USURA
ELEMENTOS SUBJETIVOS E OBJETIVOS
SITUAÇÕES DE INFERIORIDADE
CARÁCTER NÃO TAXATIVO
EXPLORAÇÃO
LESÃO
Sumário

Sumário[1]:
(Elaborado pelo relator e da sua inteira responsabilidade – art.º 663.º, n.º 7, do Código de Processo Civil[2])
I. A usura é um vício complexo, composto por:
a) elementos subjetivos, respeitantes:
- por um lado, ao lesado ou vítima da usura; e,
por outro lado, ao usurário;
b) por elementos objetivos, respeitantes ao conteúdo do negócio,
sendo necessária para a existência da usura, a verificação cumulativa daqueles elementos e para que o negócio, porque viciado por ela, seja considerado usurário.
II. A enumeração das expressões contidas no art.º 282.º do CC para ilustração da situação de inferioridade, não é taxativa, mas meramente exemplificativa, sendo que o que importa é verificar se no momento da emissão da declaração negocial, o declarante se encontrava numa situação de inferioridade e que essa situação tenha sido essencial para a emissão da declaração negocial;
III. (...) pretendendo-se, por isso, abranger toda a inferioridade que mereça proteção jurídica, assim se impedindo que, da exploração dessa situação, alguém obtenha a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados.
IV. Essa situação de inferioridade para ser relevante em sede de negócio usurário, deve verificar-se no momento da sua celebração, sendo irrelevante se ocorreu antes ou depois da sua realização.
V. A situação de necessidade que decorre da verificação do pacto usurário existe quando alguém patenteia a necessidade, real e instante, de obtenção de uma prestação para se livrar de dificuldades.
VI. O elemento subjectivo da usura é integrado não só pela situação de inferioridade em que se encontra o declarante, mas também pela exploração dessa situação por parte do declaratário usurário;
VII. (...) a qual se traduz no aproveitamento que o usurário conscientemente faz da situação de inferioridade em que o lesado se encontra, ou seja, é a acção pela qual o usurário tira conscientemente proveito da situação do declarante.
VIII. Para que esta “exploração” ocorra é antes de mais necessário que o usurário tenha conhecimento do estado de inferioridade do declarante, o que significa que o usurário tem de conhecer a situação de inferioridade em que o lesado se encontra, pois sem a conhecer não a pode explorar, não pode aproveitar-se dela.
IX. Para além disso, exige-se que o usurário tenha consciência dessa exploração, mas não se exige que a vítima da usura tenha consciência de que está a ser explorada, assim como não se exige que ela não tenha essa consciência.
X. Nos termos e para os efeitos do artigo 282.º do CC, não é toda e qualquer lesão que é juridicamente relevante, sendo necessário que ela ultrapasse certos limites, aquém dos quais a lesão não é excessiva e é justificada pela própria natureza do negócio jurídico em que se verifica.
XI. Determinar se o benefício prometido ou concedido é excessivo ou injustificado, isto é, se a lesão é ou não relevante, é questão que fica entregue, caso por caso, ao prudente critério do julgador.
XII. O art.º 282.º do CC não se refere ao declaratário e ao declarante, antes utilizando os vocábulos “alguém” e “outrem”, pelo que, para se considerar o negócio como usurário, não é necessário ser o declaratário a explorar a situação de inferioridade, também podendo acontecer que:
- o beneficiado pelo negócio não seja o declaratário;
- o terceiro beneficiado não seja nem o declaratário nem o usurário.
XIII. Já o mesmo se não pode afirmar da utilização do vocábulo “outrem” em vez de “declarante”, pois quem emite a declaração negocial (o declarante) é sempre quem se encontra na situação de inferioridade.
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[1] Neste acórdão utilizar-se-á a grafia decorrente do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
[2] Diploma a que pertencem todos os preceitos legais citados sem indicação da respetiva fonte.

Texto Integral

Acordam na 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:

I - RELATÓRIO:
AFC intentou ação declarativa, sob a forma comum, contra P, S.A.[3], e FM[4], pedindo:
- que seja declarado «nulo e de nenhum efeito o contrato de compra e venda entre A. e a R. sociedade, celebrado por escritura de __/__/__, lavrada no Cartório Notarial ____, de fls 50 a 51 vº do Livro de Notas para Escrituras Diversas 113, ou, sem conceder, ser anulado, sendo sempre declarados nulos, ou anulados, os registos de aquisição a favor da R. sociedade;
- e os RR. condenados a, solidariamente, pagar à A. indemnização no montante de 15.000,00 euros.»
Alega, para o efeito e em síntese, que no âmbito das partilhas subsequentes ao divórcio que dissolveu o vínculo matrimonial que a ligava a LAE, foi-lhe adjudicada a fração autónoma identificada pela letra “H”, correspondente ao 3.º andar direito para habitação do prédio urbano sito na Praceta ____[5].
Nessa partilha, a autora ficou de dar tornas ao seu ex-marido, no valor de € 10.000,00.
Não dispondo de tal quantia, respondeu a um anúncio num jornal onde era anunciado o empréstimo de dinheiro, na sequência do que foi contactada por uma pessoa de nome LP, que lhe disse conhecer um investidor que estava na disposição de lhe emprestar dinheiro, sob a condição de constituição de uma hipoteca sobre a fração, como garantia da restituição do montante mutuado e respetivos juros.
No dia 24 de fevereiro de 2011, a referida LP contactou a autora dando-lhe conta de que a escritura pública de mútuo e hipoteca teria de ser celebrada no dia seguinte, a pretexto de nesse dia o investidor se deslocar a Lisboa.
Assim, no dia __/__/__, num Cartório Notarial em Lisboa, foi-lhe apresentado o investidor, o 2.º réu, que se limitou a dizer que estava com muita pressa e que, para se ultimar o empréstimo era necessário que a autora assinasse de imediato a respetiva documentação, que já trazia consigo, o que esta fez, em estado de ansiedade e nervosismo, sem se aperceber daquilo que efetivamente estava a assinar.
Só mais tarde se apercebeu que naquela data assinou uma escritura nos termos da qual declarou vender a fração à 1.ª ré, pelo preço de € 18.000,00, quando estava convencida de que se tratava de uma escritura de mútuo e hipoteca.
Sucede que, dos referidos € 18.000,00, à autora apenas foi entregue a quantia de € 7.700,00.
O negócio formalizado não passou assim de um esquema ardiloso, arquitetado pelos réus, com o auxílio e conluio dos restantes intervenientes, que induziram a autora em erro, causando-lhe avultados prejuízos, nomeadamente subtraindo-lhe o direito de propriedade sobre um imóvel, contra a sua vontade e sem o seu conhecimento.
A autora apresentou queixa-crime contra o 2.º réu e a referida LP, sucedendo que, no âmbito do processo crime a que a mesma deu causa, e que veio a ser arquivado, estes apresentaram um contrato-promessa de compra e venda, com a mesma data da escritura acima referida, do qual consta que a ré sociedade declarou prometer vender à autora, que declarou prometer comprar-lhe, a fração acima identificada, durante um período de seis meses e pelo preço de € 27.000,00.
A autora não celebrou com os réus qualquer contrato-promessa, presumindo que o documento que o consubstancia se encontrava entre o «molho de papéis» que lhe foi dado para assinar.
Não teve oportunidade de ler esse documento, o qual mais não é do que «um subterfúgio fabricado pelos RR. para com isso pretenderem justificar a sua abusiva actuação e apropriação ilegítima do património da A., e à custa dela».
*
Os réus contestaram, arguindo:
a) a exceção dilatória consistente na incompetência territorial do tribunal onde a ação foi inicialmente distribuída;
b) a exceção perentória consistente na prescrição do direito que a autora pretende fazer valer através desta ação.
No mais, defendem-se por via de impugnação.
Além de contestarem, a 1.ª ré deduziu reconvenção contra a autora, alegando, em síntese, que esta, no âmbito do referido contrato-promessa, foi interpelada para comparecer no local e na data que lhe foram indicados com vista à realização do contrato definitivo, não o tendo feito.
No entanto, continua a residir na fração até à presente data, pelo que a 1.ª ré é credora da autora em montante equivalente ao do arrendamento local, ou seja, à razão de € 300,00 por cada mês decorrido desde a data do início retenção do imóvel, o que perfaz a quantia de € 17.100,00.
Os réus concluem assim a contestação/reconvenção:
«TERMOS EM QUE, DEVEM:
a) ser julgada a procedente a exceção invocada;
b) ser a presente ação julgada improcedente, por não provada e absolvidos os RR. dos pedidos;
c) ser a Arguida [sic] condenada a pagar à Sociedade Ré (...) a título de retenção do imóvel, até à presente data, bem como no pagamento dos meses vincendos até ao trânsito em julgado dos presentes autos.»
*
A autora apresentou articulado de réplica no qual respondeu à matéria de exceção e deduziu oposição à reconvenção, concluindo assim aquele articulado:
«Termos em que deverão ser julgadas improcedentes por não provadas as excepções invocadas, não ser admitido o pedido reconvencional, ou, sem conceder, ser julgado improcedente por não provado, e, subsidiariamente, ser o contrato promessa reduzido quanto ao preço aí previsto, a fixar no valor correspondente ao efectivamente colocado à disposição da R. aquando da escritura de __/__/__ (7.700,00 euros), com fixação de prazo para o cumprimento.»
*
Julgada procedente a exceção dilatória consistente na incompetência territorial do tribunal onde a ação foi inicialmente distribuída, foram os autos remetidos ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, Juízo Central Cível de Lisboa, tendo sido distribuídos pelo Juiz _.
*
Na audiência prévia foi julgada improcedente, por não provada, a exceção perentória consistente na prescrição do direito qua a autora pretende fazer valer através desta ação.
Além disso, o tribunal a quo:
- considerou «adquiridos por acordo nos termos do art.º 574.º n.º 2 e provados por documento» os enunciados fáticos descritos sob as als. A) a P) de fls. 160-162;
- enunciou, como temas de prova, as 39 (trinta e nove) preposições que constam da ata da audiência prévia.
*
Mediante despacho de fls. 239-242, foi julgada verificada a exceção dilatória de litispendência quanto à reconvenção, com a consequente absolvição da autora da instância reconvencional.
*
Realizou-se a audiência final, após o que foi proferida sentença que julgou a ação improcedente, por não provada, com a consequente absolvição dos réus dos pedidos contra si formulados pela autora.
*
A autora apelou dessa sentença, na sequência do que, no dia 19 de maio de 2020 foi por este tribunal ad quem proferido acórdão de cuja parte dispositiva consta o seguinte:
«Por todo o exposto, acordam os juízes que integram esta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em anular a sentença recorrida, em consequência do que:
4.1 - determinam a devolução dos autos à primeira instância nos termos e para os efeitos em 3.2.2, após o que se procederá à realização de nova audiência final, limitada às questões fáticas ali enunciadas, com a prolação de nova sentença que considere os elementos fáticos que vierem ser apurados em consequência da atividade probatória que produzida for;
4.2 - determinam que na nova sentença que vier a ser proferida, tanto a decisão sobre os enunciados fáticos objeto de ampliação, como a matéria de facto não provada constante da sentença ora anulada, seja devidamente fundamentada de acordo com o vertido em 3.2.3 desde acórdão.
4.3 - consideram prejudicado o conhecimento de quaisquer outras questões suscitadas no presente recurso de apelação (art.º 663.º, n.º 2, do C.P.C.)».

Devolvidos os autos à 1.ª instância para os efeitos determinados naquele acórdão, foi proferida nova sentença, cujo dispositivo é idêntico ao da anterior.
*
Uma vez mais inconformada, a autora apelou novamente dessa sentença.
*
Uma vez que a 1.ª instância não cumpriu integralmente o determinado no acórdão de 19 de maio de 2020, no dia 8 de novembro de 2022 foi proferido novo acórdão, com o seguinte dispositivo:
«Por todo o exposto, acordam os juízes que integram esta 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em anular a nova sentença recorrida, em consequência do que:
4.1 - determinam a devolução dos autos à primeira instância para que ai, tal como determinado no acórdão de 19 de maio de 2020, seja decidida a seguinte questão de facto: “A compradora tinha conhecimento do valor da fração à data da realização da escritura”.
4.2 - determinam que na nova sentença que vier a ser proferida, tanto a decisão sobre aquela questão de facto, como a matéria de facto não provada constante da sentença agora anulada, seja devidamente fundamentada de acordo com o que acima ficou expresso e se encontra em 3.2.3 do acórdão proferido em 19 de maio de 2020.
4.3 - consideram prejudicado o conhecimento de quaisquer outras questões suscitadas no presente recurso de apelação (art.º 663.º, n.º 2, do C.P.C.)».
*
Devolvidos os autos à 1.ª instância, para os efeitos determinados naquele acórdão, foi proferida nova sentença, datada de 22 de fevereiro de 2024, cujo dispositivo é idêntico ao das anteriores, ou seja:
«Pelo exposto, o Tribunal decide julgar totalmente improcedente a presente acção e, em consequência absolve os réus P, S.A. e FM, do pedido contra eles formulado pela autora».
*
Uma vez mais inconformada, a autora veio apelar dessa sentença, concluindo assim, as respetivas alegações:
«1ª- Sobre os factos considerados provados de 17 a 21, já este Venerando Tribunal decidiu, por douto Acórdão de 8 de Novembro de 2008[6], que:
“O ponto 17. dos factos provados passa, assim, a ter a seguinte redação: «À data referida em 1., a fração tinha o valor de mercado de € 66.000,00»;
2ª- Está por isso a douta sentença ferida de nulidade e em clara contradição com o que superiormente já foi decidido, assim daquele elenco de 17 a 21 apenas dado como provado, e definitivamente, que «À data referida em 1., a fração tinha o valor de mercado de € 66.000,00»;
5ª- Deverá também ser aditado à matéria assente que a R. compradora tinha conhecimento desse valor;
12ª- Devem ser considerados provados os enunciados descritos em 24 e 25, do elenco dos factos considerados não provados;
13ª- Devem ser considerados provados os enunciados descritos em 27 e 28, do elenco dos factos considerados não provados;
14ª- Deve ser considerado provado o enunciado descrito em 21, do elenco dos factos considerados não provados;
17ª- Deve ser considerada matéria assente, que no processo de inventário para separação de meações entre A. e seu ex-marido, que correu termos no Juiz _ do Juízo de Família e Menores de Sintra com o nº ____/__, ficou adjudicada à ora A. o imóvel do autos, pelo valor de 65.000,00 euros, e que da partilha acordada resultou-lhe a obrigação de pagar tornas a seu ex-marido no valor de 10.000,00 euros (fls. 552 e 553 daqueles autos), o que foi homologado por sentença de 2/7/2010 e transitada em julgado em 1/9/2010.
18ª- Deve ser considerado provado o enunciado descrito em 1, do elenco dos factos considerados não provados;
21ª- (...) devem ser considerados provados:
- os enunciados descritos em 4, 5, 7, 8 e 10, do elenco dos factos considerados não provados;
- os enunciados descritos em 18, 20, 31, 32, 33, do elenco dos factos considerados não provados;
22ª- Devem ser considerados provados os enunciados descritos em 2 e 3 do elenco dos factos considerados não provados;
23ª- Deve ser considerado provado o enunciado descrito em 19 do elenco dos factos considerados não provados.
28ª- Trata-se de negócio absolutamente usurário, contrário à ordem pública e ofensivo dos bons costumes, devendo ser por isso declarado nulo ou sem conceder anulado.
29ª- O negócio formalizado não passou assim de um esquema ardiloso e arquitectado pelos RR. com o auxílio e conluio dos restantes intervenientes, induzindo a A. em erro e determinando-lhe avultados prejuízos, nomeadamente a subtracção de um imóvel à sua propriedade contra a sua vontade e conhecimento. A descrita actuação ilícita e abusiva dos RR. e as circunstâncias em que o negócio de compra e venda foi celebrado torna-o nulo e de nenhum efeito, ou, sem conceder, anulável, o que tudo expressamente se vem arguir.
30ª- E caso os negócios não tivessem todos os outros apontados vícios, sempre seriam absurdos, abusivos e ilegais, manifestamente desproporcionais e usurários, tendo os RR. reduzido a escrito tais condições em clara ofensa dos bons costumes, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, e estado mental da A., pretendendo com isso obter benefícios injustificados e excessivos;
31ª- Aliás, do confronto entre os dois negócios formalizados - compra e venda e contrato-promessa de recompra – resulta desde logo à saciedade que os RR. pretenderam dissimular o verdadeiro negócio de base, antes um contrato de mútuo, mas com criação de condições excessivas, abusivas e manifestamente usurárias, também com a eliminação das barreiras e limites legais à constituição de hipotecas, antes fazendo deslocar o direito de propriedade do bem para si próprios, com isso contornando a necessidade de eventual execução de hipoteca, maximizando ainda mais, por essa mesma via, os seus abusivos proveitos, devendo assim ser declarado nulo, ou, sem conceder, anulado, o contrato de compra e venda em causa, e determinada a restituição do que as partes houverem prestado.
32ª- A Sentença recorrida violou os artigos 226º do C.P. e 281º, 282º, 283º, 294º, 240º, 246º, 247º, 559º-A e 1.146º do C.C., pelo que deve ser alterada – quer quanto à matéria de facto, quer quanto à decisão de mérito – nos termos acima definidos.
E assim se fará Justiça!»
*
Não foram apresentadas contra-alegações.
***
II – ÂMBITO DO RECURSO:
Como se sabe, sem embargo das questões de que o tribunal ad quem possa ou deva conhecer ex officio, é pelas conclusões com que o recorrente remata a sua alegação (aí indicando, de forma sintética, os fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão recorrida: art.º 639.º, n.º 1) que se determina o âmbito de intervenção do tribunal ad quem.
Efetivamente, muito embora, na falta de especificação logo no requerimento de interposição, o recurso abranja tudo o que na parte dispositiva da sentença for desfavorável ao recorrente (art.º 635.º, n.º 3), esse objeto, assim delimitado, pode vir a ser restringido (expressa ou tacitamente) nas conclusões da alegação (n.º 4 do mesmo art.º 635.º).
Por isso, todas as questões de mérito que tenham sido objeto de julgamento na sentença recorrida e que não sejam abordadas nas conclusões da alegação do recorrente, mostrando-se objetiva e materialmente excluídas dessas conclusões, têm de se considerar decididas e arrumadas, não podendo delas conhecer o tribunal de recurso, ainda que, eventualmente, hajam sido suscitadas nas alegações propriamente ditas.
Por outro lado, como meio impugnatório de decisões judiciais, o recurso visa tão só suscitar a reapreciação do decidido, não comportando, assim, ius novarum, i.é., a criação de decisão sobre matéria nova não submetida à apreciação do tribunal a quo (cfr. os arts. 627.º, n.º 1, 631.º, n.º 1 e 639.º).
Ademais, também o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos produzidos em alegação, mas apenas – e com liberdade no respeitante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito (art.º 5.º, n.º 3) – de todas as “questões” suscitadas, e que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as  que resultem prejudicadas pela solução dada a outras (art.º 608.º, n.º 2, do CPC, ex vi do art.º 663.º, n.º 2).
À luz destes considerandos, neste recurso importa decidir:
- se há lugar à alteração da decisão sobre a matéria de facto;
- se deve ser declarado nulo ou anulado o negócio jurídico consubstanciado no contrato de compra e venda tendo por objeto a fração autónoma identificada pela letra “H”, correspondente ao 3º andar direito para habitação do prédio urbano sito na Praceta ____, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo __, agora correspondente ao artigo __ da União das freguesias de ____, titulado pela escritura pública realizada no dia __/__/__, no Cartório Notarial ____.
***
III - FUNDAMENTOS:
3.1 - Fundamentação de facto:
3.1.1 - A sentença recorrida considerou provado que:
«1. Em __/__/__ foi celebrado contrato de compra e venda formalizado por escritura pública lavrada no Cartório Notarial de ____ que teve por objecto a fracção autónoma identificada pela letra “H”, correspondente ao _º andar direito para habitação do prédio urbano sito na Praceta ____.
2. Por via desse contrato a autora declarou vender e a ré P, S.A. aceitou comprar a fracção autónoma identificada em 1. pelo preço de 18.000,00 euros que a autora declarou ter recebido e do qual deu quitação.
3. Aquela aquisição encontra-se registada pelas Ap. __ de __/__/__ e pela Ap. __ de __/__/__.
4. Para pagamento do preço foram emitidos quatro cheques em nome da autora, sacados sobre a conta ____ da ré sociedade no Banco ____, mais concretamente:
. Nº ___, datado de __/__/__, no valor de 9.700,00 euros;
. Nº 6365386440, datado de __/__/__, no valor de 1.870,00 euros;
. Nº 6365386343, datado de __/__/__, no valor de 2.430,00 euros;
. Nº 6365386537, datado de __/__/__, no valor de 4.000,00 euros.
5. Na mesma data, __/__/__, foi celebrado contrato-promessa de compra e venda onde se fez constar que a ré e a autora acordaram que a ré se obrigava a vender à autora e esta prometia comprar a fracção autónoma identificado em 1. pelo preço de 27.000,00 euros.
6. Mais se refere que a escritura pública de compra e venda seria celebrada no prazo máximo de 180 dias e as condições de pagamento do preço, tudo como melhor consta do documento junto a fls. 34 a 36 dos autos.
7. O cheque no valor de 9.700,00 euros foi logo levantado pela autora ao balcão do Banco ____ sito em Lisboa.
8. O cheque de 1.870,00 euros foi levantado no mesmo balcão da mesma agência bancária.
9. O cheque de 2.430,00 euros foi creditado em conta bancária de ML.
10. O cheque de 4.000,00 euros foi levantado por NP.
11. A ré comunicou à autora, por carta registada com A/R, em 29 de Maio de 2012, que nos termos do número dois da cláusula quarta do contrato-promessa referido em 5., a marcação da escritura pública de compra e venda da fracção identificada em 1., para o dia 29 de Junho.
12. A autora não compareceu para a concretização da outorga da escritura pública.
13. A autora continua a morar na fracção identificada em 1.
14. Após a celebração do contrato referido em 1., a autora entregou à ré a quantia de 400,00 euros.
15. A autora apresentou queixa-crime contra o 2º réu, na qualidade de administrador único da 1ª ré e contra LP, tendo corrido termos o Processo de Inquérito nº ____/__ na _ª Secção do DIAP de Lisboa, no qual veio a ser proferido, a final, despacho de arquivamento.
16. Da escritura de compra e venda consta expressamente que a Sra. Notária explicou o conteúdo da mesma às partes.
17. D[o] relatório pericial, datado de 28.04.2021consta que o imóvel supra referido valia 66.000,00 euros em 27.02.2011.
18. Consta do relatório que o Sr. Perito utilizou um método comparativo de valores de mercado de venda.
19. Mais se encontra escrito no relatório pericial que a retroacção do valor determinado para a fracção foi feito com recurso aos índices oficiais publicados pelo I.N.E. sendo que não há factores específicos aplicados à avaliação de apartamentos em Massamá.
20. Consta do relatório que o prédio onde se insere a fracção aqui em causa de situa num bairro do tipo social, tem três andares sem elevador.
21. Consta ainda que a avaliação retroactiva ao ano de 2011 foi feita considerando que o imóvel estava livre e devoluto e sem ónus ou encargos de qualquer espécie».
*
3.1.2 – (...) e não provado que:
«1. O ex-marido da autora pressionava-a para obter o pagamento das tornas por esta devidas em consequência da partilha efectuada na sequência de divórcio;
2. Em Novembro de 2010 faleceram, sucessivamente, a mãe da A. e uma sua neta, o que lhe provocou um abalo psicológico muito grave;
3. (...) o que, aliado à cada vez maior insistência do ex-marido em receber o seu crédito de tornas, a conduziu a uma depressão constante e a uma angústia debilitante das suas capacidades físicas e intelectuais;
4. Procurou o financiamento dos 10.000,00 euros junto das Instituições bancárias, mas sempre sem sucesso;
5. Como tais tentativas resultaram infrutíferas, pensou então recorrer a investidores que lhe mutuassem aquela quantia, para o efeito telefonando para o número 9__ ___ ___, constante de anúncio no Jornal “Ocasião”, com os dizeres “Empresto c/ cheques Valores entre os €500 e os €1.000 TAEG 13,9% Honestidade 9__ ___ ___”;
6. Contactado o anunciante, o mesmo assumiu-se como Engenheiro e chamar-se AR, e, ouvida a pretensão da A., afirmou estar apenas disponível para empréstimo até ao limite máximo de 1.000,00 euros, mas, porém, que conhecia quem lhe proporcionaria o negócio que aquela perspectivara, do que daria notícias;
7. E, assim, poucos dias depois, veio a autora a ser contactada telefonicamente por uma senhora de seu nome LP, auto-intitulada por Dr.ª e assessora do Banco ____;
8. (...) que logo lhe anunciou conhecer investidor para realizar o negócio, condicionado à celebração de hipoteca para garantia do mútuo, a que a autora não colocou entrave; 
 9. Encontraram-se algumas vezes, na rua e em cafés, sempre a LP dando o mútuo como certo e seguro, dados os seus privilegiados contactos com investidores e o investidor em causa em particular, mas também com as entidades bancárias;
10.  A autora crente na bondade do que lhe era anunciado, entregou-lhe toda a documentação necessária à formalização do mútuo com hipoteca e incumbiu-a de marcar a respectiva escritura, como ela repetida e insistentemente lhe propunha. 
11. A LP convenceu a autora a visitar o imóvel para suposta confirmação do seu estado e valor, a que voltou posteriormente sem conhecimento e na ausência dela, pediu-lhe o envio de fotografias para suposto reenvio ao tal investidor, a que a autora correspondeu, acompanhou-a à CGD por ocasião de obtenção de documento para distrate de hipoteca antiga, bem como à Conservatória do Registo Predial onde, a 10/2/2011, a autora promoveu o registo da aquisição em seu nome e o cancelamento da tal hipoteca e de uma outra, já há muito pagas;
12. A LP muniu-se ainda, por o solicitar à A., de cópia de avaliação ao imóvel feita no processo de inventário, pelo que tinha perfeito conhecimento – tal como os réus – de valer a fracção pelo menos a quantia de 60.000,00 euros, precisamente o valor pelo qual fora adjudicada à ora autora;
13. No dia 24 de Fevereiro de 2011, a LP contactou telefonicamente a autora dando-lhe conta de que a escritura era urgente e teria que se realizar no dia seguinte e bem cedo – a pretexto de breve deslocação do investidor a Lisboa nesse dia e horário - combinando encontrar-se com ela no Rossio e daí guiá-la e seguirem juntas para a escritura, conforme sucedeu;
14. Chegadas ao Cartório Notarial, que a autora reteve apenas ser na Avenida ____, e antes da entrada para a sala onde o negócio foi formalizado, a LP ainda avisou a autora para reprimir o seu evidente estado de ansiedade e nervosismo, a pretexto do investidor poder desistir do negócio;
15. Era então muito cedo e toda a atmosfera de urgência criada na autora foi de receio pela não concretização do mútuo e de necessidade de esconder os nervos;
16. Chegou depois o segundo réu, que a LP apresentou como sendo o mutuante, e que se limitou a dizer bom dia e que estava com muita pressa, logo argumentando que era absolutamente necessário, para ultimar o empréstimo com hipoteca, que a ora autora imediatamente assinasse vários documentos que foi escolhendo de um molho deles que trazia, o que a autora fez, sem ler e sem se aperceber da natureza e do teor de tal papelada, do que nada lhe foi explicado, antes retirado imediatamente;
17. A autora celebrou a escritura com a R. Sociedade porque confiava na sua interlocutora, e porque estava em completa necessidade e desespero para pagar as tornas devidas a seu ex-marido;
18. A autora estava absolutamente convencida de que estava a contrair um empréstimo de 10.000,00 euros, garantido por hipoteca;
19. E, mercê do seu estado de necessidade, nervosismo e ansiedades reprimidos, e da atmosfera que lhe foi criada, nem se deu conta dos verdadeiros contornos do negócio formalmente realizado ou sequer do negócio em si;
20. Nunca o negócio formalizado fora sequer equacionado pela A. ou passível sequer de alguma ponderação, pois a fracção tinha um valor muito superior e a autora não pretendia desfazer-se da sua fracção, mas assegurar a estabilidade da sua aquisição;
21. A autora apenas recebeu 7.700,00 euros que pensou terem-lhe sido mutuados;
22. Da quantia titulada pelo cheque referido em 7. dos factos provados, a LP, imediatamente reteve e fez sua a quantia de 2.000,00 euros, ou dividiu com AR (o anunciante), DT e RL;
23. A autora não se apercebeu que a LP após ter colhido/aposto ou obtido a sua assinatura, sem que disso se apercebesse, procedeu ao levantamento do cheque referido em 8. dos factos provados, e cujo valor fez seu ou dividiu com as pessoas referidas no item anterior; 
24. A autora desconhecia e desconhece ML, titular da conta referida em 9. dos factos provados, e pessoa especialmente relacionada com a ré sociedade;
25. A autora desconhecia e desconhece NP, pessoa também sem qualquer ligação a si e a quem não entregou o cheque referido em 10. dos factos provados, ou determinou o pagamento, para o que não tinha também qualquer razão ou fundamento;
26. A autora não assinou o verso dos cheques referidos em 8 a 10 dos factos provados;
27. Os réus fizeram circular cheques por si emitidos por entre as pessoas referidas nos itens anteriores, criando artificialmente a ideia da autora os ter recebido ou de ter determinado as entregas que eles próprios decidiram e concretizaram;
28. O negócio formalizado foi engendrado pelos réus, com o auxílio e conluio dos restantes intervenientes, induzindo a autora em erro e obtendo a fracção autónoma, propriedade daquela, contra a sua vontade e conhecimento;
29. A autora não viu, não negociou, nem concordou com qualquer termo do contrato-promessa referido em 5. dos factos provados;
30. A autora terá assinado o dito contrato-promessa nas circunstâncias supra referidas;
31. Com os contratos referidos em 1. dos factos provados, pretenderam os réus dissimular o verdadeiro negócio de base que era um contrato de mútuo;
32.  A autora entregou a quantia referida em 14. dos factos provados, no convencimento de que o estava a fazer para amortização do mútuo;
33. A actuação dos réus causou e vem causando sérios e graves transtornos morais à autora, com muita apreensão e temor quanto ao seu futuro e ao seu direito a habitação;
34. A autora no dia da outorga do contrato de compra e venda tinha conhecimento do negócio que ia outorgar e que correspondia ao real negócio que ia efectuar;
35. No interior do cartório notarial e em momento anterior ao da outorga do instrumento de compra e venda foi explicado à autora toda a documentação que sustentava o negócio;
36. A ré sempre quis comprar e prometer vender a fracção identificada nos autos;
37.  A ré nunca quis emprestar quaisquer valores e tal questão nem lhe foi posta;
38. A autora tem pleno convencimento do exercício de um direito seu em residir no imóvel referido em 1. dos factos provados, sem que os réus a isso alguma vez se opusessem, completamente desinteressados do imóvel ou de qualquer responsabilidade que lhe seja inerente e não efectuando nenhum dos pagamentos que respeitem à fracção, nomeadamente condomínio;
39. A autora na data e hora da realização da escritura não apresentava sinais de debilidade, ansiedade, nervosismo, ou qualquer outro que revelasse a falta de compreensão ou conhecimento, pelo contrário revelando compreensão e boa disposição, sobre tudo o que ali estava a acontecer;
40. A autora não mostrou qualquer dúvida relativamente ao facto referido em 15. dos factos provados;
41. O que o Dr. RL propôs aos réus era se a ré estava interessada em adquirir um imóvel pelo valor de 18.000.00 euros celebrando um contrato de promessa compra e venda pelo prazo de 6 meses e pelo valor de venda de 27.000,00 euros, conforme proposto a este;
42. Esta proposta foi aceite pela ré, sendo que ambos os réus desconheciam se a autora pretendia um empréstimo, se tinha dificuldades financeiras, se estava com problemas do foro psicológico, se tinha de dar tornas ao ex-marido, ou se havia comissões;
43. Os réus não conheciam a autora, a LP e outros que aquela refere só as tendo visto no dia da celebração da escritura».
***
3.2 - Do mérito do recurso:
3.2.1 – A matéria de facto:
3.2.1.1 – A seleção da matéria de facto:
Na audiência prévia realizada no dia 14 de maio de 2018 (Ref.ª 376463561), a senhora juíza a quo enunciou nada mais, nada menos, do que 39 (trinta e nove) preposições que classifica como temas da prova[7].
É evidente que aquilo que a senhora juíza a quo fez não foi enunciar temas da prova, antes tendo adotado uma prática manifestamente desajustada da atual realidade processual civil portuguesa.
Tal como referido na «Exposição de Motivos» da Proposta de Lei n.º 113/XII «relativamente aos temas da prova a enunciar, não se trata mais de uma quesitação atomística e sincopada de pontos de facto, outrossim de permitir que a instrução, dentro dos limites definidos pela causa de pedir e pelas exceções deduzidas, decorra sem barreiras artificiais, com isso se assegurando a livre investigação e consideração de toda a matéria com atinência para a decisão da causa».
Conforme salienta Paulo Pimenta, «por isso é que o art.º 410.º, sobre o objecto da instrução, diz que esta tem por objeto “os temas da prova enunciados”. Como é evidente, a prova recai sobre factos e não sobre temas. O que o art.º 410.º pretende significar é que, na produção de prova, os factos a considerar serão todos os que tenham atinência com os temas da prova enunciados»[8].
Afirma ainda o Autor que «quando mais adiante o juiz vier a decidir a vertente fáctica da lide, aquilo que importará é que tal decisão expresse o mais fielmente possível a realidade histórica tal como esta, pela prova produzida, se revelou nos autos, em termos de assegurar a adequação da sentença à realidade extraprocessual.
Estamos aqui perante um novo paradigma que, por isso mesmo, tem necessárias implicações, seja na eliminação de preclusões quanto à alegação de factos, seja na eliminação de um nexo direto entre os depoimentos testemunhais e concretos pontos de facto pré-definidos[9], seja ainda na inexistência de uma decisão judicial que, tratando a matéria de facto dos autos, se limite a “responder” a questões que não é suposto serem sequer formuladas.
Relativamente aos critérios que deverão nortear a enunciação dos temas da prova, cumpre dizer que o modelo a empregar é fluído, não sendo suscetível de se submeter a “regras” tão precisas e formais quanto as relativas ao questionário e à base instrutória.
Agora, a enunciação dos temas da prova deverá ser balizada somente pelos limites que decorrem da causa de pedir e das excepções invocadas. Nessa conformidade, os temas da prova serão aqueles que os exactos termos da lide justifiquem. (...) pode dizer-se que haverá tantos temas da prova quantos os elementos integradores do tipo ou dos tipos legais accionados pelas alegações das partes, o que implica que o juiz e os mandatários atentem nisso. Para essa ponderação contribuirá também a circunstância de nos termos do CPC de 2013, a enunciação dos temas da prova ocorrer em seguida à identificação do objecto do litígio, já que esta identificação logo demandará uma adequada consciencialização daquilo que está realmente em jogo em cada acção»[10].
A este respeito, refere Lebre de Freitas que «(...) a decisão de facto continua a incluir todos os factos relevantes para a decisão da causa, quer sejam os principais (dados como provados ou não provados), quer sejam os instrumentais, trazidos pelas partes ou pelos meios de prova produzidos, cuja verificação, ou não verificação, leva o juiz a fazer a dedução quanto à existência dos factos principais: o tribunal relata tudo o que, quanto ao tema controvertido, haja sido provado, ainda sem qualquer preocupação quanto à distribuição do ónus da prova.
Sobre esta distinção apenas a decisão de direito se preocupará.
Consequentemente, se o tribunal de recurso, em apelação ou em revista, vier a fazer uma interpretação diferente da do tribunal da 1.ª instância, da norma, geral ou especial, de distribuição do ónus da prova, os factos que interessem a esta noa perspetiva constarão todos da decisão de facto, que por esse motivo deverá ser alterada ou completada[11].
A distinção entre matéria de facto e matéria de direito esbate-se no despacho do art.º 596, que poderá enunciar temas da prova usando qualificações jurídicas que na anterior base instrutória eram inadmissíveis»[12].
Ou seja, com a enunciação dos temas da prova (art.º 596.º, n.º 1), o legislador pretendeu erradicar, de uma vez por todas, da prática judiciária portuguesa, a cultura durante décadas arreigada à figura do questionário, elegendo os temas da prova como a vertente normativa ou jurídica dos factos principais integradores da causa de pedir ou das exceções (ou seja, factos essenciais, complementares e concretizadores - art.º 5.º, n.ºs 1 e 2, al. b)) que subsistem controvertidos.
Os temas da prova constituem, por isso, a vertente normativa ou jurídica dos factos principais integradores da causa de pedir ou das exceções (ou seja, factos essenciais, complementares e concretizadores - art.º 5.º, n.ºs 1 e 2, al. b)) que subsistem controvertidos, factos esses sobre os quais incidirá a produção da prova, enquanto atividade desenvolvida em juízo com vista ao convencimento do julgador acerca da realidade de um determinado facto, e que passa utilização de meios de prova.
Os temas da prova, constituindo a dita vertente normativa ou jurídica dos factos principais, assumem normalmente um cariz vago, genérico, por vezes conclusivo e até jurídico, representando um instrumento delimitador do âmbito da atividade instrutória da causa, que terá por objeto mediato, como se frisou, não os temas da prova enunciados, mas os concretos factos jurídicos em que eles se traduzem e desdobram, e sobre os quais incidirá o juízo probatório, nos termos dos arts. 607.º, n.ºs 3 e 4[13].
Por outras palavras, apesar do art.º 410.º dispor que a instrução tem por objeto os temas da prova enunciados, ou, quando não tenha havido lugar a esta enunciação, os factos necessitados de prova, é sobre os concretos factos jurídicos incorporados no processo que incide a produção de prova através da atuação dos respetivos meios de prova, tal como decorre dos arts. 452.º, n.ºs 1 e 2, 454.º, 460.º, 466.º, n.º 1, 475.º, 490.º ou 495.º, n.º 1, e não, repete-se, sobre os temas de prova enunciados.
Isto, para além de, como já referido, serem os enunciados fáticos e não os temas da prova, que o art.º 607.º, nos seus n.ºs 3 e 4, impõe que sejam discriminados e declarados provados e/ou não provados pelo julgador, na sentença.
Tal como se decidiu no Ac. do S.T.J. de 13.11.2014, Proc. n.º 444/12.5TVLSB.L1.S1 (Lopes do Rego), in www.dgsi.pt, perante uma enunciação puramente conclusiva dos temas da prova, cabe ao juiz, na fase de julgamento, ao considerar provada ou não provada a concreta matéria de facto a que eles se reportam, a tarefa de especificar e densificar tal factualidade concreta, fundamentando a sua decisão, não podendo limitar-se a considerar provada ou não provada a matéria, puramente conclusiva, que na fase de saneamento e condensação havia sido enunciada.
É claro que se algum dos temas da prova corresponder a um concreto facto jurídico, nomeadamente, a um facto constitutivo ou excetivo, será ele o alvo direto da instrução[14].
Importa, no entanto, ter presente que apesar de nada obstar a que os temas de prova surjam enunciados como factos jurídicos concretos, isso não pode, nem deve constituir a regra, apenas se admitindo tal prática em casos pontuais, que verdadeiramente o justifiquem, sob pena de se adulterar a vontade do legislador e se desvirtuarem princípios basilares orientadores do processo civil português vigente.
No caso concreto, o que a senhora juíza a quo fez foi elaborar um questionário, “à mais do que ultrapassada e velhinha moda antiga”, a que apenas faltou a aposição de “pontos de interrogação” no final de cada pseudo “tema da prova”.
Uma inadequada e ultrapassada técnica processual como aquela que foi utilizada no caso concreto, é suscetível de constituir um fator de perturbação da instrução do processo, podendo dar azo a dúvidas acerca aquilo sobre que deve incidir a produção de prova através da atuação dos respetivos meios probatórios.
Aquilo que se exige e impõe ao tribunal na prolação de qualquer decisão (e a enunciação dos temas da prova é matéria de primordial relevância para a boa decisão da causa) que não seja de mero expediente, é que prime pelo rigor, clareza, objetividade e certeza, com propriedade terminológica e de modo tecnicamente rigoroso, por forma a não deixar dúvidas, nomeadamente de interpretação ou de procedimento, a quem quer que seja, sobretudo, às partes[15].
*
3.2.1.2 – A motivação da decisão sobre a matéria de facto:
No acórdão proferido por este tribunal ad quem no dia 19 de maio de 2020, mostra-se exarado o seguinte:
«Nos termos da 1.ª parte do n.º 5 do art.º 607.º, “o juiz aprecia livre as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; (…)”.
A regra é, portanto, a da motivação facto a facto.
Nada impede, no entanto, antes pelo contrário, que a motivação possa incidir sobre um conjunto ou bloco de factos sempre que tal o justifique ou aconselhe.
Assim poderá ocorrer, por exemplo, quando um bloco de factos respeite a um determinado tema de prova[16] e o seu encadeamento ou sequência lógica seja tal que se justifique a sua motivação conjunta e simultânea, em vez de fragmentada.
Não é o que sucede no caso concreto, pois o tribunal a quo não identificou relativamente a todos os enunciados considerados não provados quais os concretos elementos probatórios em que suportou a sua decisão, não tendo, assim, cumprido o estatuído no art.º 607º, nº 5, 1ª parte.
Além disso, dispõe o nº 4 do mesmo artigo que “na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência”.
O tribunal a quo também não cumpriu o estipulado no transcrito preceito legal, pois não procedeu, relativamente a todos os enunciados de facto considerados não provados, à análise crítica de qualquer prova.
Não indicou quais os concretos meios de prova produzidos nos autos que considerou, para, em seguida, proceder à sua análise conjugada e critica e, então, finalmente, concluir no sentido de considerar determinado enunciado ou bloco de enunciados como não provados.
Na motivação da decisão da matéria de facto, deve o julgador, relativamente a cada enunciado ou bloco de enunciados fáticos:
- especificar os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, indicando os concretos meios de prova e declarando por que razão, sem perda da liberdade de julgamento garantida pela manutenção do princípio da livre apreciação das provas (art.º 607º, nº 5, do CPC[17]), deu mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros.
- desenvolver uma argumentação justificativa da qual hão-de resultar as boas razões que a fazem aceitar razoavelmente, ou seja, deve demonstrar a consistência dos vários aspetos da decisão.
Como é sabido, numa sentença, a motivação da decisão de facto visa, desde logo, tornar eficaz o sistema de justiça, através do convencimento dos destinatários, da comunidade jurídica em geral e da própria sociedade.
A motivação da decisão de facto tem em vista, ainda, permitir que as partes e os tribunais de recurso procedam ao reexame lógico e racional acerca das razões pelas quais o juiz decidiu num sentido e não noutro, assim se possibilitando a reconstituição do percurso lógico seguido pelo julgador, apoiado nos elementos de prova previamente indicados e devidamente explicados no texto da sentença; em suma, o juiz deve mostrar às partes, aos tribunais de recurso e, sobretudo, aos cidadãos, o raciocínio lógico em que apoiou a decisão sobre a matéria de facto.
Finalmente, a motivação da decisão da matéria de facto constitui o principal fator de legitimação do poder jurisdicional, contribuindo para a congruência entre o exercício desse poder e a base sobre a qual repousa o dever de dizer o direito no caso concreto (iuris dicere). Nesta medida, a motivação da decisão sobre a matéria de facto é garantia máxima do respeito pelos princípios da legalidade, da independência do juiz e da imparcialidade das suas decisões[18].
Conforme refere Antunes Varela, “além do mínimo traduzido na menção especificada (relativamente a cada facto provado) dos meios concretos de prova geradores da convicção do julgador, deve este ainda para plena consecução do fim almejado pela lei referir, na medida do possível, as razões de credibilidade ou da força decisiva reconhecida a esses meios de prova», acrescentando que os objetivos da motivação da decisão de facto requerem «a identificação precisa dos meios probatórios concretos em que se alicerçou a convicção do julgador», alertando para a necessidade da «menção das razões justificativas da opção feita pelo julgador entre os meios probatórios de sinal oposto relativos ao mesmo facto”[19].
No Ac. do STJ de 10.07.2008, Proc. nº 08A2179 (Cons. Sebastião Póvoas), in www.dgsi.pt, pode ler-se que “da motivação deve constar o elenco da prova geradora da resposta acompanhado de uma sucinta explicação justificativa da sua aceitação, não tendo de, como explicação, se verterem motivos psicológicos causais da convicção alcançada por se situarem na intimidade de processo insindicável por natureza, mais não havendo que explicar às partes”.
Lebre de Freitas/Isabel Alexandre depois de salientarem que a fundamentação é um imperativo constitucional consagrado no art.º 205º, nº 1, do CRP (cfr. também o art.º 154º do CPC, para a decisões judiciais em geral), afirmam que a fundamentação da decisão de facto exerce “a dupla função de facilitar o reexame da causa pelo tribunal superior e de reforçar o autocontrolo do julgador, sendo um elemento fundamental na transparência da Justiça, inerente ao ato jurisdicional”[20].
Para Miguel Teixeira de Sousa, “na decisão sobre a matéria de facto devem ser especificados os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador sobre a prova (ou falta de prova) dos factos (…). Como, em geral, as provas produzidas na audiência final estão sujeitas à livre apreciação (…), o tribunal deve indicar os fundamentos suficientes para que, através das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado. A exigência da motivação da decisão não se destina a obter a exteriorização das razões psicológicas da convicção do juiz, mas a permitir que o juiz convença os terceiros da correcção da sua decisão. Através dessa fundamentação, o juiz deve passar de convencido a convincente.
A fundamentação da apreciação da prova deve ser realizada separadamente para cada facto. A apreciação de cada meio de prova pressupõe conhecer o seu conteúdo (por exemplo, o depoimento da testemunha), determinar a sua relevância (que não é nenhuma quando, por exemplo, a testemunha afirmou desconhecer o facto) e proceder à sua valoração (por exemplo, através da credibilidade da testemunha ou do relatório pericial). Se o facto for considerado provado, o tribunal deve começar por referir os meios de prova que formaram a sua convicção, indicar seguidamente aqueles que se mostraram inconclusivos e terminar com a referência àqueles que, apesar de conduzirem a uma distinta decisão, não foram suficientes para infirmar a sua convicção. Se o facto for julgado não provado, a ordem preferível é a seguinte: primeiramente devem ser indicados os meios de prova que conduzem à demonstração do facto; depois devem ser expostos os meios que formaram a convicção do tribunal sobre a não veracidade do facto ou que impedem uma convicção sobre a sua veracidade; finalmente, devem ser referidos os meios inconclusivos”[21].
Segundo Lopes do Rego, a opção é “claramente por uma maior exigência do dever de motivação da decisão proferida acerca da matéria de facto (…) não bastando a simples indicação dos concretos meios de prova que o julgador teve em conta para formar a sua convicção: a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, provada e não provada, deverá fazer-se por indicação dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz, o que compreenderá não só a especificação dos concretos meios de prova, mas também a enunciação das razões ou motivos substanciais por que eles relevaram ou obtiveram credibilidade no espírito do julgador - só assim se realizando verdadeiramente uma "análise crítica das provas”[22].
Tomé Gomes refere que “já no campo da motivação da decisão de facto, importa ter presente que a reapreciação dessa decisão, em sede de recurso, não se traduz propriamente num novo julgamento da causa, mas sim numa sindicância sobre o invocado erro de julgamento da 1ª instância, no sentido de que compete ao tribunal de recurso formar a sua própria convicção sobre a prova produzida com vista a concluir pela existência ou não desse erro. O juiz da 1ª instância não é um mero instrutor da prova, mas um julgador em primeira linha. Em tal medida, a motivação da decisão de facto deve fornecer os argumentos probatórios ou os fatores que foram decisivos para a convicção do julgador em 1ª instância.
Não satisfaz essa exigência o tipo de motivação meramente conclusiva como aquela em que se consigna pura e simplesmente que os factos provados resultaram da análise crítica e conjugada das testemunhas em referência. Uma motivação deste género apenas indica que se procedeu à dita análise, mas nada diz sobre o seu conteúdo.
Outro erro a evitar é o que consiste em consignar apenas que dos depoimentos das testemunhas indicadas nada se provou, importando antes explicitar as razões essenciais pelas quais tais depoimentos, tendo versado sobre a matéria em questão, não convenceram o tribunal”[23].
Abrantes Geraldes salienta que “a exigência legal impõe que se estabeleça o fio condutor entre a decisão sobre os factos provados e não provados e os meios de prova usados na aquisição da convicção, fazendo a respetiva apreciação crítica nos seus aspetos mais relevantes. Por conseguinte, quer relativamente aos factos provados, quer quanto aos factos não provados, o juiz deve justificar os motivos da sua decisão, declarando por que razão, sem perda da liberdade de julgamento garantida pela manutenção do princípio da livre apreciação das provas (art.º 607º, nº 5), deu mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros, julgou relevantes ou irrelevantes certas conclusões dos peritos e achou satisfatória ou não a prova resultante de documentos”[24].
Maria João Dias, na sua tese de mestrado intitulada A sindicância do juízo probatório, outubro de 2003, pp. 123-124, citada por Abrantes Geraldes, afirma que “a fundamentação assume capital importância para, por um lado, as partes mais facilmente circunscreverem o âmbito do recurso, impugnando os factos e especificando os meios de prova em que sustentam em que sustentam a sua discrepância, e, por outro lado, para o tribunal ad quem, através dela, “reconstruir” a relação que se quer directa e pessoal entre o julgado e a prova, e que só existe verdadeiramente em 1ª instância, funcionando a fundamentação como um relatório de imediação”[25].
Assim, pois, no respeitante à motivação da decisão da matéria de facto, deve o julgador especificar os fundamentos que foram decisivos para a sua convicção, indicando os concretos meios de prova e declarando por que razão, sem perda da liberdade de julgamento garantida pela manutenção do princípio da livre apreciação das provas (art.º 607º, nº 5, do CPC[26]), deu mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros.
Na motivação da decisão de facto o juiz deve desenvolver uma argumentação justificativa da qual hão-de resultar as boas razões que a fazem aceitar razoavelmente, ou seja, deve demonstrar a consistência dos vários aspetos da decisão.
Da motivação da decisão de facto deve resultar inequivocamente que a mesma foi tomada em todos os seus aspetos de maneira racional, à luz de critérios objetivos e controláveis de valoração[27].
Assim, uma decisão de facto justa, legal e razoável em si mesma, não é suficiente, pois o juiz está vinculado à demonstração de que o seu raciocínio é justo, legal e razoável.
Ora, o juiz só consegue alcançar um tal desiderato emitindo opiniões racionais reveladoras das premissas e inferências que podem ser aduzidas como bons e aceitáveis fundamentos da decisão[28].
Em conclusão:
Na decisão da matéria de facto, o dever de motivação cumpre-se através da exposição dos fundamentos que foram decisivos para a convicção do juiz sobre a prova - ou sobre a falta dela - dos factos provados - e não provados.
Uma vez que as provas produzidas na audiência estão, em regra, sujeitas à livre, mas prudente convicção do juiz, este está vinculado ao dever de expor os fundamentos da sua convicção sobre o julgamento do facto como provado ou não provado, para que, por aplicação das regras da ciência, da lógica e da experiência, se possa controlar a razoabilidade daquela convicção.
A motivação deve, por isso, objetivar as razões da convicção do juiz - assente nas regras da ciência, da lógica ou da experiência - de modo a que essa convicção seja capaz de se impor aos outros e, por conseguinte, de os convencer do bom fundamento da decisão.
A medida da fundamentação é, portanto, aquela que for necessária para permitir o controlo da racionalidade da decisão pelas partes e, em caso de recurso, pelo tribunal ad quem a que seja lícito conhecer da questão de facto.
No caso concreto, o que sucede é que não se encontra devidamente fundamentada a decisão sobre a matéria de facto não provada.
O leitor da decisão sobre a matéria de facto provada e não provada fica sem saber:
a) como surge a escritura de compra e venda referida em 1. e 2. dos factos provados, ou seja, a que propósito é que a autora e a co-ré sociedade, representada pelo seu administrador, o co-réu FM, aparecem na data e local referidos em 1. dos factos provados para realização daquela escritura;
b) que negociações foram feitas até ao momento da celebração daquela escritura;
c) quem efetuou tais negociações;
d) quem negociou o contrato-promessa de compra e venda referido em 5. dos factos provados, não podendo deixar de causar estranheza o facto de, alegando a autora que pretendia a concessão de um empréstimo para, com caráter de urgência, pagar tornas ao seu ex-marido no montante de € 10.000,00, por não dispor de tal quantia, na sequência de lhe ter sido adjudicada a fração “H”, com o valor, segundo afirma, de € 60.000, ter celebrado uma escritura pela qual a declara vender pelo preço de € 18.000,00, e, no mesmo dia, celebrar com a compradora um contrato promessa de compra e venda, pelo qual declara prometer comprar-lhe, no prazo de seis meses, a mesma fração, agora pelo preço de € 27.000,00 - nada disto, salvo o devido respeito, parece fazer grande sentido, a não ser que se mostre devidamente explicado[29].
Não estando devidamente motivada a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o tribunal de recurso determinar, mesmo oficiosamente, nos termos do art.º 662.º, n.º 2, al. d), do C.P.C., a devolução do processo ao tribunal de 1.ª instância, para que aí se proceda a tal motivação.
A mencionada al. d) do n.º 2 do art.º 662.º, do C.P.C., revela que a falta ou a deficiência da motivação da decisão da matéria de facto não constitui causa de nulidade da sentença, antes dando lugar ao uso, pela Relação, do denominado poder cassatório ou rescisório mitigado»[30].
Por isso, conforme já referido, na parte dispositiva desse acórdão consta, além do mais, o seguinte:
«4.2 - determinam que na nova sentença que vier a ser proferida, tanto a decisão sobre os enunciados fáticos objeto de ampliação, como a matéria de facto não provada constante da sentença ora anulada, seja devidamente fundamentada de acordo com o vertido em 3.2.3 desde acórdão»,
ou seja, de acordo com o acima transcrito.
Na sequência desse acórdão, a senhora juíza a quo proferiu nova sentença, datada de 22 de maio de 2022, na qual não deu cumprimento ao decidido no transcrito segmento da parte dispositiva daquele aresto.
Interposto recurso da nova sentença, proferida no dia 22 de maio de 2022, foi prolatado o acórdão datado de 8 de novembro de 2022, no qual, além do mais, se mostra exarado o seguinte:
«Por isso, se decidiu também o seguinte naquele acórdão de 19 de maio de 2020:
“(...)
4.2 - determinam que na nova sentença que vier a ser proferida, tanto a decisão sobre os enunciados fáticos objeto de ampliação, como a matéria de facto não provada constante da sentença ora anulada, seja devidamente fundamentada de acordo com o vertido em 3.2.3 desde acórdão”.
Perante isto, o que fez a senhora juíza a quo na nova sentença ora sob recurso?
Motivou a decisão sobre a matéria de facto não provada repetindo, exatamente, palavra a palavra, letra a letra, inclusivamente com as mesmas falhas sintáticas e de linguagem, os dizeres constantes da motivação expressa na anterior sentença.
Também neste particular a senhora juíza a quo não deu cumprimento ao que lhe foi determinado no acórdão de 19 de maio de 2020».
Consequentemente, conforme também já referido, na parte dispositiva desse acórdão, datado de 8 de novembro de 2022, consta, além do mais, o seguinte:
«4.2 - determinam que na nova sentença que vier a ser proferida, tanto a decisão sobre aquela questão de facto, como a matéria de facto não provada constante da sentença agora anulada, seja devidamente fundamentada de acordo com o que acima ficou expresso e se encontra em 3.2.3 do acórdão proferido em 19 de maio de 2020».
Na sequência desse acórdão foi proferida a sentença ora sob recurso!
E o que fez a senhora juíza a quo nesta terceira sentença, em sede de motivação da decisão sobre a matéria de facto?
Exatamente a mesma coisa que fez nas duas anteriores sentenças, declaradas anuladas por este tribunal ad quem.
Por conseguinte, parece ser evidente a reiterada intenção da senhora juíza a quo em não motivar a decisão sobre a matéria de facto conforme:
- lhe é imposto pelo art.º 607.º, n.ºs 4 e 5; e,
- por duas vezes lhe foi imposto por este tribunal superior.
Perante este quadro, constituiria prática de um ato inútil, legalmente proibido (art.º 130.º), nova devolução dos autos à 1.ª instância, nos termos do art.º 662.º, n.º 2, al. d), ou seja, para motivação, pela senhora juíza a quo, da decisão sobre a matéria de facto, nos termos legalmente impostos.
É neste contexto:
- com base na prova produzida nos autos, nomeadamente os depoimentos e declarações gravados; e,
- tendo em conta o disposto no art.º 663.º, n.º 2,
que vai decidir-se o presente recurso, começando pelas questões atinentes à decisão sobre a matéria de facto.
*
3.2.1.3 - Factos a aditar ao leque dos enunciados considerados provados com fundamento em prova documental junta aos autos (arts. 662.º, n.º 1 e 663.º, n.º 2):
No dia 8 de julho de 2018, a autora juntou aos autos certidão extraída do Proc. n.º ____/__, autos de inventário para partilha de bens em casos especiais, em que foi requerente, a própria, e requerido/cabeça de casal, LAE, da qual resulta provado o seguinte:
«a) Correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo de Família e Menores de Sintra – Juiz _, sob o n.º ____/__, inventário para partilha de bens em casos especiais, em que foi requerente, AFC, e requerido/cabeça de casal, LAE»;
b) No dia 2 de julho de 2010, requerente e requerido/cabeça de casal, apresentaram no processo identificado em a), requerimento contendo uma transação da qual consta, além do mais, o seguinte:
1.º
Requerente e requerido acordam reciprocamente em atribuir ao imóvel verba única do ativo (...)[31] o valor de 65.000,00€, constante do relatório de avaliação junto aos autos.
2.º
As partes acordam que tal prédio fique adjudicado à requerente AFC (...).
3.º
Nestes termos a Requerente ficará como única proprietária do prédio urbano supra descrito (...).
(...)
5.º
Fica assim o Requerido com direito a receber, a título de tornas a serem pagas pela Requerente, a quantia de 10.000,00€ (dez mil euros).
6.º
Mais acordam que tal quantia será paga pela Requerente em duas prestações, por transferência bancária para conta do Requerido com o NIB (...), sendo a primeira na importância de 5.000,00€, paga de imediato na assinatura do presente acordo e a segunda prestação de igual montante, paga até ao dia 30 de setembro de 2010, por forma à Requerente conseguir obter financiamento bancário para pagamento da segunda prestação».
c) Sobre essa transação recaiu a seguinte sentença, também datada de 2 de julho de 2010:
«Nos presentes autos de inventário para partilha dos bens comuns que foram do casal constituído por AFC e LAE (...), homologo pela presente sentença a partilha constante do requerimento de fls. 552-553, adjudicando as verbas e condenando-os a cumprir com as obrigações aí consagradas».
Adita-se, portanto, tal factualidade ao elenco dos factos provados.
*
3.2.1.4 – Desconsideração, pela sentença recorrida, do determinado no acórdão de 8 de novembro de 2022, quanto à decisão sobre determinados “enunciados de facto”:
Lendo e relendo a nova sentença agora sob recurso, logo se constata que também neste contexto a senhora juíza a quo ignorou por completo o decidido nos anteriores acórdãos, sobretudo no proferido no dia 8 de novembro de 2022.
Consta do acórdão proferido no dia 8 de novembro de 2022, além do mais, o seguinte:
«No acórdão datado de 19 de maio de 2020, afirma-se o seguinte:
“Na petição inicial com que introduziu em juízo a presente ação, alega a autora, aqui apelante, além do mais, que o contrato de compra e venda celebrado no dia __/__/__, no Cartório Notarial de ____, pelo qual declarou vender à ré sociedade, que declarou comprar-lhe, a fração autónoma identificada pela letra “H”, correspondente ao _º andar direito para habitação do prédio urbano sito na Praceta ____, constitui um negócio usurário.
Afirma para o efeito, com vista ao preenchimento do pressuposto previsto na parte final do art.º 282.º do Cód. Civil, que o preço da compra e venda foi de € 18.000,00, quando o valor da fração era, à data da escritura, de pelo menos € 60.000,00 (cfr. arts. 52.º e 57.º da petição inicial), facto que era do conhecimento dos réus, o que significa que a compradora, obteve da autora a concessão de um benefício excessivo ou injustificado.
Trata-se de matéria de facto alegada pela autora que foi omitida dos temas da prova e que é essencial para a resolução da questão respeitante à natureza usurária do negócio em causa neste processo.
A proposição enunciada na audiência prévia como tema da prova, sob o n.º 12 (“A LP muniu-se ainda, por o solicitar à A., de cópia de avaliação ao imóvel feita no processo de inventário, pelo que tinha perfeito conhecimento – tal como os RR. – de valer a fracção pelo menos a quantia de 60.000,00 euros, precisamente o valor pelo qual fora adjudicada à ora A..”) reproduz na ipsis verbis o art.º 15.º da petição inicial.
O que está em causa nesse enunciado é saber se a referida LP:
- se muniu de cópia de avaliação da fração objeto da compra e venda em causa nestes autos;
- tinha conhecimento do valor pelo qual a fração foi avaliada no inventário e pelo qual lhe foi adjudicada.
Isso é diferente da questão atinente ao efetivo valor da fração à data da celebração do negócio impugnado neste processo, e ao efetivo conhecimento que a compradora tinha acerca desse valor, matéria alegada, como se referiu, nos arts. 52.º e 57.º da petição inicial, onde a autora afirma expressamente:
- ser intenção “dos RR. fazer seu um imóvel cujo valor era e é sempre superior a 60.000,00 euros, e por valores ridículos para o efeito” - art.º 52.º da petição inicial;
- “(...) a fracção valia, e vale, pelo menos 60.000,00 euros, o que é e era do conhecimento dos RR.” - art.º 57.º da petição inicial.
Uma vez que se mostra impugnada a decisão sobre a matéria de facto, caso este tribunal de recurso venha a considerar provados os demais pressupostos a que alude o art.º 282.º do Cód. Civil, é indispensável saber:
- o efetivo valor da fração à data da realização da escritura;
- se a compradora tinha conhecimento desse valor.
Impõe-se, assim, nesta parte, a ampliação da matéria de facto, a incidir sobre estes dois concretos pontos”.
Devolvidos os autos à 1.ª instância, a senhora juíza a quo proferiu despacho:
- a designar data para a realização da audiência final, «limitada às questões» enumeradas no acórdão;
- a ordenar a notificação das partes para indicarem qual a prova a produzir quanto àquela factualidade.
A autora veio requerer a produção de prova pericial, a realizar por um único perito, com o seguinte objeto:
“1 - Qual o valor da fração (...) à data de __/__/__?
2 - E 180 dias depois?
3 - E em __/__/__? (data propositura da ação)”.
Parecendo evidente que o objeto proposto pela autora para a perícia extravasava, quanto aos pontos 2. e 3., o âmbito da questão de facto atinente ao “efetivo valor da fração à data da realização da escritura”, a senhora juíza a quo proferiu o seguinte surpreendente despacho:
“(...) tendo em conta que a realização da perícia é requerida a uma realidade que já não existe uma vez que passaram 9 e 4 anos e meio sobre as datas a que se reportam as respostas a dar pelos senhores peritos e resultando dos autos que o imóvel foi alvo de obras, notifique a autora para, em dez dias, vir especificar como pretende que o perito responda com idoneidade sobre as condições de um imóvel que não conhecia à data a que se reportam os quesitos”.
Na sequência da “especificação” feita pela autora, a senhora juíza a quo proferiu o seguinte, e não menos surpreendente despacho:
“Considerando que a prova pericial não tem carácter vinculatório na decisão final a proferir pelo Tribunal, admito a mesma bem como a restante prova”.
Além de não ter restringido o objeto da perícia, como parece que manifestamente se impunha, não se compreende, de todo, o que pretende a senhora juíza a quo significar com a afirmação “Considerando que a prova pericial não tem carácter vinculatório na decisão final a proferir pelo Tribunal, admito a mesma (...)”.
Realizada a perícia e elaborado o relatório pericial, foi então realizada nova audiência, que, conforme determinado no acórdão datado de 19 de maio de 2020, deveria cingir-se àquelas duas questões de facto[32], na sequência do que a senhora juíza a quo proferiu nova sentença, cujo dispositivo é o acima transcrito, acrescentando agora, aos 16 pontos de facto considerados provados na sentença anulada, datada de 18 de outubro de 2019, os seguintes enunciados:
“17. Com data de 28 de Abril de 2021 foi elaborado relatório pericial do qual consta que o imóvel supra referido em 66.000,00 euros reportando-se à data de 27.02.2011.
18. Consta do relatório que o Sr. Perito utilizou um método comparativo de valores de mercado de venda – procedeu-se à obtenção de valores de referência de mercado de bens comparáveis.
19. Mais refere o relatório, que a retroacção do valor determinado para a fracção foi feito com recurso aos índices oficiais publicados pelo I.N.E. sendo que não há factores específicos aplicados à avaliação de apartamentos em Massamá.
20. Consta do relatório que o prédio onde se insere a fracção aqui em causa de situa num bairro do tipo social, tem três andares sem elevador.
21. Consta ainda que a avaliação retroactiva ao ano de 2011 foi feita considerando que o imóvel estava livre e devoluto e sem ónus ou encargos de qualquer espécie”.
Esta não é, salvo o devido respeito, forma de fundamentar uma sentença em termos de facto.
Conforme exemplarmente afirma Tomé Gomes, “a enunciação da matéria de facto traduz-se na exposição descritivo-narrativa tanto da factualidade assente por efeito legal da admissão por acordo ou da eficácia probatória plena de confissão ou de documentos, como dos factos provados ou não provados durante a instrução, devendo ser expurgada de valorações jurídicas, de locuções metafóricas e de excessos de adjetivação.
Os enunciados de facto devem ser expressos numa linguagem natural e exata, de modo a retratar com objetividade a realidade a que respeitam, e devem ser estruturados com correção sintática e propriedade terminológica e semântica. A adequação dos enunciados de facto deve pautar-se pela exigência de evitar que esses enunciados se apresentem obscuros (de sentido vago ou equívoco), contraditórios (integrados por termos ou proposições reciprocamente excludentes) e incompletos (de alcance truncado), vícios estes que figuram como fundamento de anulação da decisão de facto, em sede de recurso de apelação, nos termos do artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC.
Como é sabido, a linguística deixou, hoje, de ser confinada às suas duas dimensões primárias - a dimensão gramatical (lógico-sintática) e a dimensão semântica - para se alcandorar, agora, numa nova dimensão, que é a dimensão pragmática, a qual relaciona a linguística com os contextos vivenciais e com as estratégias comunicacionais. Esta nova dimensão foi brilhantemente versada por Jürgen Habermas na sua “teoria da acção comunicativa”, com a distinção entre “agir estratégico” e “agir comunicacional”[33].
Para Habermas:
“Os discursos práticos têm de fazer com que os conteúdos lhe sejam dados. Sem o horizonte do mundo da vida de um determinado grupo social e sem conflitos de acção numa determinada situação, na qual os participantes considerem como sua tarefa a regulação consensual de uma matéria social controversa, não teria sentido querer empreender um discurso prático”.
Para o mesmo autor:
“O mundo da vida é sempre um mundo intersubjetivo, jamais privado, que oferece uma reserva de convicções à qual os participantes da comunicação recorrem sempre que o entendimento se torna problemático. O mundo da vida constitui-se portanto, num recurso de apelação nos processos de intercompreensão, ou seja, estabelece o contexto constitutivo da intercompreensão; é a cobertura de um consenso pré-reflexivo que se encarrega de absorver os perigos de um dissenso (…) “O mundo da vida garante inteligibilidade, entendimento e consenso a respeito do assunto tratado”.
É, pois, através do mundo simbólico da linguagem que logramos obter a objetividade possível sobre o entendimento do mundo e das nossas vivências subjetivas. Estas reflexões são fundamentais para lidarmos com as narrativas processuais.
Com efeito, as partes tendem a adestrar a factualidade pertinente no sentido estrategicamente favorável à posição que sustentam no seu confronto conflitual, daí resultando enunciados, por vezes, deformados, contorcidos ou de pendor mais subjetivo ou até emotivo.
Cumprirá, por sua vez, ao juiz, na formulação dos juízos de prova, expurgar tais deformações, sendo que, como é entendimento jurisprudencial corrente, não se encontra adstrito à forma vocabular e sintática da narrativa das partes, mas sim ao seu alcance semântico. Deve, pois, adotar enunciados que, refletindo os resultados probatórios, sejam portadores de um sentido semântico, o mais consensual possível, de forma a garantir que a controvérsia se desenvolva em sede da sua substância factual e não no plano meramente epidérmico dos seus modos de expressão linguística.
Os enunciados de facto devem também ser expostos numa ordenação sequencial lógica e cronológica que facilite a conjugação dos seus diversos segmentos e a compreensão do conjunto factual pertinente, na perspetiva das questões jurídicas a apreciar. Com efeito, a ordenação sequencial das proposições de facto, bem como a ligação entre elas, é um fator de inteligibilidade da trama factual, na medida em que favorece uma interpretação contextual e sinótica, em detrimento de uma interpretação meramente analítica, de enfoque atomizado ou fragmentário. Por isso mesmo, na sentença, cumpre ao juiz ordenar a matéria de facto - que se encontra, de algum modo parcelada, em virtude dos factos assentes por decorrência da falta de impugnação - na perspetiva do quadro normativo das questões a resolver. De resto, só uma adequada ordenação dos factos provados permite compatibilizar toda a matéria factual adquirida, como se determina no artigo 607.º, n.º 4, parte final, do CPC.
Por exemplo, numa ação emergente de responsabilidade contratual, devem enunciar-se, em primeiro plano, os factos respeitantes à formação do contrato, incluindo o respetivo clausulado, e só depois enunciar as vicissitudes da sua execução relacionadas com o incumprimento; numa ação emergente de responsabilidade civil por acidente de viação, deve consignar-se, em primeiro lugar, a factualidade concernente à infraestrutura do acidente (local, tempo, condições viárias, etc.), depois os factos respeitante aos comportamentos ilícitos ou aos factores de risco da manobra efectuada e só por fim os danos causados.
Além disso, como já foi dito, os enunciados dos juízos de prova devem nortear-se pela completude, clareza e coerência possíveis, em face dos resultados da prova, de forma a prevenir os vícios formais de deficiência, obscuridade e contradição, que constituem fundamento de anulação do julgamento nos termos do art.º 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC
(...)
Sob este tópico, importa atentar no critério prático a seguir na segmentação dos factos.
Ora, dos artigos 452.º, n.º 2 (prova por confissão), 475.º, n.º 2 (prova pericial) e 516.º, n.º 1 e 2 (prova testemunhal), todos do CPC, decorre que a actividade probatória, embora se inscreva nos delineados temas da prova, nos termos do art.º 596.º, n.º 1, deve incidir sobre os factos concretamente alegados ou licitamente emergentes da instrução. Por sua vez, do disposto no artigo 607.º, n.º 3 a 5, do CPC colhe-se que a convicção do julgador se forma e a sua enunciação se formaliza sobre a singularidade de cada facto. Ponto é saber como se deve proceder à segmentação ou fragmentação textual desses enunciados, atenta a exigência de tal singularidade factológica.
 Segundo as regras gerais da sintaxe, o discurso descritivo-narrativo expressa-se mediante proposições verbais (ou orações) integradas em frases, por sua vez, organizadas em conjuntos, como são os períodos e os parágrafos, em harmonia com a maior ou menor proximidade das ideias ou do fio de pensamento ali veiculado, tendo em vista uma adequada compreensão da matéria exposta, por parte dos respetivos destinatários. Assim a sintaxe, mormente no campo literário, obedece a regras linguísticas, de estética e de comunicação.
Contudo, a narrativa factológica processual requer especificidades ditadas pelo seu próprio contexto e funcionalidade, em que predominam exigências de objetividade, clareza e, em suma, de suficiente compreensibilidade para os destinatários das decisões judiciais.
Nessa linha, a segmentação dos factos tem de ser ponderada não em função de arquétipos abstratos, porventura de pendor estético, nem de simplismos redutores, mas atentando no concreto contexto do litígio, em especial na intensidade impugnativa que tenha recaído sobre cada ponto de facto e na conjugação com os concretos meios de prova convocados para a sua demonstração e até mesmo em vista das exigências de operacionalidade na articulação do argumentário probatório com os enunciados fácticos nele reportados.
Assim, por exemplo, no âmbito do clausulado de um contrato, pode ocorrer uma particular intensidade impugnativa sobre algumas das cláusulas dele constantes e ter sido produzida prova de determinada espécie ou diferenciada por conjuntos de testemunhas, que imponham o destaque ou a atomização dessas cláusulas, de modo a melhor se poder articular o juízo probatório com os concretos meios de prova produzidos nesse âmbito. Também, quando estamos perante um factualismo complexo integrador de um conceito indeterminado ou de uma cláusula geral, pode suceder que algum dos elementos moleculares ou acessórios desse factualismo tenha sido objeto de impugnação intensa e de produção de prova de determinada espécie ou diferenciada, que torne necessária a sua fragmentação em relação ao conjunto em que se integra.
Se, porventura, se concentrarem num só enunciado factual vários segmentos que mereceram impugnação e produção de prova específica ou diferenciada, tal concentração dificultará, sem dúvida, o reporte a fazer em sede de argumentação probatória, bem como o exercício do ónus de impugnação exigido ao recorrente e ao recorrido pelo artigo 640.º, n.º 1, alíneas a) e b), e n.º 3, do CPC, e, por fim, a identificação e reapreciação dos pontos impugnados por parte do tribunal de recurso.
Em suma, a segmentação dos enunciados de facto deve ter por base a natureza dos factos em causa, a sua estrutura morfológica empírico-normativa, o seu contexto impugnativo e probatório, e ainda as exigências de objetividade e clareza requeridas pela sua conjugação com a respetiva motivação em 1.ª instância e pela impugnação e reapreciação em sede de recurso.
O teor dos enunciados de facto correspondentes aos juízos probatórios deve ser depurado de referências aos meios de prova ou às respectivas fontes de conhecimento, sendo de banir dizeres como provado apenas que “a testemunha... viu o réu a entrar na casa do autor” ou, no caso em se discuta a origem de um incêndio, provado apenas que “os bombeiros verificaram não existir no local sinais do foco de incêndio”. Estas referências aos meios de prova, quando muito, podem constituir argumento probatório, a consignar na motivação, para fundamentar um juízo afirmativo ou negativo, pleno ou restritivo, do facto em causa.
Nessa linha, o que se requer é que o julgador assuma uma posição clara sobre o julgamento de facto, decidindo o que deve decidir, sem evasivas. Por exemplo, se o que está em causa é apurar a origem de um incêndio, o que o juiz tem de ajuizar é se o facto para tal alegado está ou não provado, sendo que a verificação pelos bombeiros de não existir sinais do foco de incêndio é apenas um dos meios de prova nesse sentido. Igualmente, se o que está em discussão é indagar sobre a vontade real, expressa ou tácita, manifestada num contrato escrito, o que tem de ser decidido é se está ou não provada a alegada vontade real, pelo que, muitas vezes, o dar como provado apenas o que consta do documento se traduz numa forma evasiva de julgar aquela questão.
Por outro lado, há que usar de muita cautela na remissão para o teor de documentos juntos ao processo, devendo-se, em princípio, transcrever os conteúdos do teor do documento que reproduzam factos considerados provados. Nessa linha, o juízo probatório deve refletir, de modo inequívoco, as declarações negociais ou de ciência constante de documento que se considerem ou não assumidas pelos seus autores, sem deixar margem para especular sobre essa assunção, como sucede quando se afirma “provado apenas o que consta do documento x”. O grau de precisão do juízo probatório deverá ser aferido, por um lado, em função e no contexto narrativo do que vem alegado e, por outro lado, de harmonia com os resultados da produção de prova e da convicção que o julgador sobre eles formar. Porém, quando se esteja em presença de documentos em que se registam dados de leitura e definição inequívocas, como, por exemplo, uma fatura donde conste as espécies, quantidades, datas e importâncias de fornecimento de bens, não se vê inconveniente em que o juízo probatório se faça por remissão para tais dados. Neste domínio, dada a diversidade dos casos concretos, não será possível estabelecer critérios rígidos, devendo o julgador pautar-se por parâmetros de ordem prática que confiram ao juízo de prova uma inteleção objetiva e precisa»[34].
A extensa transcrição das palavras do Cons. Tomé Gomes, melhor ajudarão, por certo, a perceber que a senhora juíza a quo não assumiu, quanto aos cinco enunciados acima transcritos, uma posição clara sobre o julgamento da matéria de facto, não decidindo o que devia decidir.
Tal como mediana e cristalinamente, crê-se, consta do acórdão datado de 19 de maio de 2020, está em causa apurar, na sequência do alegado pela autora nos arts. 52.º a 57.º da petição inicial:
- o efetivo valor da fração à data da realização da escritura; e,
- se a compradora tinha conhecimento desse valor.
No entanto, não foi isso que a senhora juíza a quo fez!
A verificação de que num relatório pericial “consta” ou é “referido” “isto ou aquilo”, é apenas um meio de prova, ou um dos meios de prova, nesse sentido.
Impunha-se que a senhora juíza a quo, concreta e objetivamente, ajuizasse, sem evasivas:
- acerca do valor da fração à data da escritura; e,
- se o alegado facto de que a compradora tinha conhecimento do valor imóvel está ou não provado.
Dispõe o art.º 662.º, n.º 2, al. c), que “a Relação deve ainda, mesmo oficiosamente (...) anular a decisão proferida na 1ª instância, quando, não constando do processo todos os elementos que, nos termos do número anterior, permitam a alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, repute deficiente, obscura ou contraditória a decisão sobre pontos determinados da matéria de facto, ou quando considere indispensável a ampliação desta”.
Conforme salienta Abrantes Geraldes, há decisões que “podem revelar-se total ou parcialmente deficientes, obscuras ou contraditórias, resultantes da falta de pronuncia sobre factos essenciais ou complementares, da sua natureza ininteligível, ou reveladora de incongruências, de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso”[35].
Um enunciado de facto é obscuro quando apresente um sentido vago ou equívoco, ou seja, “quando o seu significado não pode ser apreendido com clareza e segurança”[36].
No Ac. da R.C. de 08.11.1983, CJ, V, 52, decidiu-se que “uma resposta diz-se obscura quando o seu sentido exato não possa determinar-se com segurança, ou porque não foi claramente expresso ou porque contém vários sentidos e não se sabe qual deles foi o requerido».
No caso concreto, pretendendo saber-se o valor da fração à data da escritura, ou seja, em __/__/__, é obscura a decisão que afirma que “com data de 28 de Abril de 2021 foi elaborado relatório pericial do qual consta que o imóvel supra referido em 66.000,00 euros reportando-se à data de 27.02.2011”.
Tal como afirma Abrantes Geraldes, “verificado algum dos referidos vícios, para além de serem sujeitos a apreciação oficiosa da Relação, esta poderá supri-los a partir dos elementos que constem do processo ou da gravação”[37].
Na situação sub judice, o relatório pericial acima referido, junto aos autos a 4 de maio de 2021, permite considerar provado o seguinte:
“À data referida em 1., a fração tinha o valor de mercado de € 66.000,00”.
O referido relatório, que não foi objeto de reclamação, encontra-se minuciosamente elaborado, descrevendo com clareza, rigor e objetividade tos elementos e os critérios determinantes da avaliação efetuada, merecendo, por isso, inteira credibilidade.
O ponto 17. dos factos provados passa, assim, a ter a seguinte redação:
À data referida em 1., a fração tinha o valor de mercado de € 66.000,00”.
E quanto aos demais enunciados descritos sob os pontos 18. a 21.?
A enunciação da matéria de facto, tanto a provada, como a não provada, deve reportar-se a factos jurídicos, ou seja, a acontecimentos (e circunstâncias) concretos, determinados no espaço e no tempo, passados e presentes, do mundo exterior e da vida anímica humana que o direito objetivo converteu em pressuposto de um efeito jurídico[38].
Para Alberto dos Reis, juridicamente relevantes são os factos que constituem «ocorrências da vida real, isto é, os fenómenos da natureza, ou as manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os actos e factos humanos (…) vistos à luz das normas e critérios do direito”[39].
Os pontos 18. e 19. agora considerados provados, ainda que expurgados da referência ao relatório pericial não constituem, manifestamente, factos jurídicos.
Por sua vez, os pontos 20. e 21. agora considerados provados, ainda que expurgados da referência ao relatório pericial, são irrelevantes para a decisão da causa e do recurso, pois, relevante para o efeito, é o que respeita ao valor da fração à data da escritura.
Estes quatro enunciados deveriam constituir, quando muito, argumentos probatórios a consignar em sede de motivação da decisão quanto ao facto, esse sim, reitera-se, relevante, atinente ao valor da fração à data da escritura, ou seja, para fundamentar o juízo afirmativo daquele facto.
E nada mais!»
Perante isto, o que fez a senhora juíza a quo na sentença agora impugnada?
Ignorando por completo, reitera-se, o teor do acórdão datado de 8 de novembro de 2022, voltou a considerar provado que:
«17. D[o] relatório pericial, datado de 28.04.2021, consta que o imóvel supra referido valia 66.000,00 euros em 27.02.2011.
18. Consta do relatório que o Sr. Perito utilizou um método comparativo de valores de mercado de venda.
19. Mais se encontra escrito no relatório pericial que a retroacção do valor determinado para a fracção foi feito com recurso aos índices oficiais publicados pelo I.N.E. sendo que não há factores específicos aplicados à avaliação de apartamentos em Massamá.
20. Consta do relatório que o prédio onde se insere a fracção aqui em causa de situa num bairro do tipo social, tem três andares sem elevador.
21. Consta ainda que a avaliação retroactiva ao ano de 2011 foi feita considerando que o imóvel estava livre e devoluto e sem ónus ou encargos de qualquer espécie».
Pelo exposto, nos termos já decididos no acórdão de 8 de novembro de 2022:
a) considera-se provado:
«3.1.17. À data referida em 1., a fração tinha o valor de mercado de € 66.000,00»;
- consideram-se não escritos os enunciados vertidos em 3.1.18 a 3.1.21.
*
3.2.1.5 – A decisão sobre o enunciado de facto mencionado em 4.1 da parte dispositiva do acórdão proferido no dia 8 de novembro de 2022:
O ponto 4.1 do dispositivo do acórdão proferido no dia 8 de novembro de 2022, tem a seguinte redação:
«4.1 determinam a devolução dos autos à primeira instância para que aí, tal como determinado no acórdão de 19 de maio de 2020, seja decidida a seguinte questão de facto: “A compradora tinha conhecimento do valor da fração à data da realização da escritura”».
O que fez a senhora juíza na nova sentença ora sob recurso?
Não incluiu tal enunciado na fundamentação de facto, ou seja, não o considerou:
- nem no elenco dos factos provados;
- nem no elenco dos factos não provados.
Surpreendentemente, foi em sede de motivação da decisão sobre a matéria de facto que a senhora juíza a quo fez constar que «(...) a resposta ao facto «a compradora tinha conhecimento do valor da fracção à data da realização da escritura” terá de ser não provado».
Assim, o elenco dos factos que a sentença recorrida considerou não provados, deve incluir o seguinte enunciado: «A compradora tinha conhecimento do valor da fracção à data da realização da escritura».
A apelante impugna a decisão do tribunal a quo quanto a tal enunciado.
A senhora juíza a quo motivou assim a decisão relativamente a esse enunciado:
«Não se tendo apurado se um facto é ou não verdadeiro ou se as dinâmica e sequência dos acontecimentos, ocorreram como as partes o descreveram, a resposta do Tribunal a tais matérias, terá de ser não provado.
Assim, não se apurou se a autora e o réu tinham conhecimento do valor da fracção autónoma aqui em causa à data da realização da escritura, pelo que a resposta a este facto terá de ser não provado. É que da análise da prova testemunhal, resulta que, antes da realização da escritura, a fracção não foi inspecionada (cfr testemunhos de que um homem e uma mulher se deslocaram ao local sem passarem do hall) nem avaliada.
Simplesmente não foi produzida prova de que os réus sabiam o valor de tal fracção em 2011.
Assim, a resposta ao facto “a compradora tinha conhecimento do valor da fracção à data da realização da escritura” terá de ser não provado».
Trata-se de uma estranha e equivocada forma de motivação da decisão sobre o descrito enunciado.
O art.º 414.º dispõe que «a dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita».
Trata-se de uma disposição de natureza substantiva, que tem eco nos arts. 342.º, n.º e 346.º do CC.
Conforme esclarecem Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Sousa, «num processo de natureza litigiosa (...), cada uma das partes apresenta a sua versão dos factos e promove as diligências de prova no intuito de convencer o julgado acerca da realidade da sua versão. Um standard de prova consiste numa regra de decisão que indica um nível mínimo de corroboração de uma hipótese de facto para que tal hipótese possa considerar-se provada, ou seja, para que possa ser aceite como verdadeira. Em regra, no processo civil, esse standard é o da probabilidade prevalecente (more-likely-than-not). Se, após a valoração da prova, não for atingido esse patamar ou se as provas produzidas pelas partes forem equivalentes, no sentido de que inexistem parâmetros concretos que justifiquem a prevalência da credibilidade de umas sobre as da contraparte, entra em campo a solução prescrita nesta norma (...).
O preceito não se destina a resolver eventuais dúvidas quanto à distribuição do ónus da prova. Estas, quando existam, implicam um esforço interpretativo prévio no sentido da sua superação e apenas quando daí não se extrair um resultado inequívoco se poderá asseverar que o ónus da prova pertence à parte a quem o facto aproveita (art.º 342.º, n.º 3, do CC). A regra do art.º 414.º apenas opera, se necessário, em momento posterior à valoração da prova, não bastando para a sua aplicação a apresentação de contraprova nos termos do art.º 346.º do CC»[40].
Acontece que, no caso concreto, existem evidentes elementos probatórios, que o tribunal a quo ignorou, e que permitem concluir que “a compradora tinha conhecimento do valor da fração, à data da realização da escritura”.
Os depoimentos prestados pelo legal representante da ré, RL, não deixam margens para grandes dúvidas a esse respeito.
Resultou do seu depoimento, prestado no dia 10 de abril de 2019, que:
- é administrador da ré;
- é avaliador certificado de imóveis;
- à data da realização da escritura referida em 3.1.1.1, não era o legal representante da ré;
- nessa altura o administrador da ré era um seu irmão;
- tem, no entanto, conhecimento de todo o processo negocial em discussão nos autos, pois foi a si que o negócio foi apresentado por um indivíduo de nome David Rodrigues, pouco tempo antes da data da realização da escritura referida em 3.1.1.1;
- em seguida, aferiu junto do irmão acerca do interesse da ré na realização do negócio, o qual veio a concretizar-se nos termos acima descritos;
- a fração foi comprada pela ré sem que o seu então legal representante, o irmão do depoente, a tivesse visto;
- foi o depoente quem, antes da realização da escritura, se deslocou ao local onde a fração se situa, para se inteirar da sua envolvência, embora não a tivesse visto por dentro;
- achou aceitável o preço de € 18.000,00, não demasiado baixo, afirmando que, tendo em conta as condições do mercado na altura, «o preço era um preço que fazia sentido entrar no negócio».
Perguntado se a pessoa que lhe apresentou o negócio, o dito David Rodrigues, lhe disse que tinha ido à fração e quanto é que a mesma valeria, afirmou de forma categórica, absolutamente senhor de si, com alguma sobranceria até: «Quanto a ele dizer-me quanto valia a casa ou não valia a casa, eu não precisava disso, não é? Eu sou avaliador e, portanto, não preciso que o David me esteja a dizer quanto valem os imóveis», acrescentando em seguida ter ideia que «provavelmente o mercado por € 35.000,00 ninguém pegava no imóvel» (sic).
Confrontado com a circunstância de cerca de dois anos antes, a fração ter sido judicialmente avaliada em € 65.000,00, e se é normal uma casa desvalorizar tanto em dois anos, limitou-se a afirmar que «os imóveis valem aquilo que o mercado quiser pagar por eles».
Mais tarde, no dia 21 de fevereiro de 2022, RL voltou a prestar depoimento, na mesma qualidade de legal representante da ré, reiterando o depoimento prestado no dia 10 de abril de 2019, apontando, uma vez mais, baterias para a crise económica e do imobiliário, vivida em Portugal no ano de 2011.
O depoimento de parte RL, administrador da ré, não deixa dúvida razoável a quem quer que seja que “a compradora tinha conhecimento do valor da fração à data da realização da escritura”.
Acresce que resultou do depoimento da testemunha TCE (filha da autora e com ela desde sempre residente na fração) que pouco tempo antes da realização da escritura em causa nestes autos, estiveram no interior da fração, LP (mais adiante melhor referenciada e enquadrada no percurso que culminou na realização daquela escritura) e um outro homem, durante poucos minutos, embora não tendo ambos passado da zona imediatamente à seguir à porta de entrada, ou seja, do hall de entrada.
Considera-se, assim, provado que:
«3.1.18 - À data da realização da escritura a compradora tinha conhecimento do valor da fração».
*
3.2.1.6 – O que demais vem impugnado em sede de decisão sobre a matéria de facto:
A apelante considera que devem ser considerados provados os enunciados descritos em:
- 24 e 25;
- 27 e 28;
- 21;
- 1;
- 4, 5, 7, 8 e 10;
- 18, 20, 31, 32 e 33;
- 19; e,
- 38,
do elenco dos factos não provados[41].
Conforme já afirmado, desconhecem-se as razões, os motivos, pelos quais a senhora juíza a quo considerou não provado cada um daqueles enunciados.
Afirma-se, no entanto, na sentença recorrida:
«Ora, começando pelas declarações da autora as mesmas foram fantasiosas e inverosímeis, foram contraditadas posteriormente, nalguns aspectos pelas testemunhas apresentadas pela própria autora, mais propriamente pela filha e pelo companheiro desta.
A autora procurou aqui convencer o Tribunal que tendo-se divorciado há mais de 20 anos e após ter chegado a viver maritalmente com outro homem numa casa em Coruche ( segundo depoimento da sua filha e genro) se sentiu pressionada pelo ex-marido e completamente transtornada por ainda estar em dívida quanto ao pagamento de tornas decorrente da divisão de bens comuns do casal. Quis fazer crer que tal transtorno, agravado pelo falecimento da mãe de uma neta nascitura a levou a contactar um estranho para lhe emprestar dinheiro e que, através desse estranho, se encontrou com uma mulher que nunca tinha visto e que lhe disse trabalhar no Banco ____. Apesar de tal desconhecida lhe ter dito trabalhar no banco não achou estranho encontrar-se com ela apenas em cafés não achou estranho que ela nunca lhe desse ou mostrasse qualquer papel com o timbre do banco.
Quis a autora aqui fazer crer ao tribunal que não desconfiou de nada. Mais, que confiava plenamente da dita LP, pessoa que acabara de conhecer e com quem apenas se encontrava em cafés.
Pretendeu a autora também fazer crer ao Tribunal que não se apercebeu de ter assinado contrato-promessa nem se apercebeu que estava a celebrar uma escritura de compra e venda. Curiosamente, lembra-se de quase tudo em pormenor, menos do momento da escritura em que não ouviu a notária ler a escritura nem tampouco se apercebeu se a mesma lhe perguntou se tinha ficado ciente do seu conteúdo. No entanto, lembra-se perfeitamente do que se passou depois, tendo referido que foi beber um café no corte inglês e que foi com a LP ao banco. É como o momento da celebração da escritura tivesse sido apagado da sua memória.
Não se concebe que a história aqui contada possa ser verdadeira e muito menos ter acontecido a um adulto com uma inteligência média, ou até abaixo da média. Do contacto com a autora em audiência de julgamento, não se notou qualquer diminuição cognitiva ou falta de experiência. Antes, se afigurou que a autora encarnou um determinado papel, querendo passar a ideia de pessoa inofensiva, crédula e de vítima, para conseguir levar a sua versão dos factos a bom termo».
Ouvida na integra a gravação das extensas e repetitivas declarações de parte prestadas pela autora na audiência final, fruto da forma como a senhora juíza a quo conduziu o respetivo interrogatório, repetindo, nalguns casos até à exaustão, as mesmas perguntas, não é, de todo, possível acompanhar as considerações e conclusões acabadas de transcrever, pois elas contrariam gritantemente a realidade do que ocorreu na audiência final no que àquele meio de prova diz respeito.
Tais considerações e conclusões apenas revelam, a nosso ver, uma manifesta incompreensão, pela senhora juíza a quo, daquilo que se passou à sua frente na audiência final, no tocante às declarações de parte da autora.
Desde logo, e para que dúvida alguma subsista, importa dizer o seguinte quanto a tais declarações:
- elas foram prestadas pela autora sob uma evidente e facilmente percetível carga nervosa e emotiva, o que é perfeitamente compreensível tendo em conta os interesses em jogo nesta ação. A audição da gravação dessas declarações revelou, com total nitidez, a enorme carga nervosa e emotiva sob a qual a autora se encontrava, chegando ao ponto de, por mais do que uma vez, não conseguir conter o choro, o qual, conforme facilmente se percebeu pela gravação, não foi fingido, mas espontâneo e sentido, sem que da parte da senhora juíza a quo tivesse sequer havido o cuidado, a sensibilidade, o bom senso, de interromper a diligência por alguns minutos, de modo a permitir que a declarante se pudesse acalmar, recompor, serenar. Por outro lado, muitas foram as vezes em que a autora/declarante, ao tentar responder a uma questão colocada pela senhora juíza a quo, foi por esta interrompida, sem que lhe fosse possível completar o raciocínio, logo sendo confrontada com outras questões que, por vezes, nada tinham a ver com aquela a que tentava responder;
- a autora revelou conhecimento direto acerca dos factos sobre os quais foi inquirida, pois foi ela quem vivenciou, na primeira pessoa, todo o processo que culminou na realização do negócio cuja invalidade é pretendida através desta ação;
- por vezes, o seu discurso foi algo confuso, consequência, reitera-se, do nervosismo e da forte carga emocional em que se encontrava, e também, insiste-se, do modo como o interrogatório foi conduzido pela senhora juíza a quo;
- as declarações foram, no entanto, perfeitamente percetíveis e revelam, sem margem para qualquer dúvida, o verdeiro e incrível engodo, para dizer o mínimo, para que foi arrastada;
- ao contrário do equivocamente afirmado pela senhora juíza a quo, o discurso da autora foi perfeitamente coerente e verosímil, natural e espontâneo;
- tratou-se de um discurso autêntico e honesto, sem premeditações, sendo manifesto o esforço que fez, não obstante as condições em que prestou declarações, para reproduzir fielmente o que na realidade se passou;
- o estado de nervosismo e de forte emotividade em que se encontrava, não a impediu de demonstrar que estava firmemente convicta das suas afirmações;
- o seu discurso foi percetível, pois, através dele, percebeu-se perfeitamente tudo quanto ocorreu até ao momento da assinatura da escritura; e até mesmo o que sucedeu posteriormente;
- o seu discurso foi perfeitamente verosímil, deixando-nos a firme convicção de que aquilo que disse corresponde efetivamente à verdade, à luz das regras da experiência, da lógica, daquilo que, na realidade, faz sentido;
- crê-se que aquilo que a autora afirmou em sede de declarações de parte pode, sem esforço algum, ser aceite por uma razão medianamente esclarecida, existindo um forte juízo de probabilidade acerca daquilo que afirmou, de acordo com padrões comuns de comportamento humano, segundo, reitera-se, as regras da lógica e da experiência humana.
*
i) quanto ao enunciado descrito em 1. dos factos não provados:
Está provado que:
a) correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo de Família e Menores de Sintra – Juiz _, sob o n.º ____/__, inventário para partilha de bens em casos especiais, em que foi requerente, a aqui autor/recorrente, e requerido/cabeça de casal, o seu ex-marido, LAE;
b) no âmbito desse processo, no dia 2 de julho de 2010, foi celebrada uma transação nos termos da qual requerente e requerido acordaram:
- na adjudicação da fração à aqui autora/recorrente;
- que a aqui autora/recorrente entregaria ao ex-marido, a título de tornas, a quantia de € 10.000,00;
- que essa quantia seria paga pela aqui autora/recorrente em duas prestações, por transferência bancária para uma conta bancária do ex-marido, sendo a primeira na importância de € 5.000,00, paga na assinatura do acordo, e a segunda prestação, de igual montante, paga até ao dia 30 de setembro de 2010, por forma a que conseguisse obter financiamento bancário para pagamento desta segunda prestação;
c) essa transação foi homologada por sentença datada de 2 de julho de 2010.
Nada mais natural, portanto, que o ex-marido da autora, LAE, a tivesse passado a pressionar para cumprir a sua parte na transação, ou seja, para lhe pagar a totalidade do valor das tornas acordadas.
Isso mesmo resultou, inequivocamente, das declarações de parte da autora e da sua filha, a testemunha TCE, que afirmou que o pai, o referido LAE, «exigia à mãe o valor das partilhas, € 10.000,00»; «o pai pressionava bastante a mãe por causa do dinheiro»; «estava constantemente a exigir o dinheiro à mãe»; «ameaçava com advogados».
Assim, considera-se provado que «A partir de data não apurada, mas após a celebração do acordo referido em 2., o ex-marido da autora começou a insistir com esta para que lhe pagasse o montante das tornas ali referidas».
*
ii) quanto aos enunciados descritos em 2. e 3. dos factos não provados:
Está provado, pela certidão do assento de óbito junta aos autos no dia 14 de março de 2019, que NAI faleceu no dia 17 de novembro de 2010.
Não foi junta certidão do assento de nascimento da autora.
No entanto, tanto autora (de forma bastante emotiva), como a sua filha, TCE, foram categóricas na afirmação de que a mãe daquela faleceu em novembro de 2010.
Não constitui objeto dos presentes autos, a questão da filiação da autora.
Assim, a análise crítica e conjugada daquele documento, com as declarações da autora e o depoimento da testemunha TCE, permitem concluir que a mãe daquela faleceu em novembro de 2010.
Resultou igualmente daquelas declarações e daquele depoimento, que:
- muito perto daquela data, uma nora da autora deu à luz um nado-morto;
- ambos os acontecimentos provocaram abalo psicológico na autora.
Sempre seria das regras da experiência da vida que tais acontecimentos, até pela sua proximidade, não poderiam, em condições normais, deixar de causar abalo psicológico à autora; tal como causariam a qualquer outra pessoa, colocada no seu lugar.
Mais resultou das declarações de parte da autora, do depoimento da testemunha TCE, e do depoimento da testemunha AT, que tais acontecimentos, associados à cada vez maior insistência de LAE no recebimento das tornas, deixaram a autora perturbada e transtornada.
Assim, considera-se provado que:
«2. Em novembro de 2010 faleceu a mãe da autora e nasceu sem vida, uma filha de uma sua nora, o que lhe provocou um forte abalo psicológico;
3. (...) o que, associado à cada vez maior insistência do seu ex-marido no recebimento das tornas, a deixou perturbada e transtornada».
*
iii) quanto aos enunciados descritos em 4. e 5. dos factos não provados:
O ponto 6. do acordo celebrado entre a autora e o seu ex-marido no processo de inventário acima identificado, tem a seguinte redação:
«Mais acordam que tal quantia será paga pela Requerente em duas prestações, por transferência bancária para conta do Requerido com o NIB (...), sendo a primeira na importância de 5.000,00€, paga de imediato na assinatura do presente acordo e a segunda prestação de igual montante, paga até ao dia 30 de setembro de 2010, por forma à Requerente conseguir obter financiamento bancário para pagamento da segunda prestação».
Nas declarações que prestou na audiência final, a autora afirmou que tentou junto de entidades bancárias, a concessão de empréstimo para pagar as tornas ao ex-marido, sem sucesso, pois, auferindo o salário mínimo nacional, nenhum banco lhe concedeu empréstimo.
Por se encontrar sob pressão do seu ex-marido, que lhe exigia o valor das tornas e porque sabia que havia pessoas que emprestavam dinheiro, a certa altura consultou o jornal “Ocasião”, onde viu um anúncio de empréstimo de dinheiro, com referência a um número de telefone.
Descreveu, então, tudo quanto ocorreu até ao momento em que foi contactada por uma pessoa de nome LP.
A sua versão dos acontecimentos foi corroborada pela testemunha TCE, sua filha, que acrescentou que a autora contactou até instituições financeiras de crédito, como a CTM, não logrando, ainda assim, obter o empréstimo para pagar as tornas a LAE.
Assim, considera-se provado que:
«4. A autora procurou o financiamento dos 10.000,00 euros junto de instituições bancárias e financeiras, mas sempre sem sucesso;
5. Como tais tentativas resultaram infrutíferas, a autora ligou para um número de telemóvel que viu anunciado no jornal “Ocasião” como pertencendo a alguém que emprestava dinheiro».
*
iv) quanto aos enunciados descritos em 6. a 10. dos factos não provados:
A apelante não impugnou a decisão sobre os enunciados descritos em 6. e 9. dos factos não provados.
Porém, este tribunal ad quem terá, necessariamente, de alterar a decisão quanto a tais enunciados, sob pena de resultar incoerente a decisão sobre a impugnação dos enunciados descritos em 7., 8. e 10., dos factos não provados.
A este propósito, ou seja, no tocante à delimitação da alteração da matéria de facto seguinte o entendimento sufragado no Ac. do S.T.J. de 07.11.2019, Proc. n.º 2929/17.8ALM.L1.S1 (Rosa Tching), in www.dgsi.pt:
«I. Cumprido pelo recorrente o ónus de impugnação a que alude o artigo 640º do CPC e tendo a Relação reapreciado os meios de prova indicados relativamente aos pontos de facto impugnados pelo recorrente, não está o Tribunal da Relação impedido de alterar outros pontos da matéria de facto, cuja apreciação não foi requerida, desde que essa alteração tenha por finalidade ou por efeito evitar contradição entre a factualidade que se pretendia alterar e foi alterada e outros factos dados como assentes em sede de julgamento.
II. Não se compreenderia, na verdade, desde logo, por razões de justiça material, que o Tribunal da Relação, aquando da reapreciação e da formação do seu próprio juízo probatório sobre cada um dos pontos de facto objeto de impugnação, não pudesse interferir noutros pontos da matéria de facto cujo conteúdo se viesse a revelar afetado pelas respostas dadas àqueloutros por forma a evitar contradições, tal como acontece na situação prevista na parte final da alínea c) do nº 3 do artigo 662º, do CPC».
No mesmo sentido, vejam-se:
- o Ac. do S.T.J. de 08.04.2021, Proc. n.º 453/14.0TBVRS.L1.S1 (Maria do Rosário Morgado), in www.dgsi.pt: «I - A reapreciação da matéria de facto por parte da Relação tem a mesma amplitude que o julgamento de primeira instância, competindo-lhe reapreciar os meios de prova indicados e os que se mostrem acessíveis, complementados, ou não, com as regras da experiência, relativamente aos pontos impugnados da matéria de facto, podendo ainda alterar outros factos, ainda que não impugnados, a fim de evitar uma contradição, pois se assim não fosse, o julgamento na Relação, no que concerne à matéria de facto, não alcançaria uma autónoma convicção probatória».
As declarações de parte da autora também não deixam quaisquer dúvidas quanto ao que ocorreu depois de ter visto o anúncio no jornal “Ocasião”.
Delas decorre que:
- ligou para o número de telemóvel que constava daquele anúncio, tendo sido atendida por um indivíduo que se assumiu como engenheiro e a informou que apenas tinha disponibilidade para lhe emprestar até € 1.000,00, mas conhecia uma pessoa que a poderia ajudar, e que mais tarde lhe daria o contacto dessa pessoa.
- essa tal pessoa telefonou-lhe logo a seguir, identificando-se como LP, e dizendo que era assessora do Banco ____;
- a autora explicou a LP a situação em que se encontrava, qual era “o seu problema” e qual era a finalidade do empréstimo que pretendia obter;
- LP disse à autora que lhe conseguiria o dinheiro, tendo marcado um encontro com esta para o dia seguinte, num café sito em Entre Campos, Lisboa;
- nesse telefonema, LP disse à autora para levar consigo toda a documentação que tivesse em seu poder, referente à fração;
- a autora não estranhou o encontro com LP num café, pois que andava a tomar medicamentos contra a depressão e a ansiedade, e apenas pretendia arranjar dinheiro para pagar as tornas ao ex-marido, que a pressionava insistentemente para o efeito;
- nesse encontro, a autora voltou a expor novamente “o seu problema” a LP, a quem entregou a documentação que levou consigo, referente à fração;
- ainda nesse encontro, LP disse à autora que tinha que abrir uma conta no Banco ____, mas que depois lhe explicaria melhor como fazer;
- no final desse encontro, LP levou consigo os documentos da fração que a autora lhe entregou, dizendo-lhe que posteriormente a contactaria, o que sucedeu 3 dias depois, via telefónica.
Atenta a forma como foram prestadas as declarações, nos termos acima descritos, tudo isto é crível, lógico, faz sentido, à luz das regras da experiência e da lógica.
Assim, considera-se provado que:
«6. A autora ligou para esse número de telemóvel, tendo sido atendida por um indivíduo que se assumiu como engenheiro e a informou que apenas tinha disponibilidade para lhe emprestar até € 1.000,00, mas conhecia uma pessoa que a poderia ajudar, e que mais tarde lhe daria o contacto dessa pessoa;
7. Essa tal pessoa telefonou-lhe logo a seguir, identificando-se como LP, e afirmando ser assessora do Banco ____;
8. (...) altura em que a autora expôs a LP a razão pela qual necessitava com urgência que lhe fosse concedido um empréstimo no valor de € 10.000,00, tendo esta afirmado que lhe conseguia o dinheiro;
9. LP marcou, então, um encontro com a autora para o dia seguinte, num café sito em Entre Campos, Lisboa, onde esta deveria comparecer, fazendo-se acompanhar de toda a documentação que tivesse em seu poder referente à fração;
10. No dia seguinte, a autora e LP encontraram-se no café por esta indicado, onde aquela:
- expôs novamente a razão pela qual necessitava que lhe fosse emprestada a quantia de € 10.000,00;
- entregou a LP a documentação que levou consigo, referente à fração,
após o que esta se retirou, levando consigo a documentação».
*
v) quanto aos enunciados descritos em 18. a 20. dos factos não provados:
Trata-se de matéria que resulta inequivocamente demonstrada pelas emotivas, verosímeis, sinceras e espontâneas declarações de parte prestadas pela autora na audiência final, onde descreveu as coisas tal como elas se passaram.
Resultou das suas declarações que:
- LP a contactou telefonicamente três dias depois do descrito encontro entre ambas no café sito em Entre Campos;
- no decurso desse telefonema, LP pediu o “IRS” à autora e marcou encontro com esta na Conservatória do Registo Predial de ____, com vista à inscrição registral da fração em nome da autora, na sequência da partilha efetuada no processo de inventário acima identificado;
- LP fez a marcação da data para efetivação desse registo;
- foi com LP à CGD para comprovação de que não havia dívidas que onerassem a fração;
- LP sempre acompanhou a autora em todas as diligências junto das diversas entidades;
- a autora não estranhou a solicitude de LP porque pensava que esta a estava efetivamente a ajudar;
- mais tarde, voltou com LP à CRP de ____, para efetivação do registo da fração apenas em nome da autora;
- da CRP de ____ seguiram para a Repartição de Finanças, a fim de atualizarem a inscrição matricial;
- LP pediu à autora o bilhete de identidade da filha desta TCE, com o argumento de que, uma vez que a autora recebia o salário mínimo nacional, o empréstimo tinha de ser feito também em nome daquela;
- a autora entregou a LP cópia do bilhete de identidade, do NIF e de recibos de vencimento da sua filha, a testemunha TCE, o que ocorreu num determinado dia junto à estação do metro da Falagueira, Amadora;
- LP recebeu os documentos e desandou;
- dois dias depois desse encontro junto ao metro, a autora telefonou a LP, informando-a que o advogado do ex-marido a tinha contactado a insistir por causa do dinheiro das tornas;
- LP disse-lhe, então, que dada a urgência, e como no banco as coisas iriam demorar mais tempo, «conhecia um investidor que iria fazer a hipoteca da casa e que lhe emprestaria o dinheiro e que depois essa hipoteca iria transitar para o Banco ____», «depois de sair o crédito do Banco ____»;
- LP disse à autora que a contrapartida que esta tinha de prestar ao investidor que lhe ia emprestar o dinheiro, seria «à volta de uns 200/300 €» mensais, durante cerca de 3 meses, o tempo que, segundo LP, decorreria até obter a concessão do empréstimo junto do Banco ____;
- a autora disse a LP que estava muito aflita com dinheiro e não conseguiria pagar muito mais que os € 300,00 mensais;
- LP disse à autora para não se preocupar porque, entretanto, «saía o empréstimo do Banco ____»;
- nessa ocasião, LP disse à autora: «Aliás você não vai pedir apenas 10 mil, vai pedir aí uns 20 mil porque assim tem dinheiro para pagar ao seu ex-marido e o resto para pagar ao investidor»;
- assinou «montes de papéis» no dia em que assinou a escritura que pensava ser de mútuo e hipoteca, mas que mais tarde veio a saber que não era;
- foi LP quem marcou a escritura, num cartório notarial sito nos Restauradores, em Lisboa, em frente à antiga loja do cidadão;
- a autora deslocou-se ao cartório notarial na companhia de LP, no carro desta;
- LP «Deu uma série de voltas e levou-me a um notário»;
- quando entrou no cartório estava muito nervosa;
- LP disse-lhe que era para fazerem «a escritura da hipoteca» da fração, para lhe ser emprestado o dinheiro;
- não achou estranho LP dizer-lhe que trabalhava num banco e nunca terem ido a uma instituição bancária, pois tinha-lhe dado conta da urgência na obtenção do empréstimo;
- quem lhe ia então emprestar o dinheiro era um denominado «investidor»;
- no cartório encontravam-se, além de LP, quatro senhores que a autora nunca tinha visto;
- entre o primeiro contacto com LP e a data da realização escritura, mediaram, no máximo, 15 dias;
- quando entrou no cartório notarial pensava que ia fazer a «escritura da hipoteca» com o investidor anunciado por LP;
- estava, então, bastante nervosa e a tremer muito;
- LP disse-lhe: «Pare com isso ou então eles chegam aqui e vão-se embora e não lhe fazem hipoteca nenhuma»;
- a partir daí sentiu-se bloqueada;
- decorridos cerca de 10/15 minutos, entrou um senhor, após o que, todos, se dirigiram a uma sala;
- nessa altura, LP disse-lhe: «Vá, vamos lá ali num instante»;
- o tal senhor que tinha acabado de chegar, pediu-lhe desculpa, sem que a autora tenha percebido porquê;
- em seguida entregou-lhe uns papéis e disse: «Assine aqui isto»;
- a autora assinou de imediato os papéis que lhe foram apresentados, sem que se apercebesse do que é que se tratava;
- em seguida, saíram dessa sala e entraram numa noutra sala onde já estava um senhor sentado;
- a autora sentou-se a uma secretária;
- LP sentou-se ao lado autora;
- ao lado de LP sentou-se um outro senhor;
- sentada a essa secretária estava ainda uma outra senhora que pensou ser era a notária;
- lembra-se que uma senhora lhe leu a escritura, mas não sabe o que lhe foi dito;
- afirmou: «eu bloqueei de tal maneira…»; «estava nervosa, não sei explicar»; «quando assinei os papéis não li nada, nada, nada, nada»;
- a chorar, afirmou na audiência final: «Eu só queria era pagar os 10 mil € ao meu marido e sossegar»; «Eu estava bloqueada», «para mim o que a senhora estava a falar era uma escritura de hipoteca»;
- de forma que fazia transparecer profunda emoção, afirmou: «Só mais tarde, depois de ter tudo e quando comecei a ver que não estava a conseguir contactar com LP, para conseguir abrir a conta no Banco ____, é que mais tarde eu resolvi procurar outra pessoa que também tinha anuncio no jornal e que fazia empréstimos sobre casas»;
- «Saí do notário, dei por mim, estava num café do El Corte Inglés, e ela disse-me assim: “Vá, beba lá esse café que está muito nervosa”»;
- nessa altura chegaram dois senhores que tinham estado presentes na escritura;
- pediram também um café;
- beberam o café e foram-se embora;
- «Eu fiquei com ela»;
- «Não me lembro sequer de ter saído do notário, muito honestamente»;
- depois de a autora beber o café, dirigiu-se com LP a um banco para levantamento de um cheque que esta trazia consigo dentro de um envelope, e que entregou à autora, e que, pensava esta, titularia o valor do empréstimo;
- esse cheque era «no valor de 10 mil euros e qualquer coisa»;
- no balcão do banco onde a autora procedeu ao levantamento do valor do cheque que tinha acabado de lhe ser entregue por LP, esta disse à funcionária do banco que estava a separar o dinheiro, para retirar € 2.000,00 e os colocar num envelope à parte;
- nessa ocasião, LP disse à autora: «Estes 2 mil euros são os meus honorários», ao que a autora retorquiu: «Ó Sr.ª Dr.ª mas assim eu fico sem dinheiro para pagar ao meu ex-marido»;
- na sequência da escritura, acabou por receber uma quantia na casa dos sete mil euros;
- além dos referidos € 2.000,00, LP retirou ainda mais dinheiro para si, com o argumento de que era para abrir a conta no Banco ____, de modo a poder avançar com o crédito bancário.
Repete-se:
Ouvidas, na integra, as declarações de parte da autora, este tribunal ad quem ficou, pelas razões acima expostas, absolutamente convencido da veracidade das mesmas, pois não é crível que uma pessoa, no concreto estado em que a autora se encontrava, tivesse capacidade para mentir, para inventar uma história como a descrita, a menos que se trate de uma excelente atriz, o que não é, manifestamente, o caso.
Resultou ainda do depoimento da filha da autora, a testemunha TCE, que:
- à autora jamais «passou pela cabeça vender a casa»;
- o que a autora queria era contrair um empréstimo para pagar as tornas ao pai (dela, testemunha);
- a autora pensava, mais tarde, «passar a casa para o nome» da testemunha.
Aliás, foge às próprias regras da experiência, da lógica, daquilo que é normal, sob pena de nada fazer sentido, que a autora, na exata situação em que se encontrava, auferindo o salário mínimo nacional, tendo visto ser-lhe recusado crédito bancário no valor de € 10.000,00, montante de que precisava urgentemente para pagar tornas ao ex-marido, que a pressionava nesse sentido, conscientemente, uma vez conhecedora daquilo que efetivamente estava a fazer, no mesmo dia:
- tivesse declarado vender a fração por € 18.000,00 (dos quais não chegou sequer a receber € 8.000,00) à ré; e,
- tivesse celebrado com a mesma ré, um contrato promessa de compra e venda por via do qual esta se comprometia a vender à autora, que se competia a comprar-lhe, no prazo de seis meses, pelo preço de € 27.000,00, exatamente a mesma fração.
Isto, há que dizê-lo com toda a frontalidade, não faz o menor sentido, não cabe na cabeça de ninguém!
Assim, considera-se provado que:
«18. A autora estava absolutamente convencida de que estava a contrair um empréstimo de € 10.000,00, garantido por hipoteca»;
19. Em consequência da necessidade que tinha do dinheiro, do nervosismo e ansiedade em que se encontrava, e do ambiente que lhe foi criado, não se deu conta de que estava a realizar um contrato de compra e venda da fração;
20. (...) negócio que a autora nunca sequer equacionou realizar».
*
vi) quanto ao enunciado descrito em 21. dos factos não provados:
Trata-se de um enunciado que resulta claramente provado face ao teor das declarações de parte da autora.
LP retirou para si € 2.000,00, com o argumento de que tal quantia se destinava ao pagamento dos seus honorários.
Assim, considera-se provado que:
«21. A autora apenas recebeu 7.700,00 euros que pensou terem-lhe sido mutuados, pois LP retirou para si € 2.000,00, com o argumento de que tal quantia se destinada ao pagamento dos seus honorários».
*
vii) quanto aos enunciados descritos em 24. e 25. dos factos não provados:
Ouvida e analisada criticamente a prova gravada em audiência, pelas exatas razões expressas pela apelante na motivação do recurso, que aqui se reproduzem por se afigurarem de toda a pertinência, tais enunciados devem ser considerados provados nos termos a seguir indicados.
A apelante fez, com recurso à transcrição de excertos, e à luz das regras da experiência da vida e da lógica das coisas, uma correta análise da prova gravada, relevante para a decisão daqueles enunciados.
As declarações de parte da autora evidenciam igualmente a veracidade de tais enunciados.
Assim, considera-se provado que:
- «24. A autora desconhecia e desconhece ML, titular da conta referida em 9. dos factos provados».
O segmento «pessoa especialmente relacionada com a ré sociedade», é vago e conclusivo, não devendo, por isso, figurar no elenco, quer dos factos provados, quer dos factos não provados.
- 25. (...) assim como desconhecia e desconhece NP, a quem não entregou o cheque referido em 10. dos factos provados, ou determinou o pagamento».
O segmento «pessoa também sem qualquer ligação a si» é redundante.
O segmento «para o que não tinha também qualquer razão ou fundamento», é conclusivo, não devendo, por isso, figurar no elenco, quer dos factos provados, quer dos factos não provados.
*
viii) quanto aos enunciados descritos em 27., 28., 31. e 38., dos factos não provados:
Trata-se de matéria conclusiva, a retirar, ou não, de concretos factos juridicamente relevantes, desde que considerados provados.
Importa ter presente que a fundamentação de facto de uma sentença, tanto no que respeita aos factos provados, como aos não provados, deve ser integrada, não por afirmações de natureza conclusiva, valorativa e jurídica, mas por factos materiais, concretos e precisos, juridicamente relevantes e oportunamente incorporados no processo.
A este propósito, afirmam Antunes Varela/Miguel Bezerra/Sampaio e Nora, que factos jurídicos ou juridicamente relevantes são factos atinentes, sobretudo, ainda que não em exclusivo, a ocorrências da vida real, assim como ao estado, à qualidade ou à situação real das pessoas ou das coisas[42].
Alberto dos Reis refere-se a factos materiais, definindo-os como as ocorrências da via real, isto é, fenómenos da natureza ou manifestações concretas dos seres vivos, nomeadamente os atos e os factos dos homens, entendendo por factos jurídicos os factos materiais vistos à luz de normas e critérios de direito[43].
Resulta também da lição de Anselmo de Castro, que são factos não só os acontecimentos externos, como os internos ou psíquicos, e tanto os factos reais, como os simplesmente hipotéticos, sendo que só acontecimentos ou factos concretos no sentido indicado podem integrar a fundamentação de facto de uma sentença, onde não podem figurar enunciados genéricos e abstratos nos termos descritos na norma de direito substantivo aplicável à resolução do caso concreto[44].
Para Leo Rosenberg, factos jurídicos são os acontecimentos (e circunstâncias) concretos, determinados no espaço e no tempo, passados e presentes, do mundo exterior e da vida anímica humana que o direito objetivo converteu em pressuposto de um efeito jurídico[45].
Dispunha o n.º 4 do art.º 646.º do CPC/95-96, que «têm-se por não escritas as respostas do tribunal coletivo sobre questões de direito e bem assim as dadas sobre factos que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes».
Trata-se de uma disposição que o legislador processual civil de 2013 não manteve, pelo menos em termos de correspondência direta, na disciplina homóloga do CPC/2013.
Naquela disposição não estava contemplada a circunstância de se tratar de matéria de natureza vaga, genérica e conclusiva.
No entanto, foi-se consolidando na jurisprudência dos tribunais superiores, por se ter admitido que assume feição de recorte jurídico, a operação de escrutinar se determinada proposição de facto tem ou não natureza conclusiva, o entendimento de que apesar de o n.º 4 do art.º 646.º do CPC/95-96, não contemplar, expressamente, a situação de sancionar como não escrito um facto conclusivo, o mesmo era aplicável, analogicamente, a situações em que estivesse em causa um facto de tal natureza, o qual, em retas contas, é reconduzível à formulação de um juízo de valor que se deve extrair de factos concretos objeto de alegação e prova, e desde que a matéria se integrasse no thema decidendum[46].
Na afirmativa, a proposição será conclusiva se exprimir uma valoração jurídico-subsuntiva essencial, devendo, por isso, ser expurgada[47].
Ante a eliminação da norma contida no n.º 4 do art.º 646.º do CPC/1995-96, vem-se entendendo poder manter-se o mesmo entendimento das coisas interpretando, a contrario sensu, o atual n.º 4 do art.º 607.º, do CPC/2013, segundo o qual, «na fundamentação da sentença, o Juiz declara quais os factos que julga provados (...)»[48].
Neste contexto, escreve pertinentemente Carlota Spínola que «(...) a sanação da patologia existente quando a decisão de facto integra matéria de natureza jurídico-conclusiva não pode ser realizada ao abrigo do art.º 662.º. No Ac. do TR de Évora (TRE) de 26/09/2019 (proc n.º 1966/2009, ID 414160) defende-se que a intervenção da Relação “na despistagem (identificação / qualificação / expurgação) […] das afirmações genéricas, conclusivas ou que comportem matéria de direito” contidas na fundamentação de facto da sentença contra suporte legal no art.º 607.º, n.º 4 ex vi do art.º 663.º, n.º 2 e não no art.º 662.º».
Assim, consideram-se não escritos os enunciados vertidos em 27., 28., 31. e 38., do elenco dos factos considerados não provados.
*
ix) quanto ao enunciado descrito em 32., dos factos não provados:
Resulta claramente provado pelo teor das declarações de parte prestadas pela autora.
Assim, considera-se provado que:
32. A autora entregou a quantia referida em 14. dos factos provados, no convencimento de que o estava a fazer para amortização do mútuo;
*
x) quanto ao enunciado descrito em 33., dos factos não provados:
Trata-se de um enunciado absolutamente irrelevante para a decisão do presente recurso, razão pela qual se rejeita, nesta parte, a impugnação da decisão sobre a matéria de facto.
*
Considerando as alterações efetuadas na decisão do tribunal a quo sobre a matéria facto, por uma questão de clareza, passa a descrever-se, para efeitos de subsequente enquadramento jurídico, a factualidade que se considera definitivamente provada e não provada:
Factos provados:
«1. Correu termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo de Família e Menores de Sintra – Juiz _, sob o n.º ____/__, inventário para partilha de bens em casos especiais, em que foi requerente, AFC, e requerido/cabeça de casal, LAE»;
2. No dia 2 de julho de 2010, requerente e requerido/cabeça de casal, apresentaram no processo identificado em a), requerimento contendo uma transação da qual consta, além do mais, o seguinte:
1.º
Requerente e requerido acordam reciprocamente em atribuir ao imóvel verba única do ativo (...)[49] o valor de 65.000,00€, constante do relatório de avaliação junto aos autos.
2.º
As partes acordam que tal prédio fique adjudicado à requerente AFC (...).
3.º
Nestes termos a Requerente ficará como única proprietária do prédio urbano supra descrito (...).
(...)
5.º
Fica assim o Requerido com direito a receber, a título de tornas a serem pagas pela Requerente, a quantia de 10.000,00€ (dez mil euros).
6.º
Mais acordam que tal quantia será paga pela Requerente em duas prestações, por transferência bancária para conta do Requerido com o NIB (...), sendo a primeira na importância de 5.000,00€, paga de imediato na assinatura do presente acordo e a segunda prestação de igual montante, paga até ao dia 30 de setembro de 2010, por forma à Requerente conseguir obter financiamento bancário para pagamento da segunda prestação».
3. Sobre essa transação recaiu a seguinte sentença, também datada de 2 de julho de 2010:
«Nos presentes autos de inventário para partilha dos bens comuns que foram do casal constituído por AFC e LAE (...), homologo pela presente sentença a partilha constante do requerimento de fls. 552-553, adjudicando as verbas e condenando-os a cumprir com as obrigações aí consagradas».
4. A partir de data não apurada, mas após a celebração do acordo referido em 2., o ex-marido da autora começou a insistir com esta para que lhe pagasse o montante das tornas ali referidas.
5. Em novembro de 2010 faleceu a mãe da autora e nasceu sem vida, uma filha de uma sua nora, o que lhe provocou um forte abalo psicológico;
6. (...) o que, associado à cada vez maior insistência do seu ex-marido no recebimento das tornas, a deixou perturbada e transtornada.
7. A autora procurou o financiamento dos € 10.000,00 referidos em 2., junto de instituições bancárias e financeiras, mas sempre sem sucesso;
8. Como tais tentativas resultaram infrutíferas, a autora ligou para um número de telemóvel que viu anunciado no jornal “Ocasião” como pertencendo a alguém que emprestava dinheiro.
9. (...) tendo sido atendida por um indivíduo que se assumiu como engenheiro e a informou que apenas tinha disponibilidade para lhe emprestar até € 1.000,00, mas conhecia uma pessoa que a poderia ajudar, e que mais tarde lhe daria o contacto dessa pessoa;
10. Essa tal pessoa telefonou-lhe logo a seguir, identificando-se como LP, e afirmando ser assessora do Banco ____
11. (...) altura em que a autora expôs a LP a razão pela qual necessitava com urgência que lhe fosse concedido um empréstimo no valor de € 10.000,00, tendo esta afirmado que lhe conseguia o dinheiro;
12. LP marcou, então, um encontro com a autora para o dia seguinte, num café sito em Entre Campos, Lisboa, onde esta deveria comparecer, fazendo-se acompanhar de toda a documentação que tivesse em seu poder referente à fração;
13. No dia seguinte, a autora e LP encontraram-se no café por esta indicado, onde aquela:
- expôs novamente a razão pela qual necessitava que lhe fosse emprestada a quantia de € 10.000,00;
- entregou a LP a documentação que levou consigo, referente à fração,
após o que esta se retirou, levando consigo a documentação.
14. No dia __/__/__, foi celebrado contrato de compra e venda formalizado por escritura pública lavrada no Cartório Notarial de ____ que teve por objecto a fracção autónoma identificada pela letra “H”, correspondente ao 3º andar direito para habitação do prédio urbano sito na Praceta das Magnólias, nº 1, freguesia de Massamá e Concelho de ____, descrito na Conservatória do Registo Predial de ____ com o nº 514 daquela freguesia, e inscrito na matriz predial urbana sob o artigo 131, agora correspondente ao artigo 175 da União das freguesias de ____.
15. Por via desse contrato a autora declarou vender e a ré P, S.A. aceitou comprar a fracção autónoma identificada em 1. pelo preço de 18.000,00 euros que a autora declarou ter recebido e do qual deu quitação.
16. Aquela aquisição encontra-se registada pelas Ap. 1171 de 22/02/2011 e pela Ap. __ de 4/3/2011.
17. Para pagamento do preço foram emitidos quatro cheques em nome da autora, sacados sobre a conta ____ da ré sociedade no Banco ____, mais concretamente:
- Nº 6364633720, datado de __/__/__, no valor de 9.700,00 euros;
- Nº 6365386440, datado de __/__/__, no valor de 1.870,00 euros;
- Nº 6365386343, datado de __/__/__, no valor de 2.430,00 euros;
- Nº 6365386537, datado de __/__/__, no valor de 4.000,00 euros.
18. Na mesma data, __/__/__, foi celebrado contrato-promessa de compra e venda onde se fez constar que a ré e a autora acordaram que a ré se obrigava a vender à autora e esta prometia comprar a fracção autónoma identificado em 1. pelo preço de 27.000,00 euros.
19. Mais se refere que a escritura pública de compra e venda seria celebrada no prazo máximo de 180 dias e as condições de pagamento do preço, tudo como melhor consta do documento junto a fls. 34 a 36 dos autos.
20. O cheque no valor de 9.700,00 euros foi logo levantado pela autora ao balcão do Banco ____ sito em Lisboa.
21. O cheque de 1.870,00 euros foi levantado no mesmo balcão da mesma agência bancária.
22. O cheque de 2.430,00 euros foi creditado em conta bancária de ML.
23. A autora desconhecia e desconhece a referida ML;
24. O cheque de 4.000,00 euros foi levantado por NP.
25. A autora desconhecia e desconhece o referido NP, a quem não entregou o cheque referido em 10..
26. Com referência ao cheque referido em 20., a autora apenas recebeu 7.700,00 euros que pensou terem-lhe sido mutuados, pois LP retirou para si € 2.000,00, com o argumento de que tal quantia se destinada ao pagamento dos seus honorários.
27. A autora desconhecia e desconhece ML, titular da conta referida em 9. dos factos provados;
28. (...) assim como desconhecia e desconhece NP, a quem não entregou o cheque referido em 10. dos factos provados, ou determinou o pagamento.
29. Após a celebração do contrato referido em 1., a autora entregou à ré a quantia de € 400,00.
30. A autora entregou tal quantia à ré no convencimento de que o estava a fazer para amortização do mútuo.
31. A ré comunicou à autora, por carta registada com A/R, em 29 de Maio de 2012, que nos termos do número dois da cláusula quarta do contrato-promessa referido em 5., a marcação da escritura pública de compra e venda da fracção identificada em 1., para o dia 29 de Junho.
32. A autora não compareceu para a concretização da outorga da escritura pública.
33. A autora continua a morar na fracção identificada em 1.
34. A autora apresentou queixa-crime contra o 2º réu, na qualidade de administrador único da 1ª ré e contra LP, tendo corrido termos o Processo de Inquérito nº ____/__ na _ª Secção do DIAP de Lisboa, no qual veio a ser proferido, a final, despacho de arquivamento.
34. Da escritura de compra e venda consta expressamente que a Sra. Notária explicou o conteúdo da mesma às partes.
35. À data referida em 1., a fração tinha o valor de mercado de € 66.000,00;
36. (...) o que era do conhecimento da compradora.
*
Factos não provados:
Com relevo para a decisão da causa não resultou provado que:
a) A autora no dia da outorga do contrato de compra e venda tinha conhecimento do negócio que ia outorgar e que correspondia ao real negócio que ia efectuar;
b) No interior do cartório notarial e em momento anterior ao da outorga do instrumento de compra e venda foi explicado à autora toda a documentação que sustentava o negócio;
c) A ré sempre quis comprar e prometer vender a fracção identificada nos autos;
d) A ré nunca quis emprestar quaisquer valores e tal questão nem lhe foi posta;
e) O que o Dr. RL propôs aos réus era se a ré estava interessada em adquirir um imóvel pelo valor de 18.000.00 euros celebrando um contrato de promessa compra e venda pelo prazo de 6 meses e pelo valor de venda de 27.000,00 euros, conforme proposto a este;
f) Esta proposta foi aceite pela ré, sendo que ambos os réus desconheciam se a autora pretendia um empréstimo, se tinha dificuldades financeiras, se estava com problemas do foro psicológico, se tinha de dar tornas ao ex-marido, ou se havia comissões.
*
3.2.2 – A matéria de direito:
Na petição inicial com que introduziu em juízo esta ação a autora afirma, além do mais: «Deve assim ser declarado nulo, ou, sem conceder, anulado, o contrato de compra e venda em causa, e determinada a restituição do que as partes houverem prestado.
O que tudo se requer, ao abrigo do disposto nos artigos 226º do C.P. e 281º, 282º, 283º, 294º, 240º, 246º, 247º, 559º-A e 1.146º do C.C.»
À parte a, salvo o devido respeito, descabida invocação do art.º 226.º do Cód. Penal, parece que a autora tem alguma dificuldade no enquadramento jurídico da situação que apresentou ao tribunal, pois, como se vê, são várias as direções em que aponta.
A solução jurídica para a resolução do presente litígio reside na previsão e estatuição do n.º 1 do art.º 282.º do CC, segundo o qual, «é anulável, por usura, o negócio jurídico, quando alguém, explorando a situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de caráter de outrem, obtiver deste, para si ou para terceiro, a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados».
Nas impressivas palavras de Pedro Pais de Vasconcelos, «a usura, como vício complexo que é, afecta o negócio numa dupla dimensão: enquanto acto que põe em vigor uma relação privada e enquanto regulação posta em vigor pelo acto. Por isso, a usura é vício da vontade e vício do conteúdo. É vício da vontade enquanto o discernimento e a liberdade de decisão da vítima da usura estão diminuídos. Mas isso não é suficiente: é necessário que haja um aproveitamento consciente e reprovável da situação de inferioridade da vítima e ainda que o negócio assim celebrado seja desequilibrado injustificadamente. O negócio usurário, além de sofrer de um defeito de formação, sofre de um defeito de conteúdo e colide ainda com os bons costumes»[50].
Na interpretação do citado preceito legal escreve Pedro Eiró que «a usura é um vício complexo, composto por elementos subjetivos (respeitantes, por um lado, ao lesado ou vítima da usura e, por outro lado, ao usurário) e por elementos objetivos (respeitantes ao conteúdo do negócio). A verificação cumulativa destes elementos é necessária para a existência da usura e para que o negócio, porque viciado por esta, seja usurário.
Embora todos estes elementos (duplo elemento subjetivo e elemento objetivo) sejam de verificação simultânea, estejam condicionados uns pelos outros e o elemento subjetivo seja causa do objetivo que surge como consequência daquele, é necessária a análise individualizada de cada um deles.
Elemento da usura relativo ao lesado ou vítima da usura: sua situação de inferioridade.
De acordo com este preceito legal, a existência de usura exige, antes de mais, que o declarante, ao emitir a declaração negocial, se encontre numa "situação de necessidade, inexperiência, ligeireza, dependência, estado mental ou fraqueza de carácter". Não restam dúvidas de que o vocábulo "outrem" utilizado no texto se refere ao declarante lesado e vítima da usura.
Esta enumeração, que resultou da alteração ao artigo 282.º efetuada pelo DL n.º 262/83, de 16 de junho, é infeliz, gramaticalmente incorreta e praticamente inoperante. É infeliz pois foi repescar conceitos como a "ligeireza" e a "fraqueza de carácter" que tinham sido intencionalmente eliminados no artigo. É gramaticalmente incorreta dado que, ao ser introduzida a referência ao "estado mental", o termo "situação" deixou de poder funcionar como o verdadeiro antecedente lógico e gramatical de todas as anomalias a seguir enumeradas. É praticamente inoperante uma vez que as alterações introduzidas na enumeração não alargam substancialmente o âmbito de aplicação do preceito.
A enumeração não é taxativa mas meramente exemplificativa. O que importa é verificar se, no momento da emissão da declaração negocial, o declarante se encontrava numa situação de inferioridade e que essa situação tenha sido essencial para a emissão da declaração negocial - ou seja, se não fosse aquela situação, a declaração negocial não teria sido emitida ou tê-lo-ia sido com conteúdo diferente. Embora, dada a redação atual do preceito, se possa afigurar muito difícil a existência de uma situação de inferioridade que não caiba em qualquer dos termos constantes da enumeração, essa hipótese é, pelo menos teoricamente, possível. Assim, se se concluir que determinado declarante emitiu uma declaração negocial porque se encontrava numa situação de inferioridade, não é pelo facto de essa situação não se enquadrar em nenhuma das referidas neste artigo que se preclude a aplicação do regime do negócio usurário. As diversas expressões utilizadas pelo legislador são ilustrativas de um conceito: o de situação de inferioridade em que o lesado se pode encontrar. Pretende-se abranger toda a inferioridade que mereça proteção jurídica deste modo se impedindo que, da exploração dessa situação, alguém obtenha a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados.
A existência de uma situação de inferioridade do declarante é, assim, condição necessária, ainda que não suficiente, para se estar perante um negócio usurário. A situação de inferioridade opera a conexão ou o relacionamento do vício da usura com os vícios da vontade, que pode tomar uma de três variantes: coexistência relevante de ambos - a situação de inferioridade é provocada pela existência de um vício da vontade; coexistência mas apenas com relevância para a situação de inferioridade - o vício da vontade, embora exista, é juridicamente irrelevante enquanto tal; existência apenas da situação de inferioridade e não de qualquer vício da vontade.
Veja-se alguns dos aspetos principais de cada uma das situações de inferioridade enumeradas neste preceito legal.
Necessidade: usualmente referida em primeiro lugar por ser a mais complexa e a mais frequente. A situação de necessidade tem de ser anormal ou anómala - só estas merecem tutela e proteção jurídica, embora não precise de se tratar de uma necessidade económica - pode também ser de ordem física ou moral. A necessidade económica, embora tenha de ser avaliada casuisticamente, deve sempre respeitar a necessidades mínimas de sustento ou condições de vida condizentes com a dignidade da pessoa humana. Não se exige que a situação de necessidade seja real - pode ser putativa desde que esse estado, imaginário, de necessidade tenha determinado a declaração negocial. A situação de necessidade não tem de ser contínua ou permanente - pode ser, apenas, temporária ou momentânea, desde que exista no momento da emissão da declaração negocial. Não é relevante se o declarante teve ou não culpa na criação da situação de necessidade - a existência de culpa não justifica a atitude do usurário. A necessidade pode ser própria do declarante ou de outrem que com ele mantenha relações de proximidade que, no caso concreto, justifiquem considerar-se aquele em situação de necessidade por causas relativas a este. A situação de necessidade não é específica das pessoas singulares, antes também se pode verificar nas pessoas coletivas embora, nestas, só necessidade de natureza económica.
Inexperiência: pode ou não ser resultante de uma incapacidade natural do declarante e é relevante a falta de conhecimento quer das coisas da vida em geral (inexperiência absoluta) quer relativa a certo tipo de atividade ou ramo de negócio em especial (inexperiência relativa). Apenas se exige que o declarante, ao emitir a declaração negocial, não possua um perfeito conhecimento das circunstâncias (científicas, técnicas, legais, profissionais, relativas aos hábitos sociais, locais ou comerciais) necessárias a uma completa valoração dos interesses em causa no negócio. A inexperiência não é específica das pessoas singulares, antes também se pode verificar nas pessoas coletivas.
Ligeireza: a atuação com ligeireza implica uma atuação precipitada, sem a consideração, o cuidado, a atenção ou as preocupações próprias do Homem médio, e sem a adequada ponderação e o correto ajuizamento das circunstâncias ou termos do negócio. A ligeireza é exclusiva das pessoas singulares.
Dependência: não abrange apenas a dependência económica - pode ter na sua origem causa de natureza não económica (afetiva, psicológica ou profissional). Torna relevante o temor reverencial. À semelhança do que sucede com a situação de necessidade, a situação de dependência não é específica das pessoas singulares, antes também se pode verificar nas pessoas coletivas embora, nestas, só a dependência económica.
Estado mental: abrange os casos de debilidade mental, acidental ou permanente, resultantes de fatores de ordem natural. Esta situação é exclusiva das pessoas singulares.
Fraqueza de carácter: esta situação confunde-se com a de estado mental, havendo assim uma evidente duplicação.
(…) Elemento da usura relativo ao usurário: exploração da situação de inferioridade do lesado vítima da usura.
O elemento subjetivo do vício da usura não se reduz à situação de inferioridade em que se encontra o declarante. Tem outra componente agora respeitante ao usurário (o vocábulo "alguém" utilizado no texto refere-se ao usurário) - exige-se que este tenha tido um certo comportamento: a exploração daquela situação de inferioridade. A situação de inferioridade do declarante não justifica, por si só, a intervenção do ordenamento jurídico. É a atuação reprovável do usurário que, na maior medida, justifica o valor negativo atribuído ao negócio usurário.
A exploração traduz-se no aproveitamento que o usurário conscientemente faz da situação de inferioridade em que o declarante, lesado, se encontra. Exige-se que o usurário tenha conhecimento dessa situação e que tenha consciência da exploração, independentemente da sua intenção de abusar da inferioridade do declarante. A existência da exploração não exige que a vítima da usura tenha consciência de que está a ser explorada, assim como também não se exige que ela não tenha essa consciência.
A exploração não se presume antes tem de ser provada - o declarante encontrar-se numa situação de inferioridade e da sua declaração negocial resultarem para outrem benefícios excessivos ou injustificados não demonstram a existência da exploração, que pode não ter acontecido.
Para se avaliar da censurabilidade da conduta do usurário, concluindo pela existência da exploração, importa ter em consideração quem tem a iniciativa do negócio. Embora a análise do carácter usurário do negócio deva ser efetuada casuisticamente, o que torna falível toda a regra geral sobre esta matéria, há que concluir que, por regra, se é o usurário quem tem a iniciativa do negócio, a sua atuação é mais censurável do que no caso contrário - facto que pode ser determinante para a demonstração da existência da exploração.»[51].
Noutro local, escreve o mesmo Autor que «o declarante tem de estar numa situação de inferioridade. Como ela se traduz, como é feita a enumeração dos estados concretizadores dessa situação, qual a sua amplitude – são todas questões de política legislativa, discutíveis e discutidas. Mas o que não pode ser posto em causa é a própria existência dessa situação de inferioridade. Independentemente da listagem dos estados em que ela se verifique de uma forma juridicamente relevante.
A usura, como princípio geral invalidante do negócio jurídico, não é concebível sem o lesado se encontrar numa situação que justifique a sua proteção pelo ordenamento jurídico. Essa posição pode genericamente ser designada por “situação de inferioridade”.
(...)
A situação de inferioridade que vem sendo referida, para ser relevante em sede de negócio usurário, deve verificar-se no momento da sua celebração.
As suas causas podem ser da mais variada índole. Podem ser próximas ou remotas. Podem ser mais ou menos duradouras. Podem ser em maior ou menor número. Mas todas têm um elemento comum: provocam uma situação de inferioridade existente no momento da celebração do negócio jurídico. Se existir num momento anterior, desaparece necessariamente este elemento da usura - o negócio [já] não é, então, usurário, pois que o declarante já não se encontrava, quando o celebrou, numa situação de inferioridade. Se ocorrer em momento posterior à celebração do negócio já não será relevante para efeitos de usura. (...).
Para que qualquer das situações de inferioridade referidas no art.º 282.º do Código Civil seja relevante, é necessário que tenha sido essencial para a declaração negocial. Isto é, a declaração negocial em causa só haver sido emitida, ou só o ter sido naqueles termos, devido à situação em que o declarante se encontrava.
A não existir esta essencialidade, desde logo se tornaria impossível a existência do vício da usura pois também não se poderia verificar a “exploração” dessa situação. A situação de inferioridade pode, na realidade existir. Mas se não foi determinante para aquela declaração negocial, não se pode concluir que os benefícios excessivos ou injustificados resultaram da exploração dessa situação. Eles existiriam mesmo que o declarante não se encontrasse nessa situação.
A situação de inferioridade não é condição necessária para a existência de benefícios excessivos ou injustificados. Estes devem ser aferidos em termos objectivos, isto é, através de medida objectiva que lhes é atribuída por cidadãos médios não envolvidos no contrato.
(...).                                                                                                        
A previsão do artigo 282.º não abrange toda e qualquer situação de necessidade. Apenas as anormais ou anómalas. Só estas merecem tutela e proteção jurídicas[52].
A necessidade não precisa de ser económica[53]. Deve ser entendida em termos amplos. Abrange não só a situação de necessidade puramente económica, porventura a mais frequente, mas também a de ordem física ou moral, porventura a mais gravosa. Explorar uma situação de angústia, aflição, perigo físico ou depressão moral de outrem é normalmente mais condenável do que aproveitar-se de uma necessidade económica.
Convirá ainda esclarecer que necessidade económica não se identifica com inferioridade económica. Esta é uma noção relativa. Pressupõe ume interligação prévia ente declarante e declaratário»[54].
Nas significativas palavras do Ac. da R.G. de 24.03.2004, C.J., XXIX, 2º, 274, «a situação de necessidade que decorre da verificação do pacto usurário (art.º 282º do C. Civil) existe quando alguém patenteia a necessidade, real e instante, de obtenção de uma prestação para se livrar de dificuldades».
A propósito da taxatividade, ou não, das situações de inferioridade previstas no art.º 282.º do CC, escreve ainda Pedro Eiró: «Uma vez analisadas, ainda que sumariamente, as diferentes situações de inferioridade previstas no artigo 282.º do Código Civil, há que determinar se essa enumeração é taxativa, delimitativa ou meramente exemplificativa. Isto é, se só estamos perante um negócio usurário quando o declarante se encontrar numa das situações expressamente previstas no artigo 282.º. Ou se, pelo contrário, haverá outras situações de inferioridade não referidas expressamente no artigo 282.º que justifiquem a aplicação do regime do negócio usurário às declarações emitidas por quem nelas se encontrar.
Cumpre assinalar que a presente questão perdeu quase todo, senão mesmo todo, o interesse prático, em virtude da nova redacção do artigo 282.º. Com efeito, e após a entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 262/83, de 16 de Junho, afigura-se-nos difícil descobrir situações de inferioridade que não caibam na enumeração agora existente.
Essa listagem é feita com termos tão amplos, e ao mesmo tempo tão ambíguos que, mesmo sem ser necessário recorrer à sua interpretação extensiva ou à sua aplicação analógica, pode sustentar-se que cobrem todas as possíveis situações de inferioridade que mereçam protecção jurídica.
Mas supondo que assim não é, e que são teoricamente concebíveis outras situações de inferioridade que mereçam relevância jurídica, para além das referidas no artigo 282.º, importa saber se a enumeração estabelecida neste preceito é taxativa, delimitativa ou meramente exemplificativa.
Cremos que a enumeração não é taxativa. “É admissível uma prudente extensão a outras situações de fraqueza negocial de alguém que sejam análogas a algumas das que ficaram descritas” (...).
As diversas expressões utilizadas pelo legislador são ilustrativas de um conceito: o de situação de inferioridade em que o lesado se pode encontrar.
Pretende-se abranger toda a inferioridade que mereça protecção jurídica, deste modo se impedindo que, da exploração dessa situação, alguém obtenha a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados.
Não há qualquer intenção de restringir a aplicação do preceito apenas às situações nele expressamente consagradas—as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 262/83, de 16 de Junho, são, neste aspecto, elucidativas.
Só assim se protege os contraentes e a própria autonomia da vontade»[55].
Ainda segundo o mesmo Autor, «o elemento subjectivo do vício da usura não se reduz à situação de inferioridade em que se encontra o declarante, lesado, vítima da usura.
Este elemento tem outra componente que já não respeita ao declarante, mas sim ao usurário. Exige-se que este tenha tido um certo comportamento. O usurário, para que surja o vício da usura, tem de explorar a situação de inferioridade do declarante[56].
(...)
O elemento subjectivo do vício da usura não pode ser confinado à situação de inferioridade do declarante.
(...)
Este elemento subjectivo é integrado não só pela situação de inferioridade em que se encontra o declarante, mas também pela exploração dessa situação por parte do declaratário[57].
É esta actuação reprovável por parte do usurário que, na maior medida, justifica o valor negativo atribuído ao negócio usurário.
Se apenas se exigisse a existência da situação de inferioridade em que se encontra o declarante, tal seria não só injusto para o outro contraente que ignorasse essa situação, como poria em risco a própria certeza e segurança do tráfico jurídico. “Seria para o outro contraente uma fonte de perigos, pela possibilidade, que daí adviria, de se impugnar o contrato”.
A situação de inferioridade em que se encontra o declarante não justifica, por si só, a intervenção do ordenamento jurídico. Mas esta situação, uma vez combinada com a atitude de outrem, traduzida na respectiva exploração, já reclama disciplina especial.
A exploração da situação de inferioridade é elemento de primordial importância no negócio usurário. É ele que torna reprovável o negócio; que, mais acentuadamente, justifica o valor negativo que o ordenamento jurídico atribui ao negócio usurário.
(...) pode verificar-se a existência de uma “exploração” juridicamente irrelevante para efeitos do negócio usurário. Nem toda a “exploração” preenche o requisito da usura agora em análise.
Torna-se assim imperioso esclarecer e determinar quando a exploração da situação de inferioridade em que o declarante se encontra preenche o elemento subjectivo da usura relativo ao usurário.
É possível conceber três graus na exploração:
- Pode-se entender que há exploração mesmo que o usurário, quando da celebração do contrato, não tenha dela conhecimento.
Esta posição é de afastar. Se o usurário não tem tal conhecimento ou é porque o negócio não é usurário - e não se pode falar de “exploração”; ou é porque o contrato se tomou desequilibrado num momento posterior à sua celebração - e então já não estamos em sede do negócio usurário, mas sim no domínio da alteração posterior das circunstâncias.
- De uma segunda perspectiva, entende-se haver “exploração” se o usurário tem dela consciência no momento da celebração do negócio.
- De um terceiro ângulo, mais exigente, requerer-se que, para que se possa falar de “exploração” por parte do usurário, se verifique não só a consciência dessa exploração, mas a intenção de abusar da situação de inferioridade do declarante.
Esta fórmula também deve ser excluída. A consciência da exploração é suficiente. A exigência da intenção de explorar não é conforme ao direito civil. Para que a conduta do usurário seja civilmente reprovável basta em regra que ele tenha consciência de que está a explorar a situação de inferioridade em que o declarante se encontra. A intenção desse aproveitamento, caso exista, é extremamente difícil de precisar e de provar.
Justificar-se-ia no direito penal em virtude da gravidade da sanção penal. Já em princípio se não justifica no direito civil.
A “exploração” vem assim a traduzir-se no aproveitamento que o usurário conscientemente faz da situação de inferioridade em que o lesado se encontra. É a acção pela qual o usurário tira conscientemente proveito da situação do declarante.
Para que esta “exploração” ocorra é antes de mais necessário que o usurário tenha conhecimento do estado de inferioridade do declarante. O usurário tem de conhecer a situação de inferioridade em que o lesado se encontra. Sem a conhecer não a pode explorar, isto é, aproveitar-se dela.
Para além disso exige-se que o usurário tenha consciência dessa exploração.
Não se exige que a vítima da usura tenha consciência de que está a ser explorada. Mas também não se exige que ela não tenha essa consciência.
Como já referimos, não é necessário que o usurário tenha intenção de explorar a situação do declarante.
Para haver exploração basta a consciência dessa situação não sendo necessária a intenção de abusar da inferioridade do declarante. Esta intenção pode ou não existir. Não é condição “sine qua non” da exploração»[58].
Continuando a acompanhar o mesmo Autor, «é através do elemento objectivo da usura que o direito civil português actual concede relevância à antiga figura da lesão.
A lesão não constitui uma causa autónoma de invalidade em geral dos negócios jurídicos. Só produz efeitos jurídicos invalidatórios enquanto elemento da usura.
Importa antes do mais proceder a uma precisão terminológica.
A lesão é tradicionalmente considerada como a desproporção existente entre as prestações dos contraentes, nos contratos onerosos comutativos.
Segundo esta concepção, não tem cabimento falar de lesão quando estão em causa outros tipos negociais. Não se pode, designadamente, falar de lesão a propósito dos negócios unilaterais gratuitos e aleatórios.
(...) todos estes negócios jurídicos podem ser viciados por usura.
Deste modo, ou consideramos que a promessa ou a concessão de benefícios excessivos ou injustificados é um conceito mais amplo do que o de lesão. Ou tratamos a lesão num sentido distinto do acima mencionado.
Optamos por esta segunda solução.
Não descortinamos qualquer argumento que imponha de modo absolutamente necessário a restrição da lesão aos contratos onerosos comutativos. Por outro lado, adoptando um conceito mais amplo de lesão, pensamos poder tornar mais clara a matéria do negócio usurário.
(...)
Esse prejuízo tanto pode consistir na concessão como na mera promessa de benefícios, que podem resultar não apenas de uma desproporção entre as prestações relativas a um contrato oneroso comutativo, como também de qualquer outra circunstância.
É entendida neste sentido lato que passamos a considerar a lesão. Só através dele podemos equipará-la ao elemento objectivo do negócio usurário, referido no artigo 282.º do Código Civil português.
(...)
Nos termos e para os efeitos do artigo 282.º do Código Civil, não é toda e qualquer lesão que é juridicamente relevante. Nem sempre ela justifica a intervenção do Direito.
É necessário que ultrapasse certos limites, aquém dos quais a lesão não é excessiva e é justificada pela própria natureza do negócio jurídico em que se verifica.
O nosso sistema jurídico-económico encontra-se baseado nos princípios da liberdade de concorrência e da livre contratação.
Permite-se que os agentes económicos, competindo entre si, lutem pela conquista de novos mercados, pelo desenvolvimento da sua actividade. Desta luta, salutar e necessária para o desenvolvimento da economia, resultam benefícios para uns e prejuízos para outros. A concorrência é impossível sem que haja a lesão em desvantagem de algum ou alguns dos seus intervenientes. Os lucros de uns serão, normalmente, os prejuízos de outros. Em todo o contrato há em princípio uma parte que ganha e outra que perde. Aquele que contrata pretende mudar o estado de coisas existente, esperando que daí lhe advenha algum benefício. Vantagem obtida em desfavor do outro contraente que sofre uma lesão. Nenhum contrato consegue ser absolutamente comutativo, e todos comportam alguma desigualdade.
A lesão existe, por conseguinte, em todo o contrato.
Se o ordenamento jurídico considerasse relevante toda e qualquer lesão, acabaria por destruir aqueles dois princípios básicos. Introduziria graves perturbações na estabilidade dos contratos, provocando enorme insegurança e incerteza na vida jurídica não justificadas por exigências de justiça.
Conclui-se assim que nem toda a lesão pode ser relevante.
O artigo 282.º do Código Penal exige, para que a lesão seja relevante, que se traduza na promessa ou concessão de benefícios excessivos ou injustificados.
O Decreto-Lei n.º 262/83, de 16 de Junho, suprimiu o advérbio “manifestamente”.
Esta alteração, fundada no intuito de alargar o âmbito de aplicação do preceito, não pode ser considerada positiva.
Estar-se-á, assim, a atribuir relevância a qualquer lesão, a qualquer desproporção entre as prestações?
Entendemos que não. As considerações atrás dispendidas justificam esta nossa resposta.
A alteração agora introduzida não vem facilitar a tarefa do julgador. Retirou mais um indício que podia ser utilizado para concluir da justiça ou injustiça do negócio.
E também não beneficia o declarante. As dificuldades de prova não residem neste aspecto da usura. Referem-se antes, e primordialmente, ao elemento subjectivo relativo ao usurário, como já foi salientado.
O Decreto-Lei n.º 262/83, ao retirar a exigência de que os benefícios sejam manifestamente excessivos ou injustificados não atingiu o fim a que se propunha e que consistia no alargamento do âmbito de aplicação do artigo 282.º do Código Civil. Antes veio introduzir um factor que vai dificultar ainda mais a análise dos casos concretos submetidos à apreciação do julgador.
(...)
Para além disso, a nova redacção do artigo 282.º do Código Civil não se harmoniza com outras disposições deste diploma legal (cf. artigos 334.º e 812.º).
Definir quando se deva considerar um benefício como excessivo ou injustificado é tarefa difícil de levar a cabo. Aqui, talvez mais do que em relação a qualquer outro elemento da usura, toda a generalização comporta enormes riscos. É perante o caso concreto que se tem de avaliar se o benefício prometido ou concedido pelo declarante é excessivo ou injustificado. Terão de ser tomadas em consideração todas as circunstâncias do negócio. Serão elas que irão determinar se “a desproporção ultrapassa os limites do que pode ter alguma justificação”.
O legislador português recusou-se a estabelecer no artigo 282.º do Código Civil uma determinada relação de valor. Solução oposta foi adoptada no artigo 1146.º. Esta recusa deliberada não nos permite estabelecer qualquer proporção mínima acima da qual o benefício se considere excessivo ou injustificado. Para além de que as circunstâncias próprias de certo negócio jurídico podem justificar prestações que, noutros negócios, seriam consideradas excessivas ou injustificadas (ex: salário de um contrato de trabalho para actividades de alto risco; diferentes modo e prazo de pagamento de uma prestação em face da contraprestação; etc.).
Determinar se o benefício prometido ou concedido é excessivo ou injustificado, isto é, se a lesão é ou não relevante, “fica entregue, caso por caso, ao prudente critério do julgador”.
No fundo, o julgador terá de decidir se aquele negócio concreto é ou não injusto. Terá de verificar se o conteúdo daquele negócio merece ou não obter a aprovação pelo Direito. Terá de determinar se os benefícios prometidos ou concedidos pelo declarante têm uma justificação em face das concepções gerais existentes em cada momento acerca da justiça interna dos negócios, acerca da justiça própria do ordenamento jurídico. O julgador torna-se o intérprete dessas concepções que podem variar no tempo. A sua tarefa é tão árdua quanto nobre.
Para se apreciar da existência da lesão deve tomar-se em consideração o momento da celebração do contrato. Não têm influência os aumentos ou diminuições de valor sofridos pela coisa objecto do negócio posteriormente à sua celebração, nem tão pouco as posteriores oscilações no valor aquisitivo da moeda. Neste aspecto é irrelevante o facto de o negócio já estar ou não cumprido.
À semelhança do que sucede em relação aos vícios do consentimento, o momento determinante para concluir pela existência da lesão é o da celebração do negócio.
A lesão é causada pela exploração da situação de inferioridade em que o declarante se encontrava. É necessário que essa situação se verifique no momento da celebração do negócio. O usurário tem de ter consciência da exploração. A lesão dela resultante tem de ser aferida no momento da própria exploração que é o momento em que se verifica a situação de inferioridade, ou seja, o momento da celebração do negócio.
Toda a lesão “nascida” posteriormente à celebração do negócio, já não é relevante em termos de usura. Podê-lo-á ser em sede de alteração das circunstâncias (artigo 437.º do Código Civil).
A lesão pode perdurar para além da celebração do negócio, no sentido de o prejuízo sofrido pelo lesado ir aumentando com o decurso do tempo. Mas esse aumento tem de ser directamente imputável à celebração do negócio e não a qualquer outra circunstância.
A lesão tem de existir no momento da celebração do negócio. Mas não é necessário que, nesse momento, já haja o conhecimento de todo o seu alcance, quer da parte da vítima da usura quer do usurário. O lesado pode mesmo, nesse momento, desconhecer a existência da lesão.
Exige-se que o usurário, no momento da celebração do negócio, tenha consciência de que está a explorar a situação de inferioridade em que o lesado se encontra. O conhecimento da extensão da lesão pode dar-se também nessa altura. Ou pode nesse momento haver apenas um seu conhecimento parcial (por ex: a vítima da usura obriga-se a pagar uma pensão vitalícia ao usurário). Ou pode mesmo verificar-se um desconhecimento total da extensão da lesão que não da sua existência (por ex: a vítima da usura promete doar ao usurário uma peça antiga de que é proprietário, não sabendo, nem aquele nem este, qual o seu valor).
Se se exigisse que a vítima da usura conhecesse, no momento da celebração do negócio, a lesão de que estava a ser vítima, a aplicação do artigo 282.º era paralisada em, pelo menos, duas das situações de inferioridade nele referidas: a inexperiência e a ligeireza. Aquele que tem pleno conhecimento da lesão de que está a ser vítima não age nem com inexperiência, nem com ligeireza. A exigência de que pelo menos o usurário houvesse conhecido a exacta extensão da lesão no momento da celebração do negócio, podia dar causa a graves injustiças. Não é o facto de conhecer ou não a extensão da lesão que torna o comportamento do usurário mais ou menos censurável. Se A, em situação de necessidade, promete doar X a B que explorou essa situação, é indiferente determinar se B conhece ou não o valor de X. A sua conduta é igualmente reprovável num caso e noutro. Ambas as situações merecem o mesmo tratamento.
Da análise feita dos requisitos do negócio usurário inferem-se desde logo três conclusões:
1 - A usura pode coexistir no mesmo negócio com qualquer dos outros vícios da vontade ou do consentimento.
2 - O vício da usura não se restringe, não se limita e não se confunde com os outros vícios da vontade ou do consentimento que com ele coexistam no mesmo negócio.
3 - O negócio jurídico pode estar viciado por usura não existindo qualquer outro vício da vontade ou do consentimento.
Um mesmo negócio jurídico pode simultaneamente estar viciado por usura e por erro, simples ou qualificado por dolo, ou por medo provocado por coacção moral. Nesta situação duas hipóteses são possíveis: ou ambos os vícios são relevantes; ou, sendo a usura eficaz, o outro vício não preenche os requisitos invalidantes exigidos pelo ordenamento jurídico português.
Tomemos três exemplos concretos:
1 - A ameaça B de que o denunciará à polícia por um crime por este cometido, se B não lhe vender um valioso quadro de que é proprietário. A ameaça infunde a B tal receio, que A consegue que o quadro seja vendido por um preço muito abaixo do seu valor real.
A compra e venda está viciada não só por usura (artigo 282.º) mas também por coacção moral (artigo 255.º).
2 - Mas suponha-se que, para além de ter vendido o quadro, B vendeu também a A uma valiosa tapeçaria, igualmente por um preço muito baixo.
Neste caso, a venda da tapeçaria também está viciada por usura, mas o medo provocado pela coacção moral já não é relevante (falta o requisito da intencionalidade da ameaça).
3 - A, pai de B, propõe-lhe a compra de um valioso quadro por um preço muito baixo. B, com receio de desagradar a seu pai, vende- -o por esse preço.
Estamos aqui perante uma situação de temor reverencial. Mas o temor reverenciai “qua tale” não permite a invalidação do negócio. No entanto, este contrato de compra e venda está viciado por usura.
A usura, coexistindo com outros vícios da vontade, pode “dar relevância a situações que não são consideradas autonomamente como vício da vontade invalidante (...)”. É o caso dos dois últimos exemplos apresentados.
A usura pode, porém, coexistir com outro vício da vontade autonomamente invalidante. É o caso do primeiro exemplo apontado. O lesado, que também é o coagido, pode invocar qualquer dos dois vícios, ou ambos. Uma vez que os requisitos, os prazos de arguição e os efeitos dos dois vícios não são necessariamente idênticos, o declarante poderá ter vantagem em invocar um ou outro, ou, querendo precaver-se, arguir ambos, um a título principal e outro subsidiariamente.
Nas situações até aqui configuradas, verifica-se que a usura não tem uma autonomia total perante os outros vícios da vontade ou do consentimento.
Existem, contudo, negócios jurídicos apenas viciados por usura e não por qualquer outro vício.
A usura terá então total autonomia, não se relacionando com qualquer dos outros vícios da vontade ou do consentimento.
Como resulta da análise atrás feita, pode existir uma situação de necessidade sem haver medo (por ex: a empresa A que necessita de dinheiro para pagar uma dívida); uma situação de inexperiência sem haver erro (por ex: A, inexperiente na compra e venda de títulos, adquire acções de uma empresa por um preço bastante elevado, convencido que está a realizar um bom negócio pois pensa que elas se vão valorizar, o que não sucede); uma situação de ligeireza, estado mental ou fraqueza de carácter sem se chegar à caracterização de incapacidade acidental.
Em conclusão:
A usura enquanto vício do negócio jurídico tem sempre autonomia. Uma autonomia total quando é o único vício do negócio. Uma autonomia parcial quando coexiste com outros vícios, relevantes ou não.
Se esta coexistência se verificar, com toda a propriedade se afirma que no negócio usurário se opera a ligação entre os vícios da vontade e a lesão.
(...)
O artigo 282.º do Código Civil português está redigido em termos muito amplos.
(...)
O artigo 282.º não se refere ao declaratário e ao declarante. Utiliza os vocábulos “alguém” e “outrem”. Deste modo, para se considerar o negócio como usurário, não é necessário ser o declaratário a explorar a situação de inferioridade. Também pode acontecer que o beneficiado pelo negócio não seja o declaratário. E pode o terceiro beneficiado não ser nem o declaratário nem o usurário.
Ilustremos estas diversas situações com exemplos concretos:
1 - A, explorando a situação de necessidade de B, obtém deste para si benefícios excessivos.
A é o explorador, o declaratário e o beneficiário do negócio usurário.
2 - A, explorando a situação de necessidade de B, obtém deste para C benefícios excessivos através da celebração de um contrato a favor de terceiro (cf. artigo 443.º do Código Civil).
A é o explorador, o declaratário, mas já não o beneficiário.
3 - A, explorando a situação de necessidade de B, fá-lo contratar com C que obtém de B benefícios excessivos.
A é o explorador, C é o declaratário e o beneficiário.
4 - A, explorando a situação de necessidade de B, fá-lo contratar com C que obtém de B a concessão de benefícios excessivos, para D.
A é o explorador, C o declaratário e D o beneficiário da declaração negociai emitida por B.
Todas estas hipóteses são abrangidas pelo artigo 282.º do Código Civil.
O facto de o legislador haver utilizado a palavra “alguém” em vez do termo “declaratário” ou “terceiro” tem grande importância prática pois permite abarcar hipóteses de outro modo não abrangidas por aquele preceito legal.
Já o mesmo se não pode afirmar da utilização do vocábulo “outrem” em vez de “declarante”.
Quem emite a declaração negocial - o declarante - é sempre quem se encontra numa das situações de inferioridade previstas. O artigo 282.º a isso obriga. Embora referindo-se à situação de inferioridade de “outrem”, impõe que seja “deste” que “alguém” obtenha benefícios»[59].
Vai longa a narração, baseada, sobretudo, na extensa transcrição de excertos da citada obra de Pedro Carmargo de Sousa Eiró, necessária, no entanto, a nosso ver, para que, neste momento, se possa afirmar com total segurança que, no caso concreto, à luz da matéria de facto provada, estamos, manifestamente, em presença de um negócio usurário.
A matéria de facto agora considerada provada revela à evidência:
a) a situação de inferioridade em que a autora, aqui recorrente, se encontrava no momento da celebração do negócio identificado em 14. dos factos provados, e que nos é revelada pelos pontos 1. a 13. dos factos provados[60];
b) a consciente exploração dessa situação, quer por parte de LP, quer, consequente e necessariamente, da declaratária negocial, a 1.ª ré, por via do conhecimento, se se quiser, da consciência, do seu legal representante, o 2.º réu, o que nos é revelado pelos pontos 10. a 13., 15., 17. a 18. a 30., 35. e 36. dos factos provados;
c) a significativa lesão sofrida pela autora/recorrente, o que nos é revelado pelos pontos:
- 14. e 15. dos factos provados (a autora/recorrente declarou vender a fração por € 18.000,00);
- 17., 20., 21., 22., 24. e 26. dos factos provados (a autora/recorrente apenas recebeu a quantia de € 7.700,00);
- 35. dos factos provados (à data da celebração do negócio a fração tinha o valor de mercado de € 66.000,00);
- 36. dos factos provados (a compradora, a 1.ª ré, por via do seu legal representante, o 2.º réu, tinha conhecimento do valor de mercado da fração).
Em conclusão:
- a sentença recorrida não pode subsistir;
- o recurso deve ser julgado procedente;
- pois estamos em presença de um negócio usurário, que deve ser declarado anulado (art.º 282.º, do CC), com a consequente restituição de tudo o que foi prestado (arts. 285.º, 289.º, n.º 1 e 290.º, do CC).
***
IV – DECISÃO:
Por todo o exposto, acordam os juízes que integram a 7.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, em julgar a apelação procedente, em consequência do que:
a) revogam a sentença recorrida;
b) declaram anulado o negócio jurídico identificado em 14. e 15. dos factos provados, ou seja, o contrato de compra e venda formalizado pela escritura pública celebrada no dia __/__/__, no Cartório Notarial de ____, pela qual a autora, AFC, declarou vender à 1.ª ré, P, S.A., pelo preço de € 18.000,00 (dezoito mil euros), a fração autónoma identificada pela letra “H”, correspondente ao _º andar direito para habitação, do prédio urbano sito na Praceta ____, com a consequente restituição de tudo o que foi prestado.
As custas da apelação, na vertente de custas de parte, são a cargo dos recorridos (arts. 527.º, n.ºs 1 e 2, 607.º, n.º 6 e 663.º, n.º 2).

Lisboa, 8 de abril de 2025
José Capacete
Carlos Oliveira
Diogo Ravara
_______________________________________________________
[1] Neste acórdão utilizar-se-á a grafia decorrente do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990, respeitando-se, no entanto, em caso de transcrição, a grafia do texto original.
[2] Diploma a que pertencem todos os preceitos legais citados sem indicação da respetiva fonte.
[3] Doravante referida apenas por 1.ª ré.
[4] Doravante referida apenas por 2.º réu.
[5] Doravante identificada apenas por “fração”.
[6] Trata-se de um evidente lapso de escrita, pois o acórdão a que a apelante faz referência é datado de 8 de novembro de 2022.
[7] O último dos quais com a seguinte redação: «Art.º 27º, 63º, 64º da contestação».
[8] Processo Civil Declarativo, Almedina, 2014, p. 281, nota 646.
[9] «Por isso é que o n.º 1 do art.º 516.º, acerca do regime do depoimento testemunhal, refere que “a testemunha depõe com precisão sobre a matéria dos temas da prova”.»
[10] Processo Civil Declarativo cit., pp. 281-283 e nota 647.
[11] «Ao invés, num sistema de quesitos formulados na perspetiva do ónus da prova, a que haverá que responder “provado” ou “não provado”, uma nova perspetiva do tribunal de recurso pode implicar a baixa do processo à 1.ª instância para obter prova do facto, de efeito contrário ao não provado, que a Relação entenda dever ser apurado, uma vez que não é lícito retirar ilações probatórias das respostas negativas aos factos quesitados.»
[12] A Ação Declarativa Comum à Luz do Código de Processo Civil de 2013, 3.ª Edição, Coimbra Editora, 2013, pp. 197-198 e nota 51.
[13] Cfr. Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 482.
[14] Idem, ibidem. A este propósito afirma também Lebre de Freitas que «não está, porém, vedada ao juiz uma concretização dos temas da prova maior do que a que a lei lhe exige, desde que essa concretização não se traduza em espartilho que impeça ou dificulte a produção da prova sobre factos alegados, mas não mencionados pelo juiz.» - A Ação Declarativa cit., p. 198, nota 52.
[15] Veja-se, para ilustrar o que se afirma, o seguinte trecho das alegações de recurso do apelante: «Acresce ainda que, aquele tema de prova “dificuldades da requerente e dos filhos na manutenção da residência em Paço de Arcos?” apenas poderia ser comprovado por prova testemunhal, o que não ocorreu face à ausência de julgamento…».
A propósito da peça recursória do apelante, não pode deixar de se anotar a forma descuidada, pouco rigorosa, como se encontra redigida.
[16] No caso concreto, como se afirmou, o tribunal a quo enunciou 39 proposições como se cada uma delas correspondesse a um tema de prova.
[17] «O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes».
[18] Cfr. José Tomé de Carvalho, Breves palavras sobre a fundamentação da matéria de facto no âmbito da decisão final penal no ordenamento jurídico português, in Revista Julgar, nº 21, Coimbra Editora, 2013, pp. 86-87.
[19] Manual cit., pp. 653-655,
[20] Código de Processo Civil Anotado, Volume 2º, 3ª Ed., Almedina, 2017, pp. 704-707.
[21] Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2.ª Edição, Lex, pág. 348
[22] Comentários ao Código de Processo Civil, Vol. I, 2ª Ed., Almedina, 2004, p. 434.
[23] Da Sentença cit., p. 27.
[24] Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª Ed., Almedina, 2017, pp. 296-297.
[25] Idem, pp. 297-298, nota 443.
[26] «O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.»
[27] Cfr. Michele Taruffo, Páginas sobre justicia civil, Marcial Pons, Ediciones Juridicas y Sociales, 2009, p. 53.
[28] Idem, pp. 36-37.
[29] É que, salvo o devido respeito, lida a decisão da matéria de facto provada e não provada, e a respetiva motivação, parece que a escritura pública referida no ponto 1. e o contrato-promessa referido no ponto 5., ambos dos factos provados, “surgiram do nada”.
[30] Neste sentido, cfr. Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Vol. II, Almedina, 2018., p. 338, Fernando Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. II, Almedina, 2015, p. 477-478; Na jurisprudência, cfr. o Ac. da R.C. de 29.04.2014, Proc. n.º 772/11.7TVNO-A.C1 (Henrique Antunes), in www.dgsi.pt.
[31] Trata-se da fração identificada em 3.1.1.1.
[32] Eram as seguintes, as duas questões de facto:
- O efetivo valor da fração à data da realização da escritura;
- O conhecimento (ou desconhecimento) que a compradora tinha acerca desse valor.
[33] “Teorias da Verdade”, in Teorias de la Acción Comunicativa: Complementos y Estudios Previos, Madrid, Ediciones Cátedra, 1994.
[34] Da Sentença Cível, Centro de Estudos Judiciários, Lisboa, janeiro de 2014, pp. 18-24, sendo que o destacado a negrito é da nossa autoria.
[35] Recursos em Processo Civil, 7.ª Edição, Almedina, 2022, p. 356.
[36] Cfr. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. IV, p. 583.
[37] Recursos cit., p. 357.
[38] Leo Rosenberg, Tratado de Derecho Procesal Civil, tomo II, tradução espanhola de Angela Romera Vera, 1995, apud António Montalvão Machado, O Dispositivo e os Poderes do Tribunal À Luz do Novo Código de Processo Civil, 2ª Edição, Coimbra, Almedina, 2001, ob. cit., p. 113, nota 210.
[39] Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 4ª Ed., 1985, p. 209.
[40] Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, pp. 486-487
[41] Seguiu-se a ordem indicada pela apelante.
[42] Manual de Processo Civil, 2ª Ed., Coimbra Editora, 1985, pp. 406 e 407, e RLJ, Ano 122º, nº 3784, p. 219.
[43] Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 4ª Ed., p. 209.
[44] Direito Processual Civil Declaratório, Almedina, Coimbra, vol. III, 1982, pp. 268-269.
[45] Tratado de Derecho Procesal Civil, tomo II, tradução espanhola de Angela Romera Vera, 1995, apud Montalvão Machado, O Dispositivo e os Poderes do Tribunal À Luz do Novo Código de Processo Civil, 2ª Edição, Coimbra, Almedina, 2001, p. 113, nota 210.
[46] Cfr., por todos, o Ac. do S.T.J. de 23.09.2008, Proc. nº 238/06.7TTBGR.S1 (Bravo Serra), in www.dgsi.pt.
[47] Cfr. Ac. do S.T.J. de 29.04.2015, Proc. nº 306/12.6TTCVL.C1.S1 (Fernandes da Silva), in www.dgsi.pt.
[48] Cfr. o Aresto do S.T.J. citado na nota anterior.
[49] Trata-se da fração identificada em 3.1.1.1.
[50] Teoria Geral do Direito Civil, 3.ª Edição, Almedina, 2005, p. 517.
[51] Comentário ao Código Civil, Parte Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2014, pp. 699-702. O destacado a negrito é da nossa autoria.
[52] Nas palavras do Ac. da R.L. de 23.10.1986 (Carvalho Pinheiro), CJ, XI, 165, «ter-se-á de tratar de uma “situação susceptível” de tolher ou diminuir a vontade negocial.
[53] Conforme se afirma no Ac. do S.T.J. de 11.10.1977, BMJ 270.º, 192, «a situação de necessidade não abrange apenas os casos de penúria económica; a necessidade pode revestir vários aspectos (...)».
[54] Do Negócio Usurário, Almedina, 1990, pp. 25-29.
[55] Do Negócio Usurário…, pp. 45-46.
[56] «O usurário será, em princípio, o declaratário em relação à declaração negocial emitida pela vítima. Mas pode não o ser (...)».
[57] «Refira-se no entanto que, embora esta seja a situação mais comum ou prototípica, a nossa lei engloba os casos em que a exploração provenha de outrem que não o declaratário. O art.º 282.º no seu n.º 1 refere-se a alguém e não apenas ao declaratário».
[58] Do Negócio Usurário…, pp. 48-52.
[59] Do Negócio Usurário…, pp. 58- 68.
[60] Tenha-se presente que não é taxativa a enumeração