RECONVENÇÃO
INTERVENÇÃO PRINCIPAL PROVOCADA
CHAMADO
CÔNJUGE
BENS E DIREITOS
Sumário

1. O chamado, na sequência de incidente de intervenção principal provocada, assume uma posição processual que lhe atribui direitos idênticos aos da parte principal e, como associado à ré, pode oferecer articulado próprio e nele deduzir reconvenção, desde que verificada alguma das situações previstas no art. 266.º do CPC.
2. Não tendo a ré, ao contestar a acção, deduzido pedido reconvencional, não pode o chamado substituir-se a ela apresentando reconvenção relativa a bens e direitos próprios que radicam única e exclusivamente na esfera jurídica daquela ré.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

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Acordam na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra,[1]

Nos autos de acção declarativa de condenação, sob a forma do processo comum, que correm termos Juízo Central Cível de Leiria – Juiz ..., em que é autora AA e ré BB, foram deduzidos os seguintes pedidos:

a) Ser a R. condenada a reconhecer que a A. é dona e legítima possuidora dos prédios identificados no art. 1º da Petição Inicial;

b) Ser a R. condenada a reconhecer que o prédio rústico identificado na alínea b) do art. 1º da PI tem a configuração e área constantes do levantamento topográfico que constitui Doc. nº 7;

c) Ser a R. condenada a, no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da Sentença, remover a rede, estacas, sementeiras e todos os demais objetos que tenha colocado no prédio rústico da A. identificado na alínea b) do art. 1º da PI;

d) Ser a R. condenada a pagar à A. a importância de 25,00 € por cada dia de atraso na remoção dos objetos e sementeiras identificados na alínea anterior;

e) Ser a R. condenada a abster-se de entrar no prédio rústico identificado na alínea b) do art. 1º da PI ou de, por qualquer forma, ofender, afetar ou coartar o direito de propriedade da A. sobre o imóvel;

f) Ser a R. condenada a pagar à A. indemnização no valor de 40.000,00 €, acrescida dos juros de mora contabilizados à taxa legal desde a citação até efetivo e integral pagamento;

g) Ser a R. Condenada a pagar à A. indemnização a liquidar em sede de execução de sentença;

h) Ser a R. condenada a reconhecer que a servidão de passagem que confina de nascente com o prédio rústico identificado na alínea b) do art. 1º da PI, com o comprimento de 40 metros e a largura de 3 metros, partindo da Rua ... a norte até ao prédio urbano da A. identificado na alínea a) do art. 1º a sul, serve unicamente este prédio urbano;

i) Ser a R. condenada a abster-se de aceder, passar ou por qualquer forma utilizar a servidão de passagem identificada na alínea anterior, designadamente para acesso ao prédio rústico da A. e de impedir ou dificultar o acesso e passagem da A. pela mesma;

j) Ser a R. condenada em custas e procuradoria condigna.


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            Em contestação a ré veio suscitar a verificação da excepção dilatória de litispendência, com a acção n.º 403/22...., pendente no Juízo Local Cível de Pombal – Juiz ..., e a preterição do litisconsórcio necessário, previsto nos arts. 33.º e 34.º do CPC, rematando a sua defesa nos seguintes termos: “Deve a presente ação ser julgada improcedente, por não provada, devendo ser julgadas procedentes as exceções deduzidas e, assim, absolver-se a R. da instância. / Se assim se não entender, deve a presente ação ser julgada improcedente, por não provada, e a R. absolvida dos pedidos contra ela formulados.”.

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            Na sequência de convite do tribunal, a autora respondeu às excepções aduzidas pela ré, através de articulado autónomo, apresentado em 24-11-2022, e, após o despacho exarado em 20-06-2023, em que o tribunal considerou que a acção implicava uma situação de litisconsórcio necessário passivo, a autora reiterou, em 30-06-2033, o requerimento para a intervenção principal provocada do marido da ré.

            Por despacho de 16-09-2023 decidiu-se: “Admitir a requerida intervenção principal provocada de CC, (…) para intervir na causa como associado da ré – cf. CPC: art.s 316.º-1 e 318.º”, tendo-se procedido à sua citação.


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            Em 11-12-2023, o interveniente principal CC deduziu contestação, por impugnação e por excepção – litispendência com o Proc. n.º403/22.... – e apresentou reconvenção, que rematou nos seguintes termos:

            “Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, deve a presente acção ser julgada improcedente por não provada e, em consequência, ser julgada procedente a contestação/reconvenção, e a A condenada:

a) – Reconhecer que a R esposa é dona e legítima possuidora dos prédios identificados no artigo 32 desta contestação/Reconvenção, pelos modos de aquisição alegados;

b) – Reconhecer que em benefício destes seus prédios, os identificados nas al.s a), b), c) e d) do artigo 32º desta Contestação/Reconvenção, se encontra constituída uma servidão de passagem, de pé, carros, animais tractores e outros veículos motorizados, a qual se encontra constituídapor destinação do anterior proprietário e também por usucapião, com a exacta implantação, percurso, localização, configuração e extensão, conforme ilustrado no Levantamento Topográfico, croquis e foto Google Maps juntos, a qual permite a entrada e a saída para e da via pública – Rua ... – que ladeia pelo nascente o prédio identificado na al. a) do artigo 32 desta contestação/Reconvenção, com largura de três metros, prolongando-se por um comprimento superior a 40 metros até atingir os prédios da Autora, os identificados nas alíneas b) e c) do artigo 32 desta Contestação/Reconvenção, e, em benefício destes, que onera os identificados prédios da A;

c) – a retirar o “acimentamento” que fez no seu troço, em toda a sua largura e comprimento, este de cerca de 20 metros, refazendo a continuidade do piso para norte e para sul deste “pavimento cimentado”;

d) – reconstruir o muro que derrubado em toda a sua extensão, com a consistência de um muro de suporte de terras, obra de reconstrução que tem de incluir a parte restante do muro que o Embargo impediu de prosseguir, já que a sua estrutura resultou gravemente afectada na sua função de suportar todo o leito, neste troço, da serventia em causa; ou, em alternativa:

e) – a pagar à R esposa o custo da reposição e reconstrução do mesmo, em toda a sua extensão, custo que se fixa em €5.000,00; e ainda,

f) – a pagar-lhe € 180,00 (cento e oitenta euros), a título de reembolso do Levantamento Topográfico que a R esposa pagou, como reparação deste prejuízo já causado, devendo relegar-se para ulterior liquidação e execução de sentença o montante dos danos presentes e futuros, em verificação, indemnizações estas a que deve acrescer o pagamento de juros, à taxa legal anual - actual de 4% - desde a sua citação e até efectivo embolso;

g) – a pagar à R esposa a quantia de €7.500,00 (sete mil e quinhentos euros) a título de ressarcimento de danos não patrimoniais;

h) – de modo equitativo na sanção pecuniária compulsória, que se reclama de €25,00/dia, caso haja perturbação do exercício de passagem pela Autora para acesso aos seus identificados prédios, designadamente atraso na remoção do “acimentamento” que se encontra no leito da serventia, e reconstrução do muro, repondo o seu leito todo ele no status quo ante;

i) – a abster-se, de futuro, da tomada de atitudes ou prática de quaisquer actos ou factos, ou tomada de quaisquer atitudes, que violem ou perturbem o exercício dos invocados direitos de propriedade e de passagem da R esposa;

j) – ser condenada em custas e procuradoria condigna.

l) Para tanto, requer-se seja a A citada para contestar, querendo, em prazo e sob cominação legal.”.


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            A autora apresentou réplica, em 19-01-2024, que concluiu nos seguintes termos:

            “Termos em que, nos melhores de Direito que V. Ex.a doutamente suprirá, deve:

a) Ser a exceção de litispendência julgada improcedente por provada;

b) Ser o chamado, em face do teor da Contestação/Reconvenção apresentada, considerado parte ilegítima na presente ação;

c) Ser a Reconvenção julgada inadmissível, ordenando-se o seu desentranhamento dos autos;

Ou, caso assim se não entenda,

d) Ser, em todo o caso, a Reconvenção julgada totalmente improcedente por não provada; Ainda,

e) Ser o chamado condenado como litigante de má-fé, em multa e indemnização adequadas;

Tudo com as legais consequências.”


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            Realizada audiência prévia, em 22-10-2024, o tribunal a quo proferiu a seguinte decisão no que se refere ao pedido reconvencional:

            “Da admissibilidade da reconvenção:

Verifica-se que o chamado, por via do incidente de intervenção principal provocada de terceiros na lide, veio apresentar articulado próprio e deduzir reconvenção.

Concluiu pedindo a condenação da autora-reconvinda a:

“a) – Reconhecer que a R esposa é dona e legítima possuidora dos prédios identificados no artigo 32 desta contestação/Reconvenção, pelos modos de aquisição alegados;

b) – Reconhecer que em benefício destes seus prédios, os identificados nas al.s a), b), c) e d) do artigo 32º desta Contestação/Reconvenção, se encontra constituída uma servidão de passagem, de pé, carros, animais tractores e outros veículos motorizados, a qual se encontra constituída por destinação do anterior proprietário e também por usucapião, com a exacta implantação, percurso, localização, configuração e extensão, conforme ilustrado no Levantamento Topográfico, croquis e foto Google Maps juntos, a qual permite a entrada e a saída para e da via pública – Rua ... – que ladeia pelo nascente o prédio identificado na al. a) do artigo 32 desta contestação/Reconvenção, com largura de três metros, prolongando-se por um comprimento superior a 40 metros até atingir os prédios da Autora, os identificados nas alíneas b) e c) do artigo 32 desta Contestação/Reconvenção, e, em benefício destes, que onera os identificados prédios da A;

c) – a retirar o “acimentamento” que fez no seu troço, em toda a sua largura e comprimento, este de cerca de 20 metros, refazendo a continuidade do piso para norte e para sul deste “pavimento cimentado”;

d) – reconstruir o muro que derrubado em toda a sua extensão, com a consistência de um muro de suporte de terras, obra de reconstrução que tem de incluir a parte restante do muro que o Embargo impediu de prosseguir, já que a sua estrutura resultou gravemente afectada na sua função de suportar todo o leito, neste troço, da serventia em causa; ou, em alternativa:

e) – a pagar à R esposa o custo da reposição e reconstrução do mesmo, em toda a sua extensão, custo que se fixa em €5.000,00; e ainda,

f) – a pagar-lhe € 180,00 (cento e oitenta euros), a título de reembolso do Levantamento Topográfico que a R esposa pagou, como reparação deste prejuízo já causado, devendo relegar-se para ulterior liquidação e execução de sentença o montante dos danos presentes e futuros, em verificação, indemnizações estas a que deve acrescer o pagamento de juros, à taxa legal anual - actual de 4% - desde a sua citação e até efectivo embolso;

g) – a pagar à R esposa a quantia de €7.500,00 (sete mil e quinhentos euros) a título de ressarcimento de danos não patrimoniais;

h) – de modo equitativo na sanção pecuniária compulsória, que se reclama de €25,00/dia, caso haja perturbação do exercício de passagem pela Autora para acesso aos seus identificados prédios, designadamente atraso na remoção do “acimentamento” que se encontra no leito da serventia, e reconstrução do muro, repondo o seu leito todo ele no status quo ante;

i) – a abster-se, de futuro, da tomada de atitudes ou prática de quaisquer actos ou factos, ou tomada de quaisquer atitudes, que violem ou perturbem o exercício dos invocados direitos de propriedade e de passagem da R esposa; (…)”.

Cumpre apreciar.

O chamado CC foi citado para efeitos de ser assegurada a regularidade processual da instância subjectiva, do lado passivo, é dizer, em razão da ocorrência de uma situação de litisconsórcio necessário passivo legal que impõe, sob pena de ilegitimidade da ré, a presença do cônjuge nos casos em que das acções possa resultar, inter alia, a perda ou oneração de bens que só por ambos possa ser alienados (cf. CPC: art.s 34º-1 e 316º-1).

Nessa medida, ao cônjuge chamado assiste a possibilidade de apresentar articulado próprio ou de aderir ao articulado da parte primitiva, neste caso ao articulado de contestação da ré (cf. CPC: art. 319º-3). Não lhe assiste é a faculdade de apresentar uma contestação e, menos ainda, a possibilidade de nele deduzir pedido reconvencional, uma vez que a legitimidade para deduzir reconvenção é apenas reconhecida ao réu demandado na acção, que é quem tem interesse em contradizer (cf. CPC: art.s 266º-1 e 583º-1).

Por outro lado, tem de interceder entre o pedido da acção e o pedido reconvencional uma conexão material forte, um nexo, sendo que tal só poderá suceder entre as partes principais, primitivamente demandadas nos autos, e não aos chamados à lide meramente para a assegurar a legitimidade activa ou passiva.

Por outro lado, no caso dos autos, a admitir-se o pedido reconvencional deduzido pelo interveniente chamado à lide, estar-se-ia a permitir que o chamado, não titular do direito real sobre o bem afectado pela pretensão da contraparte, pudesse vir ao processo deduzir um pedido em nome alheio, isto é, em nome ou em representação da parte primitiva – no caso a ré, seu cônjuge – titular exclusivo da propriedade sobre o bem que possa vir a ser atingido pela procedência da pretensão da contraparte (como, de resto, o chamado reconhece, além do mais, no art. 32º e ss. do seu articulado e, a final, nos pedidos que deduz), o que a lei não consente. Para além de esse direito de reconvir já se mostrar precludido em virtude de a ré não o ter exercido atempadamente no tempo e lugar próprios: no articulado de contestação.

Por outro lado, deduz um pedido indemnizatório reportado a propriedade de que não é titular – não lhe pertence – pretensão indemnizatória essa para a qual não tem legitimidade processual para deduzir, nem legitimidade substantiva para a encabeçar como credor indemnizatório.

Por último, cabe salientar que a situação dos autos não se confunde com a prevista no art. 266º-4 do CPC: aqui, prevê-se a situação de o pedido reconvencional deduzido pelo réu poder envolver outros sujeitos que haja necessidade de fazer intervir, apenas para assegurar a legitimidade processual, activa ou passiva, na lide reconvencional. Não é este o caso dos autos.

Atento o exposto, por não se verificarem preenchidos os pressupostos de ordem substantiva e processual, decide-se não admitir a reconvenção e os respectivos pedidos nela deduzidos pelo chamado, por falta de fundamento legal – cf. CPC: art.s 266º-1-2-a).

Notifique.”.


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Inconformado com esta decisão veio recorrer o chamado, e nas suas alegações de recurso formula as seguintes conclusões:

“VIII.1- Da motivação do recurso, por estar em causa questão relevante de direito, nos termos do art. 672º, do CPC:

1- In casu, não se conformando com a douta sentença vem dela interpor recurso, nos termos do art. 672º, do CPC, por estar em causa questão cuja apreciação, pela sua relevância jurídica, seja claramente necessária para uma melhor aplicação do direito.

2- Nomeadamente, a questão do nº 3 do art. 30º do CPC: … “são considerados titulares do interesse relevante para o efeito da legitimidade os sujeitos da relação controvertida tal como é configurada pelo autor.”

3- Ora nesta senda, entende-se que o sujeito processual absolvido deveria ser submetida a julgamento.

4- Foi no segmento médio da norma que surgiu uma querela na doutrina entre Alberto dos Reis e Barbosa de Magalhães.

Na revisão operada pela penúltima alteração do Código de Processo Civil, resolveu-se definitivamente essa controvérsia, optando-se claramente pela doutrina de Barbosa de Magalhães. Ou seja, tem legitimidade para a ação os sujeitos da pretensa relação jurídica controvertida. Ou seja; supõe-se a existência da relação jurídica o que foi reafirmado pelo nº 3 do art. 30º atual CPC.

VIII.II- Da violação do art. 609º do CPC, dos limites da sentença e da actividade do Juiz:

5- Aos meritissímos Juizes ao não seguirem o procedimento processual, como pedido na p.i., violarm o art. 609º do CPC, não podendo condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir

VIII.III – Das nulidades da sentença, art. 615, d) e e) do CPC:

6- Na decisão verificam-se nulidades da sentença.

7- Foi violado a al. d) do nº 1 do art. 615º do CPC, nomeadamente por o Meritíssimo Juiz não se ter pronunciado sobre questões que devesse apreciar e conheceu de questões que não deveria apreciar 8- Foi violado o previsto e estatuído na al. e) nº 1 do art. 668 do CPC, no sentido de que o Meritíssimo Juiz condenou em objecto diferente do pedido.

VIII.IV- Da violação do princípio do dispositivo, art. art.5º do CPC:

9- Na elaboração do acordão os juizes só pode servir-se dos factos articulados pelas partes. - Vide in Antunes de Varela, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, pág. 413.In concreto o Juiz valorou provas e factos que não foram alegados pelas partes.

10- Pelo que foi violado o previsto e estatuído no art. 5º do CPC

VIII.V-Da questão da admissibilidade da reconvenção:

2- O recorrente alegou fatos inerentes ao pedido do recorrido, pelo que reconvenção, tem legalidade com base do previsto na al. q) e d) do art. 266º do CPC e art. 1795 do CC, tendo a mesma os requisitos processuais e substantivos.

X.5 - Das disposições legais violadas:

11- Foram violados os artigos 30, nº 3, 266º, 609, 615 do CPC; artigos 116º, nº 1 e 117-B, nº 1 e 2 do CRP, artigos 2078º e 1795 do C. C.

Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente nos termos legais.

Assim se fará a devida justiça!


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Não foram apresentadas contra-alegações.

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Colhidos os vistos legais, cumpre decidir, sendo a questão a apreciar saber se o pedido reconvencional deduzido pelo chamado/interveniente principal é ou não processualmente admissível.

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A. Fundamentação de facto.

A factualidade que resulta do antecedente relatório mostra-se bastante à apreciação do recurso.


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B. Fundamentação de Direito.

Neste recurso debate-se, fundamentalmente, a problemática relacionada com admissível da dedução de reconvenção pelo chamado no âmbito de incidente de intervenção principal provocada.

Isto dito, detenhamo-nos nas conclusões recursivas – cf. artigos 639.º, 663.º, n.º 2 e 607.º, n.º 2, do CPC.

Em primeiro lugar, há várias questões suscitadas pelo recorrente nas suas alegações/conclusões que não fazem qualquer sentido no âmbito deste recurso; a saber:

(i) não se compreende a alusão ao art. 672.º do CPC (revista excepcional), que apenas pode decorrer de lapso manifesto;

(ii) não se alcança a alusão ao art. 30.º, n.º 3, do CPC (legitimidade processual), porquanto não houve qualquer pronúncia do tribunal a quo sobre essa matéria;

(iii) não se entende a referência ao art. 609.º do CPC (limites da condenação), uma vez que o tribunal se cingiu a pronunciar sobre a questão da (in)admissibilidade do pedido reconvencional, sem exorbitar do seu conhecimento.

Em segundo lugar, contrariamente ao sustentado pelo recorrente, a decisão recorrida não padece de qualquer nulidade prevista no art. 615.º, n.º 1, alíneas d) e e) do CPC:

d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;

e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”.

Com efeito, a nulidade a que alude a alínea d) está directamente relacionada com o dever que é imposto ao juiz – cf. art. 608.º, n.º 2, do CPC – de resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação e de não poder ocupar-se se não das questões suscitadas pelas partes, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o conhecimento oficioso de outras, sendo certo que é a violação deste dever que acarreta a sobredita nulidade da sentença.

Como se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 04-04-2024, Proc. n.º 906/20.0T8EVR.L1.S1, a nulidade nos termos do disposto no art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, depende do tribunal ter deixado de apreciar uma questão que devesse conhecer ou de ter conhecido de uma questão sobre a qual não pudesse pronunciar-se.

Por sua vez, a nulidade a que alude a alínea e) relaciona-se com o estatuído no n.º 1 do art. 609.º do CPC, segundo o qual o tribunal “não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir”.

Destarte, lida a decisão sob recurso, reitera-se, não se verifica que a mesma esteja inquinada de qualquer nulidade.

Em terceiro lugar, também não se percebe em que medida o recorrente considera que a decisão sob recurso violou o estatuído no art. 5.º do CPC, expondo que o “Juiz valorou provas e factos que não foram alegados pelas partes” (sic).

Na verdade, previamente a apreciar a questão do pedido reconvencional – que foi suscitada pela autora na réplica à contestação/reconvenção apresentada pelo interveniente principal –, o tribunal a quo deu ao chamado a possibilidade de exercer o seu contraditório sobre essa questão jurídica, tal qual se extrai do despacho exarado em 02-05-2024: “Para efeitos de adequada gestão processual, poderá o interveniente réu-reconvinte pronunciar-se, querendo, sobre a alegada matéria de excepção inominada da inadmissibilidade da reconvenção (…) deduzida pela autora-reconvinda na réplica que apresentou nos autos - cf. CPC: art.s 3º-3, 6º-1, 149º-1, 547º e 590º-1-2.”.

Nessa senda, o interveniente principal exerceu o contraditório através do requerimento apresentado em 20-05-2024, concluindo: “Nestes termos e nos mais de Direito aplicáveis, reafirma, deve a presente acção ser julgada improcedente por não provada e, em consequência, ser julgada procedente a contestação/reconvenção.”.

Por conseguinte, não ocorreu qualquer violação do princípio do dispositivo.

Resta, então, dirimir a questão da admissibilidade ou não admissibilidade do pedido reconvencional, para o que importa atender, antes de mais, ao estatuído no art. 266.º do Código de Processo Civil (CPC).

Prescreve esse preceito legal, sob a epígrafe “Admissibilidade da reconvenção”:

“1. O réu pode, em reconvenção, deduzir pedidos contra o autor.

2. A reconvenção é admissível nos seguintes casos:

a) Quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à ação ou à defesa;

b) Quando o réu se propõe tornar efetivo o direito a benfeitorias ou despesas relativas à coisa cuja entrega lhe é pedida;

c) Quando o réu pretende o reconhecimento de um crédito, seja para obter a compensação seja para obter o pagamento do valor em que o crédito invocado excede o do autor;

d) Quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter.

3. Não é admissível a reconvenção, quando ao pedido do réu corresponda uma forma de processo diferente da que corresponde ao pedido do autor, salvo se o juiz a autorizar, nos termos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 37.º, com as necessárias adaptações.

4. Se o pedido reconvencional envolver outros sujeitos que, de acordo com os critérios gerais aplicáveis à pluralidade de partes, possam associar-se ao reconvinte ou ao reconvindo, pode o réu suscitar a respetiva intervenção.

5. No caso previsto no número anterior e não se tratando de litisconsórcio necessário, se o tribunal entender que, não obstante a verificação dos requisitos da reconvenção, há inconveniente grave na instrução, discussão e julgamento conjuntos, determina em despacho fundamentado a absolvição da instância quanto ao pedido reconvencional de quem não seja parte primitiva na causa, aplicando-se o disposto no n.º 5 do artigo 37.º.

6. A improcedência da ação e a absolvição do réu da instância não obstam à apreciação do pedido reconvencional regularmente deduzido, salvo quando este seja dependente do formulado pelo autor.”.

A reconvenção traduz-se numa modificação do objecto da acção e configura a formulação de um pedido substancial ou pretensão autónoma por parte do réu contra o autor, constituindo uma das excepções ao princípio da estabilidade da instância, consagrado no art. 260.º do CPC.

Consiste numa contra-acção ou numa acção cruzada, enxertada numa outra acção, em que há um pedido autónomo apresentado pelo reconvinte contra o reconvindo, corporizando uma pretensão distinta que poderia ter alicerçado uma acção autónoma contra o autor e cuja admissibilidade depende, desde logo, da comprovação de uma conexão material com a acção primitiva – cf. Teixeira de Sousa, Código de Processo Civil Online, 2024, p. 145, nota 2; Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2018, pp. 397 a 416; Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 4.ª Edição, pp. 530 a 540; e Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 3.ª Edição, 2022, pp. 334 a 342.

A imposição de factores de conexão tem por fundamento, nas palavras de Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, 1981,Volume I, p. 172, o facto de que “[a] reconvenção incondicionada abriria portas a quaisquer pedidos formulados pelo réu contra o autor, pedidos que o tribunal teria que conhecer concomitantemente com o pedido formulado por este, que veria assim o processo marchar morosamente, talvez com inevitáveis e irreparáveis repercussões sobre a sua esfera jurídica.”.

O n.º 2 do art. 266.º do CPC enumera, taxativamente, os factores de conexão entre o objecto da acção e o da reconvenção, concretamente: (i) compartilhar a mesma causa de pedir, de modo parcial ou total; (ii) pretender efectivar o direito a benfeitorias; (iii) exercer o direito à compensação de créditos, ou (iv) visar obter, ainda que parcialmente, idêntico efeito jurídico. 

Por outro lado, o art. 266.º do CPC é expresso ao referir-se à possibilidade de dedução de pedido reconvencional “pelo réu.”.

Mas será que o interveniente principal está, também, abrangido pela norma?

Conforme ensina Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume I, 2.ª edição, 2004, p. 301, a intervenção principal corresponde à situação em que o terceiro se associa, ou é chamado a associar-se, a uma das partes primitivas, com o estatuto de parte principal, cumulando-se no processo a apreciação de uma relação jurídica própria do interveniente, substancialmente conexa com a relação material controvertida entre as partes primitivas, em termos de tornar possível um hipotético litisconsórcio (ou coligação)[2] iniciais – existe, pois, igualdade ou paralelismo do interesse do interveniente com o da parte a que se associa.

De acordo com o art. 312.º do CPC o interveniente principal faz valer um direito próprio, paralelo ao do autor ou do réu.

A partir do momento da intervenção, esta produz o seguinte efeito: coloca ao lado do autor outro autor, ao lado do réu outro réu, como se a acção houvesse sido proposta por dois autores ou contra dois réus – cf. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, 3.ª edição-Reimpressão, 1982, pp. 520 e segs..

Admitida a intervenção e efectuada a citação do chamado, este poderá ou não intervir no processo.

Se intervier, poderá declarar que faz seus os articulados do autor ou do réu, sendo que, dentro de prazo igual ao fixado para a contestação, é-lhe facultado o oferecimento de articulado próprio, seguindo-se a notificação da parte contrária para responder e os mais articulados que a forma de processo ainda consinta, gozando de todos os direitos de parte principal a partir do momento da sua intervenção – cf. art. 319.º do CPC.

Nesses direitos inclui-se, evidentemente, o direito de apresentar reconvenção – cf. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Volume I, 2020, 2.ª edição, p. 386.

Deste modo, diversamente do decidido pelo tribunal a quo, o interveniente principal, uma vez chamado à lide, assume uma posição processual que lhe atribui direitos idênticos aos da parte principal e, como associado ao réu, pode oferecer articulado próprio e pode deduzir reconvenção.

Ou seja, o chamado à lide, a partir do momento em que intervém no processo, tem uma posição processualmente idêntica à do primitivo réu e pode oferecer articulado próprio e, nele, deduzir reconvenção contra o autor – arts. 312.º e 319.º, n.º 3, do CPC –, desde que verificada alguma das situações previstas no art. 266.º do CPC – cf. no mesmo sentido, entre outros, Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 27-09-2011, Proc. n.º 1687/09.4TBTNV-A.C1, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26-06-2017, Proc. n.º 1701/15.4T8PVZ-A.P1, e Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19-12-2024, Proc. n.º 2197/23.2T8FNC-A.L1-8.

No Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 26-06-2017, Proc. n.º 1701/15.4T8PVZ-A.P1, desenvolve-se: “O interveniente é admitido na acção como parte principal e, nesse sentido, não há outra forma de poder salvaguardar os seus direitos, senão a de lhe reconhecer a possibilidade de exercer todas as faculdades processuais que, por lei, lhe são conferidas, incluindo o motivo do não pagamento do crédito invocado pela autora, por via de um contracrédito que reclama sobre esta.

O interveniente principal assume uma posição processual que lhe atribui direitos idênticos aos da parte principal e, como associado ao réu, oferecendo articulado próprio, pode deduzir reconvenção.

A partir do momento em que vai a juízo fazer valer um direito seu, próprio, embora paralelo e coexistente com o de uma ou outra das partes primitivas, o interveniente, colocado do lado passivo, associado ao réu, pode deduzir pedido reconvencional contra o autor. cfr. artigos 312º e 319º, nº 3, do C.P.C.

A intervenção provocada tem como objetivo viabilizar que cada litígio deva ser solucionado num só processo por todos os intervenientes que nele tenham interesse direto e, nesse contexto, tendo presente o princípio da economia processual, deve ser admissível a formulação de pedido reconvencional pelo interveniente principal.”.

De igual modo, no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19-12-2024, Proc. n.º 2197/23.2T8FNC-A.L1-8, sustentou-se: “1. O chamado admitido a ocupar na lide posição idêntica à do réu pode oferecer articulado próprio e, nele, deduzir reconvenção contra o autor (arts. 312º e 319º, nº 3, do CPC), desde que verificadas quaisquer das situações previstas no art.º 266º, do CPC, assim como pode suscitar a intervenção de terceiros, se o pedido reconvencional envolver outros sujeitos que, de acordo com os critérios gerais aplicáveis à pluralidade de partes, possam associar-se ao reconvinte ou reconvindo (art.º 266º, nº 4, CPC). 2. A intervenção principal tem por objeto permitir, em demanda pendente, o litisconsórcio com alguma das partes, fazendo o chamado valer um direito próprio na ação onde passa a assumir a posição de parte principal.”.

Nestes termos, contrariamente ao vertido na decisão recorrida, o interveniente principal, por via do seu chamamento, dispõe de legitimidade para apresentar reconvenção.

Questão diversa consiste averiguar se, no caso concreto, estão reunidos os pressupostos para admitir o pedido reconvencional.

Recapitulando, nos termos do art. 266.º, n.º 2, alíneas a) e d), do CPC, a reconvenção é admissível “quando o pedido do réu emerge do facto jurídico que serve de fundamento à acção ou à defesa” e/ou “quando o pedido do réu tende a conseguir, em seu benefício, o mesmo efeito jurídico que o autor se propõe obter”.

A primeira parte desta alínea só pode ter o sentido de a reconvenção ser admissível quando o pedido reconvencional tenha a mesma causa de pedir da acção, isto é, o mesmo facto jurídico (real, concreto) em que o autor fundamenta o direito que invoca; enquanto que a segunda parte tem o sentido de ela ser admissível quando o réu invoque, como meio de defesa, qualquer acto ou facto jurídico que, a verificar-se, tenha a virtualidade de reduzir, modificar ou extinguir o pedido do autor.

Como se escreveu no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 27-04-2006, Proc. n.º 06A945: “Tratando-se de uma contra-pretensão, uma nova acção dentro do mesmo processo, a reconvenção, embora com um pedido autónomo, deve ter certa compatibilidade com a causa de pedir do autor”. E mais adiante: “O pedido reconvencional tem de ter a sua génese … na causa de pedir do autor ou no qual se estriba a defesa. Emergindo da causa de pedir da acção, pode figurar-se a mesma causa de pedir (cfr. Prof. Anselmo de Castro in "Direito Processual Civil Declaratório" I, 173) nos pedidos principal e cruzado. Se, porém, emerge do facto jurídico em que se estriba a defesa, a situação é buscar uma redução, modificação ou extinção do pedido principal (cf. Cons. Rodrigues Bastos, "Notas ao Código de Processo Civil", II, 28).

Isto é, o requisito substantivo da admissibilidade da reconvenção, da alínea a) do nº 2 do artigo 274º do CPC [actual, art. 266.º do CPC] implica que o pedido formulado em reconvenção resulte naturalmente da causa de pedir do autor (ou, até, se contenha nela) ou seja normal consequência do facto jurídico que suporta a defesa, que tem o propósito - regra de obter uma modificação benigna ou uma extinção do pedido do autor.”.

Clarificado este ponto, resta apurar, em consonância com o exposto, se é de admitir o pedido reconvencional apresentado pelo interveniente principal.

In casu, a autora instaurou a presente acção declarativa sob a forma de processo comum contra a ré BB, pedindo, no essencial, o reconhecimento do seu direito de propriedade sobre um prédio urbano e sobre um prédio rústico, a restituição deste último bem, o reconhecimento de que existe uma servidão predial que beneficia unicamente aquele primeiro prédio e a condenação da ré no pagamento de quantia indemnizatória.

A primitiva ré cingiu-se a contestar a acção, não tendo deduzido pedido reconvencional. No mais, invocou a ré que é parte ilegítima na lide, por estar desacompanhada do seu cônjuge, pois “facilmente se conclui que se fosse procedente a ação proposta pela A (…) a mesma afetaria o prédio da ora R. inscrito sobre o artigo ...31(…) Pois, ao “alargamento” ou ao “aumento” do prédio da A. (artigo ...32) corresponde necessariamente uma diminuição, uma perda de área do prédio da R. (artigo ...31)” e ainda que, “(…) o que a A. também alega na sua PI é que a “servidão de passagem”, cujo leito é bem visível, não serve qualquer prédio da R., onde se inclui, obviamente, os prédios rústicos inscritos na matriz sob os artigos nºs ...31, ...33 e ...42, todos propriedade da R. e até o ...72, urbano, também propriedade da Ré”, e , por fim, que “(…), tratando-se da casa de morada de família, não pode deixar de considerar-se que, pelo menos indiretamente, esta ação a pode afetar.”

Nesta senda, foi proferida decisão, em 16-09-2023, a admitir a intervenção principal provocada de CC.

O chamado CC, na sua contestação/reconvenção alude sempre e exclusivamente aos bens próprios que pertencem à ré BB e ao exercício dos direitos da ré – cf. art. 32.º, A R esposa é legítima proprietária e possuidora dos seguintes prédios sitos na área da União das freguesias ... e ... e ..., deste concelho ... que assim aparecem inscritos na respectiva matriz: (…) artigo ...31 (…) artigo ...33 (…) artigo ...42 (…) artigo ...72 (…)”; “descrição nº ...26 – ... (…) “descrição nº ...26 – ...” (…) “descrição nº ...26 – ...” (…), art. 37.º,invocando-se a favor da R esposa a seu favor a presunção de proprietária dos supra identificados prédios, derivada dos registos (…), art. 38.º Os prédios advieram à titularidade e posse da R esposa por testamento de seus “pais de criação”, DD e EE, ele falecido em 07 de Fevereiro de 1993 e ela falecida em 10 de Maio de 2018, tendo ambos instituído a ora R esposa sua única e universal herdeira”, art. 40.º a R esposa, por si e seus antecessores imediatos e anteriores, há mais de 30, 40 e mais anos, vêm explorando todas as suas potencialidades e fruindo todas as suas utilidades, plantando árvores e colhendo os seus frutos, (…)”, art. 42.º “O prédio referido na alínea a) do artigo 32 e o prédio rústico do artigo 43 deste petitório confrontam entre si, respectivamente, sul e norte, ou seja, aquele da R esposa confronta pelo seu lado sul com este da A”, art. 48.º Os prédios da al. a) do artigo 32 da R esposa (hoje ...31, antigo ...85) e os da A (hoje ...95, antigo ...86), sendo um urbano e um rústico, constituíram, em tempos idos, um só, pertença de FF, o qual tinha dois filhos: DD e GG”, “III- Da violação do direito de propriedade da R esposa”, art. 57.º “Nas referidas circunstâncias de tempo, modo e lugar, e perante a oposição da R esposa, a A e o identificado HH deram ordem ao operador daquela máquina que, arrasou (…) espalhando a terra e compactando-a, por forma a eliminar todos os sinais da identificada demarcação entre o prédio da R esposa e o da A, tendo ainda sido aberta uma vala à face do muro que suporta a serventia em quase toda a extrema nascente do prédio da R esposa, crendo-se que a obra que a A ali pretenderia edificar ilegitimamente edificar seria um muro (…)”, art. 60.º “A referida obra, além de ilícita, está a causar danos irreparáveis à R esposa, violando flagrantemente o seu direito de propriedade (…)”, art. 64.º “A R esposa é dona e possuidora de todos os prédios rústicos identificados no artigo 32 deste articulado, cuja posse é exercida sobre os referidos prédios por si conforme se vem supra alegando, todos eles encravados, já que sem comunicação directa e imediata com a estrada (…)”, art. 65.º “Comunicação essa igualmente utilizada, com legítimo direito de passagem, pela R esposa por onde acede à parte lateral e traseira do seu prédio urbano/casa de habitação (…)”, art. 66.º É legítima dona e possuidora a R esposa que, desde o início, sempre praticou todos os actos materiais de posse sobre este prédio urbano, portanto, durante muito mais de 30 anos consecutivos (…)”, art. 67.ºA R esposa adquiriu já, por usucapião o direito de propriedade sobre este prédio identificado na alínea d) no artigo 32º deste articulado (…)”, art. 68.º O direito de passagem da R esposa sobre esta faixa de terreno constitui esta sua serventia (…)”, art. 69.º “Além, de a R esposa utilizar para aceder ao logradouro do seu prédio urbano, é igualmente utilizada para aceder a outros dos seus dois prédios rústicos, encravados, que se situam nas “traseiras” dos prédios da Ré – os identificados ...33 (antigo ...88) e ...42 (antigo ...97) (…)”, art. 70.º “É por tal faixa que sempre a R esposa acede, quer por si, quer por outros que aos seus prédios ali acedem, ao seu serviço ou por sua ordem (…)”, art. 71.º Ajeitando sempre a R esposa todo o piso, limpando as ervas, cuidando do trajecto, em toda a sua dimensão, atenta a sua legítima  e continuada posse, cujas características conduziram já aqui à invocada usucapião ou aquisição prescritiva (…)”, art. 72.º A R esposa, desde o início que sobre esta faixa de terreno afecta à sua passagem – sempre livre e desimpedida, desde a estrada (…)”, art. 76.º “Sempre ciente de que com a sua posse não lesava direitos ou interesses de outrem, designadamente da A, quer aquando do início, quer no decurso da posse, sempre convicta de estar a exercer um direito próprio e exclusivo, pleno e singular, com exclusão de terceiros – o seu legítimo direito de passagem para estas e destas suas propriedades, há mais de 40 anos consecutivos”, art. 80.º “Foi com o propósito deliberado de impedir a R esposa tal acesso, que em data que não pode rigorosamente precisar, mas que situa há cerca de 4 anos a esta parte, procedeu a A o “acimentamento” (…)”, art. 81.ºCrê a R esposa que é propósito da A retirar-lhe, com esta atitude e outras, designadamente insultando-a quando passa, o direito legítimo de por ali transitar, tendo-lhe cimentado este troço do piso sem autorização e mesmo contra a vontade manifestada da R esposa (…)”, art. 82.º Situação essa que fez com que a R esposa, incomodada, se dirigisse junto dos Serviços de Fiscalização Municipal da Divisão das Obras Particulares (…)”, art. 83.º “(…) já que se vê a R esposa, por actos exclusivamente imputáveis à A, privada da fruição plena dos seus legítimos direitos de dona destes prédios (…)”, e art. 89.º A R esposa tem o indiscutível direito de se ver restituída a status quo ante.”.

A final, o interveniente principal deduziu a seguinte reconvenção:

“a) Reconhecer que a R esposa é dona e legítima possuidora dos prédios identificados no artigo 32 desta contestação/Reconvenção, pelos modos de aquisição alegados;

b) Reconhecer que em benefício destes seus prédios, os identificados nas al.s a), b), c) e d) do artigo 32º desta Contestação/Reconvenção, se encontra constituída uma servidão de passagem, de pé, carros, animais tractores e outros veículos motorizados, a qual se encontra constituída por destinação do anterior proprietário e também por usucapião, com a exacta implantação, percurso, localização, configuração e extensão, conforme ilustrado no Levantamento Topográfico, croquis e foto Google Maps juntos, a qual permite a entrada e a saída para e da via pública – Rua ... – que ladeia pelo nascente o prédio identificado na al. a) do artigo 32 desta contestação/Reconvenção, com largura de três metros, prolongando-se por um comprimento superior a 40 metros até atingir os prédios da Autora, os identificados nas alíneas b) e c) do artigo 32 desta Contestação/Reconvenção, e, em benefício destes, que onera os identificados prédios da A;

c) a retirar o “acimentamento” que fez no seu troço, em toda a sua largura e comprimento, este de cerca de 20 metros, refazendo a continuidade do piso para norte e para sul deste “pavimento cimentado”;

d) reconstruir o muro que derrubado em toda a sua extensão, com a consistência de um muro de suporte de terras, obra de reconstrução que tem de incluir a parte restante do muro que o Embargo impediu de prosseguir, já que a sua estrutura resultou gravemente afectada na sua função de suportar todo o leito, neste troço, da serventia em causa; ou, em alternativa:

e) a pagar à R esposa o custo da reposição e reconstrução do mesmo, em toda a sua extensão, custo que se fixa em €5.000,00; e ainda,

f) a pagar-lhe € 180,00 (cento e oitenta euros), a título de reembolso do Levantamento Topográfico que a R esposa pagou, como reparação deste prejuízo já causado, devendo relegar-se para ulterior liquidação e execução de sentença o montante dos danos presentes e futuros, em verificação, indemnizações estas a que deve acrescer o pagamento de juros, à taxa legal anual - actual de 4% - desde a sua citação e até efectivo embolso;

g) a pagar à R esposa a quantia de €7.500,00 (sete mil e quinhentos euros) a título de ressarcimento de danos não patrimoniais;

h) de modo equitativo na sanção pecuniária compulsória, que se reclama de €25,00/dia, caso haja perturbação do exercício de passagem pela Autora para acesso aos seus identificados prédios, designadamente atraso na remoção do “acimentamento” que se encontra no leito da serventia, e reconstrução do muro, repondo o seu leito todo ele no status quo ante;

i) a abster-se, de futuro, da tomada de atitudes ou prática de quaisquer actos ou factos, ou tomada de quaisquer atitudes, que violem ou perturbem o exercício dos invocados direitos de propriedade e de passagem da R esposa (…)” (sic – sublinhados nossos).

É inequívoco que os bens a que o interveniente principal se reporta, no pedido reconvencional, são bens próprios do cônjuge, tal como os correspondentes direitos por ele mencionados, não tendo a ré, ao contestar a acção, para lá de ter impugnado a factualidade aduzida na petição inicial, deduzido qualquer pretensão jurídica autónoma através da dedução de reconvenção.

O que o interveniente principal visa com os seus pedidos reconvencionais, é, no fundo, substituir-se à primitiva ré no exercício dos direitos – de propriedade e de indemnização – que radicam única e exclusivamente na sua esfera jurídica.

Como se escreveu na decisão sob recurso, de forma correcta, a admitir-se o pedido reconvencional deduzido pelo interveniente chamado à lide, estar-se-ia a permitir que o chamado, não titular do direito real sobre o bem afectado pela pretensão da contraparte, pudesse vir ao processo deduzir um pedido em nome alheio, isto é, em nome ou em representação da parte primitiva – no caso a ré, seu cônjuge – titular exclusivo da propriedade sobre o bem que possa vir a ser atingido pela procedência da pretensão da contraparte (como, de resto, o chamado reconhece, além do mais, no art. 32º e ss. do seu articulado e, a final, nos pedidos que deduz), o que a lei não consente.

De facto, o regime de bens emergente do casamento traduz-se no conjunto de regras legais que definem a titularidade dos bens do casal, ou seja, que permitem saber se há e quais são os bens comuns e quais os bens próprios de cada um dos cônjuges.

O regime da comunhão de adquiridos é um dos regimes tipificados no Código Civil, a par do regime da comunhão geral e do regime da separação, sendo o regime de bens supletivo aplicável aos casamentos na falta de convenção antenupcial (ou no caso de caducidade, invalidade ou ineficácia da convenção) – cf. art. 1717.º do Código Civil.

No regime da comunhão de adquiridos prevê-se a existência de bens próprios a par de bens comuns, sendo considerados bens próprios dos cônjuges, nos termos do n.º 1 do art. 1722.º do Código Civil:

a) Os bens que cada um deles tiver ao tempo da celebração do casamento;

b) Os bens que lhes advierem depois do casamento por sucessão ou doação;

c) Os bens adquiridos na constância do matrimónio por virtude de direito próprio anterior.

In casu, como se vê, os bens a que o chamado alude na sua reconvenção são imóveis que foram testados a favor da ré, constituídos pelos prédios rústicos inscritos na matriz sob os artigos n.º ...31 – com a descrição nº ...26 – ..., definitivamente inscrito a favor da ré pela AP. ...82 – n.º ...33 – com a descrição nº ...26 – ..., definitivamente inscrito a favor da ré pela AP. ...82 – e n.º ...42 – com a descrição nº ...26 – ..., definitivamente inscrito a favor da ré pela AP. ...82 – e ainda o prédio urbano inscrito sob o artigo n.º ...72, também propriedade da ré (cf., além do mais, a documentação junta com o articulado do interveniente principal em 11-12-2023).

Tratando-se de bens próprios do cônjuge, isto é, da ré BB, só a ela cabia a legitimidade para, querendo, formular o correspondente pedido reconvencional

Acresce, outrossim, que o pedido indemnizatório refere-se exclusivamente à ré (e não ao interveniente principal), motivo pelo qual o chamado não sendo titular de qualquer direito em nome próprio, não tem, por esse motivo, legitimidade processual para formular a pretensão indemnizatória.

Em consonância, nenhum dos pedidos reconvencionais aduzidos pelo interveniente é admissível, como bem decidiu o tribunal a quo.

Pelo exposto, improcedem, na íntegra, as conclusões recursivas, sendo de manter a decisão recorrida de não admissibilidade da reconvenção.

Por ter decaído no recurso ficam as custas do recurso a cargo do recorrente – cf. arts. arts. 527.º, 607.º, n.º 6, e 663.º, n.º 2, todos do CPC

Sumariando: (…)

Decisão

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente a apelação, e, em consequência, mantém-se a decisão recorrida.

Custas pelo recorrente.


Coimbra, 8 de Abril de 2025

Luís Miguel Caldas

Cristina Neves

Hugo Meireles



[1] Juiz Desembargador Relator: Luís Miguel Caldas / Juízes Desembargadores Adjuntos: Dra. Cristina Neves e Dr. Hugo Meireles.
[2] No CPC de 2013 deixou de ser possível o incidente de intervenção principal provocada nos casos de intervenção coligatória.