TRANSACÇÃO JUDICIAL
TÍTULO EXECUTIVO
EXECUÇÃO PARA PRESTAÇÃO DE FACTO
EXECUÇÃO PARA PAGAMENTO DE QUANTIA CERTA
FIXAÇÃO DE PRAZO
Sumário

Sumário:
I – A sentença homologatória de transação judicial na qual a ré se obriga a dar início aos trabalhos de execução e reparação do imóvel dos autores, não constitui título executivo válido numa execução para pagamento de quantia certa, pois da mesma decorre uma obrigação da realização de uma prestação de facto e não de pagamento de uma quantia em dinheiro.

II - Na execução para prestação de facto sem prazo certo, os artigos 874º e 875º do CPC comportam duas fases: uma fase preliminar que se ultimará com a fixação de prazo, seguida de uma fase executiva propriamente dita, a iniciar depois de se verificar que o facto não foi prestado dentro do prazo fixado.

III - Pode ainda suceder que findo o prazo para a oposição à execução, ou julgada esta improcedente, tendo a execução sido suspensa, se o exequente pretender a indemnização do dano sofrido, observar-se-á o disposto no artigo 867º, como estatui o artigo 869º, ambos do CPC.

Texto Integral

Proc. n.º 7638/23.6T8STB-A.E1

Acordam na 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora


I - RELATÓRIO


Dsar Construção Civil, Lda., deduziu a presente oposição à execução para pagamento de quantia certa que lhe é movida por AA e BB, pedindo que seja julgada extinta a instância e os embargados condenados em multa e indemnização à embargante por litigância de má-fé, a fixar em incidente de liquidação.


Alega, em síntese, que, de acordo com o título executivo (uma transação judicial), a embargante obrigou-se a realizar uma prestação de facto, fungível, nomeadamente reparação de defeitos em obra, razão pela qual não poderá a execução ser para pagamento de quantia certa, mas sim para prestação de facto, o que não ocorreu.


Subsidiariamente, alega que realizou a prestação de facto a que se obrigou na transação, pelo que, mesmo que possa haver discordância quanto à reparação ou não de todos os defeitos, nunca poderiam os embargados peticionar o pagamento de quantia certa, sem dar um prazo para terminar as obras que ainda faltem, razão pela qual, pedindo o valor total, consistente no valor da causa onde foi realizada a transação, estão os embargados a querer locupletar-se à custa do embargante, agindo assim em abuso do direito.


Diz, por último, que os embargados litigam de má fé, pois sabiam que não tinham direito a intentar a ação executiva, da forma como o fizeram, bem como sabiam que a existir algum defeito, tampouco seria um valor como o que foi penhorado à embargante.


Os exequentes/embargados contestaram, contrapondo que não se fundando os embargos em nenhum dos fundamentos enumerados no artigo 729º do CPC, deviam os mesmos ter sido indeferidos liminarmente.


Quanto ao erro na forma de processo, defendem que a embargada abandonou injustificadamente a obra, pelo que houve um incumprimento definitivo e que não sendo os defeitos eliminados ou construída obra nova, assiste ao exequente o direito à indemnização nos termos gerais (artigo 1223º do Código Civil), cujo valor fora já fixado em sede de processo declarativo.


Mais alegam que ficaram por reparar defeitos, que concretizam, razão pela qual não há nenhum abuso do direito.


Por fim, sustentam que nunca faltaram à verdade no decorrer do processo, sendo que fizeram um uso legítimo do mesmo, não tendo atuado com culpa ou má-fé, razão pela qual não litigam com má fé.


Subsequentemente foi proferido o seguinte despacho:


«O Tribunal concluiu, após análise do processo, que os autos contêm já todos os elementos necessários à prolação da sentença, não se justificando a realização de audiência prévia.


Face ao exposto, convido as partes a, querendo e no prazo de 20 dias, exercerem o contraditório quanto ao conhecimento do mérito, nos termos do disposto pelo artigo 595.º/1-b) do Código de Processo Civil, e usarem por escrito da faculdade prevista no artigo 591.º/1-b) do mencionado Código, tudo nos termos do artigo 3.º/3 do referido Código.»


Apenas a embargante se pronunciou, concluindo como na petição de embargos.


Foi de seguida proferida decisão, com o seguinte dispositivo:


«Face ao exposto, o Tribunal declara a insuficiência do título executivo para a execução para pagamento de quantia certa, com a consequente procedência dos embargos de executado e a extinção da ação executiva, com o levantamento de todas as penhoras (artigo 732.º/4 do Código de Processo Civil), declarando, no entanto, improcedente o pedido de condenação dos embargados como litigantes de má fé.


Custas pelos embargados nos termos do disposto no artigo 527.º/1 e /2 do Código de Processo Civil.»


Inconformados, os exequentes/embargados interpuseram o presente recurso, concluindo a respetiva alegação com a formulação das conclusões que se transcrevem:


«1. O presente recurso interposto de sentença proferida pelo Tribunal “a quo” que declarou a insuficiência do título executivo para a execução para pagamento de quantia certa, com a consequente procedência dos embargos de executado e a extinção da ação executiva, com o levantamento de todas as penhoras.


2. Entendeu o Tribunal que a sentença apresentada não constitui título executivo bastante para o pedido formulado no requerimento executivo.


3. Isto porque a sentença homologa uma transação da qual decorre uma obrigação da realização de uma prestação de facto e não de pagamento de uma quantia em dinheiro. Portanto, da sentença não decorre, de modo algum, a condenação da embargante no pagamento de uma quantia em dinheiro, mas sim na prestação de um facto.


4. Não podemos concordar com a decisão em apreço, a qual viola, por erro de interpretação e aplicação, o disposto nos Artigos 729º do CPC e nos Artigos 406º, Nº 1, 762º, Nº 2 e 801º do CC .


5. Desde logo, porque fundando-se a execução numa Sentença, a Lei clarifica os fundamentos taxativos com base nos quais pode ser admitida uma Oposição à Execução, através dos competentes Embargos de Executado.


6. Os Embargos apresentados pela Executada não estão fundamentados nos taxativos elementos previstos no Artigo 729º do CPC.


7. Deveriam os mesmos ser liminarmente indeferidos, nos termos do disposto no Artigo 732º, Nº 1 , alínea b) do CPC .


8. O Tribunal entendeu que deveria ter sido interposta uma Execução para prestação de facto.


9. Não podemos concordar com a decisão proferida pelo Tribunal “a quo”.


10.O contrato outorgado entre Exequentes e Executada é de empreitada.


11.O contrato deve ser pontualmente cumprido, no quadro do princípio da boa-fé (Arts. 406.º, N.º 1, e 762.º, Nº 2, do CC) e o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado.


12.Ao credor incumbe alegar e provar os factos integrantes do incumprimento da obrigação por parte do devedor, e a este os factos reveladores de que tal não depende de culpa sua (Art. 799.º, n.º 1, do CC).


13. Ocorre o incumprimento definitivo da obrigação se o credor, em consequência da mora do devedor, perdeu o interesse que tinha na prestação, sendo que a perda do interesse na prestação é apreciada objetivamente, isto é, à margem das perspetivas subjetivas do credor (Art. 801.º, N.ºs 1 e 2, do CC).


14.Se o empreiteiro não executar a obra pelo modo e no tempo convencionados e já não a puder realizar por virtude de o dono da obra nela ter perdido o interesse, estar-se-á perante uma situação de incumprimento definitivo que possibilita a resolução do contrato.


15.Ao ter enviado um email ao Exequente comunicando que tinha concluído as obras, na sua unilateral apreciação, quando na realidade, as mesmas se encontravam por realizar, e tendo deixado de fazer qualquer trabalho,


16.A Executada abandonou injustificadamente a obra, incorrendo em incumprimento definitivo, assistindo, assim, ao Exequente o direito de resolver o contrato.


17.E foi isso mesmo que resultou da transação homologada judicialmente: A Executada obrigou-se a eliminar todos os defeitos existentes e a realizar obra nova em relação aqueles defeitos que não poderiam ser eliminados, ou que viessem a decorrer das novas reparações.


18.Tal não aconteceu.


Não sendo os defeitos eliminados ou construída obra nova, assiste ao Exequente o direito à indemnização nos termos gerais (Art.º 1223º do Cód. Civil), cujo valor fora já fixado em sede processo declarativo.


19. O Tribunal não deveria afastar logo a possibilidade da liquidação poder ser feita por simples cálculo aritmético, uma vez que a Execução assente em factos que estão abrangidos pela segurança do título executivo.


20. A obrigação, embora ilíquida, assenta em factos não controvertidos e o Exequente já tinha especificado devidamente no titulo executivo todos os valores compreendidos na prestação devida, concluindo no requerimento executivo com um pedido liquido.


21.No caso dos autos e da sentença que serve de título executivo estão apenas cálculos matemáticos, cujos dados da equação podem ser encontrados na sentença que serve de título à execução.


22.Desta forma, evita-se, agora, que o enxerto declarativo se faça nos juízos de execução, conferindo maior maleabilidade e rapidez à execução. Tudo em nome da eficácia do sistema .


O Tribunal da declaração já lá tem a maior parte dos elementos para proceder à liquidação, perdendo-se assim menos tempo.


23.O Tribunal recorrido violou por erro de interpretação e aplicação o disposto nos Artigos 808º, Nº 1 do CC e 874º do CPC..


NESTES TERMOS E NOS MAIS DE DIREITO QUE Vª EXA DOUTAMENTE SUPRIRÁ DEVE O PRESENTE RECURSO SER JULGADO PROCEDENTE E, EM CONSEQUÊNCIA, SER REVOGADA A SENTENÇA RECORRIDA.»


Não foram apresentadas contra-alegações.


Corridos os vistos, cumpre apreciar e decidir:


II – ÂMBITO DO RECURSO


Sendo o objeto do recurso delimitado pelas conclusões das alegações, sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, nº 2, 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC), a questão essencial a decidir é a de saber se os exequentes/embargados dispõem de título executivo para a presente execução.


III – FUNDAMENTAÇÃO


OS FACTOS


Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos:


1. Foi apresentado requerimento executivo nos autos principais, onde se escreveu o seguinte:


«1.1. Os trabalhos de execução e reparação não foram executados e concluídos, conforme transação homologada por sentença em 05 de junho de 2023.


A Ré não executou os trabalhos ali referidos e recusa-se a realizar os mesmos.


1.2. O valor das obras de reparação não concretizadas pelo Executado foi fixado em 58046,50 €uros.


À quantia em dívida acrescem juros legais vencidos desde 05 de julho de 2023, calculados à taxa legal de 4% até à presente data e que perfazem a quantia de 773,95 €uros.


Acrescem, ainda, juros vincendos até efetivo e integral pagamento».


2. Consta da sentença apresentada como título executivo, cujo conteúdo se dá por integralmente reproduzido, além do mais, o seguinte:


2.1. «(…) TRANSACÇÃO 1 - A Ré obriga-se a dar início aos trabalhos de execução e reparação do imóvel no dia 01/07/2023, nomeadamente:


a) demolir a passadeira em contorno da moradia, junto à parede da sala, de forma a ser apanhado o fixe do terreno;


b) construir massames com malha sol, em toda aquela área, com betonilhas devidamente afagadas;


c) fornecer o novo pavimento, igual ao existente, com os respetivos materiais de execução (cola flex e respetivo betume);


d) remoção do salitre, reparação e pintura das paredes da sala, R\c;


e) remoção da mancha da pedra amaciada, no degrau da escada interior;


f) correção de juntas e eliminação de fissuras no interior do imóvel;


g) correção do pavimento flutuante que está levantado ou danificado;


h) escritório do R\C – apresenta fissura na parede e danos por humidade na parede contígua com o respirador e guarnição da porta por reparar;


i) danos no tecto falso dos WC’s situados no nível do 1.º piso, decorrentes de condensações. Reparação e pintura de tectos;


j) reparação da porta do roupeiro do quarto que antecede a suíte, que tem uma mossa na segunda porta desde o início (objeto de troca de correspondência) e reparação da porta de entrada do mesmo quarto;


k) infiltração com origem na varanda da fachada principal que dá para a suíte;


l) regularização da área de pavimento de acesso à garagem e circundante à habitação que está oca e a desprender-se;


m) bem como quaisquer outros defeitos detetados no decurso da obra e reparação.


2.2. (…) SENTENÇA Atento ao objeto da causa e a qualidade dos intervenientes, julgo válida a transação efetuada, homologando-a por sentença, condenando e absolvendo as partes, nos seus precisos termos. Nos termos do disposto nos art.º 297.º, n.º 1 e 2 e 306.º, n.º 1, do C.P.C., fixo o valor da ação em 58.046.50€. Custas a cargo de A e R., conforme acordado. Registe e Notifique».


O DIREITO


A respeito da sentença homologatória que constitui o título dado à execução, escreveu-se na decisão recorrida:


«(…), a sentença homologa uma transação da qual decorre uma obrigação da realização de uma prestação de facto e não de pagamento de uma quantia em dinheiro. Portanto, da sentença não decorre, de modo algum, a condenação da embargante no pagamento de uma quantia em dinheiro, mas sim na prestação de um facto.


E nem se tente retirar da fixação de um valor da causa, que todas os processos têm, a determinação de um valor de custa de obras, muito menos, de um valor a pagar por quem quer que seja.


Por outro lado, há que dizer que a transação homologada pela sentença que constitui título executivo não fixa um prazo para conclusão da obra, o que significa que, para que a obrigação se pudesse ter por definitivamente incumprida, teria o credor de lançar mão da interpelação a que alude o artigo 808.º/1 do Código Civil, sendo que, mesmo que o tenha feito, não poderia, com base na sentença, pedir o pagamento de um valor concreto, uma vez que a mesma não condena nesse sentido.


Assim, com base no título executivo apresentado, os embargados apenas poderiam peticionar a prestação do facto, eventualmente acrescida da:


a) Indemnização moratória a que tivessem direito; ou, em alternativa, da


b) Indemnização do dano sofrido com a não realização da prestação.


Porém, quanto à indemnização pela não realização da prestação, sempre há que dizer que, considerando que não se verifica a determinação de um prazo concreto para a conclusão da prestação de facto, sempre seria necessário, no próprio processo de execução para prestação de facto, fixar esse prazo, nos termos do artigo 874.º do Código de Processo Civil.


Por tudo o exposto, o Tribunal conclui que o título executivo apresentado não é suficiente para aquilo que foi pedido na ação executiva, ou seja, a execução para pagamento do valor de 58.046.50 EUR


Porque nos revemos inteiramente nesta fundamentação, pouco ou nada mais haveria a dizer. Sem prejuízo, sempre se dirá que, ao invés do que afirmam os recorrentes, no título dado à execução, não «estão apenas cálculos matemáticos, cujos dados da equação podem ser encontrados na sentença», e também não se pode, por simples vontade dos exequentes, transformar ab initio uma execução para prestação de facto numa execução para pagamento de quantia certa.


A execução para pagamento de quantia certa serve de matriz para as restantes, a ela se recorrendo na falta de normas especiais (art. 551º, nº 2, do CPC); assim, no que respeita à execução para prestação de facto, naquilo que não esteja expressamente regulado nos regimes especiais dos artigos 868º a 877º do CPC, valem, subsidiariamente, as disposições da execução para pagamento de quantia certa, por força do citado normativo1.


Ora, na execução para prestação de facto sem prazo certo, os artigos 874º e 875º do CPC comportam duas fases: uma fase preliminar que se ultimará com a fixação de prazo, seguida de uma fase executiva propriamente dita, a iniciar depois de se verificar que o facto não foi prestado dentro do prazo fixado.


Pode ainda suceder que findo o prazo para a oposição à execução, ou julgada esta improcedente, tendo a execução sido suspensa, se o exequente pretender a indemnização do dano sofrido, observar-se-á o disposto no artigo 867º, como estatui o artigo 869º, ambos do CPC.


Portanto, existe todo um iter processual a ser observado, que não pode ser encurtado por mera conveniência dos exequentes.


Bem andou, pois, o tribunal a quo ao declarar a insuficiência do título executivo para a presente execução, com a consequente procedência dos embargos de executado e a extinção da ação executiva, não se mostrando violadas as normas invocadas pelos recorrentes ou quaisquer outras.


Vencidos no recurso, suportarão os embargados/recorrentes as respetivas custas – art. 527º, nºs 1 e 2, do CPC.


IV – DECISÃO


Pelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida.


Custas pelos recorrentes.


*


Évora, 9 de abril de 2025


Manuel Bargado (Relator)


Ricardo Miranda Peixoto


José António Moita


(documento com assinaturas eletrónicas)

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1. Cfr. Rui Pinto, A Ação Executiva, AAFDL Editora, Lisboa, 2018, pp. 48 e 1011.↩︎