CONTRATO DE COMPRA E VENDA
IRMÃOS
SOCIEDADE COMERCIAL
SIMULAÇÃO
REQUISITOS
ÓNUS DA PROVA
Sumário

1. A compra e venda é o negócio jurídico bilateral pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa ou outro direito, mediante um preço, consubstanciando um contrato real quoad effectum, uma vez que a transmissão do direito de propriedade dá-se por mero efeito do contrato, não estando dependente do cumprimento das obrigações de pagamento do preço, nem da entrega da coisa.
2. Para que exista negócio jurídico simulado é necessária a prova da verificação simultânea dos seguintes requisitos legais: (i) a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração, (ii) o complô ou acordo simulatório e (iii) a intenção de enganar terceiros, sendo certo que, segundo as regras do ónus da prova, porque constitutivos do direito, tais requisitos devem ser provados por quem invoca a nulidade do negócio por simulação (artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil).
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

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Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra,[1]

AA e BB, casados sob o regime da comunhão geral de bens, instauraram acção declarativa de condenação, sob a forma do processo comum, contra CC, DD, EE, e A..., Lda., concluindo a petição inicial da seguinte forma:

Nestes termos e nos melhores de direito, deverá a presente ação ser julgada por provada procedente e em consequência:

– Ser declarada nula a escritura de compra e venda outorgada em 25-08-2006 no Cartório Notarial ... de folhas 46 a 48 do livro de notas para escrituras diversas nº...4;

– Ser declarada nula a venda dos prédios identificados no artigo 1 e 2 da petição inicial à 4ª Ré e em consequência serem os mesmos devolvidos aos Autores livres e devolutos;

– Deverá ser cancelado o registo de aquisição a favor da 4ª Ré dos prédios supra melhor identificados no artigo 1º e 2.

– Deverão ser os Réus solidariamente condenados a pagar aos autores a título de danos patrimoniais o valor de 6742,76€ e de danos não patrimoniais o valor de 5.000,00€.”.


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Invocam, para tanto e em síntese, que foram donos dos dois prédios que identificam e que, devido a dificuldades económicas e por não residirem em ..., outorgaram uma procuração a favor do 1.º réu, CC, irmão do 1.º autor, dando-lhe poderes para proceder à venda daqueles imóveis e receber os respectivos preços. Mais alegam que a venda dos prédios foi feita a uma empresa gerida pelo filho e nora do 1.º réu e que essa venda, na realidade, nunca existiu, tendo sido transferido o património da esfera jurídica dos autores para a esfera jurídica da 4.ª ré, nunca tendo sido pago pelos réus aos autores qualquer valor e ainda causando um prejuízo patrimonial na sua esfera jurídica relativo ao pagamento de mais valias de um dinheiro que nunca receberam. Expõem, ainda, que se sentem enganados, ludibriados e desiludidos com os réus reclamando uma indemnização por danos não patrimoniais.


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Em contestação, os réus pugnaram pela improcedência da acção e requereram a condenação dos autores como litigantes de má-fé, em multa e indemnização a pagar pelos prejuízos causados aos réus em virtude da sua demanda.

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Realizada audiência final foi proferida sentença, em 16-07-2024, na qual se decidiu julgar a acção totalmente improcedente e absolver os réus do pedido.

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            Inconformados com a decisão, os autores recorreram e, nas suas alegações de recurso, formularam as seguintes conclusões:

“1. Intentam os Autores contra os Réus ação judicial peticionando que seja declarada nula a escritura publica de compra e venda celebrada em 25-08-2006 no Cartório Notarial ... e em consequência da referida nulidade que os prédios melhor identificados no artigo 1 e 2 da petição inicial sejam devolvidos aos Autores e cancelado o registo de aquisição da favor da 4ª Ré

2. Alegam para tal que, por dificuldades financeiras o Autor pediu ao seu irmão e aqui primeiro Réu que procedesse à venda dos referidos prédios tendo para o efeito outorgado uma procuração a seu favor

3. Alegam os autores que o 1º Reu procedeu a uma venda simulada dos referidos prédios e que nunca lhes entregou o dinheiro da referida venda porque de facto nunca houve pagamento

4. Alegam os autores que tiveram apenas conhecimento da venda aquando da notificação do serviço de finanças para pagarem as mais valias e que em virtude de não terem recebido o dinheiro da venda dos prédios não tiveram dinheiro para pagar as mais valias o que teve como consequência que o serviço de finanças instaurasse processo executivo contra os autores com penhora de bens para pagamento das referidas mais valias, pagamento esse que foi feito pelos Autores à custa da venda dos seus bens

5. Alegam os Autores que insistiram varias vezes com o 1º reu para receber o preço e que só mais tarde descobriram que o 1º Reu em representação dos autores tinha vendido os predios à 4ª Ré empresa gerida pelo 2ª e 3º Reu

6. Alegam os autores que não existiu qualquer venda nem pagamento de preço e que existiu sim um conluio entre o 1º, 2º e 3ª Ré para passarem os prédios de nome do Autor para a esfera Jurídica da 4ª Ré sem pagarem o que quer que seja, num claro prejuízo para os autores

7. Alegam os Autores que toda esta situação lhes criou incómodos, desassossego e angústia

8. Requerem os Autores que a compra e venda seja declarada nula e os prédios lhe sejam restituídos alem de que sejam os Réus condenados a pagar uma indemnização aos Autores de 5.000€ a titulo de danos não patrimoniais e de 6742.76€ a titulo de danos patrimoniais

9. Alegam os réus que nada tinham que pagar aos Autores porque os predios objeto

11. Alega o 1º reu que recebeu o dinheiro da 4ª ré mas que não o pagou ao Autor porque não tinha nada a pagar

12. Foi realizada audiência de discussão e julgamento e foram considerados vários factos como provados, o que o Autor concorda.

13. Não concorda porem o Autor que tenha sido dado como não provado que Os Dias foram passando e a seguir a dias, semanas meses e o dinheiro nunca chegou, que O primeiro Reu nunca recebeu o dinheiro da venda dos prédios porque nunca houve pagamento e que Não houve pagamento de qualquer preço.

14- Entende o Autor que na sequência das suas declarações e do depoimento de parte do 1º Reu ficou claro que este nunca pagou ao Autor qualquer valor respeitante à venda dos prédios uma vez que o 1º Reu justifica ao tribunal que os imoveis objeto de venda eram dele e do filho e que apenas se encontravam em nome do Autor para os salvaguardar dos credores uma vez que tinham varias dividas e que por isso ao passar os referidos imóveis para nome da 4ª Ré não se tratava de fazer uma venda mas de transferir o património dos Réus para uma empresa gerida pelo 2º Reu, sem qualquer atividade e que se destinava apenas e só a ter o património familiar

15- Veja-se o depoimento do Reu CC Aos 30.45minutos

MJ – “Ora então chegamos ao momento da venda para esta A..., esta venda envolveu transferência de dinheiro?

Reu – não não, não foi feita logo a escritura porque a A... não tinha fundos para isso, foram necessários dois anos para resolver o assunto, e portanto so em 2006 é que fiz a escritura e foi com base nela que se legalizou a saída de dinheiro na A... e o registo de imobilizado na firma

Meritíssimo juiz – A A... pagou?

Reu – eu recebi esse dinheiro, por várias vezes sim

MJ – de que forma recebeu este dinheiro?

Reu – Ia recebendo em numerário à medida que havia essa possibilidade

MJ – Em dinheiro Vivo

Reu – sim

(…)

MJ – Recebeu em dinheiro mas isso esta refletido na contabilidade da A...

Reu- Esta sim na totalidade do dinheiro, com o registo da escritura na qual se declara que foi pago

MJ – Então e qual foi o destino, esta empresa dedica-se a quê?

Reu – é uma imobiliária e tudo o que é da família é la concentrado etc, estão la as casas mas existem outras coisa

MJ – Então é uma imobiliária e estes dois imoveis foram comprados para que?

Reu – Foram comprados, puseram-se em nome dela não eram para vender nem nunca se venderam

MJ – Mas foram comprados para que?

Reu – para legalizar a situação

MJ – mas qual o interesse que esta empresa tem nos imoveis?

Reu – É proprietária dos imoveis como é proprietária de outra empresa de transportes, tudo o que nós temos está em nome dessa empresa

MJ – mas para que efeito, toda a empresa tem um objeto social, do que estou a perceber esta empresa serve para salvaguardar os bens dos sócios

Reu – Sim é isso tudo

MJ – Percebeu o que estou a dizer?

Reu – Sim Dr Juiz e é verdade não vou fugir à pergunta

16- E no mesmo sentido vai o depoimento do 2º Reu DD prestado ao minuto 4.23 do seu depoimento:

Reu – A A... pagou, a A... é uma empresa com escrita constituída que paga os seus impostos desde ivas a imis

MJ- Não tem atividade?

Reu – Tem uma atividade muito reduzida

MJ – Que se traduz em quê?

Reu – Em compras e vendas do património da família

MJ – Quando diz património da família diz destes predios que estamos aqui a discutir

Reu – e doutras situações também da família, quotas de algumas empresas, uma viatura ou outra

(…)

MJ – A A... serve para gerir o património da família não é isso? Não tem atividade nenhuma a não ser a gestão deste património, para salvaguardar o património da família de eventuais execuções não é isso?

(…) salvaguardar o vosso património se os senhores fizerem asneiras como o senhor ainda à pouco disse, não é isso?

Reu – Correto

MJ – Olhe mas se é assim de onde é que veio o dinheiro para fazer o pagamento?

Reu – A empresa teve suprimentos, foi dinheiro de capital social, suprimentos que la foi posto, algum dinheiro que foi pedido emprestado e portanto a empresa A... quando fez a escritura publica em notário da compra dos apartamentos tinha de ter pago o dinheiro tinha de ter saído da empresa porque a contabilidade não é da gaveta de poe e tira e portanto teve de ser contabilizado e portanto houve demorou algum tempo digo eu anos

MJ – Então mas a quem é que foi entregue o dinheiro?

Reu – a A... foi dando o dinheiro não foi todo de uma vez, quem o recebeu foi o meu pai

MJ – mas porque o seu pai, isso é que não estou a perceber, tendo em consideração o histórico que você contou ate agora porque foi o seu pai a ficar com o dinheiro quer da moradia quer do apartamento?

Reu – Porque se algum dinheiro la tinha entrado também tinha sido ele que tinha pedido emprestado

17- Já o Autor no seu depoimento afirma ao minuto 1.39 do seu depoimento prestado em audiência de julgamento no dia 05-05-2022:

Autor: não não oh stor, nunca recebi dinheiro nenhum

MJ – E devia ter recebido?

Autor: Devia ter recebido

MJ – Porquê?

Autor: Então se as casas eram minhas

MJ – mas o seu irmão vem dizer que eram suas so no papel

Autor: Stor isso é o que o meu irmão diz, porque o que esta no registo é que eram minhas e quem as pagou fui eu e eles viveram lá as minhas custas porque eles nunca pagaram nenhuma casa e uma carta que aparece ai no processo inclusivamente o conteúdo é falso

18- E a testemunha Dr. FF no seu depoimento prestado no dia 05-05-2022 ao minuto 5.11:

Testemunha: Oh Senhora Dr.ª O Sr CC e o Sr DD Nunca tiveram dinheiro, viveram sempre em diligência a partir de 92 por avales que prestaram a contratos de leasing a financeiras isso também consta do processo de insolvência deles esta la tudo

19- Ora de tudo o que foi dito em audiência de discussão e julgamento quer pelas partes quer pela testemunha no processo Dr FF, entende o Autor que deveria ter sido dado como provado que Os Dias foram passando e a seguir a dias, semanas meses e o dinheiro nunca chegou, que O primeiro Reu nunca recebeu o dinheiro da venda dos predios porque nunca houve pagamento e que Não houve pagamento de qualquer preço

G) Entende também o Autor que deveria ter sido dado como provado que Os autores passavam por algumas dificuldades financeiras tendo optado por proceder à venda dos predios sitos em ... a fim de obterem alguma liquidez e dado que o Autor tinha confiança no Reu CC e atendendo à distância em que o autor vivia de ..., outorgou-lhe procuração a fim de que este pudesse vender os referidos predios.

20- Tal deveria ter sido dado como provado tendo em conta o depoimento do Autor ao minuto 7.43 do seu depoimento:

“MJ – Esta historia que o seu irmão e sobrinho contam aqui no processo disto das casas so estarem em seu nome por terem em determinada altura da vida problemas financeiros e esses problemas financeiros os levaram a por os imoveis em seu nome é tudo mentira?

Autor: é Sim Senhor

MJ – Porque é que surgiu essa procuração?

Autor: Porque eu andava com dificuldades em dinheiro, porque no negócio do tabaco tive dois assaltos e estava com problemas de dinheiro, e pedi ao meu irmão, eu residia em ... a 130km, para ele vender o apartamento e a casa e ele disse-me sim senhor vamos ver vamos ver vamos ver e uma altura disse-me assim já tenho quem compre as casas é preciso uma procuração. Nessa altura a minha mulher não queria foi para la obrigada por mim ao notário para fazer a procuração e agora esta a pagar isso uma depressão nervosa por causa disso. Fomos fazer a procuração nessa carta esta a dizer que eu lha mandei, não senhor, ele foi comigo ao notário fizemos a procuração e ele levou-a

21- Entende tambem o Autor que deveria ter sido dado como provado que Os autores pagaram às finanças o valor de 3554,76€ acrescido de juros, Toda a situação supra relatada causou nos autores um enorme desassossego, desgosto, angustia e desespero

22- E tal deveria ter sido dado como provado atendendo aos documentos junto aos autos referentes ao processo executivo movido contra o Autor e ao depoimento da testemunha FF que ao minuto 8.47 do seu depoimento prestado em audiência de discussão e julgamento no dia 05-05-2022:

Testemunha: sim falaram nisso, quando eu tive no Tribunal ... e eles estavam la a discutir falaram nisso sim pagou mais de coima do que propriamente do imposto acho que foram seis sete mil não sei, ele pagou, numa discussão acho ate que venderam bens dele que ele andou a bater mal com aquilo

Patrona do autor: Penhoraram-lhe e venderam-lhe bens dele para pagar essa divida?

Testemunha: Sim sim ele na altura referiu isso

Patrona: Essa situação toda o Sr AA e a esposa reagiu bem a ela? Em sequência do que acabou de dizer que não andou a bater em qual é a o que é que aconteceu

Testemunha: ficaram bastante abalados com isto tudo zangaram-se com o irmão com a família e andaram a partir dai nunca mais houve aquela amizade que havia com o irmão e com o sobrinho

Patrona do Autor: Esta situação desta venda sem ter recebido dinheiro causou algum prejuízo ao Sr AA

Testemunha: venda com granosalis, a Dr.ª é que lhe chama venda eu não lhe chamo venda nenhuma isso foi um negocio absolutamente simulado não é

Patrona: mas o facto de não ter recebido dinheiro, causou algum prejuízo ao sr AA?

Testemunha: claro pelo menos da importância porque foram vendidos que ele não viu o dinheiro do preço.

23. Entende o Autor que atendendo a tudo o que foi dito pelas partes em audiência de discussão e julgamento deveria ter sido dado como provado que Houve uma união de esforços de todos os Réus de passarem o património da esfera jurídica dos Autores para a esfera jurídica da 4ª Ré sem pagarem por este qualquer preço, ludibriando e prejudicando os Autores e que Os segundos e terceira Ré na qualidade de gerentes da firma e 4ª Ré agiram sempre num conjunto de esforços com o 1º Reu a fim de subtrair património aos Autores, os predios identificados nos artigos 1º e 2º da PI e coloca-los na esfera jurídica da 4ª Ré, sabendo que não o podiam fazer

24. Entende o Autor que houve uma incorreta apreciação do tribunal a quo dos factos e dos depoimentos prestados em audiência de discussão e julgamento e que em virtude dessa incorreta apreciação foram dados como não provados factos que deveriam ter sido dados como provados requerendo por isso a reapreciação da matéria fáctica e dos depoimentos gravados e em consequência que os Venerandos desembargadores entendam como factos dados como provados que :

A - Os Dias foram passando e a seguir a dias, semanas meses e o dinheiro nunca chegou

B - O primeiro Reu nunca recebeu o dinheiro da venda dos predios porque nunca houve pagamento

C - Não houve pagamento de qualquer preço

D - Os autores passavam por algumas dificuldades financeiras tendo optado por proceder à venda dos predios sitos em ... a fim de obterem alguma liquidez e dado que o Autor tinha confiança no Reu CC e atendendo à distância em que o autor vivia de ..., outorgou-lhe procuração a fim de que este pudesse vender os referidos predios.

E - Os autores pagaram às finanças o valor de 3554,76€ acrescido de juros

F - Toda a situação supra relatada causou nos autores um enorme desassossego, desgosto, angustia e desespero

G -Houve uma união de esforços de todos os Réus de passarem o património da esfera jurídica dos Autores para a esfera jurídica da 4ª Ré sem pagarem por este qualquer preço, ludibriando e prejudicando os Autores

H- Os segundos e terceira Ré na qualidade de gerentes da firma e 4ª Ré agiram sempre num conjunto de esforços com o 1º Reu a fim de subtrair património aos Autores, os predios identificados nos artigos 1º e 2º da PI e coloca-los na esfera jurídica da 4ª Re, sabendo que não o podiam fazer

25- Entende também o Autor que houve uma errada aplicação do direito ao caso, nomeadamente houve violação na aplicação das normas dos artigos 874, 875 e 879 do código civil

26- Dispõe o artigo 874 do código civil que o contrato de compra e venda é aquele em que se transmite a propriedade de uma coisa mediante o pagamento de um preço referindo o artigo 875 que a venda de imoveis só é valida se for celebrada por escritura pública.

27- O artigo 879º do mesmo diploma refere que o contrato de compra e venda tem como efeitos essenciais a transmissão da propriedade, a obrigação de entrega da coisa e a obrigação de pagar o preço.

28- Entende o Autor que analisada toda a prova produzida e os próprios articulados apresentados pelas partes percebe-se desde logo que apesar da propriedade dos imoveis ter sido registada no nome da 4ª Ré os mesmos continuaram na posse do primeiro, segunda e terceira Ré que ainda hoje continuam a residir nos referidos imoveis.

29- Nem a propriedade foi transferida para o ativo da empresa, para por exemplo ser objeto de venda, nem tao pouco a empresa 4ª Ré tomou posse do que quer que seja uma vez que os imoveis continuaram na posse do 1º e segundo Réus.

30- Quando ao terceiro requisito, a obrigação de pagar o preço, o Autor nunca recebeu o preço da venda e como se pode constatar pelos depoimentos supra transcritos a 4ª Ré também nunca pagou o preço.

31- A 4ª Ré não pagou o preço da compra porque como se viu não tem qualquer tipo de atividade servindo a referida empresa apenas para colocar “a seguro” os bens dos Réus, e também não foi com certeza com suprimentos feitos pelos sócios uma vez que o único suprimento existente data de 2008 (vide certidão permanente da firma) no valor de 100.000,00€ e a escritura de venda foi feita em 2006, ou seja, dois anos antes dos referidos suprimentos, alem de que o valor dos mesmos era manifestamente inferior ao valor necessário para pagamento do preço da venda.

32- Não tendo sido cumpridos os requisitos essenciais do contrato de compra e venda o mesmo é nulo e como tal terá de ser restituído aos Autores os predios objeto de venda e cancelado o registo de transmissão a favor da 4ª Ré.

33- Caso assim não se entenda, entende o autor que o artigo 240º do Código Civil dispõe que se por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado. O negócio simulado é Nulo

34- Para haver simulação exige-se que exista divergência entre a vontade real e a vontade declarada, o intuito de enganar terceiros e um acordo simulatório ou conluio entre o declarante e o declaratário.

35- Entende-se que quanto ao primeiro requisito, a divergência entre a vontade real e a vontade declarada o mesmo se encontra preenchido pois os declarantes declararam a venda dos predios do Autor para a 4ª Ré quando de facto os predios ficaram na posse do primeiro e segundo Ré e não passaram para a posse da 4ª Ré alem de que não houve qualquer intenção de proceder a qualquer venda mas apenas de transferir os predios das esfera jurídica do Autor para a esfera Jurídica da 4ª Ré

36- Quanto ao segundo requisito – O intuito de enganar terceiros, sem duvida que este requisito se encontra preenchido uma vez que o intuito dos Réus foi transferir os predios para a esfera Jurídica da 4ª Ré sem existir qualquer pagamento do preço, logo enganando o Autor que queria vender os predios para receber o preço da venda

37- Quanto ao ultimo requisito, o conluio entre declarante e declaratário, é claro que esse conluio existiu uma vez que quer o primeiro Reu sabia que não estava a vender à quarta Ré os predios mas apenas a transferi-los de nome quer o segundo Reu que assinou a escritura na qualidade de representante da 4ª Ré sabia que a propriedade dos predios não ia passar para a 4ª Ré mas ia manter-se na propriedade do segundo terceira e quarta ré como sabia que a 4ª Ré não tendo atividade nem qualquer movimento também não tinha dinheiro para pagar o preço que fizeram constar na escritura de compra e venda.

38- Existindo um acordo simulatório dos intervenientes na escritura, a mesma terá de ser declarada nula com os devidos efeitos legais.

39- Também quanto à prestação de falsas declarações na escritura quanto ao pagamento do preço, como supra já se referiu, é entendimento do Autor que ficou devidamente comprovado em audiência de discussão e julgamento que a 4ª Ré nada pagou ao 1º Reu e o 1º Reu também nada pagou ao autor, pelo que o 1º Reu ao declarar na escritura de compra e venda já ter recebido o preço da 4ª Ré prestou falsas declarações o que inquina todo o negócio e tem como consequência a sua nulidade.

40- De todo o exposto é opinião do Autor que a Sentença proferida contem erros quanto à apreciação da matéria de facto e aplicação das normas de direito que ao serem devidamente analisadas e fundamentadas ditariam a sua procedência, pelo que requer que a mesma seja reapreciada nos termos supra expostos e em consequência se julgue procedente todos os pedidos formulados pelos Autores na sua Petição inicial, pois só assim se fará a tão acostumada Justiça!!!””.


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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir, sendo as seguintes as questões a dirimir:

1. Impugnação da matéria de facto: incorrecta apreciação dos factos e dos depoimentos prestados em audiência de discussão e julgamento, devendo ser dada como provada a factualidade correspondentes aos arts. 4.º, 9.º, 13.º, 20.º, 27.º, 28.º, 31.º e 36.º da petição inicial (conclusões 13 a 24).

2. Errada aplicação do direito: má aplicação das normas dos artigos 874.º, 875.º e 879.º do Código Civil, ou, caso assim se não entenda, nulidade do negócio por simulação (conclusões 25 a 32 e 33 a 39).


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A. Fundamentação de facto.

Na sentença consignou-se (sublinham-se os factos impugnados neste recurso):

“Factos Provados

Discutida a causa considero provados os seguintes factos:

1.º Está inscrito na matriz urbana sob o artigo ...86 e descrito na conservatória do registo predial ... sob o nº...86 da freguesia ... um prédio urbano composto por casa de habitação de rés-do-chão e primeiro andar e sótão amplo, com a superfície coberta de 120m2 e logradouro com 162,30 m2, situado na Urbanização ..., na Rua ..., ..., na cidade ... [art1pi].

2.º Está inscrita na matriz urbana sob o artigo ...71 e descrito na conservatória do registo predial ... sob o nº ...10... – um uma fração autónoma designada pela letra F, correspondente ao segundo andar direito destinado a habitação, duas varandas, uma arrecadação no sótão destinada a arrumos e uma garagem na cave do prédio urbano em regime de propriedade horizontal situado na Urbanização ..., lote ...7, Rua ..., ..., na cidade ... [art2pi].

3.º Em 14-07-2004, os Autores outorgaram no cartório notarial ... uma procuração a favor do 1º Reu – CC, irmão do Autor marido, dando-lhe poderes para proceder à venda dos referidos prédios e receber os respetivos preços [art3pi].

4.º A mesma refere: “… podendo receber os respetivos preços, deles dar quitação, outorgar e assinar as respetivas escrituras e/ou os contratos de promessa, com as cláusulas que entender convenientes, podendo alterar e/ou retificar as indicadas escrituras, se necessário for; e representá-los junto de quaisquer repartições públicas ou administrativas (…) e tudo o que se torne para a prossecução dos poderes precedentemente conferidos.” [art5contestaçãoLuísCarvalho]

5.º Os Autores não residiam em ... [art4pi].

6.º Os referidos prédios eram habitados pelos réus [art4pi].

7.º Por escritura pública outorgada em 25 de Agosto de 2006 no Cartório Notarial ..., CC, ali outorgante na qualidade de procurador de AA e mulher BB declarou em nome dos seus constituintes e pelo preço global de € 180.500,00, já recebido, vender a A... Lda., ali representada por DD, os dois imóveis identificados nos pontos 1 e 2. [art16pi].

8.º Os Autores tinham de pagar de mais valias de IRS pela venda dos referidos prédios o valor de 3554,76€ [art8pi].

9.º foi movida uma execução fiscal contra eles e penhorados quatro prédios rústicos que os Autores ainda possuíam [art9pi].

10.º Os gerentes da 4ª ré são o segundo e terceiro réus que são o filho e a nora do primeiro Réu [art16pi].

11.º O primeiro réu nunca entregou qualquer valor proveniente da referida venda aos autores [art20pi].

12.º O prédio urbano descrito no artigo 1.º da petição inicial, fora adquirido pelo 2.º Réu e registado a seu favor através da ap. ...92, residindo no mesmo com a 3.ª Ré desde essa data [art16contestaçãoJorgeMariaEurolabmob].

13.º Através da ap. ...01 foi registada a aquisição a favor do Autor, continuando os réus a residir no mesmo, fazendo uso deste [art17contestaçãoJorgeMariaEurolabmob].

14.º O prédio descrito no artigo 2.º foi registado a favor do Autor através da ap. ...96, contudo desde essa data que o aqui Réu reside na mesma, fazendo uso da mesma como sua [art14contestaçãoLuísCarvalho]

15.º Os Autores nunca habitaram, permaneceram ou tiveram acesso aos referidos prédios urbanos, e/ou possuíram qualquer chave destes [art16-17contestaçãoLuísCarvalho/ art20contestaçãoJorgeMariaEurolabmob].

Factos Não Provados

Não se provaram os seguintes factos:

Da petição inicial

4.ºe passavam por algumas dificuldades financeiras, tendo optado por proceder à venda dos referidos prédios, … a fim de obter alguma liquidez e dado que … o Autor tinha plena confiança nele, … evitando deslocações dos Autores a ... e mais dispêndio financeiro.

5.º Os Autores foram questionando o primeiro Reu acerca da venda dos prédios, referindo este que ainda não havia interessados para a compra dos mesmos, confiando os Autores no que lhes era transmitido pelo primeiro Réu

6.º No ano de 2008 receberam os Autores uma notificação do Serviço de Finanças ... a informar que o IRS entregue pelos Autores não estava correto, uma vez que procederam à venda de imoveis e não declararam essas vendas

7.º Estupefactos com tal situação os Autores dirigiram-se ao serviço de finanças tendo la sido informados que teriam vendido dois prédios de que eram proprietários em ..., um pelo valor de 115.000,00€ um e outro pelo valor de 65.500,00€ e que deveriam ter declarado esse valor, e pago mais valias, o que não fizeram, pelo que o IRS seria automaticamente corrigido.

9.º Como os Autores não tinham dinheiro… e vendidos … tendo os autores ficado sem os mesmos e com o proveito da venda executiva tendo sido liquidado o valor de 3554,76€ de mais valias e 3188,00€ de juros de mora e despesas com o processo.

10.º Assim que os autores receberam a carta das finanças e foram ao serviço de finanças e lá lhes foi dito que os prédios de ... foram vendidos, de imediato o Autor marido contatou o primeiro Réu, seu irmão, a fim de saber o que se passava

11.º Foi informado pelo primeiro Réu que tinha procedido à venda dos prédios mas que ainda não tinha recebido o dinheiro mas que os compradores eram pessoas de confiança e que assim que o recebesse lho entregaria

12.º Apesar de preocupado com a situação, continuaram os Autores a acreditar naquilo que lhe era transmitido pelo primeiro Réu, ou seja, que seria uma questão de dias ate ter o dinheiro proveniente da venda nas suas contas.

13.º Os dias foram passando e a seguir a dias, semanas e meses e o dinheiro nunca chegou

14.º Os autores foram a ... por diversas vezes a fim de falar com o primeiro Réu e saber o que se estava a passar sendo que este evitava sempre o contato com os Autores, atender o telefone ou encontrar-se com eles

15.º Os Autores cansados de esperar pelo pagamento que o primeiro Réu dizia que iria chegar foram pedir uma cópia da escritura a fim de saber quem tinha adquirido os prédios e desta forma contatar os compradores para saber o que se passava de verdade.

16.º Qual não foi o espanto dos Autores que ao verem a escritura depararam… cujos sócios

20.º O primeiro réu nunca recebeu o dinheiro da venda dos prédios porque nunca houve pagamento

21.º O segundo e terceira Ré, na qualidade de gerentes da 4ª Ré e em conluio e união de esforços com o 1º Reu,

27.º houve uma união de esforços de todos os Réus de passarem o património da esfera jurídica dos Autores para a esfera jurídica da 4ª Ré, sem pagarem por este qualquer preço, ludibriando e prejudicando os Autores

28.º Não houve pagamento de qualquer preço

31.º Os segundos e terceira Ré, na qualidade de gerentes da firma e 4ª Ré, agiram sempre num conjunto de esforços com o 1º Reu a fim de subtrair o património aos Autores, os prédios identificados nos artigos 1º e 2º da petição inicial e coloca-los na esfera jurídica da 4ª Ré, bem sabendo que não o podiam fazer

34.º Tiveram os Autores de pagar ao serviço de finanças o valor de 6671,76€,

36.º Toda a situação supra relatada causou nos Autores um enorme desassossego, desgosto, angustia e desespero

37.º Os autores ficaram sem quase a totalidade do seu património

38.º Tiveram de passar pela vergonha de ver o seu nome exposto como sendo devedores às finanças e o seu património vendido em leilão, o que, sendo os Autores pessoas serias, lhes causou uma vergonha e um desgosto enorme

39.º Sentiram-se desiludidos com o irmão do Autor e sobrinho

40.º E enganaram os autores, dias, semanas, meses e anos, sempre com promessas de pagamento que nunca chegaram a fazer, ficando os Autores sem dinheiro e sem bens e sentindo-se enganados, ludibriados, desiludidos com os Réus que enganaram propositadamente os Autores para ficar com património às suas custas e as custas do empobrecimento dos Autores.

Da contestação dos réus DD/EE/B...

17.º De forma a salvaguardarem a posse do referido imóvel, uma vez que se encontravam com alguns problemas…

Da contestação do réu CC

14.º O prédio descrito no artigo 2.º da petição inicial, fora adquirido em 1996 pelo Réu CC, pagando este o preço devido pelo mesmo…

Inexistem outros factos articulados pelas partes suscetíveis de inclusão entre os factos provados e não provados, quer por encerrarem matéria conclusiva e/ou de direito quer por traduzirem mera impugnação da matéria alegada na petição inicial ou instrumental para a apreciação da causa”.


*

B. Fundamentação de Direito.

Recapitulando, são duas as questões a analisar neste recurso:

1. Impugnação da matéria de facto: incorrecta apreciação dos factos e dos depoimentos prestados em audiência de discussão e julgamento, devendo ser dada como provada a factualidade correspondentes aos arts. 4.º, 9.º, 13.º, 20.º, 27.º, 28.º, 31.º e 36.º da petição inicial (conclusões 13 a 24).

2. Errada aplicação do direito: má aplicação das normas dos artigos 874.º, 875.º e 879.º do Código Civil, ou, caso assim se não entenda, nulidade do negócio por simulação (conclusões 25 a 32 e 33 a 39).

Comecemos por dilucidar a primeira questão.

De acordo com o estatuído no art. 662.º, n.º 1, do CPC: “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”.

O preceito legal em apreço abrange quer as situações de aplicação de regras vinculativas extraídas do direito probatório material – v.g., regras substantivas atinentes ao ónus de prova, admissibilidade dos meios de prova e sua força probatória –, quer, evidentemente, as situações em que a reapreciação da prova é suscitada por via da impugnação da decisão sobre a matéria de facto.

A interposição de um recurso jurisdicional exerce-se através de requerimento que contenha a fundamentação e o pedido, de modo a delimitar o objecto do recurso, estabelecendo o n.º 2 do art. 637.º do CPC que “o requerimento de interposição do recurso contém obrigatoriamente a alegação do recorrente, em cujas conclusões deve ser indicado o fundamento específico da recorribilidade” e impondo o n.º 1 do art. 639.º, ao(s) recorrente(s), o dever de “apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos porque pede a alteração ou anulação da decisão”.

Com este regime, pretende-se que seja rejeitada a admissibilidade de recursos em que as partes se insurgem de forma não especificada contra a decisão do tribunal a quo, designadamente no âmbito da matéria de facto, devendo ser detalhados os exactos pontos da matéria de facto que foram erradamente decididos, e indicados, também com precisão, os factos que se considera deverem ser dados como provados, impedindo-se recursos genéricos contra a decisão da matéria de facto da 1.ª instância, restringindo a possibilidade de revisão de concretas questões de facto controvertidas relativamente às quais sejam manifestadas e concretizadas divergências por parte do(s) recorrente(s).

Nesta senda, o nosso sistema processual civil garante o duplo grau de jurisdição na apreciação da decisão de facto, encontrando-se os ónus a cargo do(s) recorrente(s) que a impugne(m) enunciados no art. 640.º do CPC:

“1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;

b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;

c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.

2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:

a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes;

b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes (…)”.

Estes ónus assentam, fundamentalmente, nos princípios da cooperação, lealdade e boa-fé processuais e têm por finalidade garantir a seriedade do recurso.

Destarte, sendo impugnada a decisão da 1.ª instância sobre a matéria de facto, o recorrente, além de ter de cumprir os ónus de alegação, de especificação e de conclusão, deve obrigatoriamente circunscrever, no requerimento recursivo, sob pena de rejeição: (i) os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, (ii) os concretos meios probatórios para proferir nova decisão, (iii) e a decisão substitutiva sobre a matéria de facto que deverá ser proferida, de harmonia com as alíneas a), b) e c), do n.º 1 do art. 640.º do CPC – cf. Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 08-02-2024, Proc. n.º 7146/20.7T8PRT.P1.S1.[2]

Como explica Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5.ª edição, pp. 165-169:

“a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões;

b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.

c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar com exatidão, na motivação, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos;

d) (…)

e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente. (…)

A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações:

a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (artºs. 635º, nº 4 e 641º, nº 2, al. b));

b) Falta de especificação, nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art.º 640º, nº 1, al. a));

c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios de prova constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.)

d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda;

e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação. (…)”.

A obrigação atinente à indicação exacta das passagens relevantes dos depoimentos gravados deve ser interpretada em termos funcionalmente adequados e em conformidade com o princípio da proporcionalidade, pelo que essa falta de indicação só será idónea a fundamentar a rejeição liminar se dificultar, de forma substancial e relevante, o exercício do contraditório, ou o exame pelo tribunal, sob pena de ser uma solução excessivamente formal, rigorosa e sem justificação razoável.

Acresce referir que a autonomia decisória do Tribunal da Relação, no julgamento da matéria de facto, mediante a reapreciação dos meios de prova constantes do processo – sem prejuízo dos temas de conhecimento oficioso está confinada, no que toca à identificação da matéria objecto de discordância, à observância do princípio do dispositivo: essa sindicância (da decisão de facto), a realizar pela 2.ª Instância, não tem como objectivo efectuar um segundo julgamento da causa, mas sim proceder à reapreciação dos juízos de facto impugnados – Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 07-09-2017, Proc. n.º 959/09.2TVLSB.L1.S1.

Tal como vertido na “exposição dos motivos” da Lei n.º 41/2013, de 26 de Junho, que aprovou o Código de Processo Civil: “[C]uidou-se de reforçar os poderes da 2.ª instância em sede de reapreciação da matéria de facto impugnada. Para além de manter os poderes cassatórios…, são substancialmente incrementados os poderes e deveres que lhe são conferidos quando procede à reapreciação da matéria de facto, com vista a permitir-lhe alcançar a verdade material.”.

Não cabe, por conseguinte, à Relação proceder a um novo julgamento, competindo-lhe antes reapreciar os pontos de facto que deverão ser enunciados pela(s) parte(s), nos termos do art. 640.º, n.º 1, al. a), mantendo-se também em vigor, na instância de recurso, o princípio da livre apreciação da prova previsto no art. 607.º, n.º 5, do CPC, estando a Relação adstrita a, por um lado, aferir sobre a razoabilidade da convicção do juiz da 1.ª instância, averiguando e decidindo se tal convicção foi formada segundo as regras da ciência, da lógica, da experiência comum e da normalidade da vida, e, por outro, formar a sua própria convicção.

No caso em apreço, reitera-se, os recorrentes dissentem da avaliação probatória do tribunal a quo no que tange aos factos não provados relativos aos arts. 4.º, 9.º, 13.º, 20.º, 27.º, 28.º, 31.º e 36.º da petição inicial.

Como referido anteriormente emerge do art. 640.º do CPC, entre o mais, que o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera erradamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões, tendo, ainda, o ónus de especificar, na motivação, os meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos que considera incorrectamente julgados.

Posto isto, examinemos as diversas situações em debate seguindo as conclusões dos recorrentes:

a) Impugnação dos factos não provados n.ºs 13, 20.º e 28.º da petição inicial.

Dizem os recorrentes que “Não concorda porem o Autor que tenha sido dado como não provado que «Os Dias foram passando e a seguir a dias, semanas meses e o dinheiro nunca chegou», que «O primeiro Reu nunca recebeu o dinheiro da venda dos prédios porque nunca houve pagamento» e que «Não houve pagamento de qualquer preço»” (sic).

Para tanto estribam-se nas declarações e no depoimento de parte do 1.º réu (minuto 30.45), nas declarações de parte do 2.º réu (minuto 4.23), nas declarações de parte do autor (minuto 1.39) e no depoimento testemunhal de FF (minuto 5.11).

Naqueles artigos da petição inicial foi feita a seguinte exposição:

13.º Os dias foram passando e a seguir a dias, semanas e meses e o dinheiro nunca chegou.

20.º Por sua vez o primeiro Réu ultrapassando os poderes que lhe foram conferidos pela procuração outorgada pelos Autores, disse na escritura pública de venda ter vendido os prédios e recebido o dinheiro dos mesmos e nunca o recebeu porque nunca houve pagamento e nunca entregou qualquer valor proveniente da referida venda aos autores.

28.º Não houve pagamento de qualquer preço e não houve recebimento por parte do 1.º Réu do mesmo nem transferência do mesmo para os Autores sendo por isso falsas as declarações prestadas na escritura pública.

No que tange ao art. 13.º da petição inicial, o mesmo tem de ser concatenado, previamente, com a narração dos autores constante dos artigos precedentes daquele articulado, designadamente os arts. 5.º e seguintes, em que expõem que após receberem uma carta do Serviço de Finanças ..., em 2008, e tendo-se aí dirigido, lhes foi comunicado que os prédios de ... foram vendidos. Nessa senda, o autor contactou o 1.º réu tendo este informado que tinha procedido à venda dos prédios mas que ainda não tinha recebido o dinheiro e que assim que o recebesse lho entregaria, tendo os autores acreditado que seria uma questão de dias até receberem o dinheiro proveniente da venda nas suas contas.

Ora, o tribunal a quo deu por não provada toda a seguinte matéria de facto, que os recorrentes não impugnaram:

“5º Os Autores foram questionando o primeiro Réu acerca da venda dos prédios, referindo este que ainda não havia interessados para a compra dos mesmos, confiando os Autores no que lhes era transmitido pelo primeiro Réu.

6º No ano de 2008 receberam os Autores uma notificação do Serviço de Finanças ... a informar que o IRS entregue pelos Autores não estava correto, uma vez que procederam à venda de imoveis e não declararam essas vendas.

7º Estupefactos com tal situação os Autores dirigiram-se ao serviço de finanças tendo la sido informados que teriam vendido dois prédios de que eram proprietários em ..., um pelo valor de 115.000,00€ um e outro pelo valor de 65.500,00€ e que deveriam ter declarado esse valor, e pago mais valias, o que não fizeram, pelo que o IRS seria automaticamente corrigido.

9º Como os Autores não tinham dinheiro… e vendidos … tendo os autores ficado sem os mesmos e com o proveito da venda executiva tendo sido liquidado o valor de 3554,76€ de mais valias e 3188,00€ de juros de mora e despesas com o processo.

10º Assim que os autores receberam a carta das finanças e foram ao serviço de finanças e lá lhes foi dito que os prédios de ... foram vendidos, de imediato o Autor marido contatou o primeiro Réu, seu irmão, a fim de saber o que se passava.

11º Foi informado pelo primeiro Réu que tinha procedido à venda dos prédios mas que ainda não tinha recebido o dinheiro mas que os compradores eram pessoas de confiança e que assim que o recebesse lho entregaria (...).

12º Apesar de preocupado com a situação, continuaram os Autores a acreditar naquilo que lhe era transmitido pelo primeiro Réu, ou seja, que seria uma questão de dias ate ter o dinheiro proveniente da venda nas suas contas.”.

Como é evidente, o facto que os recorrentes pretendem passasse a integrar a matéria de facto provada [Os Dias foram passando e a seguir a dias, semanas meses e o dinheiro nunca chegou], sendo uma decorrência da factualidade antes indicada que não ficou provada, tem de ser desatendido, mantendo-se, assim, como não provado.

Relativamente ao art. 20.º da petição inicial, onde ficou vertido que o primeiro Réu ultrapassando os poderes que lhe foram conferidos pela procuração outorgada pelos Autores, disse na escritura pública de venda ter vendido os prédios e recebido o dinheiro dos mesmos e nunca o recebeu porque nunca houve pagamento e nunca entregou qualquer valor proveniente da referida venda aos autores e ao art. 28.º daquele articulado, onde se exarou que Não houve pagamento de qualquer preço e não houve recebimento por parte do 1.º Réu do mesmo nem transferência do mesmo para os Autores sendo por isso falsas as declarações prestadas na escritura pública, entendem os recorrentes que deve transitar para os factos provados, sob as alíneas B) e C), a seguinte factualidade: “O primeiro réu nunca recebeu o dinheiro da venda dos prédios porque nunca houve pagamento” e “Não houve pagamento de qualquer preço”.

Quanto a esta matéria da petição inicial, que, aliás, é nuclear para a decisão do litígio, o tribunal a quo apenas deu como provado, sob o n.º 11, que:

– “O primeiro réu nunca entregou qualquer valor proveniente da referida venda aos autores.”.

            Todavia, considerou como não provado que:
O primeiro réu nunca recebeu o dinheiro da venda dos prédios porque nunca houve pagamento”; –Não houve pagamento de qualquer preço”.

A matéria em causa está directamente relacionada com a escritura pública de compra e venda lavrada no dia 25 de Agosto de 2006, no Cartório Notarial ..., tendo por objecto (i) o prédio urbano sito na Urbanização ..., Rua ..., ..., inscrito na matriz sob o artigo ...86 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº...86 – ... e (ii) a fracção autónoma designada pela letra F, correspondente ao 2.º andar direito do prédio urbano em regime de propriedade horizontal situado na Urbanização ..., ..., Rua ..., ..., inscrito na matriz sob o artigo ...71 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º ...10 – ....

Nesse documento, em que intervieram o 1.º réu, CC, na qualidade de procurador dos autores, e o 2.º réu DD, em representação da ré A... Lda., foi aposto, entre o mais:

“Pelo primeiro outorgante foi dito: Que pela presente escritura, em nome dos seus constituintes e pelo preço global de cento e oitenta e cinco mil euros, que já recebeu, vende à referida sociedade A... Lda., os seguintes bens (…)

E pelo segundo outorgante foi dito: Que aceita para a sociedade, sua representada, a venda nos termos exarados, e que os bens já se encontram provisoriamente registados a favor da sociedade compradora pelas cotas G-três, apresentação vinte e um de vinte e sete de Maio de dois mil e cinco, para o primeiro, e G-dois, apresentação vinte também de vinte e sete de Maio, para o segundo.”.

Os autores/recorrentes põem em causa, por um lado, que tenha havido pagamento de qualquer preço, por outro lado, que o primeiro réu tenha recebido o dinheiro da venda dos prédios, porque nunca houve pagamento.

Tal como se entendeu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 19-01-2017, Proc. n.º 841/12.6TBMGR.C1.S1: “É muito rara e difícil a prova directa da simulação negocial, pois «aqueles que efectuam contratos simulados ocultam os seus propósitos e intenções, não manifestando publicamente a sua vontade de simular, antes se esforçando em tornar verosímil o que há de aparente e fictício no acto que praticam».

Por essa razão, «há quase sempre que recorrer para a demonstrar a um conjunto de factos conhecidos, tais como as condições pessoais ou patrimoniais dos outorgantes, as relações em que eles se encontram entre si, os factos que precedem a realização do acto jurídico, as circunstâncias em que foi celebrado, o seu próprio conteúdo e finalmente os factos posteriores à celebração, mas com eles relacionados.”.

A escritura pública de compra e venda pertence à categoria dos documentos autênticos – art. 369.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil – e faz, por isso, prova plena dos factos que sejam atestados pela entidade documentadora – art. 371.º, n.º 1, do Código Civil.

Todavia, a força probatória plena é restrita aos factos que se dizem ter sido percepcionados pela entidade documentadora, razão pela qual a declaração de recebimento de um preço ou de uma quantia só tem a plenitude desse valor probatório se o pagamento ou a entrega que se mencione tiver sido directamente percepcionado pelo notário que presidiu ao acto e atestado no documento – neste sentido, cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 24-04-2018, Proc. n.º 4/13.3TBCVL-B.C1.

No caso concreto, a respeito desta matéria, referiu-se na fundamentação da matéria de facto: “A convicção do tribunal no que concerne à factualidade que foi dada como provada e não provada, alicerçou-se na análise da globalidade da prova produzida, quer documental, quer testemunhal, quer de acordo com a prova produzida na sua conjugação com as regras da normalidade das coisas e da experiência da vida comum na inferência que se extrai dos factos objetivos para chegar à conclusão quanto aos factos probandos (…) A compra e venda em causa encontra-se titulada pela escritura pública junta como documento 5 da petição.”

Por sua vez, ao analisar a prova oral, quer as declarações e depoimento de parte do 1.º réu, que as declarações do 2.º réu, o tribunal recorrido exarou:

No que tange ao réu CC (1.º réu): “Recebeu o dinheiro referido na escritura. Foi recebendo em numerário. Foi o depoente que recebeu o dinheiro mencionado nas escrituras. Admite que tenha sido o sogro do seu filho a fazer aumento do capital. Não quer dizer de onde veio o dinheiro. Esta empresa é uma imobiliária. Estes imóveis foram comprados. Vive no apartamento. O seu filho e nora vive na moradia. (…) A sociedade B... pagou valores das vendas com dinheiro proveniente de aumentos de capital.”.

Relativamente ao réu DD (2.º réu): “A A... é empresa do sogro. Tem atividade muito reduzida. De compras e vendas de património da família. Estes imoveis. Quotas de empresas. Uma viatura ou outra. A empresa teve suprimentos. Quando foi feita a escritura a empresa tinha que ter pago. Quem ficou com o dinheiro foi o seu pai. Quem geria o dinheiro era o seu pai. A casa quando eu digo que a comprei e que a paguei foi com ajuda do pai e do sogro. Grande parte do dinheiro veio do seu pai. Os valores referidos na escritura foram entregues ao pai. Suprimentos do sogro. Não sabe se o dinheiro que o sogro pôs de suprimentos não terá sido o pai a emprestar. “Grande parte se calhar foi assim”.

Tendo-se procedido, nesta sede, à audição integral de toda a prova gravada na audiência final, verifica-se que ambos os réus corroboraram que a 4.ª ré, a sociedade A..., Lda., comprou e pagou, efectivamente, as aquisições dos imóveis em debate:

O réu CC, irmão do autor, minuciou, no que se refere à situação dos imóveis estarem em nome da sociedade A..., Lda., que foi o autor quem lhe concedeu a procuração, no ano de 2004, para vender os prédios (e uma quota) e que a procuração era necessária para legalizar a situação. A sociedade era (é) uma empresa imobiliária familiar, tendo sido o autor quem solicitou ao réu para “tirar as coisas de nome dele” (autor), uma vez que não queria ter os imóveis em seu nome, por ter problemas financeiros.

Explicou que uma vez que a sociedade ré não dispunha de fundos a pronto foi recebendo o dinheiro da A... em várias vezes, sempre em numerário (“dinheiro vivo”), à medida que a sociedade tinha possibilidade e que o pagamento total só foi legalizado com a escritura, em 2006, constando da contabilidade da empresa a declaração do pagamento. Mencionou que os imóveis foram comprados pela sociedade e que esta ficou proprietária dos mesmos reconhecendo que a empresa, na prática, serve para salvaguardar os bens dos sócios e que todo o seu património pessoal está nessa sociedade.

            Detalhou, por fim, que a A... lhe pagou na sequência de aumento de capital realizado através dos sócios e que a mesma lhe pagou todo o dinheiro que consta da escritura, confessando que não deu qualquer dinheiro ao autor, tal como consta da assentada – cf. acta da audiência final de 05-05-2022 (cf. fls. 191): “(…) disse que A... não entregou ao Autor qualquer quantia a título de preço pelas compra e vendas dos imóveis aludidos o processo. Esclareceu que no seu entender nada era devido ao seu irmão, uma vez que este apenas formalmente era dono dos imóveis registados em nome daquele em virtude de problemas financeiros do depoente.”.

Por seu turno, o réu DD, gerente da A..., explanou que foi o tio (autor) quem pressionou para as casas saírem da sua esfera jurídica. A A..., que só compra e vende património da família, adquiriu as casas onde vivem os réus, servindo para gerir esses bens. O dinheiro da sociedade ré para realizar aquelas compras foi obtido através de suprimentos dos sócios, especificamente do seu sogro, e de empréstimos, e foi liquidando a aquisição ao co-réu CC, seu pai, à medida que dispunha de dinheiro. Corroborou que a sociedade ré lhe pagou € 115 000 e € 65 000.

Na parte confessória, foi lavrada a seguinte assentada – cf. acta da audiência final de 05-05-2022 (cf. fls. 191 verso): “(…) disse que ao AA não foi entregue dinheiro nenhum das compras e vendas. Esclareceu que no seu entender o AA não tem direito a receber nada das compras e vendas uma vez que a propriedade só formalmente era dele e que o registo em nome dele só apareceu para resolver problemas financeiros seus e do seu pai.”.

A testemunha FF, advogado, afirmou, por sua vez, que o autor soube das vendas quando foi notificado pelas Finanças por causa das mais valias e que o mesmo vendeu as casas porque precisava de dinheiro e nunca recebeu nada, afirmando que não houve venda nenhuma à A..., tendo assistido a uma discussão entre as partes no Tribunal ....

Acresce referir que na petição inicial relativa ao Processo n.º 363/21...., que corre os seus termos no Juízo Local Cível de Pombal – Juiz ..., apresentada em juízo em 07-04-2021, pelo aqui, também, autor AA, no seu artigo 9.º, referindo-se ao prédio descrito no artigo 1.º da petição inicial deste autos, que “No dia 25 de Agosto de 2006, o Autor e a sua esposa venderam o prédio urbano comodatado à empresa A..., Lda, por escritura pública outorgada no Cartório Notarial ... (Doc. 2)”, em clara e inequívoca contradição com a versão carreada neste processo.

Sendo evidente que há divergências entre os depoimentos antes descritos não se pode escamotear que o art. 607.º, n.º 5, do CPC, em linha com o estatuído pelo art. 205.º, n.º 1, da Constituição da República, consagra o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, segundo o qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização – exceptuando os limites que se reportam à prova tarifada ou legal –, fixando a matéria de facto em sintonia com a sua prudente convicção firmada acerca de cada facto controvertido, em conformidade racional com a prova produzida e com as regras da lógica e as máximas da experiência.[3]

A livre apreciação da prova é indissociável da oralidade com que decorre o julgamento em 1.ª instância. Nas palavras de Alberto do Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume IV, pp. 566 e segs., “a oralidade, entendida como imediação de relações (contacto directo) entre o juiz que há-de julgar e os elementos de que tem de extrair a sua convicção (pessoas, coisas, lugares), é condição indispensável para a actuação do princípio da livre convicção do juiz, em oposição ao sistema de prova legal”. E concluía aquele Professor, citando Chiovenda, que “ao juiz que haja de julgar segundo o princípio da livre apreciação é tão indispensável a oralidade, como o ar é necessário para respirar”.

Na sua tarefa de reapreciação da prova, o Tribunal da Relação não poderá negligenciar as situações em que o tribunal a quo pura e simplesmente ignora determinado meio de prova ou considera provados factos com base em depoimentos de testemunhas que nem sequer aludiram aos mesmos, ou afirmaram o contrário daquilo que o juiz da primeira instância exarou na sua motivação, não sendo esse, manifestamente, o caso.

Como explica Antunes Varela – Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 116.º, p. 339 –, “a prova tem, por isso mesmo, atenta a inelutável precariedade dos meios de conhecimento da realidade (especialmente dos factos pretéritos e dos factos do foro interno de cada pessoa), de contentar-se com certo grau de probabilidade de facto: a probabilidade bastante, em face das circunstâncias concretas da espécie, para convencer o julgador (que conhece as realidade do Mundo e as regras da experiência que nele se colhem) da verificação ou realidade do facto.”.

Nesta senda, analisando a globalidade da prova oral produzida, e cotejando-a com a documentação inserta no processo, maxime a procuração passada pelo autor e pela sua mulher a favor do 1.º réu, em 14 de Julho de 2004, a escritura de compra e venda lavrada no Cartório Notarial ..., em 25 de Agosto de 2006, a certidão do registo comercial ... atinente à sociedade A..., Lda., e a certidão judicial, de 11-02-2022, relativa ao Processo n.º 363/21...., não se vislumbra qualquer motivo para considerar como provado que O primeiro réu nunca recebeu o dinheiro da venda dos prédios porque nunca houve pagamento ou que Não houve pagamento de qualquer preço, mantendo-se, assim, os factos não provados n.ºs 20 e 28.

b) Impugnação do facto não provado n.º 4 da petição inicial.

Expõem os recorrentes que deveria ter sido dado como provado: “Os autores passavam por algumas dificuldades financeiras tendo optado por proceder à venda dos prédios sitos em ... a fim de obterem alguma liquidez e dado que o Autor tinha confiança no Reu CC e atendendo à distância em que o autor vivia de ..., outorgou-lhe procuração a fim de que este pudesse vender os referidos prédios”.

Indicam, para esse efeito, as declarações do autor (minuto 7.43).

Lendo a petição inicial regista-se que no art. 4.º da petição inicial foi alegado o seguinte: “Os Autores não residiam em ... e passavam por algumas dificuldades financeiras, tendo optado por proceder à venda dos referidos prédios, que eram habitados pelos réus, a fim de obter alguma liquidez e dado que o irmão do Autor residia em ... e no prédio identificado no artigo 2º da petição inicial, e o Autor tinha plena confiança nele, outorgou-lhe conjuntamente com a sua esposa uma procuração para se aparecesse alguém interessado na compra dos imoveis este poder representar os Autores na escritura evitando deslocações dos Autores a ... e mais dispêndio financeiro.”.

Este artigo deve ser concertado, ainda, com o narrado no art. 3.º da petição inicial: “Em 14-07-2004, os Autores outorgaram no cartório notarial ... uma procuração a favor do 1º Reu – CC, irmão do Autor marido, dando-lhe poderes para proceder à venda dos referidos prédios e receber os respetivos preços – documento nº3.”.

O tribunal a quo, por sua vez, deu como provado que:

3º Em 14-07-2004, os Autores outorgaram no cartório notarial ... uma procuração a favor do 1º Réu – CC, irmão do Autor marido, dando-lhe poderes para proceder à venda dos referidos prédios e receber os respetivos preços [art3pi].

4.º A mesma refere: “… podendo receber os respetivos preços, deles dar quitação, outorgar e assinar as respetivas escrituras e/ou os contratos de promessa, com as cláusulas que entender convenientes, podendo alterar e/ou retificar as indicadas escrituras, se necessário for; e representá-los junto de quaisquer repartições públicas ou administrativas (…) e tudo o que se torne para a prossecução dos poderes precedentemente conferidos.” [art5contestaçãoLuísCarvalho]

5º Os Autores não residiam em ... [art4pi].

6º Os referidos prédios eram habitados pelos réus [art4pi].”.

E considerou não provado que: [os autores] “…passavam por algumas dificuldades financeiras, tendo optado por proceder à venda dos referidos prédios… a fim de obter alguma liquidez e dado que … e o Autor tinha plena confiança nele,… evitando deslocações dos Autores a ... e mais dispêndio financeiro.”.

Aduziu-se na fundamentação, ao analisar as declarações do autor: “A procuração surgiu porque estava com problemas financeiros e pediu ao irmão para vender o apartamento e a casa. Ficou de relações [cortadas?] com irmão por causa do problema das casas. A casa onde reside pertence à filha. Diz que lha vendeu quando teve problemas de dinheiro. Ela fez a compra com empréstimo contraído junto da CGD de .... Nunca foi declarado insolvente.”.

Procedendo ao cotejo das declarações prestadas pelo autor e pelos réus, realça-se, uma vez mais, que foram produzidos depoimentos diametralmente opostos:

O autor, nas suas declarações, referiu, de facto, que a procuração se deveu a dificuldades financeiras suas tendo pedido ao irmão para vender as casas. Foram fazer a procuração ao Notário. Foi o irmão quem pediu a procuração. Além das casas refere-se na procuração uma quota de que era sócio por € 15 000. Nunca recebeu esse dinheiro. Não propôs acção relativamente a esse valor. As relações ficaram cortadas por causa da venda das casas. A procuração é de 2004 e soube das vendas pelas Finanças em 2006.

Os 1.º e 2.º réus, pelo contrário, apresentaram as versões que anteriormente se expuseram, mas que aqui se desenvolvem, na íntegra, para melhor compreensão da situação:

O 1.º réu, CC, afirmou que não existiu qualquer conluio para prejudicar o autor. Referiu que em 1991 foi comprada uma casa que colocou em nome do seu filho DD. Em 1993 pediu ao autor, seu irmão, para fazer uma hipoteca “de favor” em que o réu era devedor de € 20 000 (não houve qualquer empréstimo). Tinha problemas financeiros de avales numa sociedade a uma empresa de leasing. Para salvaguardar o património pediu esse favor ao autor. Fê-lo de livre vontade. Afirmou que detinha a empresa C... a qual entrou em incumprimento em 1997. Dedicava-se a transportes internacionais. O seu filho tinha vinte e poucos anos. Como sócios dessa sociedade avalizaram vários contratos de leasing. Foram instauradas várias acções executivas em 1996/97 pelas empresas de leasing. A C... foi declarada insolvente. Teve “incidentes” em 1999/2000, por causa das empresas de leasing e foi declarado insolvente. Mais recentemente voltou a ser declarado insolvente, em 2020, na sequência de requerimento seu, expondo que o seu irmão, juntamente com um advogado, colocou uma injunção contra si de € 80 000 em ... e que não existia qualquer dívida. Esse processo foi extinto pelo facto de ter sido declarado insolvente.

Explicando a situação dos imóveis referenciou que a moradia sita na Rua ..., em ..., foi por si comprada e colocada em nome do seu filho DD. Este tinha um apartamento em ... que vendeu. A casa hipotecada foi vendida numa execução de um leasing, tendo sido adjudicada ao autor (irmão). Explicou que a venda executiva foi por 22 000 contos e que tinha sido adquirida por 8 000 contos. No próprio dia o tribunal exigiu o depósito de 10% do preço (2 200 contos) que o declarante pagou. O dinheiro era do declarante. Para o resto do preço foi pedida dispensa de pagamento. Mencionou que foi aconselhado por vários advogados (que não quis identificar). Mais tarde pagou a Sisa.

Relativamente ao apartamento situado na Rua ..., em ..., a casa estava a ser construída em 1995 e foi adquirida pelo declarante ao empreiteiro. Para concretizar esse negócio afirmou ter combinado com o autor negociar um empréstimo em nome dele junto do Banco 1.... A quantia mutuada foi de 8 000 contos a liquidar em 10 anos. O seu irmão só pôs a assinatura nos documentos. Foi tudo pago pelo declarante. Asseverou que o seu irmão nem sabe onde é que o Banco se situa e que foi “tudo pago religiosamente”. A escritura foi em nome do autor e com hipoteca ao Banco. O autor só teve intervenção na realização da escritura em .... O declarante conhecia os vendedores que vivem perto de si, recordando-se que o primeiro nome do empreiteiro é GG. O autor limitou-se a ir à escritura a pedido do declarante, não sendo verdade que tenha sido o autor a comprar esse andar.

No que se refere à situação dos imóveis estarem em nome da A... explicou que em 2004 o autor lhe concedeu uma procuração para vender os prédios e uma quota e que precisava da procuração para legalizar a situação. Havia uma empresa imobiliária familiar para fazer escrituras.  Foi o autor quem pediu em 2004 para tirar as coisas de nome dele, uma vez que não queria ter os imóveis em seu nome. Detalhou que o autor colocou os seus bens em nome da filha. Explicou que aquando das partilhas do seu pai, no final da década de 90, os bens que lhe couberam (ao declarante) ficaram em nome do autor e da sua irmã. Asseverou que não há um cêntimo do autor a pagar qualquer prestação do imóvel. Disse, ainda, que a venda para a A... só foi formalizada em 2006 com a escritura. Afirmou que recebeu o dinheiro da A... por várias vezes, em numerário, à medida que a sociedade tinha possibilidade e que o pagamento consta da contabilidade da empresa. Mencionou que se trata de uma empresa imobiliária e que os imóveis foram comprados pela mesma para legalizar a situação, sendo a sociedade a proprietária dos imóveis. Reconheceu que a sociedade ré serve para salvaguardar os bens dos sócios e que todo o seu património pessoal está nessa sociedade. Explicou que vive no apartamento na Rua ... há 26 anos e que o autor nem conhece nem nunca entrou em sua casa, e que na moradia vive o filho DD e a sua nora EE há 36/37 anos e que ambos os imóveis estão em nome da A.... O autor vive em .... Em suma, a ré serve para salvaguardar o património dos réus e não tem qualquer outra actividade. Explicitou que o seu filho DD é gerente de uma empresa de transportes cujas quotas são da A.... Detalhou que o motivo da propositura da acção se relaciona com o desentendimento com o irmão motivado pela injunção proposta em ..., que tinha na sua base umas letras da Banco 2... de ... que o autor arranjou em conluio com um advogado. Por fim explicou que o seu apartamento foi liquidado através de empréstimo ao Banco 1..., que pagou com o seu ordenado auferido na sociedade D... e que a ré A... lhe pagou na sequência de aumentos de capital através dos sócios. A sociedade ré pagou todo o dinheiro que consta da escritura ao réu. O dinheiro vinha de aumento de capital dos sócios. O sogro do seu filho terá injectado o capital na empresa. Confessou que não deu qualquer dinheiro ao autor. 

O réu DD, firmou que a versão dos factos do autor é totalmente falsa. Asseverou que comprou a moradia em 1991 e sempre lá viveu. O apartamento foi comprado pelo seu pai e é onde ele vive. A vivenda foi comprada na sequência da venda de um apartamento do depoente em .... O apartamento foi adquirido pelo seu pai através de financiamento bancário, em nome do autor. Foi pago em 10 anos. O vendedor era um construtor de ... conhecido do seu pai. Havia uns avales que tinha feito numa sociedade do seu pai (C...). O seu pai hipotecou a casa ao seu tio. A casa foi vendida em praça e o seu tio (autor) ficou com a casa. Como tinha hipoteca não pagou. Só foi pago 10% pelo seu pai. Era gestor de tráfego na D.... A C... é que tinha os avales dos réus. Foi declarado falido por causa dos avales. Hoje trabalha na E... da qual é gerente e funcionário. A empresa é do sogro e dos seus filhos (sócios). Não tem bens em seu nome. Havia uma relação muito boa na família enquanto o seu avô esteve vivo. As casas foram para nome do autor “por favor”. Foi o tio (autor) quem pressionou para as casas saírem da sua esfera jurídica. A A... comprou as casas. A ré só compra e vende património da família. Serve para gerir o património da família. O dinheiro da ré foi para as compras das casas e foi obtido através de suprimentos dos sócios e empréstimos. A sociedade ré foi pagando ao co-réu CC, seu pai, à medida que tinha dinheiro. Grande parte do dinheiro para comprar a moradia veio do seu pai (a outra do seu sogro). A sociedade ré pagou € 115 000 e € 65 000 ao seu pai. O dinheiro da A... vinha do sogro do depoente através de suprimentos. 

Por fim, o autor afiançou que nunca recebeu dinheiro da venda das casas tendo sido ele quem as pagou. Disseram-lhe que era um bom investimento comprar as casas em .... O seu irmão tinha a empresa C.... Referiu conhecer perfeitamente a casa do seu irmão em .... Comprou o apartamento ao GG. Cedeu a casa ao seu irmão. Comprou porque o seu irmão lhe disse que era um bom investimento. Fez um empréstimo ao Banco 1... de 7900 contos. Não se recordava dos anos de duração do empréstimo. A casa foi paga a prestações com dinheiro do autor. O réu nunca pagou nada. A moradia onde reside o sobrinho foi comprada em 1997. Disse que emprestou 20 000 contos ao sobrinho em 1992 e que em 1993 pediu-lhe garantia e fez-se hipoteca sobre o imóvel. Em 1997 o sobrinho teve problemas com a falência da C... e os réus “foram arrastados para a falência”. A casa foi à praça em hasta pública e comprou-a através de proposta por carta fechada. Pagou no dia da arrematação (30-09-1997) 2210 contos e 1189 contos de Sisa. Foi dispensado de pagar os remanescentes 20 000 contos por causa da hipoteca a seu favor. A história dos réus é mentira. Disse que a procuração se deveu a dificuldades financeiras e pediu ao irmão para vender as casas. Foram fazer a procuração ao Notário. Foi o irmão quem pediu a procuração. Além das casas refere-se na procuração uma quota de que era sócio por € 15 000. Nunca recebeu esse dinheiro. Não propôs acção relativamente a esse valor. As relações ficaram cortadas por causa da venda das casas. A procuração é de 2004, soube das vendas pelas Finanças em 2006 e só propôs a acção 17 anos depois. A quantia emprestada ao sobrinho foi em dinheiro e em cheques. O empréstimo do apartamento não foi todo liquidado, havia ainda uma dívida de 900 e tal euros. Dava € 300 ao seu irmão por mês para ir pagar o empréstimo ao Banco. O irmão estava falido. Foi gerente de uma empresa dos réus de 1997 a 2005. Quem administrava era o irmão e o declarante assinava módulos de cheques. Confirmou que nunca pagou nada directamente ao Banco e que não tem nenhum bem em seu nome. Deu uma casa à filha e a casa onde vive está em nome da sua filha. Está a pagar uma penhora de uma dívida.

Sendo patente as versões opostas dos declarantes – autor e 1.º e 2.º réus –, sublinha-se que o controlo do tribunal de recurso sobre a convicção alcançada pelo tribunal da 1.ª instância, em que a atribuição de maior credibilidade a uma fonte de prova sobre outra se baseia em opção assente na imediação e na oralidade, embora exija a avaliação dessa prova e não apenas a mera sindicância do raciocínio lógico, deve restringir a modificação da factualidade – provada e não provada –, por regra, aos casos de desconformidade entre os elementos de prova e a decisão, não se podendo descurar que a prova por declarações orais é notoriamente mais falível do que qualquer outra, e, na avaliação da sua credibilidade tem que se reconhecer que o tribunal a quo está em melhor posição.

Não se olvide que a Relação padece de constrangimentos decorrentes da circunstância de os depoimentos não se desenvolverem presencialmente perante si, não transmitindo a gravação todos os pormenores que são captáveis pelo julgador a quo e que contribuem para a formação da sua convicção, estando a 1.ª instância melhor posicionada para a valoração da prova testemunhal.

Ademais, não basta qualquer divergência de apreciação e valoração da prova, tanto mais que o nosso sistema é predominantemente de reponderação, pelo que para que a decisão da 1.ª instância fosse alterada haveria que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação da sua convicção, ou seja, ter-se-ia que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1.ª instância, retratada nas respostas que deu aos factos controvertidos, foram violados os princípios que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua correspondência com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos dados como assentes.

Não se pode negligenciar, como já antes salientado, que por força da imediação, da oralidade e da concentração que caracterizam a produção da prova perante o Juiz a quo, este está numa posição favorecida para valorar os meios probatórios, designadamente para surpreender no comportamento dos declarantes e das testemunhas elementos significativos para aferir a espontaneidade e a credibilidade dos seus depoimentos, que frequentemente não transparecem na gravação, tais como os gestos das mãos, os olhares, os movimentos corporais, as hesitações, etc..

Como desenvolve Ana Luísa Geraldes, Impugnação e reapreciação da decisão sobre a matéria de facto, “Estudos em Homenagem ao Prof. Dr. Lebre de Freitas”, Volume I, p. 591:“O Tribunal ao expressar a sua convicção, deve indicar os fundamentos suficientes que a determinaram, para que através das regras da lógica e da experiência se possa controlar a razoabilidade daquela convicção sobre o julgamento dos factos provados e não provados, permitindo aferir das razões que motivaram o julgador a concluir num sentido ou noutro (…), de modo a possibilitar a reapreciação da respectiva decisão da matéria de facto pelo Tribunal de 2ª Instância”. A mesma autora salienta – op. cit., p. 609 – que, em caso de dúvida, “face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela primeira instância em observância aos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte”.

Por conseguinte, não se vislumbrando razões para tal, mantém-se como não provado que os autores “…e passavam por algumas dificuldades financeiras, tendo optado por proceder à venda dos referidos prédios… a fim de obter alguma liquidez e dado que … e o Autor tinha plena confiança nele,… evitando deslocações dos Autores a ... e mais dispêndio financeiro.”.

c) Impugnação dos factos não provados n.ºs 9.º e 36.º da petição inicial.

Entendem os recorrentes que deveria ter sido dado como provado que os autores pagaram às finanças o valor de € 3554,76, acrescido de juros, e que toda a situação relatada causou nos autores um enorme desassossego, desgosto, angústia e desespero.

Como meios probatórios aludem aos documentos junto aos autos alusivos ao processo executivo movido contra o autor e ao depoimento da testemunha FF (minuto 8.47).

Nos citados artigos da petição inicial explanou-se que:

“9.º – Como os Autores não tinham dinheiro foi movida uma execução fiscal contra eles e penhorados e vendidos alguns terrenos que os Autores ainda possuíam, tendo os autores ficado sem os mesmos e com o proveito da venda executiva tendo sido liquidado o valor de 3554,76€ de mais valias e 3188,00€ de juros de mora e despesas com o processo. – documento nº 4.

36.º – Toda a situação supra relatada causou nos Autores um enorme desassossego, desgosto, angustia e desespero”.

O tribunal recorrido não deu como provada a indicada matéria de facto, bem como a seguinte factualidade (que os recorrentes não impugnaram):

37.º Os autores ficaram sem quase a totalidade do seu património.

38.º Tiveram de passar pela vergonha de ver o seu nome exposto como sendo devedores às finanças e o seu património vendido em leilão, o que, sendo os Autores pessoas sérias, lhes causou uma vergonha e um desgosto enorme.

39.º Sentiram-se desiludidos com o irmão do Autor e sobrinho.”.

Revisitando a motivação do Tribunal a quo: “Os documentos da AT juntos como documento 4 apenas evidenciam a instauração do processo executivo para cobrança do imposto, mas não o seu seguimento.”. E ao debruçar-se sobre o depoimento da testemunha FF escreveu: “O autor teve execução fiscal por causa do imposto de mais valias. E pagou essa quantia tendo-lhe sido penhorados bens para esse efeito, referindo que “ele andou a bater mal com aquilo”. Ficaram bastante abalados com isso tudo.”.

Vejamos o que emerge da avaliação da prova por nós empreendida.

O documento n.º 4 junto com a petição inicial (cf. fls. 20/23 do suporte físico do processo), é uma carta de citação da autora BB, emanada da Autoridade Tributária – Serviço de Finanças de ..., datada de 09-03-2012, no âmbito do processo de execução fiscal n.º ...31, da qual consta, entre o mais: “(…) fica V. Exª por este meio citado , na qualidade de cônjuge e executada, de que corre seus termos neste Serviço de Finanças o processo supra referido, instaurado por dívidas de IRS do ano de 2008, da quantia de € 3554,76 (três mil quinhentos e cinquenta e quatro euros e setenta e seis cêntimos) a que acresce os respectivos juros de mora e custas legais.”.

Porém, lendo essa documentação não é possível concluir, por um lado, qua aquela execução fiscal esteja relacionada com a falta de pagamento de mais valias resultantes da venda realizada em 2006, e, por outro lado, qual o seguimento desse processo após a penhora dos bens imóveis aí identificados. Acresce que o testemunho de FF, isoladamente, não prova que os autores tenham liquidado aquela quantia.

Por outro lado, relativamente à situação ter causado aos autores um enorme desassossego, desgosto, angústia e desespero entende-se que esse facto está, apenas, parcialmente demonstrado, tal como resulta das declarações da testemunha em apreço (FF), que corroborou que o autor e a mulher ficaram bastante abalados com a situação dos autos.

Nesta consonância, embora não se tenha provado que os autores ficaram sem quase a totalidade do seu património – art. 37.º –; tiveram de passar pela vergonha de ver o seu nome exposto como sendo devedores às finanças e o seu património vendido em leilão, o que, sendo os autores pessoas sérias, lhes causou uma vergonha e um desgosto enorme – art. 38.º –; e sentiram-se desiludidos com o irmão do autor e sobrinho – art. 39.º entende-se que se deve dar como provado o seguinte facto: os autores ficaram abalados com a situação dos autos.

d) Impugnação dos factos não provados n.ºs 27 e 31.º da petição inicial.

Dizem os recorrentes, neste ponto do recurso, que “atendendo a tudo o que foi dito pelas partes em audiência de discussão e julgamento deveria ter sido dado como provado que:

–  Houve uma união de esforços de todos os Réus de passarem o património da esfera jurídica dos Autores para a esfera jurídica da 4ª Ré sem pagarem por este qualquer preço, ludibriando e prejudicando os Autores e que

–  Os segundos e terceira Ré na qualidade de gerentes da firma e 4ª Ré agiram sempre num conjunto de esforços com o 1º Reu a fim de subtrair património aos Autores, os prédios identificados nos artigos 1º e 2º da PI e colocá-los na esfera jurídica da 4ª Ré, sabendo que não o podiam fazer.”.

A factualidade em causa, além de revestir, parcialmente, carácter conclusivo, acaba por ser uma decorrência lógica da factualidade acima exposta e que ficou por provar.

Em todo o caso, por relevante, verifiquemos o que resultou da audição integral da prova testemunhal:

Testemunha FF, advogado. Foi advogado do autor e dos réus, em diferentes situações, e ao longo de vários anos. Não interveio no negócio dos autos. Patrocinou o autor num processo de execução, por causa de uma penhora de bens na casa onde reside o réu CC, em ..., tendo deduzido embargos de terceiro. Disse que a moradia foi comprada em 1992 pelo réu DD através de empréstimo de 20 000 com hipoteca a favor do autor. Em 1997 houve penhora do Banco 3... no âmbito de execução. A casa foi vendida em hasta por 22 000 contos. Como era credor hipotecário o autor só pagou 2000 contos. E pagou Sisa. Tinha ganhado 10 000 contos numa lotaria. O outro apartamento foi através de empréstimo ao Banco 1.... Os réus viveram sempre em indigência por causa dos avales que prestaram nos leasings. O autor apenas soube das vendas quando foi notificado pelas Finanças por causa das mais valias. Assinava folhas em branco. O autor vendeu os imóveis porque precisava de dinheiro. Nunca recebeu nada. O autor pagou a dívida às Finanças. O autor e a mulher ficaram bastante abalados. Não houve venda nenhuma. Os 20 000 contos foram para pagar a vivenda. Sabia dos factos por ter assistido a uma discussão do autor com o réu no Tribunal ....

Em contraposição com este testemunho, que, aliás, foi o único a corroborar a versão dos autores, verificaram-se os seguintes depoimentos testemunhais, todos eles convergentes com a versão factual carreada no processo pelos réus:

HH. Amigo do 1.º réu. Prestou um depoimento escorreito. Conheceu o réu CC em 1987. A moradia foi adquirida pelo réu DD nos anos 1990. Devido a problemas do réu DD, o CC contactou o autor para fazer um empréstimo com hipoteca.

Mais tarde, no âmbito de uma execução em que a moradia foi penhorada, o autor e o réu combinaram que o autor faria uma proposta alta para adquirir a moradia. Fizeram um requerimento para evitar o depósito total do valor da compra porque o dinheiro revertia para o autor por causa da hipoteca. O réu solicitou à testemunha, que residia em França e vinha a Portugal de 15 em 15 dias, se o requerimento de dispensa do preço ao tribunal não fosse aceite, se a testemunha podia ajudar. Todas as despesas inerentes ao processo de execução e à compra da moradia foram feitas pelo réu CC. O apartamento foi comprado pelo réu CC para morar em ... perto do filho. Pediu ao irmão para o ajudar na compra. Solicitou um financiamento no Banco 1... para acabar de pagar o apartamento. Foi um crédito de 10 anos. Mais tarde, o autor contactou o réu a informar que seria necessário fazer a escritura das casas por causa de problemas que tinha com negócios em .... O réu constituiu uma imobiliária. Assistiu a uma conversa entre o autor e o réu por causa da procuração. Também estava presente o advogado Dr. FF. Foi ele quem fez a minuta da procuração no escritório. O réu foi a ... ter com o irmão para assinar a procuração. O apartamento e a moradia ficaram em nome da imobiliária. Tem relações comerciais com o réu desde 1987 no âmbito dos transportes e tornou-se amigo. Ao longo de 15 anos todas as segundas-feiras a testemunha jantava com o 1.º réu mais o Dr. FF. Foi ao Banco 1... em ... com o réu por causa do empréstimo para a compra do apartamento. Acompanhou a escritura de compra e venda do apartamento pelo autor, referindo que foi testemunha da escritura. Assistiu a telefonemas entre o réu e o autor. Sabia de dívidas da empresa C.... A escritura à A... foi feita com as penhoras sobre um dos imóveis por dívidas do autor. O assunto foi tratado pelo advogado Dr. FF. A testemunha teve conhecimento dos factos nos jantares semanais com o réu e com o advogado. O dinheiro do empréstimo era o réu que pagava.

II, irmã do autor e do 1.º réu. Depôs com clareza e de modo espontâneo. Até há 7 anos eram muito amigos, desde então deixou de falar com o autor. Este recusou-se a ajudar o seu pai. Entre 1992 a 1994 o 1.º réu foi a casa da testemunha para pedir ao seu marido para hipotecar uma das casas em nome dele. O marido da testemunha recusou por ser bancário. Depois, o autor concordou ficar com as casas em nome dele mas não as comprou. As casas eram dos réus e não do autor. Nunca comprou nenhum imóvel. O 1.º réu andava com problemas na firma. Não se recordava se se referia aos dois imóveis. Conhece bem o apartamento do 1.º réu. Tem conhecimento que os réus sempre viveram nas respectivas casas. Sabia que as casas deixaram de estar em nome do autor. O pai da testemunha, a testemunha, o autor e o 1.º réu concordaram com as partilhas em vida do pai. O 1.º réu ficou uma parte dos bens em seu nome e outros em nome do autor.

JJ, sobrinho do autor e do 1.º réu e primo do 2.º réu. Não fala há alguns anos com o seu tio AA (autor). Na moradia vive o 2.º réu; no apartamento vive o 1.º réu. Há muitos anos. Os irmãos não se falam por causa desta acção e uma outra em que também foi testemunha por causa de bens móveis existentes nas casas dos réus. Tinham uma relação muito próxima e de muita confiança. Sabia que o autor tinha os imóveis em seu nome. Era do conhecimento de toda a família que os imóveis eram dos réus. A empresa dos réus não estava a correr bem. O pai da testemunha não concordou em ajudar os réus. O 1.º réu pediu ao autor para ficar com os imóveis em seu nome por causa do património. O que se falava em família é que havia o risco dos credores irem actuar sobre o seu património pessoal. Quem pagou os imóveis foram o 1.º e o 2.º réu. Ouviu falar de uma procuração do autor ao 1.º réu. O autor aceitou ficar com as casas em seu nome para protecção do património dos réus. Sabia que as casas passaram para o nome de uma empresa. Foi falado em almoços de família. Nunca ouviu falar de pedidos de pagamento do autor ao 1.º réu. Abordou, ainda, problemas anteriores com partilhas. Falou-se que os imóveis tinham passado para a sociedade em almoços de família. Havia almoços em família em casa do avô.

KK, sobrinho do autor e do 1.º réu, primo do 2.º réu (irmão da anterior testemunha). O apartamento é onde vive o 1.º réu e a moradia é onde vive o 2.º réu. O 1.º réu tinha dificuldades económicas na empresa. Sabia por conversas familiares em casa do avô. O autor ia todos os dias e o 1.º réu ia aos fins de semana. A propriedade dos imóveis passou para o autor. Nos almoços de Domingo ouvia as conversas. A testemunha desconhecia questões relativas à sociedade. O autor nunca adquiriu os imóveis ou efectuou pagamentos. Nunca investiu em imóveis. Não está bem financeiramente.

Da análise combinada de toda a prova prestada na audiência final é de frisar que as testemunhas foram, todas elas, testemunhas indirectas dos factos.

Acompanhando Luís Filipe Pires de Sousa, Prova Testemunhal – Noções de Psicologia do Testemunho, 2.ª edição, 2020, p. 221: “O depoimento é directo quando a testemunha percepciona o facto pelos próprios sentidos e o relata com base em tal fonte de conhecimento. É indirecto quando a testemunha tem conhecimento de um facto através do que lhe transmitiu um terceiro (através de uma representação oral, escrita ou mecânica), não provindo o conhecimento da testemunha sobre o facto da sua percepção sensorial imediata.”. O autor prossegue – op. cit. p. 240: “A testemunha indirecta propicia uma narração de segundo grau, tendo uma eficácia probatória bem menor do que a que assiste a uma testemunha directa.”. Conclui, depois – op. cit., pp. 243/244: “[E]ntendemos que não pode ser afastada a admissibilidade da testemunha indirecta porquanto tal colidiria com um sistema misto, mas em que a livre apreciação da prova é preponderante.”.

No sentido da admissibilidade das testemunhas indirectas em processo civil, vejam-se, outrossim, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 05-07-2018, Proc. n.º 97/12.0TBPV.L2, e de 30-06-2020, Proc. n.º 10831/16.4T8LRS.L1.S1.

Isto dito e revertendo ao caso dos autos, é manifesto que as testemunhas inquiridas acabaram por não permitir, de modo algum, suportar a tese dos autores trazida a juízo, tendo assim quedado por demonstrar que houve uma união de esforços de todos os réus de passarem o património da esfera jurídica dos autores para a esfera jurídica da 4.ª ré, gerida pelo filho e nora do 1.º réu, sem pagarem por  este qualquer preço, ludibriando e prejudicando os autores – art. 27.º da petição inicial – e os segundos e terceira ré, na qualidade de gerentes da firma e 4.ª ré, agiram sempre num conjunto de esforços com o 1.º réu a fim de subtrair o património aos autores os prédios identificados nos artigos 1.º e 2.º da petição inicial e coloca-los na esfera jurídica da 4.ª ré, bem sabendo que não o podiam fazer porque não pagaram por estes quaisquer valores conforme fizeram constar falsamente da escritura de compra e venda – art. 31.º da petição inicial.

Em face de todo o exposto, e em conclusão, julga-se improcedente a impugnação da matéria de facto, com excepção do seguinte que transitará para a matéria de facto provada: os autores ficaram abalados com a situação dos autos.


*

Assente a matéria de facto relevante, vejamos se ocorreu errada aplicação do direito seja por violação na aplicação das normas dos artigos 874.º, 875.º e 879.º do Código Civil, ou, caso assim se não entenda, por nulidade do negócio por simulação.

Entendem os autores, em primeiro lugar, que houve má aplicação das normas dos artigos 874.º, 875.º e 879.º do Código Civil, as quais dispõem:

– Artigo 874.º (Noção):

“Compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço.”

– Artigo 875.º (Forma):

“Sem prejuízo do disposto em lei especial, o contrato de compra e venda de bens imóveis só é válido se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado.”

– Artigo 879.º (Efeitos essenciais):

“A compra e venda tem como efeitos essenciais:

a) A transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito;

b) A obrigação de entregar a coisa;

c) A obrigação de pagar o preço.”.

O artigo 874.º do Código Civil define a compra e venda como o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço.

Em face desta noção ressaltam como elementos típicos deste negócio jurídico bilateral, a transmissão de um direito ou objecto em contrapartida de um montante em dinheiro, o preço.

Neste contrato a propriedade da coisa vendida transmite-se para o adquirente pelo contrato, constituindo a transmissão do domínio um dos efeitos essenciais do negócio jurídico – efeito real –, ao lado das obrigações de entrega da coisa e de pagamento do preço – efeitos obrigacionais.

A compra e venda é, por conseguinte, um contrato consensual em que o aperfeiçoamento do vínculo se atinge mediante o acordo de vontades expresso na forma legal.

Trata-se, por outro lado, de um contrato real quoad effectum, na medida em que determina a produção imediata do efeito real de transmissão do direito de propriedade: a propriedade (o direito real) transmite-se por mero efeito do contrato, não estando dependente do pagamento do preço, nem da entrega da coisa – cf. arts. 408.º, n.º 1 e 1317.º, alínea a), do Código Civil.

Como refere Fernando Baptista de Oliveira – Contratos Privados: Das Noções à Prática Judicial, Volume I, 2.ª edição, 2015, p. 613: “O pagamento do preço e a obrigação de entregar a coisa devem ser feitos na mesma altura. Por isso se fala em sinalagma contratual. E por isso, também, não havendo prazos diferentes para o cumprimento da obrigação de ambas as partes contratantes, cada uma delas tem a faculdade de recusar a sua prestação enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe ou não oferecer o seu cumprimento simultâneo. A isso se chama «exceptio non adimpleti contractus» (excepção de não cumprimento do contrato, prevista no art. 428.º do CC).”.

Em face da factualidade provada, designadamente do facto n.º 7, não há dúvidas de que a propriedade sobre os imóveis foi adquirida pela 4.ª ré em virtude do contrato de compra e venda celebrado, por escritura pública outorgada em 25 de Agosto de 2006, no Cartório Notarial ....

Assente que os imóveis são, formalmente, propriedade da 4.ª ré, resta apurar se o negócio jurídico correspondente àquela compra e venda é nulo por simulação.

Dispõe o artigo 240.º do Código Civil:

“1. Se, por acordo entre declarante e declaratário, e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante, o negócio diz-se simulado.

2. O negócio simulado é nulo.”.

A este respeito, na sentença recorrida teceram-se as seguintes considerações, após se fazer alusão ao preceito legal antes citado:

“Quanto ao primeiro requisito [divergência entre a vontade real e a vontade declarada], resultaria, ao que parece entender-se, da versão trazida pelo autor, terem dito na escritura que o preço já havia sido recebido, quando nunca recebeu nada da ré.

Só com este facto, aliás não provado, pois o facto de o procurador não ter procedido à entrega do montante correspondente ao preço aos vendedores é coisa muito diferente de o comprador não o ter pago, é evidente que não pode ser dado como demostrado o acordo simulatório.

Pressupunha este, como se infere do que já se disse, que os autores e a ré não tenham querido o negócio de compra e venda em causa, apesar de o exteriorizarem, criando assim a aparência desse negócio.

Tais factos não foram, no entanto, dados como provados.

Sendo assim não se pode concluir pela existência do acordo simulatório em causa ainda que tivesse ficado demonstrado que o preço não foi pago, apesar de tal ter sido declarado na escritura.

O que se poderia apenas concluir é que o procurador dos autores e a ré teriam feito declarações falsas [STJ, 16/1/2014, processo 1556/08.5TBVRL.P1.S1, relator Cons. Oliveira Vasconcelos].

Mas não se poderia concluir que com essa falsidade não quiseram a existência do negócio, criando a sua aparência.

Temos, pois, como não verificado o requisito em causa.

E como a verificação dos requisitos da simulação é cumulativa, tanto basta para se concluir pela inexistência da simulação.

Mas sempre se dirá que quanto ao requisito da divergência entre a vontade real e a vontade declarada não se demostraram os factos acima referidos que indicavam essa divergência.

E não estando demonstrada aquela divergência e este acordo, necessariamente também não pode ser considerado o intuito de enganar terceiros.

Concluímos, pois, não ser caso de o negócio ser considerado nulo por simulação.

Os autores alegam ainda que o primeiro Réu ultrapassando os poderes que lhe foram conferidos pela procuração outorgada pelos Autores, disse na escritura pública de venda ter vendido os prédios e recebido o dinheiro dos mesmos e nunca o recebeu porque nunca houve pagamento e nunca entregou qualquer valor proveniente da referida venda aos autores.

Verifica-se o abuso de poderes quando, formalmente, o representante atua no domínio dos poderes que lhe foram conferidos, mas, em termos substanciais, se desvia da finalidade com que eles lhe foram conferidos; o procurador age contra (ou para além) o interesse do dominus, perseguindo normalmente um interesse próprio (ou de terceiro) e conflituante com o do representado. Já no excesso de mandato o procurador atua formalmente para além dos limites dos poderes conferidos.

De referir que não pode confundir-se o abuso de representação (abuso de poderes) com a representação sem poderes (art. 268º CC) pois esta distingue-se do abuso de representação, de que trata o art. 269º, porque este é um desvio do fim que o acto deveria realizar, isto é, representa o exercício ilegítimo ou anormal do poder conferido, enquanto que naquela o acto é praticado em nome do representado mas sem terem sido conferidos, por este, ao representante, quaisquer poderes, ou fora dos limites da faculdade conferida e são diferentes as consequências legais do negócio celebrado pelo procurador face ao representado.

Segundo o regime legal prescrito para o abuso de representação, a eficácia do negócio assim celebrado perante o representado dependerá de se apurar (…) se a outra parte conhecia ou devia conhecer o abuso (art. 269º do CC, in fine).

Como isto também não se provou, a sorte da presente ação está assim ditada.

Não se provaram quaisquer danos pelo que nada há a indemnizar.

Também não se vislumbra, face às posições divergentes das partes, litigância de má-fé (artº 542º CPC).” (sic).

Quid juris?

As asserções da sentença recorrida não merecem crítica, na medida em que a simulação, como emerge do estatuído no artigo 240.º do Código Civil, é o acordo entre declarante e declaratário no sentido de celebrarem um negócio jurídico que não corresponde à vontade real e com o intuito de enganarem terceiros.

São, assim, seus elementos constitutivos:

(i) A divergência entre a vontade real e a vontade declarada;

(ii) O acordo ou conluio entre declarante e declaratário – pactum simulationis;

(iii) A intenção de enganar terceiros – animus decipiendi.

Como explica Fernando Baptista Oliveira – Contratos Privados: Das Noções à Prática Judicial, Volume III, 2.ª edição, 2015, p. 553 –, “[a] divergência em causa tem graus: é absoluta quando os contraentes fingem realizar um certo negócio jurídico, quando, na verdade, não querem realizar negócio jurídico algum; é relativa quando, sob a capa do negócio simulado, existe um outro que as partes quiseram realizar”.

E prossegue o citado autor – op. cit, loc. cit:

“Num e noutro caso, há necessidade de verificação simultânea dos três requisitos:

            1) Intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração: o declarante tem consciência que a declaração emitida não corresponde à sua vontade real e quer emiti-la nesses termos.

            Trata-se duma divergência livre, que se distingue da que existe em caso de coação física, já que nesta existe aquela mesma consciência, mas a vontade encontra-se tolhida por uma força exterior que não deixa alternativa ao declarante.

            2) Acordo simulatório: existência de conluio entre os contraentes contemporâneo ou anterior à declaração de vontade.

            Este elemento permite distinguir a simulação da reserva mental, pois nesta não existe qualquer acordo, embora possa suceder que o declaratário se aperceba da divergência entre a declaração e a vontade.

3) Intuito e enganar terceiros: não se exige que a simulação seja fraudulenta, ou seja, que se destine a prejudicar terceiros, mas somente que se crie a ilusão que tanto pode destinar-se a defender interesses próprios como a beneficiar terceiros.

Este elemento opera, mais uma vez, a distinção relativamente à reserva mental e também às declarações não sérias.”.

Para que exista negócio simulado é, em síntese, necessária a prova da verificação simultânea dos três requisitos legais: (i) a intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração, (ii) o complô ou acordo simulatório e (iii) a intenção de enganar terceiros, sendo certo que, segundo as regras do ónus da prova, porque constitutivos do respectivo direito, tais requisitos devem ser provados por quem invoca a simulação, de harmonia com a regra constante do artigo 342.º, n.º 1, do Código Civil.

No mesmo sentido, vejam-se: Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 14-09-2021, Processo n.º 1307/16.0T8BRG.G1.S1, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 07-02-2023, Proc n.º 390/16.3T8MBR.C1, Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 03-11-2022, Proc. n.º 2637/19.5T8LRS-A.L1-8, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 24-09-2024, Proc. n.º 7810/22.6T8PRT.P1.

Por sua vez, o n.º 2 do artigo 240.º do Código Civil determina que “o negócio simulado é nulo” sendo aplicável a regra geral plasmada no artigo 286.º segundo a qual a nulidade é invocável a todo o tempo, por qualquer interessado e é do conhecimento oficioso do tribunal.

            In casu, os autores pretendiam a declaração de nulidade do negócio jurídico praticado pelos réus mas claudicaram na demonstração dos pressupostos da simulação, conforme emerge, designadamente, da seguinte factualidade toda não provada:

            –  Os autores passavam por a algumas dificuldades financeiras, tendo optado por proceder à venda dos prédios, a fim de obter alguma liquidez, e dado que o autor tinha plena confiança no 1.º réu passou-lhe procuração para os vender, evitando deslocações a ... e mais dispêndio financeiro.

– Os autores foram questionando o 1.º réu acerca da venda dos prédios, referindo este que ainda não havia interessados para a compra dos mesmos, confiando os autores no que lhes era transmitido pelo 1.º réu.

– No ano de 2008 receberam os autores uma notificação do Serviço de Finanças ... a informar que o IRS entregue pelos autores não estava correto, uma vez que procederam à venda de imóveis e não declararam essas vendas

–Estupefactos com tal situação os autores dirigiram-se ao serviço de finanças tendo lá sido informados que teriam vendido dois prédios de que eram proprietários em ..., um pelo valor de € 115 000,00 um e outro pelo valor de € 65 500,00, e que deveriam ter declarado esse valor, e pago mais valias, o que não fizeram, pelo que o IRS seria automaticamente corrigido.

– Assim que os autores receberam a carta das finanças e foram ao serviço de finanças e lá lhes foi dito que os prédios de ... foram vendidos, de imediato o autor marido contatou o 1.º réu, seu irmão, a fim de saber o que se passava.

– Foi informado pelo 1.º réu que tinha procedido à venda dos prédios mas que ainda não tinha recebido o dinheiro mas que os compradores eram pessoas de confiança e que assim que o recebesse lho entregaria

– Apesar de preocupado com a situação, continuaram os autores a acreditar naquilo que lhe era transmitido pelo 1.º réu, ou seja, que seria uma questão de dias ate ter o dinheiro proveniente da venda nas suas contas.

– Os dias foram passando e a seguir a dias, semanas e meses e o dinheiro nunca chegou.

– Os autores foram a ... por diversas vezes a fim de falar com o 1.º réu e saber o que se estava a passar sendo que este evitava sempre o contato com os Autores, atender o telefone ou encontrar-se com eles.

– Os autores cansados de esperar pelo pagamento que o 1.º réu dizia que iria chegar foram pedir uma cópia da escritura a fim de saber quem tinha adquirido os prédios e desta forma contatar os compradores para saber o que se passava de verdade.

– O 1.º réu nunca recebeu o dinheiro da venda dos prédios porque nunca houve pagamento.

– O 2.º e a 3.ª ré, na qualidade de gerentes da 4.ª ré, agiram e em conluio e união de esforços com o 1.º réu.

– Houve uma união de esforços de todos os Réus de passarem o património da esfera jurídica dos Autores para a esfera jurídica da 4ª Ré, sem pagarem por este qualquer preço, ludibriando e prejudicando os Autores.

– Não houve pagamento de qualquer preço.

– Os 2.º e a 3.ª ré, na qualidade de gerentes da firma e 4.ª ré, agiram sempre num conjunto de esforços com o 1.º réu a fim de subtrair o património aos autores, os prédios identificados nos artigos 1.º e 2.º da petição inicial, e colocá-los na esfera jurídica da 4.ª ré, bem sabendo que não o podiam fazer.

– Os réus enganaram os autores, dias, semanas, meses e anos, sempre com promessas de pagamento que nunca chegaram a fazer, ficando os autores sem dinheiro e sem bens e sentindo-se enganados, ludibriados, desiludidos com os réus que enganaram propositadamente os autores para ficar com património às suas custas e as custas do empobrecimento dos autores.

Reitera-se os três requisitos supra enumerados – (i) divergência entre a vontade real e declarada, (ii) maquinação das partes e (iii) intuito de enganar terceiro – tinham de ser alegados e provados pelos autores, pois constituíam requisitos constitutivos do direito invocado neste processo.

Assim, para que o recurso procedesse era necessária a demonstração do pacto simulatório dos réus/recorridos, através da prova da verificação simultânea dos requisitos da intencionalidade da divergência entre a vontade e a declaração, do complô entre os réus e do seu intuito de enganar os autores.

Acontece, todavia, que os factos provados ficaram muito aquém dessa prova, razão pela qual, como é manifesto, o recurso improcede, sendo de manter a decisão recorrida nos seus precisos termos.

As custas processuais recaem sobre os autores/recorrentes ex vi arts. 527.º, 607.º, n.º 6, e 663.º, n.º 2, todos do CPC.


*

Sumário (artigo 663.º, n.º 7, do CPC): (…).

Decisão:

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação dos autores, e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.

Custas pelos autores apelantes.


Coimbra, 8 de Abril de 2025

Luís Miguel Caldas

Hugo Meireles

Anabela Marques Ferreira



[1] Juiz Desembargador relator: Luís Miguel Caldas /Juízes Desembargadores adjuntos: Dr. Hugo Meireles e Dra. Anabela Marques Ferreira.
[2] Acórdão publicado em https://www.dgsi.pt, tal como os restantes que se citarem ao longo deste aresto.

[3] No que tange aos meios probatórios, o art. 607.º, n.º 5, do CPC, distingue claramente a prova de livre apreciação e a prova legal.

(i) Estão sujeitos ao princípio da livre apreciação da prova: a prova testemunhal, a prova por inspecção e a prova pericial – cf. arts. 396.º, 391.º e 389.º do Código Civil –, bem como as declarações de parte não confessórias e as verificações não judiciais qualificadas feitas por entidades privadas – cf. arts. 466.º, n.º 3, e 494.º, n.º 2, do CPC.
(ii) Têm o valor probatório fixado na lei (prova legal): os documentos escritos, autênticos, autenticados e particulares – cf. arts. 371.º, n.º 1, e 376.º, n.º 1, do CC –, a confissão escrita ou reduzida a escrito, seja feita em juízo, seja em documento autêntico ou particular, mas neste caso só quando dirigida à parte contrária ou a quem a represente – cf. arts. 358.º, n.ºs 1 e 2, do CC, e 463.º do CPC [nos restantes casos, a confissão fica sujeita à regra da livre apreciação – art. 361.º do CC], as presunções legais stricto sensu – cf. art. 350.º do CC – e a admissão por acordo – cf., v.g., arts. 567.º, n.º 1, 574.º, n.º 2, e 587.º, n.º 1, do CPC.