não provado [quanto à abertura de crédito, à data da propositura] que «encontra-se em dívida o valor de € 11.440,85 (…) referente a capital» (artigo 12º da petição) – alínea d) factos não provados.

Sustentou assim:

«[…] não foi junto aos autos prova documental que comprove a referida dívida e as testemunhas ouvidas, (…), apesar de saberem da existência de contrato(s), desconheciam que valores estavam em dívida».
(8.º). como não provado [quanto à locação financeira, à data da propositura] que «o capital em dívida ascende […] a € 4.853,35» (artigo 22º da petição) – alínea f) factos não provados.

Sustentou assim:

«[…] falta de prova documental, sendo a prova testemunhal insuficiente, dado que as testemunhas desconheciam ao certo a que créditos os presentes autos dizem respeito e os valores em dívida».

4.2. e, em julgamento de direito

(1.º). a respeito das cessões de créditos.
«não resultou, (…), provado que por contrato de cessão de carteira de créditos, outorgado em 27.12.2018, a C… SA (…) cedeu à M… DAC os créditos decorrentes da operação aqui peticionada, bem como todas as garantias a eles inerentes, conforme contrato de cessão de créditos.
Também não resultou provado que os créditos cedidos pela M… DAC à A… SA e esta à Z… SA, incluam os créditos reclamados nesta acção.
A não prova desses factos constitutivos e essenciais do direito da primitiva autora e da substituta Z… SA, isto é, o primitivo contrato de cedência de créditos celebrado entre o banco e a M… DAC e a inclusão do crédito aqui nestes autos no rol dos créditos reclamados é suficiente para improceder a presente acção, por não se provar que a autora é a credora do réu.».

(2.º). a respeito do primitivo crédito.
«[…] mesmo que se demonstrasse, que não se demonstrou, a legitimidade substantiva da autora (isto é a qualidade de credora na obrigação contratual invocada nesta acção), os factos essenciais do direito de crédito também não resultaram provados.
[…]
Não se provou que a devedora, do empréstimo no primeiro contrato e locatária no segundo, [a sociedade] não tenha efectuado o pagamento das prestações pecuniárias que contratualmente se vinculou. Também não se provou que a entidade bancária tenha solicitado à referida sociedade comercial que cessasse o atraso no pagamento das prestações ou das rendas. Também não se provou que o banco tenha concedido um prazo para cessar o atraso no pagamento das prestações e / ou das rendas, sob pena de não o fazendo se considerar que definitivamente o devedor não cumprirá com a sua prestação contratual, permitindo ao banco cessar o contrato por culpa da referida sociedade comercial. Também não se provou que o banco tenha comunicado à sociedade comercial e aos avalistas, aqui se incluindo o réu, que por culpa da sociedade comercial que não cumpriu com a obrigação de pagamento cessava os efeitos dos contratos celebrados.
Por outras palavras, não provou que a sociedade comercial […] não tenha cumprido com a sua prestação contratual (…), que tenha sido interpelada pela entidade bancária para cessar a mora em determinado prazo (…), e que não o tendo feito dentro do prazo concedido, o atraso no cumprimento da prestação daquela sociedade comercial tornou-se em incumprimento definitivo (…) e que na sequência deste o banco resolveu os contratos celebrados (…), comunicando à sociedade comercial […]e ao aqui réu as respectivas resoluções do contrato por incumprimento contratual daquela (…).».

5. A autora inconformou-se; e interpôs recurso.
As conclusões da alegação, que formulou, podem esquematizar-se assim:
i. A decisão recorrida assenta numa omissão constitutiva de nulidade processual
ii. Em 14.3.2008, a C… celebrou com sociedade comercial e o réu, este a outorgar por si e como gerente, um contrato de abertura de crédito pelo valor inicial de 10.000,00 €.
iii. A quantia emprestada foi disponibilizada.
iv. Como garantia de cumprimento, foi convencionado o preenchimento de uma livrança em branco, subscrita pela sociedade mutuária e avalizada pelo réu.
v. «Tendo sido o contrato resolvido, em virtude do incumprimento que ocorreu em 15.01.2014 – cfr. carta de interpelação junta com a petição inicial»
vi. Em 10.8.2017, a C… celebrou com a mesma sociedade e o réu, este a outorgar por si e como gerente, um contrato de locação financeira imobiliária; comprometendo-se aquela a adquirir o imóvel e a cedê-lo a estes, mediante o pagamento das rendas acordadas.
vii. O réu declarou expressamente prestar o seu aval.
viii. «O contrato foi resolvido, em virtude do incumprimento»
ix. O tribunal julgou não provado, por falta de prova suficiente (cópia ilegível do contrato), a cessão de carteira de créditos, em 27.12.2018, entre a C… e a empresa M… DAC.
x. Julgou não provado, por falta de prova suficiente (extracto / print de autoria desconhecida, sem identificação de autoria e pouca clareza da transferência), a disponibilização dos 10.000,00 €.
xi. Julgou não provado, a respeito da abertura de crédito, por falta de prova documental e desconhecimento das testemunhas, o valor do capital em dívida à data da propositura da acção (11.440,85 €).
xii. E julgou não provado, a respeito da locação financeira, com a mesma justificação, o valor do capital na mesma data (4.853,35 €).
xiii. Pese embora o disposto no artigo 590º do Código de Processo Civil, em especial no seu nº 4, «em momento algum o tribunal a quo convidou a autora a aperfeiçoar a petição inicial de forma a suprir eventuais irregularidades ou imprecisões ou até a juntar documento mais legível»
xiv. As cessões de créditos, quando envolvem milhares de créditos, como é o caso da(s) presente(s), por conterem muitas páginas, são documentos informaticamente “pesados”.
xv. Sendo que quando juntos via citius poderão ver a sua legibilidade comprometida.
xvi. Quando o tribunal entende que o documento não está suficientemente legível é seu dever requerer a sua junção legível para que possa proferir uma decisão fundamentada e justa.
O que não fez!
xvii. O nº 4 do artigo 590º estabelece o dever do juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada.
xviii. A inobservância desse dever, traduzida na omissão de tal convite, consiste numa nulidade processual, por a irregularidade cometida influir no exame ou decisão da causa (artigo 195º do CPC).
E foi o caso da sentença recorrida.
xix. Foi omitida formalidade prescrita na lei; resultando em nulidade processual.
xx. O tribunal a quo ao deparar-se com a alegada pouca legibilidade do documento devia advertir as partes de forma clara e objectiva para o efeito.
xxi. Ao não o fazer, violou ainda o princípio do contraditório (artigo 3º, nº 3, do CPC).
xxii. Ao invés, aquando da sentença, e apercebendo-se da omissão cometida, o tribunal a quo tentou desresponsabilizar-se de tal dever; e transferiu para a autora “o ónus de verificar a documentação junta e a sua legibilidade ».
xxiii. O mesmo se dirá da concreta indicação / autonomização dos créditos cedidos e aqui em crise.
xxiv. Perante os documentos juntos, o tribunal limitou-se a referir que a lista continha «diversos valores pecuniários, sem indicação do devedor, nem correspondência de valores».
xxv. E em momento algum convidou a autora a indicar, da lista de créditos cedidos, os créditos aqui em causa; os quais constam expressamente da listagem.
xxvi. Por uma questão de facilidade, caso convidada, a autora assinalaria os referidos créditos, juntando, por exemplo, a concreta página onde os créditos se encontram devidamente sublinhados.
xxvii. Mas o tribunal não efectuou qualquer pedido nesse sentido; e formulou o seu juízo fazendo tábua rasa da menção expressa dos créditos nas listagens juntas.
xxviii. O mesmo sucedeu com o extracto bancário junto com a petição inicial e que demonstra os factos alegados; documento que o tribunal a quo claramente não soube interpretar; nem solicitou qualquer esclarecimento; ou inquiriu as testemunhas quanto à correcta leitura do extracto e efectiva transferência do valor aqui em causa.
xxix. Limitando-se a referir que o extracto «constitui um print cuja autoria se desconhece, não sendo identificado o autor da transferência».
xxx. O extracto junto é um documento que se retira do sistema do banco; constando dele o nome do banco, neste caso o cedente, C…, o nº do cliente, o nº do contrato, o nome do devedor principal e todos os movimentos bancários associados ao cliente.
xxx. Se o tribunal tinha dúvidas quanto aos movimentos deveria ter convidado a autora a esclarecer; ou inquirir as testemunhas tendo em vista ficar esclarecido.
xxxi. Seria o mínimo razoável para formular um juízo esclarecido, fundamentado e justo.
O que não se verificou.
xxxii. Denotando um claro desinteresse do tribunal a quo de todos os factos e prova carreada para os autos pela autora.
xxxiii. A decisão recorrida deu, ainda, como indemonstrado o incumprimento contratual da sociedade devedora, a interpelação do banco credor ou a resolução dos negócios celebrados; factos constitutivos do direito da autora.
xxxiv. Mas a acção não tem, por ré, a sociedade; já insolvente.
xxxv. O processo de insolvência está encerrado, após rateio final.
xxxvi. No âmbito das suas competências e deveres, o tribunal a quo podia obter informação desse processo acerca do valor reclamado pela autora, e o recebido em rateio; que foi nenhum.
xxxvii. Dúvidas persistissem sobre os factos em causa, deveria o tribunal ter diligenciado por obter esclarecimentos junto da autora, notificando-a para o efeito.
xxxviii. A petição inicial alegou os factos referentes à relação entre a autora e o réu e justificou a relação subjacente.
xxxix. E não foi deduzida contestação.
xl. E não tendo a autora sido convidada a suprir «insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada», nunca teria como antecipar estas questões do tribunal.
xli. Há um conjunto de omissões que são consideradas decisivas para a procedência da acção.
xlii. Sem essas, a autora conseguiria provar a versão dos factos alegados e as suas pretensões podiam vir a ter, total ou parcialmente, sucesso.
xliii. Sem elas, inexistia fundamento de absolvição do pedido; impossibilitando sequer a autora de intentar nova acção para ressarcimento do seu crédito.
xliv. Em virtude de tal omissão e, bem assim, da nulidade verificada, deve a sentença ser revogada e notificada a autora para juntar o documento mais legível, como ainda, esclarecer toda e qualquer dúvida do tribunal.
xlv. Considerando-se provada a primeira cessão de créditos, a prova testemunhal produzida concretizou de forma inegável os factos alegados pela autora; ainda que não consigam precisar os valores em dívida, porquanto os créditos foram cedidos há cerca de 6 anos; a prova testemunhal confirmou a existências dos contratos.
xlvi. O tribunal a quo deveria ter determinado a notificação da autora em cumprimento do artigo 590º, nº 4, do CPC.
xlvii. E não decidir (pela improcedência), com base numa omissão que viola o direito de crédito da autora.
xlviii. Tem que se concluir que, segundo o tribunal a quo, na petição inicial há «insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto».
xlix. E, assim, incumbia ao juiz convidar a autora ao suprimento das insuficiências ou imprecisões.
O que não foi feito.
l. A omissão deste despacho pré-saneador constitui nulidade processual; por o juiz não exercer um poder que era vinculado; e em momento anterior ao do proferimento da decisão de mérito; que lhe deu, como seu pressuposto tacitamente resolvido, cobertura.
li. A nulidade cometida está coberta pela decisão proferida.
lii. Impõe-se a anulação da decisão recorrida, devendo o tribunal a quo convidar a autora a suprir as «insuficiências ou imprecisões» que considere que existem na petição inicial e todos os actos em diante.

A apelação deve proceder; e ser revogada a sentença.
Em substituição dela, deve ser proferida uma decisão que convide a autora a suprir «as insuficiências ou imprecisões» que considere que existem na petição inicial.

6. Não houve resposta.

7. A delimitação do objecto do recurso.
7.1. Os segmentos desfavoráveis ao recorrente nas questões julgadas, pela sentença, circunscrevem o objecto inicial do recurso; sendo esse o universo onde as conclusões da alegação, delimitam aquelas (mais) concretas, os particulares temas ou assuntos, que se visam colocar à apreciação do tribunal superior (artigo 635º, nºs 3 e 4, do Código de Processo Civil).
7.2. A hipótese concreta impõe uma clarificação inicial, de enquadramento.
É a de que, pese a aproximação, o recurso aqui interposto não é em matéria de facto (artigos 640º ou 662º do Código de Processo Civil).
Quer dizer que a apelante não visa que se reformule a convicção do tribunal recorrido, em sede de provas e de factos.
A configuração é outra.

A apelante, confrontada com a decisão de mérito, que julgou insuficientemente indemonstrados factos constitutivos do direito invocado, dirige-se ao tribunal invocando que ele não honrou um poder-dever, que o vincula, de impulsionar os meios adequados à justa composição do litígio e de contribuir para a exacta configuração dos contornos da lide.
Em síntese, que omitiu actos determinantes para o julgamento.
E que, nesse conspecto, enveredou por nulidade(s), decisivamente assimilada(s) pela sentença que proferiu.

No mais concreto, são as seguintes (por ordem lógica) as omissões sinalizadas:
1.ª; acerca da não prova da disponibilização da quantia emprestada em contexto de abertura de crédito (artigo 7º petição; alínea b) factos não provados);
2.ª; acerca da locação financeira imobiliária e das vicissitudes da execução, seu incumprimento, resolução, consequências (artigos 11º e 12º petição; alínea d) factos não provados);
3.ª; acerca da abertura de crédito e das vicissitudes da execução, seu incumprimento, resolução, consequências (artigos 19º e 22º petição; alínea f) factos não provados);
4.ª; acerca da não prova da cessão de créditos do banco locatário e credor do empréstimo para a empresa M…, em 27.12.2018 (artigo 1º petição; alínea a) factos não provados);
5.ª; acerca da não prova do enquadramento dos créditos emergentes da locação e do empréstimo na cessão de créditos da M… para a empresa autora da acção, em 12.4.2019 (artigo 2º petição; redacção restritiva facto 1. provado); e
6.ª; acerca da não prova do enquadramento dos mesmos créditos na cessão da autora para a empresa apelante, e cessionária, em 31.7.2023 (artigo 12º requerimento de habilitação da cessionária; redacção restritiva facto 2. provado).

Impunha-se, previamente ao proferimento da decisão de mérito, que o tribunal sinalizasse à apelante as insuficiências, a este respeito detectadas, e lhe desse a oportunidade para as suprir e corrigir?


II – Fundamentos

1. A matéria de facto escrutinada pelo tribunal “a quo”.

1.1. A sentença recorrida discriminou, como provados, os seguintes factos, que agora se ordenam, segundo uma sequência (mais) lógica e cronológica.

i. Em 10 de Agosto de 2007, a C… celebrou com a sociedade “F… Lda.”e AA, este último a outorgar por si e na qualidade de sócio gerente, um ajuste escrito denominado de “locação financeira imobiliária n.º 1…-7”(9.).
ii. O referido ajuste teve por objecto o imóvel melhor identificado na cláusula 1ª das condições particulares: fracção autónoma designada pela letra A, correspondente ao rés-do-chão esquerdo, composta por loja e uma arrecadação contígua, do prédio urbano sito em Rua …, tendo também o n.º … da Rua …, descrito na Conservatória do Registo Predial …, sob o n.º … e inscrito na matriz predial urbana da freguesia de … sob o artigo … (10.).
iii. A C… comprometeu-se a adquirir o imóvel supramencionado e a cedê-lo à sociedade “F… Lda.”, mediante o pagamento das contrapartidas pecuniárias mensais (rendas) acordadas (11.).
iv. No mencionado contrato de locação financeira ficou convencionado, além do mais, que:
a. A locação seria pelo prazo de 180 (cento e oitenta) meses (cf. a cláusula quarta das condições particulares do contrato), vencendo-se a primeira em 10 de Agosto de 2007 e as demais ao dia 15 de cada mês;
b. As contrapartidas pecuniárias mensais (rendas) mensais a pagar seriam 180 (cento e oitenta), no valor de € 4.550,00 a primeira, e as restantes no valor de € 601,79;
c. O valor das contrapartidas pecuniárias mensais (rendas) seria actualizado trimestralmente em função da taxa Euribor a 6 meses, acrescida de spread;
d. O valor residual convencionado foi o equivalente a 10,00% do montante da aquisição € 70.000,00 (12.).
v. O Réu AA e outros declararam expressamente prestar o seu aval nas condições e para os efeitos previstos no contrato, dando o seu consentimento ao preenchimento da livrança nos termos da cláusula décima do ajuste escrito (13.).
vi. A C… celebrou com a sociedade “F… Lda.”e AA, este último a outorgar por si e na qualidade de sócio gerente, um ajuste escrito denominado de “Abertura de Crédito em Conta Corrente”, outorgado em 14.03.2008, até ao montante € 10.000,00 (dez mil euros), pelo prazo de seis meses, eventualmente renovável por sucessivos e iguais períodos (3.).
vii. A referida abertura de crédito teve a forma de crédito associado à conta de depósitos aberta junto do banco por aquela empresa com o n.º 1… no balcão de … (4.).
viii. Mais foi convencionado entre aquelas partes o vencimento de juros mensais, à taxa anual de 8,6836%, de juro indexada Euribor 6 meses, acrescida de spread (5.).
ix. Em caso de atraso ou incumprimento de qualquer dever ajustado da devedora, tal taxa seria elevada em 4% ao ano, calculada sobre o capital em dívida desde a data da mora (6.).
x. Para garantia do pontual e integral cumprimento do invocado contrato foi pelas partes convencionado o preenchimento de uma livrança em branco, subscrita pela sociedade mutuária e avalizada pelo Réu AA (7.).
xi. Tendo o Réu AA declarado expressamente acordar na prestação de aval na referida livrança nas condições e para os efeitos previstos no ajuste escrito mencionado em vi. destes factos (3.), dando o seu consentimento ao preenchimento da mesma nos termos da cláusula 7.º, durante todo o período da vigência do contrato, bem como nas eventuais renovações do mesmo (8.).
xii. A 12.04.2019, a M… DAC cedeu à A… SA, créditos, bem como todas as garantias a eles inerentes, conforme contrato de cessão de créditos e respectivo anexo (1.).
xiii. A 31 de Julho de 2023, a A... SA cedeu à Z… SA, créditos, bem como todas as garantias a eles inerentes, mediante celebração do contrato de cessão de créditos e respectivo anexo (2.).

1.2. Conexamente, e rememorando agora, como não provados, a decisão enunciou, enquanto factos, os seguintes segmentos, agora também distribuídos por uma (melhor) ordem cronológica.

1. A C… comprometeu-se a adquirir o imóvel supramencionado e a cedê-lo a AA mediante o pagamento das rendas acordadas (e.).

2. A quantia emprestada de 10.000,00 € foi efectivamente disponibilizada, mediante crédito processado na conta de depósitos à ordem mencionada supra (b.).

3. A sociedade comercial F… Lda.” confessou-se devedora da quantia recebida perante a Autora (c.).

4. Por Contrato de Cessão de Carteira de Créditos, outorgado em 27.12.2018, a C… S.A. … cedeu à M… DAC os créditos decorrentes da operação aqui peticionada, bem como todas as garantias a eles inerentes, conforme contrato de cessão de créditos (a.).

5. Relativamente ao ajuste escrito denominado de “crédito em conta corrente” à data da propositura estivesse em dívida o valor de 11.440,85 € (onze mil, quatrocentos e quarenta euros e oitenta e cinco cêntimos) referente a capital (d.).
6. Relativamente ao contrato denominado por locação financeira o capital em dívida ascende à data da propositura da acção a € 4.853,35 (f.).

2. O mérito jurídico do recurso

2.1. A apelante centra o objecto do recurso numa nulidade, que aponta.
Refere-se, muito em particular, ao disposto no artigo 590º, nº 4, do Código de Processo Civil; e complementa, além do mais, com os artigos 195º e 3º, nº 3, do mesmo diploma.

Na anatomia do curso da instância, na forma do processo comum, o artigo 590º, nº 2, alínea b), do CPC, estabelece que, terminada a fase dos articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado, em especial, a providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, nos termos que, a seguir, melhor concretiza.
Assim; o juiz convida as partes a suprir as suas irregularidades e fixa prazo para o suprimento ou correcção do vício, designadamente se carecem de requisitos legais ou falte algum documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa (nº 3).
E incumbe, ainda, ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido (nº 4).
Os factos objecto de esclarecimento, aditamento ou correcção ficam sujeitos às regras gerais sobre contraditoriedade e prova (nº 5).
E as alterações à matéria de facto, se forem introduzidas pelo autor, devem conformar-se com os limites estabelecidos no artigo 265º (nº 6); querendo com isto se dizer, por princípio, não poderem essas mudanças ultrapassar os limites da causa de pedir inicialmente circunscrita (nº 1 desse artigo 265º).

No que ao nº 4, do artigo 590º, se refere, e quanto ao autor da causa, em matéria de articulação de nova matéria de facto, o significado é, portanto, o de que, no âmbito da causa de pedir que foi delimitada na petição inicial – por conseguinte, sem poder bulir com os factos nucleares que permitem identificar a relação jurídica essencial que é a fonte do efeito jurídico pretendido (artigo 581º, nº 4) –, não há obstáculo a que se possam, ainda, aditar outros (novos) factos, desde que estes permitam superar alguma inicial falha ou inexactidão, capaz de colocar em causa a viabilidade final da acção.
Se os factos imprecisos, inexactos, forem essenciais – isto é, sem eles a acção fatalmente naufraga –, ainda assim, podem (devem) ser acrescentados, mas apenas na medida em que tenham uma natureza complementar ou concretizadora (artigo 5º, nº 2, alínea b), do CPC) de outros já antes alegados.

O proferimento do despacho pré-saneador, findos os articulados, em particular na sua dimensão de aperfeiçoamento fáctico – exactamente o artigo 590º, nº 4 – vem sendo encarado pela doutrina (entre mais; Paulo Pimenta, “Processo Civil Declarativo”, 2014, páginas 224 a 225) e pela jurisprudência (entre outros; Acórdãos da Relação de Lisboa de 27 de Novembro de 2018, proc.º nº 1660/14.0T8OER-E.L1-7, ou da Relação de Guimarães de 20 de Fevereiro de 2025, proc.º nº 3333/24.7T8VNF.G1) como um poder vinculado do tribunal, que ele não pode escolher praticar, ou não praticar, mas que está obrigado a realizar.
Dito doutro modo; desde que o juiz identifique um facto essencial (sem redireccionar a causa de pedir), que esteja omisso na acção, fica vinculado a, em pré-saneador, convidar a parte a articular efectivamente esse facto.
E se o não fizer, optando antes por uma decisão de mérito sustentada pela imprecisão, incorrendo então em julgamento e sentença certamente contaminada(s) de alguma patologia (artigo 195º, nº 1, segmento final; artigo 3º, nº 3; ambos do Código de Processo Civil).

Esta proporção vinculística da acção do tribunal sustenta-se na que é a postura que se pretende seja a do juiz moderno; não de um árbitro neutro; mas de um actor atento e activo, interveniente na lide, por modo a garantir-lhe a melhor justeza.
E tem sede legal, mais abstracta, no artigo 6º, nº 1, do código; quando aqui se lhe comete uma actuação promotora e empreendedora, sobretudo por modo a garantir a justa composição do litígio em prazo razoável.
Princípio, depois, concretizado em passos mais concretos do regime; como é o caso do pré-saneador, que nos ocupa; mas também, por exemplo, em matéria de reforço dos poderes inquisitórios, em sede de prova (artigo 411º; artigo 436º; artigo 526º; entre outros).

Naturalmente que nada disto significa desresponsabilização das partes.
A estas, continua a competir alegar os factos convenientes ao sustento das suas pretensões, principalmente aqueles que permitem fixar os contornos essenciais da relação jurídica visada (artigos 5º, nº 1, ou 552º, nº 1, alínea d), do código).
E por isso é que, mesmo a respeito de factos essenciais (que não nucleares), que o juiz vinculadamente lhes solicite a trazer ao processo, podem livremente não aceder ao convite formulado; caso em que, então, verão (aí sim) irreversivelmente votada ao insucesso a decorrente pretensão que ao tribunal, porventura, hajam formulado.

Essencial se mostrando, esse sim, é o cumprimento do vínculo (convite) do juiz.

2.2. A hipótese do caso concreto centra-se na configuração de obrigações jurídicas, que se têm por constituídas nas esferas jurídicas dos sujeitos (iniciais); e que, a seguir, se repercutem, por transporte, para outras esferas jurídicas (acabando na da empresa apelante).

A fonte constitutiva dessas obrigações começa por ser um contrato de locação financeira imobiliária, a que se associa um vínculo de aval (10.8.2007); e que os factos provados (i. a v.) reflectem.
A seu propósito, alegou a autora, na petição inicial, que «o contrato foi resolvido em virtude de incumprimento» (artigo 19º).
Que o capital em dívida «actualmente» é de 4.853,35 € (artigo 22º).
E que há juros associados, já vencidos (artigo 23º).

A outra fonte constitutiva é um contrato bancário de abertura de crédito, a que se associa uma livrança avalizada (14.3.2008); que os factos provados (vi. a xi.) ilustram igualmente.
Neste particular, também alegou a autora, na petição, que «o contrato [foi] resolvido, em virtude do incumprimento que ocorreu em 15.01.2014» (artigo 11º).
Que «encontra-se em dívida o valor de € 11.440,85 (…) referente a capital» (artigo 12º).
E que também há juros associados, já vencidos (artigo 13º).

A comprovatividade dos créditos, assim invocados, era primordial ao sucesso da acção. E os seus factos constitutivos integrados pelas circunstâncias efectivas, tidas lugar; não apenas dos ajustes negociais, origem de tudo, mas da sua execução subsequente, vicissitudes, frustrações das (pontuais) prestações debitórias, atitudes do banco credor e, por fim, a realidade das cessações contratuais.

Esta factualização é que permitia encontrar na esfera jurídica do banco o efeito de direito decorrente, o(s) crédito(s) emergente do incumprimento e da resolução.
E só a consolidação deste(s) direito(s), constituído(s) e consistente(s), permitia avançar nos passos seguintes da sua transmissibilidade.

Alegou a autora, na petição.
Por cessão de carteira de créditos (27.12.2018), o banco, titular dos créditos constituídos, cedeu-os à empresa M… DAC (artigo 1º).
E, por contrato de cessão de créditos (12.4.2019), esta empresa cedeu os mesmos créditos à autora (artigo 2º).

Já no curso da acção.
Alegou-se que, por contrato de cessão de créditos, a autora transmitiu à cessionária, apelante, os mesmos créditos (31.7.2023).

O mecanismo jurídico da transmissão de créditos, através da sua cessão, tem cobertura, de princípio, em regras do Código Civil (artigo 577º, nº 1).
Essencial, para que o direito se transmita, é naturalmente que o cedente seja dele titular – Pires de Lima e Antunes Varela, “Código Civil anotado”, volume I, 4ª edição revista e actualizada, página 595.
Com liberdade acerca do negócio que lhe sirva de base (artigo 578º, nº 1).
Com norma de consensualidade na forma – “Código Civil anotado”, Ana Prata (coord.), 2017, página 741.
E, além do mais, p. ex., e por mais impressivo, com garantia, pelo cedente, da existência e da exigibilidade do crédito ao tempo da cessão (artigo 587º, nº 1) – Luís Menezes Leitão, “Cessão de créditos”, páginas 351 e 352 a 354.

Na hipótese ainda, a pretexto da cessão entre a autora e a apelante, o Decreto-Lei nº 42/2019, de 28.3; tratando do regime simplificado para alguns tipos de cessão (de créditos em massa, de certas características); com particularidades; sobressaindo além do mais a forma escrita do negócio (artigo 4º).

2.3. Quais, então os aspectos de cotejo, na impugnação da apelante?

2.3.1. Os temas, por ela convocados, podem ser distribuídos por dois grupos.

Num 1.º; de natureza mais probatória; consistente (1) na não prova genética do vínculo obrigacional, emergente da abertura de crédito, por indemonstração (clara) da disponibilização da quantia emprestada, na (2) não prova da cessão de créditos do banco, credor inicial, para a M… (27.12.2018), e na não prova (3) da cobertura dos créditos visados pela cessão desta para a autora (12.4.2019) e (4) pela cessão da autora para a apelante (31.7.2023).

Num 2.º; de natureza mais factual; consistente na configuração genética dos direitos constituídos, (1) ora emergentes da locação financeira imobiliária, associada ao seu incumprimento e resolução, (2) ora emergentes do negócio bancário da abertura de crédito, associada também ao seu incumprimento e resolução.

2.3.2. Vejamo-los então, cada um de per se.

2.3.2.1. A sentença final recorrida, configurada após audiência final, com produção de prova pessoal, a respeito da disponibilização da quantia, em quadro executivo da abertura de crédito firmada, disse que o print (documental), que se juntou, não permitia reconhecer a transferência bancária, e a disponibilização.
E julgou não provado o facto (alínea b) factos não provados).

O contrato de abertura de crédito é uma operação bancária (artigo 362º do Código Comercial) que se constitui pela disponibilização, por um banco, de uma soma em dinheiro, junto do seu cliente, com a obrigação do seu reembolso (Acórdãos da Relação de Coimbra, de 19 de Dezembro de 2012, proc.º nº 132/12.2TBCVL-A.C1, ou de 9 de Maio de 2017, proc.º nº 1941/12.8TBFIG.C1).
A expectativa segura, o seu desiderato substantivo, é, pois, essa disponibilização.
Sem a qual se não cumpre qualquer perceptível função ou objectivo […].

Os factos provados, contudo, evidenciam a existência efectiva de uma relação jurídica bancária (vi. a xi.); desapoiada então da entrega da quantia mutuada (1.).
Situação (a da falta de entrega de qualquer quantia pelo banco no quadro da relação jurídica bancária efectivamente constituída) que, convenha-se, se mostra pouco verosímil, pouco crível […].

A dúvida documental, que traduz a curta clarificação da circunstância, podia talvez ser facilmente superada pela convocatória oficiosa de complemento probatório.
É de certa forma o vínculo, antes referido, e que carrega ao tribunal, de complementar a actividade dos sujeitos no processo, promovendo as acções ajustadas à justa composição do litígio, em aproximação à realidade histórica, que se visa descobrir e reconstituir.
Na hipótese, a melhor opção para superar a inconcludência teria sido realmente a de um convite (uma oportunidade) a uma apresentação que sustentasse a verificação em falta; sustentada pelas disposições dos artigos 411º ou 436º, nº 1, do CPC.

2.3.2.2. A sentença final deu como não provada a cessão de créditos do banco, e originário credor, para a empresa M… (alínea a) factos não provados).
Disse que o documento apresentado, para a evidenciar, era ilegível; e invocou a auto-responsabilidade da autora na gestão da prova.
É inegável, aqui também, que alguma coisa houve […]; não sendo crível (até) a propositura desta causa sem (a consequente) consistência fáctica associada.
O apelo é, outra vez, à inquisitoriedade, à oportunidade que deve ser promovida e impulsionada pelo juiz (que não é neutro); aqui ademais associada à disposição do artigo 441º, nº 1, do CPC, que directamente visa os documentos de difícil leitura e atribui à parte a obrigação de apresentar a sua cópia legível, cominando-lhe até sanção pecuniária conexa com a actuação oficiosa (nº 2).
Aqui se representa a existência real da prova, já junta; a que deve ser conferida a consistência efectiva, que a permita (esclarecidamente) descortinar e descobrir.

2.3.2.3. A sentença final excluiu das cessões de créditos, provadas, da M… para a autora, e desta para a apelante, os direitos que, com a acção, se pretendem ver reconhecidos (segmentos 1. e 2. factos provados).
O argumento continuou a ser o da inconcludência documental.
E que os poderes inquisitórios do juiz, nesse particular, realmente, eram adequados e apropriados a poder superar; em particular, por via de complemento documental que permitisse o confronto e o escrutínio efectivo dos factos, sem haver de se cair na (sempre) indesejável hesitação (e no supletivo critério do ónus da prova).
As ferramentas, os instrumentos, os mecanismos, estão disponíveis no código.
Era aqui (também) um esforço (do juiz) e uma oportunidade (à parte) que se podia (e devia) ter explorado; ultrapassando as (várias; duvidosas) inconcludências.

2.3.2.4. Acrescendo a isto.

Numa outra abordagem, que enquadramos em moldes diferentes, a sentença final disse que não formava convicção probatória em matéria de incumprimento e resolução, quer do negócio de abertura de crédito (artigo 11º da petição inicial), quer do contrato de locação financeira (artigo 19º da petição inicial), por se tratar de objecto impassível de suportar dimensão fáctica.
Mas, ao mesmo tempo, discriminou como factos não provados, o de que, naquele empréstimo, estivesse em dívida, à data da interposição da acção, o valor de 11.440,85 € (alínea d) factos não provados), e o de que, nesta locação, à mesma data, estivesse em dívida o valor de 4.853,35 € (alínea f) factos não provados).

O raciocínio que o tribunal “a quo” aplicou, no caso em que excluiu a sua convicção, era transponível para estes segmentos apontados como não provados (e que correspondem à alegação dos artigos 12º e 22º da petição inicial).
Nenhum desses trechos estava imbuído de espessura fáctica.
E, por conseguinte, não estava qualquer deles habilitado de virtualidade capaz de gerar efeitos jurídicos (algum efeito jurídico) consequentes.

Havia, portanto, e realmente, imperfeição na alegação da petição inicial.
E com vocação capaz de inviabilizar fatalmente o sucesso da acção.
Quer dizer; não estando configurados os factos constitutivos do(s) direito(s) visado(s) reconhecer, com o processo, ficavam sem objecto consistente (ao menos, na parte aqui em causa) as sucessivas cessões de créditos que, apesar de tudo – e nos termos antes vistos – ainda havia a possibilidade de reconfigurar.
E era este um vício que já provinha da fase dos articulados e da fase do saneamento […].
Que persistiu, a seguir, para a fase instrutória; e da audiência final […].
E que a sentença final (agora apelada) permite, por fim, evidenciar […].

Vejamos então.

A causa de pedir, na hipótese, está acertada, e devidamente, configurada.
E essa deu viabilidade para o seguimento da acção.

Os factos que se aparentam em falta, ainda que indiciados na abstracta e conclusiva alegação da petição, são essenciais, mas de carisma complementar e concretizador.
Como antes dissemos, estes não são precisos para identificar os contornos fundantes e primários da causa de pedir; mas, porque são integrantes da dimensão jurídica do direito que se vise reconhecer, sem eles a acção não procede (!).
A alegação da autora, na petição inicial, sinaliza uma sombra deles; mas apenas essa. E a sentença refere-se-lhes, na parte de enquadramento jurídico, quando discorre acerca da indemonstração do incumprimento contratual e do caminho necessário à extinção do contrato, por resolução, num e no outro dos negócios jurídicos em causa.

O significado de tudo é, portanto, agora, relembrando o antes referido, o de que se havia imposto, em tempo de saneamento, o proferimento, neste particular, de um despacho pré-saneador que, a coberto do artigo 590º, nº 2, alínea b), e nº 4, convidasse ao aperfeiçoamento da petição inicial, por modo de poder complementar e concretizar a matéria de facto, imprecisamente alegada, e dessa forma dar a espessura fáctica necessária ao sucesso da acção interposta.

O despacho pré-saneador não existiu.
E, deste ponto de vista, a omissão acarretou efeitos, de patologia, e decisivos.

A instância, assim habilitada, foi promovida e desenvolveu-se.

A autora, na petição inicial, ainda associara, ao incumprimento e resolução da abertura de crédito, uma «carta de interpelação junta como documento 5» (artigo 11º).
Que nunca foi junta ou apresentada, em algum momento da acção.
E o tribunal “a quo”, em fase de instrução e audiência, não se apartou dos carentes factos (essenciais), complementares e concretizadores, como se sinaliza do seu cuidado em evidenciar a respectiva indemonstração, e a conexa abordagem jurídica de impossibilidade da constituição do direito de crédito originário
Opção da senhora juíza julgadora, e que o perímetro dado pelo artigo 5º, nº 2, alínea b), do Código de Processo Civil, ainda lhe permitia.

Em todo o caso, com resultado inconcludente, na sentença final de mérito.

A derradeira questão que fica é, por consequência, a de saber se, em tempo de sentença final e com o quadro descrito, ainda é ajustado, acomodado ou juridicamente acertado, permitir o (omitido) despacho pré-saneador e dar, nesta fase (já) avançada, a oportunidade de se poderem suprir as insuficiências da petição inicial, por modo de completar a menos definida exposição em matéria de facto que nela se contém.
Com a inevitável consequência da anulação dos vários termos e actos processuais que com essa orientação possam ser afectados, depois da fase dos articulados.

Equacionando; e concluindo.

A alegação da petição inicial foi indiscutivelmente lacunosa, abstracta e genérica, em matéria de reconfiguração dos direitos emergentes do incumprimento e da resolução, a pretexto dos dois negócios jurídicos.
O ónus da alegação de facto mantém-se nas partes da acção.
Mas o tribunal igualmente perpetrou a opção, menos acertada, consistente na omissão de um (vinculado) despacho pré-saneador, no momento próprio.
E esta omissão condicionou de modo fatal, e foi assimilada, pela decisão de mérito que veio a produzir-se, mesmo sendo esta a sentença final da causa.

A moderna expressão vinculística, que envolve as habilitações jurisdicionais e se associa à máxima busca da verdade material e à justa composição do litígio, acomoda de certo ponto de vista o espectro largo de uma intervenção que possa cobrir também e ainda a própria sentença final.
A verdade é que esta padece de incompletude ou anomalia virtualmente suprível.
E cuja génese se reporta a uma opção menos conseguida do tribunal que julgou.

Por consequência, e honrando os vínculos da oportunidade (que nunca se concedeu) de melhor correcção de precedentes insuficiências ou imprecisões, uma decisão que permita, ainda, aperfeiçoar a petição, nos segmentos disso passíveis, será o contributo para a depuração fáctica, habilitante de uma mais justa composição material dos interesses; e que se deixa à oportunidade discricionária da parte.
Mesmo confrontando com o associado (e indesejável) efeito do retorno, ainda que só parcial, da relação jurídica adjectiva à (precedente) fase da gestão inicial do processo […].

2.4. Concluindo então.

A sentença apelada padece de uma patologia, de uma invalidade; e não subsiste.

Ao tribunal “a quo” vincula:

(1.º). em matéria de facto; que profira um despacho pré-saneador de convite à apelante (cessionária da autora) para o suprimento das insuficiências e imprecisões da sua alegação, narrando os convenientes factos jurídicos (complementares; concretizadores), em particular, em matéria de incumprimento e resolução dos negócios invocados, de abertura de crédito (artigos 11º e 12º da petição) e de locação financeira imobiliária (artigo 19º e 22º da petição) [artigo 590º, nº 2, alínea b), e nº 4, do CPC];

(2.º). em matéria de prova; que, usando dos poderes inquisitórios habilitantes, e na oportunidade devida:

(2.º-1). convoque a junção da prova suplementar apropriada, que seja a concretamente ajustada ao esclarecimento dos factos, relevantes, mas (ainda) insuficientemente certificados, em particular, em matéria (1) de disponibilização de fundos associada à abertura de crédito (artigo 7º da petição; alínea b) dos factos não provados) e (2) de enquadramento dos créditos nas segunda (artigo 2º da petição; redacção restritiva do facto 1. provado) e terceira (artigo 12º do requerimento de habilitação da apelante; redacção restritiva do facto 2. provado) transmissões [artigo 411º; artigo 436º, nº 1; ambos do CPC]; e

(2.º-2). convoque a junção de uma cópia legível do documento que certifica a primeira transmissão dos créditos, a cessão do credor bancário originário para a primeira cessionária (artigo 1º da petição; alínea a) dos factos não provados) [artigo 441º, nº 1, do CPC].

Nesta óptica, procedem as conclusões do recurso de apelação.


III – Decisão

1. Em face do exposto, acordam os juízes deste tribunal da Relação em julgar o recurso de apelação procedente e, em consequência:
1.º; anular a sentença final recorrida no segmento em que, com fundamento na inexistência de factos (artigos 11º e 19º da petição) e na indemonstração do volume das dívidas (artigo 12º da petição; alínea d) facto não provado [e] artigo 22º da petição; alínea f) facto não provado), julgou inverificados os créditos invocados como cedidos;
2.º; nesse segmento, determinar que o tribunal “a quo” profira um despacho pré-saneador, de aperfeiçoamento da petição inicial, por modo a dar a oportunidade de complementar e concretizar a matéria de facto referente aos alegados incumprimento e resolução dos negócios jurídicos de abertura de crédito e de locação financeira imobiliária;
3.º; anular a sentença nos segmentos em que, com fundamento em inconcludente verificação, julgou (1) não apurada a disponibilização dos fundos, em execução da abertura de crédito (artigo 7º petição; alínea b) facto não provado), e julgou (2) não apurada a integração dos créditos invocados nas transmissões alegadas, em segunda (artigo 2º petição; texto restritivo do facto provado 1.) e terceira (artigo 12º requerimento de habilitação; texto restritivo facto provado 2.) ordem;
4.º; nesse segmento, determinar que o tribunal “a quo”, previamente à formação da convicção, convoque a junção da prova suplementar que seja apropriada a atestar cada um desses factos (aliás, já indiciados);
5.º; anular a sentença no segmento em que, com fundamento na ilegibilidade do documento de suporte, julgou não apurada a cessão de créditos, alegada em primeira ordem (artigo 1º petição; alínea a) facto não provado);
6.º; nesse segmento, determinar que o tribunal “a quo”, previamente à formação da convicção, convoque a junção de cópia legível do referido documento.

2. Em consequência desta decisão:

2.1. persistem os actos já praticados, após os articulados, a que será acrescentado o agora ordenado despacho pré-saneador (1.2.º), limitando-se a sequência seguinte ao escrutínio fáctico dos (novos) factos que dele venham a decorrer;

2.2. a reabertura da audiência final, que virá a acontecer, limita-se à instrução e prova desses novos factos (consequentes ao pré-saneador) e à indagação probatória oficiosa agora ordenada (1.4.º e 1.6.º).

As custas do recurso acrescem às da acção, de acordo com a proporção que aí vier a ser indicada (artigo 607º, nº 6, do CPC).


Lisboa, 8 de Abril de 2025
Luís Filipe Brites Lameiras
Ana Rodrigues da Silva
Cristina Silva Maximiano