POSSE
PROVIDÊNCIA CAUTELAR
MATÉRIA DE FACTO PROVADA NA PROVIDÊNCIA
IMPUGNAÇÃO A MATÉRIA DE FACTO
CASO JULGADO
PRÉDIO ENCRAVADO
SERVIDÃO DE PASSAGEM
USUCAPIÃO
Sumário

1. - A posse, adequada a fazer operar o instituto da usucapião, seja quanto à originária aquisição do direito de propriedade, seja do direito de servidão de passagem, tem de traduzir-se num “corpus” – prática de atos materiais, sobre a coisa, correspondentes ao exercício do direito – e num “animus” – intenção e convencimento do exercício de um poder, sobre a coisa, correspondente ao próprio direito e na sua própria esfera jurídica –, devendo ser exercida por certo lapso temporal e revestir as caraterísticas da pacificidade, publicidade e continuidade.
2. - A existência e amplitude do direito de servidão de passagem, adquirido por via de usucapião, depende do âmbito da posse efetivamente exercida – com o respetivo “animus” –, cabendo o correspondente ónus da prova ao peticionante do reconhecimento do direito.
3. - A aquisição do direito de servidão de passagem em benefício de prédio encravado depende da verificação dos pressupostos a que alude o art.º 1550.º do CCiv., cujo substrato fáctico cabe ao demandante provar.
4. - Por se revestir de caráter conclusivo/valorativo, no campo jurídico, não pode levar-se ao elenco dos factos provados da sentença, em ação destinada à aquisição daquele direito de servidão por encrave, que um determinado imóvel é um prédio encravado, conclusão que só pode retirar-se na fundamentação de direito, se os factos provados permitirem o preenchimento dos pressupostos daquele art.º 1550.º.
5. - Os factos provados em procedimento cautelar, atenta a natureza meramente instrumental e incidental deste procedimento (designadamente, a providência de restituição provisória de posse), não têm qualquer influência no julgamento da ação principal, motivo pelo qual não poderão, sem mais, ser dados como provados na sentença dessa ação principal (art.º 364.º, n.º 4, do NCPCiv.).
6. - Pretendendo a parte sujeita ao ónus da prova, impugnante da decisão de facto no âmbito recursivo, que se dê como provada – em aditamento – factualidade dada como assente em anterior ação cível em que foram partes, entre outras, as mesmas partes, deve cumprir o ónus a que alude o art.º 640.º, n.º 1, al.ª a), do NCPCiv., sob pena de rejeição, especificando quais os concretos factos provados no anterior processo que pretende ver incluídos na nova decisão/sentença.
7. - Se a sentença dessa anterior ação cível foi absolutória, a respetiva autoridade de caso julgado – função positiva do trânsito em julgado –, incidindo sobre o dispositivo absolutório e estendendo-se aos fundamentos que foram essenciais a essa absolvição (seus pressupostos necessários), não abarca factos estranhos, embora apurados, ao juízo absolutório proferido, posto ter sido este que transitou em julgado, sabido que a sentença que decida a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele, nos precisos limites e termos em que julga, ou seja, em que decide e responde à concreta pretensão trazida a juízo (art.ºs 619.º, n.º 1, e 621.º, parte inicial, do NCPCiv.).
8. - Tendo o possuidor de má-fé logrado provar a posse ao longo de cerca de 18 anos consecutivos, não provando, porém, a continuação dos atos materiais nos anos seguintes, mas também não resultando que tenha ocorrido perda da posse, opera a presunção de conservação/continuação da posse em nome de quem a começou, por não ilidida pela contraparte.
9. - Com base nessa presunção de conservação da posse, pode aquele possuidor de má-fé, decorridos 20 anos, adquirir o direito de propriedade, por via de usucapião, uma vez verificados todos os demais requisitos da prescrição aquisitiva.
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

*

Acordam na 2.ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra:

***

I – Relatório

AA e mulher, BB, com os sinais dos autos,

instauraram a presente ação declarativa com processo comum contra

CC, também com os sinais dos autos,

pedindo:

a) Seja declarado serem os AA. proprietários e legítimos possuidores do prédio descrito no art.º 1.º da petição – prédio misto, sito em ... ou ..., freguesia ..., concelho ..., composto por prédio urbano e rústico, inscrito na respetiva matriz sob os art.ºs ...3.º da secção G (matriz rústica) e ...81.º (matriz urbana), composto de terra de cultura arvense, figueiras e oliveiras, e casa térrea destinada à recolha de alfaias/arrecadações (conforme descrição registal), com a área coberta de 40 m2, tendo o prédio a área total de 1,075 ha, descrito na CRP ... sob o n.º ...27, freguesia ..., o qual adquiriram por usucapião;

b) Seja declarada a existência de uma servidão de passagem nos termos constantes dos artigos 7.º a 10.º da petição, sobre o prédio rústico inscrito na matriz sob o art.º ....º da secção G, da freguesia ..., concelho ..., em benefício dos prédios dos AA.;

c) Seja o R. condenado a restituir definitivamente aos AA. o direito a passarem no prédio dele pela passagem identificada nos art.ºs 7.º e 8.º da petição inicial;

d) Seja o R. condenado a restituir definitivamente aos AA. os imóveis descritos no art.º 1.º da petição inicial;

e) Bem como condenado a abster-se de praticar quaisquer atos que impeçam os AA. de utilizarem os imóveis referidos em art.º 1.º e ainda de utilizarem a passagem;

f) E condenado a pagar aos AA. a quantia de € 29.700,00, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais;

g) Caso sejam improcedentes os pedidos anteriores, a condenação do R. a pagar aos AA. a quantia de € 27.700,00, relativa às benfeitorias por estes realizadas.

Para tanto, alegaram, em síntese:

- serem proprietários do prédio descrito no art.º 1.º, por o haverem adquirido por usucapião;

- não ter tal prédio ligação direta à via pública, beneficiando, enquanto prédio encravado, de uma servidão de passagem sobre o prédio rústico descrito no art.º 8.º da petição, que é propriedade do R.;

- ter o R. bloqueado, entre os dias 14 e 16/07/2019, as entradas para o prédio dos AA., impossibilitando ao acesso ao mesmo;

- bem como, na mesma data, destruído todos os pomares nele existentes, arrancado vedações, removido cancelas, ficando com todos os pertences existentes na construção dos AA. (150 fardos de feno e 02 caravelas, um motor de rega com chupador e mangueira), terraplenado e destruído os socalcos, arrasado os poços que se encontravam na propriedade, não existindo, no momento, qualquer fonte de água, e ainda ocupado com o seu gado bovino o prédio descrito em a), colocando-o nesse local a ser apascentado;

- caso não proceda o pedido de reconhecimento do direito de propriedade, devem os AA. ser ressarcidos das benfeitorias que implantaram no prédio, tais como obras e sementeiras.

O R. contestou, concluindo pela improcedência da ação, para o que negou que os AA. tivessem adquirido por usucapião o prédio a que aludem, bem como a existência da alegada servidão de passagem e a prática dos atos que lhe são imputados.

Os autos prosseguiram os seus termos e, após a realização da audiência, foi proferida sentença, julgando a ação totalmente improcedente, com a consequente absolvição do R. do peticionado.

Os AA., inconformados, recorreram, vindo esta Relação, por acórdão de 28/02/2023, a anular a decisão proferida em 1.ª instância, com vista à ampliação da decisão relativa à matéria de facto.

Sem produção de (outra) prova, foi reaberta a audiência final, com alegações orais dos Mandatários (cfr. ata de 04/06/2024), após o que foi proferida nova sentença (datada de 26/10/2024), julgando a ação totalmente improcedente, com a consequente absolvição do R. dos pedidos formulados.

Novamente inconformados, recorrem os AA., apresentando alegação, culminada com as seguintes

Conclusões ([1]):

«1ª

Consideram os recorrentes que devem ser considerados provados os factos não provados de nº II a X da douta sentença recorrida.

Assim, deve passar a constar a seguinte factualidade como provada,

“ii. Os autores após 16.12.2011 utilizaram o prédio identificado em 1., limpando as suas terras de mato, lavrando-o, semeando-o, plantando vinha, couves, nabos, batatas, pomar de macieiras, laranjas, figos, milho, tomates e brócolos, tendo reconstruído o prédio urbano que se encontrava em ruínas, o qual usam como local de arrumos, surribaram o prédio, construíram socalcos para melhor aproveitamento agrícola, abriram três poços e construíram um sistema de rega para toda a propriedade, vedaram-na com rede e postes e reconstruíram muros de pedra.

iii. O que fazem em exclusividade, como se fosse coisa sua, à vista de toda a gente, sem que alguém alguma vez se tenha oposto, e na convicção que não lesavam o direito de outrem.

iv. Para acesso ao prédio identificado em 1., a pé, de carro e com máquinas agrícolas, os autores, desde pelo menos 1993, utilizam exclusivamente uma faixa de terreno do prédio referido em 4.

v. Os autores, por si e antepossuidores, desde 1993, usam somente a passagem identificada em 11. para aceder ao prédio referido em 1., a pé, de carro e com máquinas agrícolas.

vi. E fazem-no com convicção de que exercem um direito seu, à vista de toda a gente, de modo ininterrupto, na convicção de não ofenderem direitos de terceiros, sem qualquer oposição.

vii. Entre os dias 14 (no período da tarde) e 16 (de manhã cedo) de Julho de 2019, o réu bloqueou as duas entradas para o prédio identificado em 1., por meio da colocação de grandes rochedos nas mesmas, impossibilitando o acesso ao referido prédio

viii. Na mesma data, o réu destruiu todos os pomares existentes no prédio referido em 1., arrancando, pela raiz, todas as respectivas árvores, perdendo-se todos os seus frutos, arrancou vedações, removeu cancelas, ficou com todos os pertencentes existentes na construção, tais como 150 fardos de feno e duas caravelas, um motor de rega com chupador e mangueira, e arrasou os poços que se encontravam na propriedade, não existindo nesta, no momento, qualquer fonte água, tendo ainda ocupado com o seu gado bovino o mencionado prédio, colocando-o neste local a ser apascentado.

ix. Em face do referido em factos provados 11, 12 os autores não conseguem aceder ao prédio referido em 1.

x. Em face do referido os autores têm insónias, falta de apetite, andam irritados, ansiosos e com receio de se encontrarem com o réu.”

A tal conclusão chega-se através da audição do depoimento das seguintes testemunhas:

DD, com depoimento gravado no sistema integrado do sistema Citius, no dia 08/06/2022, desde as 10.41.51 h a 11.10.01h, do qual se ressalvam as seguintes passagens: 03.50 min. a 8.27 min; 10.50min a 13.57 min; 14.21min. a 15.15 min; de 16 min a 18.39 min; e de 20.03 min a 21.07 min.

EE, com depoimento gravado no sistema integrado do sistema Citius, no dia 08/06/2022, desde as 11.16.02 h a 11.29.25h, do qual se ressalvam as seguintes passagens: De 00min. a 8.36 min; e 11.49 min a 13.23 min.

E ainda, considerando que a presunção ilidível estabelecida no art. 1257.º, n.º 2. do CC de que a posse continua em nome de quem a começou, isto é os AA., reconhecida judicialmente pelo acórdão e pela restituição provisória no âmbito da providência cautelar apensa, inverte o ónus da prova para o R., pelo que os factos devem ser considerados provados, uma vez que este não ilidiu tal presunção, pelo que mal aplicou o direito o tribunal “a quo”. (cfr. Ac STJ de 21/10/2010 proc. nº120/2000.S1 in www.dgsi.pt).

As testemunhas arroladas pelo R. nada disseram de relevante para o caso, designadamente, a testemunha, FF, que afirmou não se deslocar ao terreno há mais ou menos 10 anos, isto é pelo menos desde 2012, o que o coloca no período de tempo apreciado anteriormente pelo tribunal (facto nº19); a outra testemunha do R., o GG, nem sequer lhe foi dado relevo pelo tribunal, tratando-se do solicitador que organizou o processo de venda referido em nº07 do factos provados.

Porém, se conjugarmos os depoimentos supra ressalvados, -de DD e HH-, com o relatório pericial, com os documentos juntos aos autos, o teor da contestação, e ainda tomando em consideração os factos provados no acórdão transitado em julgado (factos provados 19) só poderemos concluir que o tribunal “a quo” andou mal ao dar como não provados os factos acima impugnados.

Do relatório pericial junto aos autos em 21/02/2022, com a refª2804097, resulta:

Que ao art.3 só se consegue aceder pelo interior do art.1.

Que na confinância entre estes dois prédios (factos provados 11) foram bloqueadas as entradas da passagem com grandes blocos de pedra, sendo visível que sobre os mesmos fez continuar a aramada que veda o art.1 secção.

Já no interior do prédio art.1 G a passagem está, também, bloqueada com pedras.

De todos estes indícios só se pode concluir que foi o R. ou alguém a seu mando quem bloqueou o acesso ao interior do seu prédio (art.1) pela colocação de obstáculos no início e no percurso da passagem.

Seria impensável alguma outra pessoa ter vedado a propriedade do R., a não ser ele!

A prova por presunção judicial constitui um meio de prova legalmente previsto nos artigos 349º e 351º do Código Civil, a qual o tribunal “a quo” não utilizou e deveria ter feito violando tais preceitos legais.

Sendo que através desta se conclui, que foi o R. quem bloqueou os acessos ao prédio art.3 secção G.

O relatório pericial é claro em afirmar que em meados de junho de 2019 que na propriedade art.3 G existiam três poços que foram entulhados, a existência de árvores plantadas e ainda a existência de fiadas de videiras e socalcos. Tudo tendo desaparecido.

Só o R. tinha acesso ao local, e meios de aí permitir colocar máquinas para tal destruição, não sendo credível que fossem os AA. que tivessem feito tal destruição num prédio que defendem há anos com “unhas e dentes”.

A passividade do R., mais uma vez, o incrimina, pois não seria normal que este visse máquinas entrar na sua propriedade, veda-la, bloqueá-la, tapar-lhe os caminhos, destruir as vedações do prédio art.3º G e tudo o que se encontrava no interior e nada fizesse.

Do doc.3 junto com o procedimento cautelar para o qual se remeteu na P.I. e o qual segundo o principio da aquisição processual da prova deve ser considerado, resulta claramente que o prédio art.3 está encravado, cercado pelo art.1.

Pelo que o R. tinha de tolerar a passagem dos AA. e de onde resulta conjugado com o que foi referido pela testemunha, EE, e do teor do relatório pericial que após julho de 2019 só o R. podia aceder a ambos os prédios, sendo por tal responsável por tudo o que aí se passou.

Na verdade, não será por não se apanhar um incendiário em flagrante delito que não pode ser condenado.

Da contestação do R.-

Na data da propositura da presente acção, isto é 24/11/2019 o R. assumiu na sua impugnação motivada que os AA. continuavam no prédio (cfr.art.14º, 29º, 31º, 46º, da contestação).

Que o continuavam a utilizar da mesma forma que o faziam anteriormente, designadamente colhendo as uvas, etc.

O ónus de impugnação consiste na necessidade de o réu tomar posição definida perante os factos articulados na petição inicial, como exige o nº 1 do artº 490º do CPC, sob pena de tais factos serem considerados admitidos por acordo.

Face à aludida posição tomada na contestação, só poderia o tribunal “a quo” face a este factos considerar que pelo menos até à propositura da presente acção os AA. utilizaram o prédio tal como o faziam desde 1993.

Não sendo possível uma outra coisa, já que sempre acreditaram no recurso relativo à acção dos factos provados 19. Mantendo-se no prédio e tratando como sempre o fizeram até ao esbulho do R.

Do acórdão-

Correu termos uma acção declarativa entre os AA. e vários RR, de entre os quais o ora R., com o proc. nº202/11.... cujo acórdão foi proferido em 29/01/2019 e já transitado em julgado (cfr. doc. 4 junto com o procedimento cautelar)

No acórdão referido foi reconhecida a posse do prédio misto, contudo de má-fé, não tendo decorrido o tempo suficiente para a aquisição originária da propriedade de má-fé (20 anos)

Na corrente acção os AA. vêm reclamar, de novo, a aquisição do referido prédio misto, porém desta vez invocando a posse má-fé dizendo no art.25º da P.I. “Assim, os AA. são possuidores do prédio referido em art.1º da P.I. há mais de 20 anos, pelo que por usucapião, mesmo fundada em posse de má-fé, já há muito adquiriram a propriedade do imóvel, o que se invoca expressamente.”

O prestigio dos tribunais Portugueses reclama que os factos firmados no proc. nº202/11 sejam considerados na presente acção como pressuposto de uma nova decisão.

Do acórdão constam as obras, trabalhos, sementeiras e melhoramentos incorporados no prédio pelos AA. e o seu preço. Consta que os mesmos aí continuaram durante a pendência do proc. nº202/11, o que o R. reconhece, até à presente data.

Do acórdão, também, resulta que os RR. não deduziram qualquer reconvenção contra os AA. limitaram-se a contestar a acção.

Nunca tendo, por tal, interrompido a posse dos AA., pois nunca foram citados para a entrega do imóvel e/ou se absterem de sobre ele praticar quaisquer actos de posse.

10ª

Conjugando e interpretando de modo global a prova testemunhal produzida, os documentos juntos aos autos acima ressalvados, a contestação, o relatório e o acórdão referido em 19 factos provados, só se pode considerar que o Tribunal da Relação está em condições de afirmar a existência de um erro de apreciação e valoração da prova por parte do tribunal de primeira instância.

11ª

Devendo em conformidade passar a constar a factualidade referida na 2ª conclusão como provada.

Consequentemente, devem ser considerados não provados os factos constantes do nº12 e 13 da sentença.

12ª

Deverá, ainda, ser aditado o facto: o prédio misto identificado em 01 dos factos provados trata-se de um prédio encravado.

13ª

Dos factos provados e considerando a procedência dos supra impugnados resulta que os AA. desde 1993 exercem um poder de facto sobre o prédio descrito no nº01 dos factos provados com a intenção de agirem como titulares do direito de propriedade, o que fazem à vista de toda a gente. Pelo que se encontram na posse pacífica e pública do imóvel, pois para obtê-la não usou de coacção física e é exercida à vista de todos e do próprio R.

A qual foi interrompida pelo R. em Julho de 2019, tendo sido ordenada judicialmente a restituição provisória na posse.

Para facultar a aquisição por usucapião, a posse terá de ser mantida por certo lapso de tempo (art. 1287.º do CC).

O que no caso ocorre por mais de vinte anos.

Na verdade, em 2003 já havia sido alcançado tal lapso de tempo.

A posse é não titulada e de má-fé face ao já anteriormente decidido neste tribunal.

Assim, deve considerar-se verificada a aquisição do direito de propriedade por usucapião por parte do AA. declarando-os legítimos proprietários dos prédios descritos sob o nº01 do factos provados e determinar-se o cancelamento dos registos a favor do R. e dos seus antecessores.

14ª

A passagem a pé e de carro descrita no nº11 dos factos provados, a qual se revela por sinais visíveis e permanentes, trilhada por pneus, com leito do caminho com afloramentos rochosos e vegetação existe desde, pelo menos, 1993, e é a única forma de aceder ao prédio ponto nº10 dos factos provados.

Passagem usada em benefício do prédio encravado sobre o prédio do R., de modo pacífico, público e reiterado, pois o prédio esteve sempre tratado e cultivado até Julho de 2019.

Tomando em consideração as disposições do art.1287º e segs do CC e ainda, em, concreto, o disposto nos arts.1547º e 1548º do CC terá de considerar constituída a servidão de passagem nos termos constantes dos arts.7º a 10 da P.I., sobre o prédio rústico inscrito na matriz sob o art.1º da secção G, da freguesia ..., concelho ..., em benefício dos prédios dos AA.

15ª

Dos pontos provados nº14 a 18º resulta que com a destruição operada pelo R. no prédio misto descrito sob o nº01 dos factos provados os AA. foram prejudicados no montante de 27700€, custos das obras, sementeiras e melhoramentos.

Obras essenciais à capacidade agrícola, manutenção das culturas, arrumos e abastecimento de um líquido, tão precioso, a água.

O R. agiu livre e conscientemente com a intenção de destruir a propriedade dos AA. pelo que se constituiu no dever de indemnizar os AA. no valor dos danos patrimoniais isto é 27700€.

16ª

Além disso, deve o R. ser condenado a pagar aos AA. os danos morais que lhes causou com a sua atitude destrutiva e que consta do nº18 factos provados na quantia de 2000€.

POSTO ISTO

17ª

Subsidiariamente, deduziram os AA. o seguinte pedido, caso sejam considerados improcedentes os pedidos de reconhecimento propriedade e de servidão de passagem.

Requerendo a condenação do R. a pagar-lhes a quantia de 27700€, relativa às benfeitorias por estes realizadas.

O tribunal “a quo” decidiu que não há lugar a indemnizar os AA. pelas benfeitorias por estes realizadas, porque não resulta ser o R. o proprietário do prédio descrito no nº01 factos provados.

18ª

Não sendo procedente o pedido de aquisição da propriedade por usucapião no reverso terá de se considerar o R. proprietário do prédio descrito no nº01 factos provados. Não estamos face a uma “res nullius”. Face aos factos provados 06 e 07 resulta que II, pai do R., adquiriu por compra e venda o referido prédio sendo que após o seu falecimento lhe sucedeu com único e universal herdeiro o R., seu filho, sendo tais formas as legalmente previstas para aquisição de propriedade, isto é compra-venda e sucessão.

Pelo que, mal andou a juiz de 1ª instância.

19ª

As benfeitorias valorizam os prédios onde se encontram implantadas em 27700€, e cujos materiais aplicados, na realização de tais obras, não poderão ser retirados sem detrimento do imóvel, isto é para serem retiradas têm de ser demolidos os edifícios, perdendo a sua utilidade, as árvores arrancadas, os poços aterrados, os sistemas de rega destruídos, os muros danificados, entre outras.

Quanto ao caso concreto, as benfeitorias, tendo em consideração a sua natureza, não podem ser levantadas sem detrimento da coisa, já que para ser removidas têm de ser destruídas, perdendo-se a coisa.

As obras efectuadas destinaram-se a dotar (e dotaram efetivamente) os prédios de condições de habitabilidade/arrumos e funcionalidades aptas a um melhor aproveitamento da agricultura que praticaram no prédio até à data em que foram esbulhados na posse, que antes da respetiva realização não dispunham, valorizando-o em igual valor da construção.

Acresce que, as obras/melhoramentos/sementeiras realizadas não podem ser levantadas, pelo menos sem detrimento dos prédios, e valorizaram-nos, operando-se o correspondente enriquecimento do R., assistindo por isso aos AA., o direito a serem compensados pelo respetivo valor nos termos do disposto no art. 1273.o, n.o 2 do Código Civil, ou seja, 27700€, dado que valorizaram o terreno com as implantações e ficaram empobrecidos em igual medida.

Sendo indiferente à decisão da causa o facto de o R. ter destruído todas as obras, sementeiras e incorporações realizadas nos prédios (urbano e rústico) dos autos e de não as poder utilizar e beneficiar das suas utilidades.

Já que, estamos face a uma destruição voluntária, por parte do R., das obras e melhoramentos existentes no terreno o que não o exime de indemnizar os AA.

Nestes termos requerem a V.Exªs se dignem considerar procedente e provado o presente recurso, e em consequência revogarem a douta sentença recorrida, condenando o R. nos pedidos formulados na P.I..».

Não foi apresentada contra-alegação de recurso.


***

O recurso foi admitido como de apelação, a subir nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo, tendo neste Tribunal ad quem sido mantidos o regime e o efeito fixados.

Cumpridos os vistos e nada obstando, na legal tramitação, ao conhecimento do mérito do recurso, cumpre apreciar e decidir.


***

II – Âmbito recursivo

Perante o teor das conclusões formuladas pela parte recorrente – as quais definem o objeto e delimitam o âmbito do recurso ([2]), nos termos do disposto nos art.ºs 608.º, n.º 2, 609.º, 620.º, 635.º, n.ºs 2 a 4, 639.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil em vigor (doravante, NCPCiv.) –, cabe saber ([3]):

a) Se ocorre erro de julgamento em sede de decisão da matéria de facto, obrigando à alteração do decidido;

b) Se, verificando-se erro de julgamento de direito, deve, na procedência do recurso, revogar-se a sentença recorrida, com decorrente procedência da ação de reivindicação e condenação do R./Recorrido em todos os pedidos formulados (em cumulação de diversos pedidos), para o que importará apreciar:

1. - Se os AA. adquiriram o invocado direito de propriedade por via de usucapião, verificando-se todos os respetivos pressupostos;

2. - Se lhes assiste o invocado direito de servidão de passagem, a favor de prédio encravado (ou por via de usucapião);

3. - Se lhes assiste o pretendido direito indemnizatório (por danos patrimoniais e não patrimoniais);

4. - Subsidiariamente, se lhes assiste o direito a compensação por benfeitorias.


***

III – Fundamentação

         A) Da impugnação da decisão de facto

1. - Os Apelantes começam por manifestar inconformismo com a decisão da matéria de facto, pretendendo, desde logo, que, diversamente do decidido na 1.ª instância, seja julgada como provada a matéria constante de “ii” a “x” do elenco dado como não provado da sentença (cfr. conclusões 2.ª e 11.ª).

Tal matéria apresenta a seguinte redação:

«ii. Os autores após 16.12.2011 utilizaram o prédio identificado em 1., limpando as suas terras de mato, lavrando-o, semeando-o, plantando vinha, couves, nabos, batatas, pomar de macieiras, laranjas, figos, milho, tomates e brócolos, tendo reconstruído o prédio urbano que se encontrava em ruínas, o qual usam como local de arrumos, surribaram o prédio, construíram socalcos para melhor aproveitamento agrícola, abriram três poços e construíram um sistema de rega para toda a propriedade, vedaram-na com rede e postes e reconstruíram muros de pedra.

iii. O que fazem em exclusividade, como se fosse coisa sua, à vista de toda a gente, sem que alguém alguma vez se tenha oposto, e na convicção que não lesavam o direito de outrem.

iv. Para acesso ao prédio identificado em 1., a pé, de carro e com máquinas agrícolas, os autores, desde pelo menos 1993, utilizam exclusivamente uma faixa de terreno do prédio referido em 4.

v. Os autores, por si e antepossuidores, desde 1993, usam somente a passagem identificada em 11. para aceder ao prédio referido em 1., a pé, de carro e com máquinas agrícolas.

vi. E fazem-no com convicção de que exercem um direito seu, à vista de toda a gente, de modo ininterrupto, na convicção de não ofenderem direitos de terceiros, sem qualquer oposição.

vii. Entre os dias 14 (no período da tarde) e 16 (de manhã cedo) de Julho de 2019, o réu bloqueou as duas entradas para o prédio identificado em 1., por meio da colocação de grandes rochedos nas mesmas, impossibilitando o acesso ao referido prédio.

viii. Na mesma data, o réu destruiu todos os pomares existentes no prédio referido em 1., arrancando, pela raiz, todas as respectivas árvores, perdendo-se todos os seus frutos, arrancou vedações, removeu cancelas, ficou com todos os pertencentes existentes na construção, tais como 150 fardos de feno e duas caravelas, um motor de rega com chupador e mangueira, e arrasou os poços que se encontravam na propriedade, não existindo nesta, no momento, qualquer fonte água, tendo ainda ocupado com o seu gado bovino o mencionado prédio, colocando-o neste local a ser apascentado.

ix. Em face do referido em 11, 12 e vi., os autores não conseguem aceder ao prédio referido em 1.

x. Em face do referido em vi. e vii. os autores têm insónias, falta de apetite, irritados, ansiosos e com receio de se encontrarem com o réu.».

Na fundamentação da sentença exarou-se a respeito:

«A resposta dada aos factos não provados n.ºs ii., iii., iv, v., vi., vii., viii., ix., e x. ficou a dever-se à insuficiência ou ausência de prova produzida quanto aos mesmos, nomeadamente testemunhal.

Vejamos.

A testemunha FF, oficial de justiça, residente em ..., referiu que os pais recebiam a renda do prédio em causa e cujo rendeiro era o pai do autor, tendo apenas o óbito deste a mãe do autor pago renda até 1992.

Posteriormente a tal data mencionou que nunca viu os autores no prédio em causa ou sequer ouviu dizer que aqueles eram os donos do mesmo, tendo conhecimento que os proprietários do prédio em causa enviaram uma carta ao autor com proposta para compra do mesmo, tendo aquele declinado tal negócio.

Nos últimos 15 anos mencionou ter-se deslocado ao prédio em causa há, mais ou menos, 10 anos, concretizando o por si visualizado [2 poços, meia dúzia de macieira “raquíticas” e parreiras dispersas muito antigas (sepos)] e não visualizado [vedações, sistema de rega (tinha uma torneira a sair do poço)].

Relatou que nos anos 90 o autor utilizava o terreno por autorrecriação, não concretizando até quando, sendo que em 2010 o prédio foi vendido ao réu.

A testemunha DD, além do supra, referiu ainda que há 30 anos com quando se deslocou numa segunda ocasião ao prédio, o qual desconhece de quem é o proprietário, viu árvores plantadas – macieiras e andavam a plantar vinhas.

Quanto à forma de entrada no local mencionou que entrou junto de uma casa, sendo que havia outra entrada, pela qual não entrou.

Há 3 anos quando foi ao terreno, para comprar uma máquina ao autor, deslocou-se ao mesmo a pé, uma vez que estavam pedras no local.

Por último, EE, 70 anos de idade, primo do autor e foi funcionário do réu, não estando de boas relações com este, referiu que conhece o prédio em causa, desconhecendo a quem pertence, afirmando que via os tios e o primo no mesmo desde os 8 anos de idade.

Porém, referiu não se deslocar ao mesmo desde que “fez a vida”, tendo ido 3 ou 4 vezes no máximo desde que é casado [a testemunha é casada há 50 anos].

Para se deslocar ao prédio acedia por um caminho, pelo qual um carro e um tractor agrícola pequeno passava, sendo esta a única passagem que conhecia.

Por altura do procedimento cautelar sabe, porque esteve no local, o referido caminho encontrava-se bloqueado.

As testemunhas prestaram os depoimentos de forma clara e objectiva, denotando conhecimento dos factos porque os presenciaram, não demonstraram intenção de prejudicar ou beneficiar qualquer uma das partes, motivo pelo qual mereceram credibilidade.

Ora, atenta a prova supra, temos que nenhuma das testemunhas aludiu que os autores utilizassem o prédio em causa após 16.12.2011, nem os actos aí praticados por estes; nem que utilizam de forma exclusiva a passagem em causa, nem desde que data; quando e quem boqueou as entradas no prédio em causa; quem procedeu à destruição dos bens construídos, árvores plantadas, socalcos efectuados pelos autores; que os autores não conseguissem passar para o prédio e que se sentissem afectados da forma alegada pelos autores em consequências de tais actos.

Face à insuficiência da prova produzida em julgamento quanto aos factos supra indicados, prova essa que se limitou à prova testemunhal, cuja súmula foi acima efectuada, o Tribunal não conseguiu, dar como provados aqueles factos que os autores se propunham demonstrar em juízo.

Os autores estavam onerados com o respectivo ónus da prova, pelo que, não logrando cumprir tal ónus, terá a questão que ser resolvida contra si.

Assim, tendo em conta a prova produzida e devidamente conjugada entre si, temos que os autores não lograram provar os factos supra por si alegados.» ([4]).

Invocam os Apelantes, relativamente à prova pessoal, os depoimentos das aludidas testemunhas DD e EE.

Quanto àquela primeira testemunha (DD), com base nas passagens da gravação áudio que invocam, os AA. apresentam – na sua motivação recursiva – a seguinte resenha, no que consideram relevante:

«DD, com depoimento gravado no sistema integrado do sistema Citius, no dia 08/06/2022, desde as 10.41.51 h a 11.10.01h, do qual se ressalvam as seguintes passagens, 03.50 min. a 8.27 min.- Tendo a testemunha dito que conhece o prédio descrito em nº01 (...) dos factos provados desde há cerca de trinta anos altura em que aí se deslocou para efectuar a reparação de uma máquina que aí se encontrava a abrir poços e a construir leirões.

Que esse terreno era da propriedade dos AA.

Para aceder a tal prédio descreve a passagem desde o seu início até à sua desembocadura numa casa de pedra no interior do terreno chamado ....

Afirma que lá voltou algum tempo mais tarde e viu-o todo plantado com pomares de macieiras, poços abertos, leirões, rega, etc.

Tendo sido o A. quem lhe mostrou tal prédio.

Há cerca de três anos, que coincide com a propositura da providência cautelar apensa as autos, voltou ao prédio para adquirir uma máquina ao A. e verificou que a entrada do prédio do A. sito em ... estava bloqueada com pedras de grandes dimensões.

Para chegar ao prédio teve de se deslocar a pé ao prédio.

Nas passagens de 10.50min a 13.57 min – reconhece o local em discussão nos autos, as pedras que bloqueiam a passagem e o terreno destruído, mais precisamente as fotos de fls.43, 44, e segs.

14.21min. a 15.15 min- A testemunha relatou que regressou no Verão de 2019, há cerca de 03 anos, ao terreno do A. e não viu lá nada do que tinha visto anteriormente, não havia poços e só viu 02 laranjeiras, algumas torneiras, estava tudo destruído.

De 16 min a 18.39 min- afirma que tal estrago e bloqueio das passagens só podia ter sido efectuado por máquinas de grandes dimensões.

Ao que lhe foi dito pelo A. algumas vacas do R. comeram os pomares.

Confirma que o prédio do ... era da propriedade do A., não há dúvida, pois era quem tratava.

20.03 min a 21.07 min- Confrontado pela parte contrária confirma que as pedras das fotos são idênticas às que estão no terreno, apesar das considerações e insinuações do mandatário da parte contrária.» (itálico e sublinhado aditados).

Ora, desta resenha apresentada pelos AA. pode retirar-se que a testemunha depôs no sentido de se ter deslocado ao local por três vezes: (i) “há cerca de trinta anos”; (ii) “algum tempo mais tarde” (sem concretização); (iii) “há cerca de 03 anos” (“regressou no Verão de 2019”).

Assim, quanto ao lapso temporal que agora importa – entre 17/12/2011 e a data de instauração da ação (24/11/2019), durante aproximadamente oito anos consecutivos –, a testemunha apenas afirma, com a necessária concretização temporal/cronológica, ter-se deslocado uma vez ao local, no dito “Verão de 2019”.

Ora, bem se compreendem as reservas do Tribunal recorrido, posto importar que os AA. fizessem a prova com referência à persistência, continuada, da prática dos atos aludidos (os atos materiais de posse sobre o prédio) ao longo daquele período temporal, de aproximadamente oito anos consecutivos, enquanto a testemunha apenas se refere àquela vez, no verão de 2019, em que, dentro desse lapso temporal, se deslocou ao local (uma única vez afirmada).

É certo que afirmou o que viu então no local, mas não relatou o que se passou ao longo desses quase oito anos.

E o mesmo se diga, mutatis mutandis, para a segunda testemunha referida (EE), âmbito em que os impugnantes expressaram assim:

«EE, com depoimento gravado no sistema integrado do sistema Citius, no dia 08/06/2022, desde as 11.16.02 h a 11.29.25h, do qual se ressalvam as seguintes passagens,

De 00min. a 8.36 min- a testemunha afirma ser primo do A. e ter 70 anos de idade.

Que desde os 09 anos que conhece o terreno e sempre ali viu o A. e os pais destes.

Sabe das construções e plantações efectuadas pelo A., apesar das poucas vezes que aí se deslocou, designadamente pomares de macieiras, laranjeiras e videiras, leirões e abertura de poços.

Declara que na povoação de ... todos sabem que é o A. quem utiliza o prédio.

Pensava que o prédio era dos tios e que destes passou para o A.

Mas não sabe de quem é o prédio desde que andam em tribunal. Diz que foi sempre assim sem dúvidas até à altura em que o R. o comprou.

No seu depoimento descreve a passagem de acesso ao terreno, que se faz a pé e de carro.

Relatou, ainda, que o caminho foi fechado com “pedregulhos”, tendo sido quem o levou ao local para ver tal serviço há cerca de três anos.

Que por essa altura o primo, o A., o levou ao terreno e que verificou que tudo estava destruído, não tendo entrado na casa de pedra que aí se encontra.

Referiu que soube de tal e verificou o estado da propriedade por altura da providência cautelar, na qual foi testemunha.

11.49 min a 13.23 min- A testemunha refere, de novo, que sabe que no terreno estavam os tios e pensava que o terreno era deles e que só agora é que há problemas.

Diz, ainda, na sua linguagem simples que “sempre se dizia que era deles”

Acrescentando que o A. após 1974 passou a ser visto no local.» (destaques aditados).

Assim, a testemunha reconheceu que «poucas vezes que aí se deslocou» (ao local), sabendo «sem dúvidas até à altura em que o R. o comprou» (o prédio), ou seja, até ao tempo a que aludem os pontos 7 e 6 dados como provados e não objeto de impugnação, com o seguinte teor ([5]):

«7. Por documento epigrafado “Casa Pronta – Compra e Venda”, celebrado a 29.03.2011, na Conservatória o Registo Predial de ..., JJ e outros declararam vender a II o prédio identificado em 1., pelo preço de € 3.300,00»; e

«6. Em 13 de Fevereiro de 2013, por escritura pública de habilitação, no Cartório Notarial da Dra. KK, sito na rua ..., em ..., foi habilitado, como único e universal herdeiro de II, o requerido CC, seu filho.».

Donde que também esta testemunha não tenha acompanhado, com continuidade, o que se passou ao longo de todo aquele lapso temporal em discussão, os quase oito anos até à instauração da presente ação.

É certo que as testemunhas fizeram referência à sua convicção de que «esse terreno era da propriedade dos AA.», «era da propriedade do A.», «Pensava que o prédio era dos tios e que destes passou para o A.», «pensava que o terreno era deles» e «sempre se dizia que era deles».

Tais convicções acerca do direito dominial, porém, não fazem prova, como é obvio. Trata-se apenas de conclusões das testemunhas e não de relatos destas acerca dos factos, sendo que as conclusões – ademais, com dimensão jurídica relevante quanto ao desfecho dos autos, vistos os pedidos formulados – somente o Tribunal as pode extrair, e extrair dos factos provados (depois de estes estarem estabelecidos na sentença).

Por isso, o que importava era que as testemunhas relatassem os factos objetivos relevantes – quais os atos materiais praticados, por quem, em que circunstâncias de tempo e de modo e com que continuidade ou projeção temporal ininterrupta –, só esses devendo ser objeto de depoimento testemunhal, ao menos em termos operantes/relevantes para efeitos probatórios.

Se é certo que, nos termos legais, a força probatória dos depoimentos testemunhais é apreciada livremente pelo tribunal (art.º 396.º do CCiv.), o objeto do depoimento haverá de incidir sobre os factos – aqueles que sejam suscetíveis de prova testemunhal (cfr. art.ºs 392.º e segs. do CCiv.), e só esses – e não sobre conclusões, valorações ou apreciações subjetivas, designadamente quem as testemunhas entendem que é o dono/proprietário de um determinado terreno/prédio, nomeadamente por sempre se ouvir dizer que “era de determinada pessoa” (o direito de propriedade) ou que “não há dúvida, pois era quem tratava” ([6]).

Em suma, em termos valorativos – na autónoma convicção que cabe ao Tribunal da Relação –, o que assim resulta destes dois depoimentos não é suscetível de demonstrar a existência de erro de julgamento de facto do Tribunal de 1.ª instância, sabido, neste âmbito, que a Relação (só) deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto se a prova produzida – e convocada pelo impugnante [cfr. art.º 640.º, n.º 1, al.ª b), do NCPCiv.] – impuser decisão diversa (art.º 662.º, n.º 1, deste mesmo Cód.).

Invocam ainda os Recorrentes que tiveram de recorrer a procedimento cautelar “para na posse serem restituídos”, daí pretendendo extrair a presunção de que a posse continua em nome de quem a começou, ou seja, os próprios aqui AA., tanto mais que o R. a não conseguiu ilidir.

Ora, nesta parte cabe dizer – salvo sempre o devido respeito – que a natureza instrumental dos procedimentos cautelares determina que a respetiva decisão seja, por regra, provisória, muito embora possa transitar em julgado.

Não estando em causa a inversão do contencioso – não invocada in casu –, o trânsito em julgado da decisão da providência cautelar torna-a definitiva, mas como simples procedimento cautelar, nesse horizonte instrumental. Por isso é que, regulando a lei a relação entre o procedimento cautelar e a ação principal, é inequívoco que nem o julgamento da matéria de facto, nem a decisão final proferida no procedimento cautelar, têm qualquer influência no julgamento da ação principal (cfr. art.º 364.º, mormente o seu n.º 4, do NCPCiv.).

Termos em que, nem quanto a fundação de presunções (de posse e sua continuação ou outras), se pode colher qualquer influência do julgamento proferido no procedimento cautelar sobre o julgamento da ação principal.

E note-se que, no caso do procedimento cautelar de restituição provisória de posse – sujeito, como é comum nas providências cautelares, a tramitação e prova sumária –, a restituição é ordenada, perante o exame das provas oferecidas pelo requerente, “sem citação nem audiência do esbulhador” (cfr. art.ºs 292.º a 295.º e 378.º, todos do NCPCiv.).

Em suma, não colhe a argumentação dos Recorrentes baseada em presunção assente na decisão incidental do invocado procedimento cautelar de restituição provisória de posse e respetiva não ilisão (pela contraparte).

Quanto à testemunha FF, cujo depoimento foi valorado na sentença nos moldes supra aludidos, invocam os Recorrentes que devia a mesma ter-se declarado impedida, o que não fez. Porém, o argumento não pode proceder.

Desde logo, por o motivo que os Recorrentes invocam – ser oficial de justiça e ter tramitado processos crime referentes a queixas apresentadas pelos AA. contra o R. – não estar contemplado no motivo legal de “impedimentos”, a que alude o art.º 496.º do NCPCiv. (“os que na causa possam depor como partes”).

Depois, por nada ter sido requerido pelos AA. a respeito no tempo próprio – cfr. ata de audiência final de 08/06/2022, a fls. 52 e segs. do processo físico, onde a testemunha se identificou, com menção quanto à sua profissão, afirmando nada a impedir de dizer a verdade e com prestação de juramento legal, ao que nada foi objetado por qualquer das partes –, termos em que não passa de inconsequente inconformismo o que os AA./Recorrentes agora invocam (reservaram para o recurso).

Não fica, pois, posta em causa a valoração que o Tribunal recorrido efetuou acerca deste depoimento testemunhal, mormente quando referiu que os pais recebiam a renda do prédio em causa e cujo rendeiro era o pai do autor, tendo apenas o óbito deste a mãe do autor pago renda até 1992; posteriormente, nunca viu os autores no prédio em causa ou sequer ouviu dizer que aqueles eram os donos do mesmo, tendo conhecimento que os proprietários do prédio em causa enviaram uma carta ao autor com proposta para compra do mesmo, tendo aquele declinado tal negócio; ter-se deslocado ao prédio em causa há, mais ou menos, 10 anos, concretizando o por si visualizado; relatou que nos anos 90 o autor utilizava o terreno por autorrecriação, não concretizando até quando, sendo que em 2010 o prédio foi vendido ao réu.

Por outro lado, a matéria fáctica referente à prática de atos materiais sobre determinado terreno/prédio, sua extensão material e temporal, seu início e sua continuidade, com caráter ininterrupto, ao longo de determinado lapso temporal, intenção subjacente a essa conduta, de forma visível/aparente e sem oposição – em que assenta o instituto da usucapião, quanto aos seus pressupostos –, obtém prova, comummente (embora não necessariamente em exclusivo), através dos relatos da prova testemunhal, cuja falta não é suprível por prova técnica.

Ou seja não será o invocado relatório pericial que vai convencer o Tribunal sobre toda essa matéria fáctica, a referente à posse (“corpus” e “animus”), ao decurso do prazo da prescrição aquisitiva, bem como às caraterísticas da continuidade, publicidade e pacificidade, pela razão, desde logo, de que tal materialidade implica uma visão temporal dinâmica (continuada ao logo do tempo) e não uma apreciação temporalmente estática ou limitada, que não permite, obviamente, saber – no campo dos conhecimentos técnicos do perito – o que se passou ao longo de anos ou décadas de contacto das pessoas com os bens imóveis.

2. - Outra coisa é resultar do relatório pericial que o prédio se encontra encravado, pretendendo os AA./Recorrentes, nesta senda, que seja aditado um novo “facto”, o de que se trata “de um prédio encravado” (cfr. conclusão 12.ª).

Ora, também aqui tem de improceder a pretensão dos impugnantes, salvo sempre o respeito devido.

Desde logo, por não se tratar de matéria factual, só esta (a fáctica) devendo ser, por regra, vertida na parte fáctica da sentença (cfr. art.º 607.º, n.ºs 3 a 5, do NCPCiv.).

É que o conceito de “prédio encravado” é um conceito legal [cfr. art.ºs 1380.º, n.º 2, al.ª a), e, especialmente, 1550.º e 1552.º, todos do CCiv.], logo, inconfundível com materialidade fáctica, havendo, isso sim, esse conceito jurídico de ser preenchido, com inerente valoração, através de factos apurados de suporte.

Ora, do ponto 10 dos factos provados já consta – sem impugnação recursiva – que o prédio referido em 1. não dispõe de acesso direto à via pública.

Assim sendo, a factualidade relevante – no âmbito alegado (cfr. art.º 7.º, bem como art.ºs 8.º a 10.º, todos da petição, e pedido correspondente, no respetivo petitório) – já se encontra no quadro dos factos provados da sentença, tornando inútil outros aditamentos fácticos nos moldes pretendidos, visto que a invocação de se tratar de “prédio encravado”, por claramente conclusiva e relevante para a decisão do peticionado em termos de direito de servidão de passagem, contendendo, pois, com o desfecho jurídico da causa (nessa parte), não poder ter assento no quadro fáctico provado.

Também as convocadas invocações em sede de relatório pericial ao alegado pelos AA. não podem, obviamente, constituir prova de que o assim reportado como alegado é verdadeiro (apenas o perito refere que tal foi alegado pela parte).

E nem o decidido em sede de procedimento cautelar tem, pelos mesmos motivos antes expressos, maior préstimo em termos probatórios.

3. - Por outro lado, sem prova a respeito – designadamente, testemunhal –, não pode concluir-se, sem mais, nomeadamente por presunção, que foi o R. o autor dos atos de bloqueio, arrasamento e destruição.

Tratando-se de atos ilícitos, em que os AA. fundam uma específica obrigação indemnizatória, com pedido correspondente, a eles, como demandantes/lesados, em sede de responsabilidade extracontratual, cabia o ónus da prova (cfr. art.ºs 342.º, n.º 1, e 483.º, n.º 1, ambos do CCiv., bem como 414.º do NCPCiv.).

Assim, não foi ultrapassada a dúvida, através da prova convocada pelos impugnantes, que levou o Tribunal recorrido a dar como não provada a matéria referente à autoria desses factos, não se mostrando que só o R. pudesse levar à prática – por si ou com o concurso de outrem – os ditos atos lesivos.

Por isso, também nada há a alterar nesse aspeto, não podendo concluir-se que tenha ocorrido erro de julgamento de facto da 1.ª instância, à qual, note-se, e só a ela, assiste o privilégio da total imediação perante a prova pessoal (ao contrário da Relação, com consabidas limitações nessa matéria).

Por fim, em sede de prova documental, invocam os impugnantes o acórdão proferido em anterior ação judicial, que correu termos desde o ano de 2011 e a que aludem os pontos 19 e 20 dos factos provados, estes com o seguinte teor:

«19. Correu termos neste tribunal uma acção declarativa com o processo n.º 202/11...., cujo acórdão foi proferido em 29.01.2019, já transitado em julgado, na qual entre outros figuravam os ora autores como Autores e o ora réu como um dos Réus, após habilitação por óbito do pai, II, réu primitivo, e cujo pedido principal era que lhes fosse reconhecido o seu direito de propriedade sob o prédio identificado em 1., com base no instituto da usucapião.

20. A acção referida em 19. foi proposta em 15.12.2011.».

Porém, os AA., embora tenham requerido a apensação dos autos de procedimento cautelar, não contemplaram essa específica prova documental (o dito acórdão) no seu requerimento de provas (cfr. a parte final da petição, a fls. 10 e v.º do processo físico,), tal como os RR. o não fizeram (cfr. contestação, a fls. 19 e v.º também do processo físico).

Em audiência prévia, datada de 03/11/2020, não indicaram outras provas (cfr. fls. 37 e segs.), nada constando também a respeito da ata de audiência final (fls. 52 e segs.).

É certo que na petição os AA. aludem aos autos com o n.º 202/11.... (art.ºs 19.º e segs.), mas não referem o respetivo acórdão, muito menos como elemento de prova que quisessem apresentar.

Por isso, embora tenha sido dado como provado o facto 19.º, com base na certidão de acórdão junta com o procedimento cautelar apenso, nada mais se acrescentou ao complexo fáctico e à respetiva fundamentação.

Pretende agora a parte recorrente que os factos provados naqueloutra ação – em que “não existe a tríplice identidade (sujeitos, do pedido e da causa de pedir)” – «sejam considerados na presente acção como pressuposto de uma nova decisão» (cfr. fundamentação recursiva da decisão de facto, a fls. 135 do processo físico).

Porém, não refere – nem nas conclusões nem na antecedente motivação recursória – que concretos factos sejam esses que pretende que se acrescentem aos factos provados dos presentes autos, incorporando-os na decisão da presente apelação.

Assim, não cumpre, por vacuidade, o disposto no art.º 640.º, n.º 1, al.ª a), do NCPCiv., não mencionando/especificando quais os concretos factos que, integrantes dos factos provados do antecedente acórdão transitado, deveriam ser transpostos para a parte fáctica (factos provados) da decisão da presente ação.

Havendo elenco de factos provados naquele antecedente acórdão, exigia-se à parte impugnante que especificasse a concreta factualidade a aditar/transpor, o que não fez, não podendo ser este Tribunal de recurso a substituir-se à parte, ademais, sem contraditório adequado, na seleção dos factos que aquela optou por não especificar, inobservando o ónus legal, que sobre si impendia, a que alude a norma daquele art.º 640.º, n.º 1, al.ª a), do NCPCiv., o qual, expressamente, sanciona os comportamentos inadimplentes com a “pena de rejeição”.

Assim sendo é de rejeitar nesta parte a impugnação (cfr. conclusões 9.ª a 12.ª dos Apelantes).

Mas mesmo que assim não se entendesse, se a sentença dessa anterior ação cível foi absolutória ([7]), a respetiva autoridade de caso julgado – função positiva do trânsito em julgado –, incidindo sobre o dispositivo absolutório e estendendo-se aos fundamentos que foram essenciais a essa absolvição (seus pressupostos necessários), não abarca factos estranhos, embora apurados, ao juízo absolutório proferido, posto ter sido este que transitou em julgado, sabido que a sentença que decida a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele, nos precisos limites e termos em que julga, ou seja, em que decide e responde à concreta pretensão trazida a juízo (cfr. art.ºs 619.º, n.º 1, e 621.º, parte inicial, do NCPCiv.).

É que, como vem sendo entendido pela doutrina e pela jurisprudência dos Tribunais superiores:

«I. A autoridade do caso julgado implica o acatamento de uma decisão proferida em ação anterior cujo objeto se inscreve, como pressuposto indiscutível, no objeto de uma ação posterior, obstando assim a que a relação jurídica ali definida venha a ser contemplada, de novo, de forma diversa.

II. Para tal efeito, embora, em regra, o caso julgado não se estenda aos fundamentos de facto e de direito, tem-se entendido que “a força do caso julgado material abrange, para além das questões diretamente decididas na parte dispositiva da sentença, as que sejam antecedente lógico necessário à emissão da parte dispositiva do julgado.”» ([8]).

Ao que acresce que não invocam sequer os Apelantes que daquele anterior acórdão – ou de diversa prova documental, pericial ou outra – resulte como provado (ou como tal deva considerar-se) que foi o R. quem (por si ou por outrem a seu mando) levou à prática os factos a que aludem os impugnados pontos 12.º e 13.º do elenco dos factos provados, os quais, por isso, não se mostra que estejam incorretamente julgados – quanto ao não apuramento da respetiva autoria (“pessoa não determinada”).

Por último, é de salientar o peso, também em termos probatórios – na análise conjugada das provas produzidas e decorrente formação da convicção –, do facto (de si, incontroverso, por não impugnado no recurso) de o R. ser o herdeiro (único e universal) da pessoa que, em 29/03/2011, outorgou como compradora no contrato de compra e venda do prédio identificado em 1., pelo preço de € 3.300,00, tornando implausível que, após a compra (cfr. factos 6.º e 7.º provados), os RR. continuassem sempre, ao longo dos anos (aqueles quase oito anos), a relacionar-se com o imóvel, em termos de atos de posse (e demais elementos imprescindíveis à usucapião), como se nada tivesse acontecido, ou seja, como se o prédio não houvesse sido “adquirido”/“comprado” por outrem pelo preço aludido e perante a indiferença do “comprador” (e seu herdeiro) que, para tanto, desembolsou aquela elevada quantia ([9]).

Tudo ponderado, nada se impõe que seja alterado em matéria de decisão de facto, não se demonstrando erro de julgamento de facto da 1.ª instância.

B) Da Matéria de facto

1. - Após a sindicância – sem alteração – operada pela Relação, é a seguinte a factualidade provada a considerar para a decisão:

«1. Encontra-se descrito sob o n.º ...45 na Conservatória de Registo Predial de ... e inscrito na respectiva matriz sob os artigos ....º da secção G (matriz rústica) e ...81.º-P (matriz urbana) o prédio misto composto por terra de cultura arvense, figueiras e oliveiras e casa térrea destinada à recolha de alfaias agrícolas/arrecadações, com a área coberta de 40 m2 e com a área total de 1,075 hectares, sito em ... ou ..., freguesia ..., a confrontar do Norte, Sul, Nascente e Poente com herdeiros de LL.

2. Pela ap. ...1 de 1995/12/27, o prédio aludido em 1) encontra-se inscrito, na proporção de ½, em comum e sem determinação de parte ou direito, a favor de MM, de NN, OO, casado com PP, NN e QQ, tendo como causa de aquisição sucessão por morte, sendo os sujeitos passivos NN, casado com RR, e RR, casada com NN.

3. Pela ap. ...11 de 2010/08/04, o prédio aludido em 1) encontra-se inscrito, na proporção de ½, sem determinação de parte ou direito, a favor de SS, casado com TT, UU, casado com VV, WW, NN, casado com XX, NN, casado com YY, ZZ, casada com AAA, ZZ, casada com BBB, ZZ, casada com CCC, ZZ e DDD, casada com EEE, tendo como causa de aquisição sucessão hereditária, sendo os sujeitos passivos OO e FFF.

4. Encontra-se descrito sob o n.º ...32 na Conservatória de Registo Predial de ... e inscrito na respectiva matriz sob o artigo ....º da secção G o prédio rústico, composto por olival, solo subjacente de cultura arvense olivícola, cultura arvense, oliveiras, terreno estéril, prado natural e leito de curso de água, com a área total de 56,5 hectares, sito em ... e ..., freguesia ..., a confrontar do Norte com GGG, do Sul com HHH, do Nascente com III e do Poente com via pública.

5. Pela ap. ... de 2006/09/13, o prédio aludido em 4) encontra-se inscrito a favor de II, tendo como causa de aquisição compra, sendo o sujeito passivo A... e mulher JJJ NN, casado com RR, e RR, casada com NN.

6. Em 13 de Fevereiro de 2013, por escritura pública de habilitação, no Cartório Notarial da Dra. KK, sito na rua ..., em ..., foi habilitado, como único e universal herdeiro de II, o requerido CC, seu filho.

7. Por documento epigrafado “Casa Pronta – Compra e Venda”, celebrado a 29.03.2011, na Conservatória o Registo Predial de ..., JJ e outros declararam vender a II o prédio identificado em 1., pelo preço de € 3.300,00.

8. Os autores, desde, pelo menos 1993 até 15.12.2011 utilizaram o prédio identificado em 1., limpando as suas terras de mato, lavrando-o, semeando-o, plantando vinha, couves, nabos, batatas, pomar de macieiras, laranjas, figos, milho, tomates e brócolos, tendo reconstruído o prédio urbano que se encontrava em ruínas, o qual usam como local de arrumos, surribaram o prédio, construíram socalcos para melhor aproveitamento agrícola, abriram três poços e construíram um sistema de rega para toda a propriedade, vedaram-na com rede e postes e reconstruíram muros de pedra.

9. O que fazem em exclusividade, como se fosse coisa sua, à vista de toda a gente, sem que alguém alguma vez se tenha oposto.

10. O prédio referido em 1. não dispõe de acesso directo à via pública.

11. Para aceder ao prédio referido em 1. existe uma passagem que se inicia na confinância, a norte, entre o prédio ....º da secção G e o prédio ...64 da secção B, ambos da freguesia ..., concelho ... (este último propriedade dos autores), com duas entradas que entroncam num só caminho, e que se desenvolve ao longo da parcela n.º ...9 do prédio n.º ...1... no sentido Nordeste Sudoeste, e termina na estrema norte do prédio rústico n.º ...3 secção G, junto à construção aí existente, com uma largura média de dois metros e um comprimento de pelo menos 500 metros, todo em terra batida, definido com bermas, com marcas dos trilhos de pneus dos veículos que por aí passam, sendo que em cartas parte do caminho no seu leito se vislumbram alguns afloramentos de vegetação e pequenas pedras.

12. Desde data não concretamente apurada, e por pessoa não determinada, a passagem referida em 11. encontra-se parcialmente bloqueada.

13. Desta data não concretamente apurada e por pessoa não determinada, foram arrasados três poços existentes, destruídos socalcos, pomar e videiras no prédio identificado em 1..

14. Os autores despenderam as seguintes quantias no prédio identificado em 1.

i. Nos 3 poços de rega, pelo menos €2.400,00;

ii. No sistema de rega, pelo menos €2.500,00;

iii. Na reconstrução dos edifícios implantados dos prédios (alçamento de paredes, limpeza de pedra das mesmas, reboco, cimentar o chão, colocação de janelas e portas metálicas, construção de um telhado novo), pelo menos €2.800,00;

iv. No surribar do terreno, pelo menos €4.000,00;

v. Na plantação da vinha, pelo menos €2.000,00;

vi. Na plantação do pomar, pelo menos, de macieiras, €3.000,00;

vii. Na construção de socalcos, pelo menos €8.000,00;

viii. No alçamento de muros de vedação, pelo menos €3.000,00;

15. Retirar os socalcos e a surriba do prédio referido em 1) destrói todas as culturas agrícolas e o prédio perde capacidade agrícola para a plantação de vinha e árvores de fruto.

16. Destruir a casa implica que se perca o lugar de arrumos.

17. Sem os poços o prédio fica sem fontes de abastecimento de água, sendo regado pelas águas pluviais, o que faz perder o valor e potencial agrícola.

18. Em face do referido em vi. e vii. os autores sentem-se nervosos em tristes.

19. Correu termos neste tribunal uma acção declarativa com o processo n.º 202/11...., cujo acórdão foi proferido em 29.01.2019, já transitado em julgado, na qual entre outros figuravam os ora autores como Autores e o ora réu como um dos Réus, após habilitação por óbito do pai, II, réu primitivo, e cujo pedido principal era que lhes fosse reconhecido o seu direito de propriedade sob o prédio identificado em 1., com base no instituto da usucapião

20. A acção referida em 19. foi proposta em 15.12.2011.».

2. - E resulta julgado não provado:

«i. Os autores ignoravam, quando começaram a exercer poderes de facto ou actos materiais sobre o prédio identificado em 1 e mencionados em 8., que lesavam o direito de outrem.

ii. Os autores após 16.12.2011 utilizaram o prédio identificado em 1., limpando as suas terras de mato, lavrando-o, semeando-o, plantando vinha, couves, nabos, batatas, pomar de macieiras, laranjas, figos, milho, tomates e brócolos, tendo reconstruído o prédio urbano que se encontrava em ruínas, o qual usam como local de arrumos, surribaram o prédio, construíram socalcos para melhor aproveitamento agrícola, abriram três poços e construíram um sistema de rega para toda a propriedade, vedaram-na com rede e postes e reconstruíram muros de pedra.

iii. O que fazem em exclusividade, como se fosse coisa sua, à vista de toda a gente, sem que alguém alguma vez se tenha oposto, e na convicção que não lesavam o direito de outrem.

iv. Para acesso ao prédio identificado em 1., a pé, de carro e com máquinas agrícolas, os autores, desde pelo menos 1993, utilizam exclusivamente uma faixa de terreno do prédio referido em 4.

v. Os autores, por si e antepossuidores, desde 1993, usam somente a passagem identificada em 11. para aceder ao prédio referido em 1., a pé, de carro e com máquinas agrícolas.

vi. E fazem-no com convicção de que exercem um direito seu, à vista de toda a gente, de modo ininterrupto, na convicção de não ofenderem direitos de terceiros, sem qualquer oposição.

vii. Entre os dias 14 (no período da tarde) e 16 (de manhã cedo) de Julho de 2019, o réu bloqueou as duas entradas para o prédio identificado em 1., por meio da colocação de grandes rochedos nas mesmas, impossibilitando o acesso ao referido prédio.

viii. Na mesma data, o réu destruiu todos os pomares existentes no prédio referido em 1., arrancando, pela raiz, todas as respectivas árvores, perdendo-se todos os seus frutos, arrancou vedações, removeu cancelas, ficou com todos os pertencentes existentes na construção, tais como 150 fardos de feno e duas caravelas, um motor de rega com chupador e mangueira, e arrasou os poços que se encontravam na propriedade, não existindo nesta, no momento, qualquer fonte água, tendo ainda ocupado com o seu gado bovino o mencionado prédio, colocando-o neste local a ser apascentado.

ix. Em face do referido em 11, 12 e vi., os autores não conseguem aceder ao prédio referido em 1.

x. Em face do referido em vi. e vii. os autores têm insónias, falta de apetite, irritados, ansiosos e com receio de se encontrarem com o réu.

*

xi. Em data não apurada de Abril de 2010, SS, um dos antigos proprietários do prédio identificado em 1, entrou em contacto com o autor, com o intuito de apurar se este estaria interessado em adquirir aquele prédio.

xii. Os antigos proprietários do prédio aludido em 1. entraram em contacto com o autor, porquanto o pai do mesmo foi arrendatário daquele prédio.

xiii. Na sequência do contacto aludido em xii, o autor manifestou interesse na aquisição do prédio identificado em 1.

xiv. O autor solicitou que a escritura fosse realizada em nome da sociedade comercial, de cujas quotas eram titulares os autores, a B..., Lda..

xv. Posteriormente, em data não apurada, o pai do réu decidiu exercer o seu direito de preferência relativamente ao prédio identificado em 1..

xvi. Em 20.01.2011, os antigos proprietários remeteram aos autores a missiva junta como documento n.º 1 e que cujo teor aqui se dá como reproduzido.

xvii. Posteriormente, o autor conversou com o réu e pediu-lhe para abandonar o prédio aludido em 1..

xviii. O autor anuiu ao pedido do réu referido em xvii..».


***

C) O Direito

1. - Da aquisição por via de usucapião do direito de propriedade

Entendendo que a posse dos AA. sobre o prédio revindicado é não titulada e, como tal, de má-fé (por não ter sido ilidida a presunção a respeito), e, bem assim, serem aplicáveis à usucapião as disposições relativas à suspensão e interrupção da prescrição – aliás, em conformidade com o disposto no art.º 1292.º do CCiv. –, o Tribunal recorrido expendeu assim na fundamentação jurídica da sentença:

«No caso em apreço, da factualidade provada e não provada apurou-se que os autores exerceram actos de posse sobre o prédio em causa entre início de 1993 até 15.12.2011 (data da entrada da acção n.º 202/11....), tal como ficou decidido no acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Coimbra.

No entanto, não se apurou que os autores, após tal data (16.12.2011), exercessem quaisquer actos de posse sobre o prédio, nem a forma como exerciam tais actos.

(…)

Deste modo, não ficou demonstrado que os autores pratiquem actos de posse sobre o prédio descrito em 1., pelo menos, desde 16.12.2011.

Assim, temos que para que os autores pudessem adquirir por usucapião o referido prédio, seria necessário que tivesse provado a prática, em primeiro lugar, de actos de posse sobre a mesma e que tais actos ocorreram durante o lapso de tempo necessário para a adquirir por usucapião, o que, posteriormente a 16.12.2011, não lograram fazer.

Desta feita, não lograram os autores demonstrar os pressupostos da posse aquisitiva da titularidade do direito de propriedade sobre o prédio descrito em 1. da factualidade provada, por usucapião.» (destaques retirados).

Perante isto, restava, em primeiro plano, aos AA./Recorrentes alcançar a pretendida modificação da decisão da matéria de facto, de modo a que resultassem provados os factos das impugnadas al.ªs ii) a x) do quadro dado como não provado, o que, como visto, não lograram obter.

Daí que não possa colher, a esta luz, a sua invocação de efetiva persistência na posse – contínua – por mais de 20 anos (prazo de usucapião em caso de posse de má-fé).

É que para tanto não basta uma posse ininterrupta de inícios de 1993 até 15/12/2011, sabido que não se prova continuação, em termos de materialidade alegada, na posse após esta última data.

Mas se a respetiva factualidade de suporte se queda não provada – quanto a efetivos atos materiais de posse após 2011 –, certo é estar apurada posse anterior contínua de 1993 até 2011 (por cerca de 18 anos).

Com efeito, como visto já, a posse é constituída por um corpus e por um animus ([10]). E, quanto à usucapião (cfr. art.ºs 1287.º e 1299.º, ambos do CCiv.), enquanto modo de aquisição originária do direito de propriedade (cfr. art.ºs 1316.º e 1317.º, al.ª c), também do CCiv.) sobre bens móveis (sujeitos ou não a registo) ou imóveis, dir-se-á que este instituto postula, no âmbito dos seus elementos integrantes, uma posse (art.º 1251.º do mesmo Cód.), a qual se traduz num “corpus” – consubstanciado na prática de atos materiais correspondentes ao exercício do direito –, tal como num “animus” – intenção e convencimento do exercício de um poder sobre a coisa correspondente ao próprio direito e na sua própria esfera jurídica –, posse essa que deve ser exercida por um certo lapso de tempo e que deve revestir as caraterísticas da pacificidade, publicidade e continuidade (cfr. art.ºs 1293.º e segs. e 1298.º e segs. ainda do CCiv.).

A posse assume relevância jurídica fundamental, não só pelos mecanismos legais adotados para a sua defesa (cfr. art.ºs 1276.º e segs. do CCiv.), mas também por nela poder fundar-se a presunção da titularidade do respetivo direito, já que, como alude o art.º 1268.º, n.º 1, do CCiv., o possuidor goza da presunção da titularidade do direito, a não ser que exista presunção, a favor de outrem, fundada em registo anterior ao início da posse.

Quer dizer, em ação de reivindicação caberá ao demandante o ónus da alegação e prova dos factos tendentes a demonstrar o seu pretendido direito de propriedade sobre a coisa reivindicada – cfr. art.º 342.º, n.º 1, do CCiv. ([11]) –, prova essa a ser efetuada através de factos dos quais resulte demonstrada a aquisição originária do domínio, por sua parte ou dos seus antecessores na posse.

Quando, porém, a aquisição for derivada terão de ser provadas as sucessivas aquisições dos antecessores até à aquisição originária, exceto nos casos em que ocorra presunção legal de propriedade (cfr. art.ºs 349.º e 350.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CCiv.), como a resultante da posse ou do registo definitivo de aquisição ([12]).

Em causa está agora a verificação de atos materiais de posse sobre o discutido prédio, que a sentença teve por não demonstrados, em termos válidos para efeitos de usucapião, pela parte demandante, quanto à sua persistência na posse – de forma ininterrupta – pelo dito prazo legal de vinte anos.

Referem os AA./Apelantes que estão na posse desde 1993 e que em 2003 já se havia alcançado o prazo de vinte anos (conclusão 13.ª), o que é manifestamente erróneo, pois apenas tinham decorrido, por então, dez anos.

Prazo aquele que também não foi atingido em 15/12/2011 – só se atingiria em 2013 –, sendo sabido, reitera-se, que não se prova, ante o elenco dos factos provados e o dos não provados, continuação na posse após tal data de 2011.

Pareceria, pois, dever improceder o primeiro pedido da ação de reivindicação – o tendente ao reconhecimento do direito de propriedade dos AA..

Todavia, demonstrando-se que os AA. se mantiveram na posse do prédio referido no ponto 1 dos factos provados desde, pelo menos, o ano de 1993 e até 15/12/2011 (factos provados 8 e 9), também é certo inexistirem factos que mostrem que o R. se substituiu aos AA. na posse do prédio.

Provado que os AA. tiveram a posse nesse período de tempo (entre 1993 e 15/12/2011) e disponho o n.º 2 do art.º 1257.º do CCiv. que se presume «que a posse continua em nome de quem a começou», então, provada a posse em tempos recuados (a favor dos demandantes) e não existindo prova de que o possuidor (AA.) tenha, entretanto (ou na atualidade) perdido a posse para terceiros, deve presumir-se que a antiga posse se mantém ainda no presente, mesmo não se provando factos concretos após 15/12/2011.

Termos em que, apesar de não se ter provado por testemunhas que os AA. possuíram após 15/12/2011, gozavam os mesmos desta presunção legal de continuarem na posse da coisa, uma vez que não está provada uma posse contrária do R., abrindo a possibilidade de aquisição daqueles por usucapião.

Com efeito, não se prova qualquer perda de posse dos AA. até 2013 [cfr. também o disposto no art.º 1267.º, n.º 1, al.ª d), do CCiv.].

Estes, gozando da presunção de continuidade na posse, não são penalizados quanto ao ónus de provar atos concretos de posse (tendo-os alegado, mas não os provando, funciona a presunção de direito de conservação da posse a seu favor, como resulta do dito n.º 2 do art.º 1257.º).

Num tal contexto, era o R. quem tinha de provar positivamente que os AA. haviam perdido a posse: teria de ficar provada matéria de onde resultasse que os AA. tinham perdido a posse.

Porém, não logrou o R. fazer essa prova, pelo que não foi ilidida a presunção de conservação/continuidade da posse da contraparte (AA.).

Não bastava que não se provasse que os AA. se tenham mantido na posse do prédio após o ano de 2011 (matéria pelos mesmos alegada). O R. tinha de provar factos demonstrativos da perda da posse por aqueles, só assim podendo afastar a presunção do art.º 1257.º, n.º 2, do CCiv., a qual sempre beneficiaria, demonstrada a sua posse anterior, os demandantes.

É certo que a posse dos AA. se tornou litigiosa/contestada ao longo do tempo anterior à presente ação ordinária: de 2011 a 2019.

Durante todos esses anos a posse andou a ser discutida em tribunal, noutra ação, que os AA. perderam.

Na presente ação, os AA. alegaram, mas resultou não provado, que tinham a posse exclusiva entre 2011 e 2019. Não conseguiram fazer essa prova, num tempo em que a sua posse se tornou litigiosa.

Prova-se até ser o R. o herdeiro (único e universal) da pessoa que, em 29/03/2011, outorgou como compradora no contrato de compra e venda do prédio identificado em 1., pelo preço de € 3.300,00, tornando pouco plausível que, após a compra (cfr. factos 6.º e 7.º provados), os AA. continuassem sempre, ao longo dos anos (aqueles quase oito anos), a relacionar-se com o imóvel, em termos de atos de posse (e demais elementos imprescindíveis à usucapião), como se nada tivesse acontecido, ou seja, como se o prédio não houvesse sido “adquirido”/“comprado” por outrem pelo preço aludido e perante a indiferença do “comprador” (e seu herdeiro) que, para tanto, desembolsou aquela elevada quantia.

Porém – não obstante a estranheza da situação –, a verdade é que não se demonstra que os AA., apesar de tudo, tenham perdido a posse, designadamente nos moldes a que alude o art.º 1267.º, n.º 1, al.ª d), do CCiv..

Por isso, são beneficiados com a presunção legal do art.º 1257.º, n.º 2, do mesmo Cód. ([13]).

O que lhes permite alcançar o prazo legal de usucapião aplicável: o de 20 anos, que se completou em 2013.

Assim, perante os factos dos pontos 8 e 9 provados e aquela presunção operante do art.º 1257.º, n.º 2, tem de admitir-se que os AA., como possuidores de má-fé, adquiriram ao fim de 20 anos, por estarem verificados todos os requisitos da usucapião.

E isto, não obstante ter sido outrem – o pai do R. – a outorgar, como comprador, em contrato de compra e venda do imóvel, no ano de 2011 (factos 7 e 6), não se compreendendo a inércia dessa parte compradora (e do R., como respetivo herdeiro), depois de desembolsar o preço respetivo (€ 3.300,00), em não obter a posse do prédio (para o que teria de obrigar os AA. a abrir mão dela, socorrendo-se dos adequados meios legais/processuais).

Termos em que procede o primeiro dos pedidos dos AA., o de reconhecimento do seu direito de propriedade, adquirido por via de usucapião, bem como quanto a ficar o R. obrigado a não praticar quaisquer atos que impeçam ou dificultem a posse e/ou o exercício dos poderes inerentes ao direito dominial dos AA. sobre o mesmo prédio.

Não assim, porém, quanto ao pedido de restituição do dito prédio, já que não resultou provado que o R. o ocupe ou detenha.

2. - Da aquisição por via encrave ou de usucapião do direito de servidão de passagem

Na sentença em crise, considerando-se improcedente a ação de reivindicação – afastado ficaria o reconhecimento do domínio e improcederia o pedido de entrega/restituição do imóvel –, prejudicado foi tido o pedido de reconhecimento (e inerente condenação) quanto à existência de um direito de servidão de passagem para o prédio em causa, de que os AA..

Porém, mostrando-se os AA./Recorrentes titulares do direito dominial, tem agora de apreciar-se o peticionado em termos de direito de servidão de passagem para o seu aludido prédio (pretendidamente, através do imóvel pertença do R.).

De qualquer modo, e desde logo, resultam não provados os factos das al.ªs iv) a vi), o que sempre levaria à improcedência do pedido com base em aquisição do direito de servidão por usucapião, não obstante o provado quanto a existir uma passagem a que alude o ponto 11 dos factos provados.

Acresce que o próprio pedido referente à existência da servidão vem reportado aos “termos constantes dos arts. 7.º a 10.º da P.I.”, os quais se dirigem à alegada situação de “prédio encravado”, e não à aquisição do direito de servidão de passagem por via de usucapião (aquisição originária esta apenas mencionada no art.º 14.º da petição, mas sem conexão/reflexo no pedido formulado).

Resta a invocada situação de “prédio encravado”, matéria em que se provou que o imóvel não dispõe de acesso direto à via pública (facto 10.º).

E, bem assim, que para aceder ao mesmo existe a passagem descrita em 11.º dos factos provados, passagem essa, contudo, que os AA. não provaram que venham alguma vez utilizando, muito menos com utilização exclusiva desde 1993 [cfr. al.ªs iv a vi, não provadas].

Ora, não dispondo de acesso (direto) à via pública, trata-se aqui, efetivamente, de um prédio encravado, como resulta do disposto no art.º 1550.º, n.º 1, primeira parte, do CCiv., por não ter “nenhuma comunicação com a via pública”, tendo entre ele e a via pública outro ou outros prédios (alheios) de permeio ([14]).

Sendo o prédio do R. um prédio rústico e tendo em atenção o apurado sob o ponto 11 dos factos provados, é de concluir, à luz do disposto no art.º 1550.º, n.º 1, do CCiv., que os AA. têm a faculdade de exigir a constituição de servidão de passagem pelo prédio vizinho do R., mediante indemnização, se for exigida, a que alude o art.º 1554.º do mesmo Cód..

Donde que somente nesta parte proceda o pedido de constituição de servidão de passagem em benefício de prédio encravado, improcedendo no mais (aquisição por usucapião), com a condenação, em aditamento, do R. a abster-se de quaisquer atos que impeçam a utilização da passagem (descrita em 11.º dos factos provados) pelos AA..

3. - Dos danos e decorrente direito indemnizatório

O Tribunal a quo proferiu juízo absolutório também nesta parte, por não se ter provado quem praticou os factos, além de não demonstrarem os AA. serem os proprietários do imóvel em questão.

Os AA./Recorrentes baseavam a sua pretensão recursiva na alteração da decisão da matéria de facto, de molde a ser julgada provada a autoria dos factos imputados/danosos por parte do R., o que não foi conseguido, mantendo-se inalterados os pontos 12.º e 13.º dos factos provados.

Desse modo, é certo permanecer não apurada a identidade da pessoa que praticou tais factos, razão pela qual não poderá o R./Recorrido ser responsabilizado pelos mesmos, assim decaindo a pretensão indemnizatória formulada contra o demandado.

Se é certo que agora se prova a aquisição do direito de propriedade pelos AA., bem como os danos aludidos – cfr. factos 12.º a 18.º –, nada mostra que tais danos possam ser imputados ao R., já que não se prova a identidade de quem os provocou (“pessoa não determinada”).

Termos em que improcede, no quadro da responsabilidade civil, o pedido indemnizatório por danos patrimoniais e não patrimoniais, dele devendo ser absolvido o demandado.

4. - Das benfeitorias e sua subsidiária compensação

O Tribunal a quo proferiu juízo absolutório ainda nesta parte, por entender que as benfeitorias demonstradas são de qualificar como úteis – os três poços e o sistema de rega – ou voluptuárias – as demais apuradas –, fundando, no mais, o seu raciocínio nos seguintes termos (tendo em conta que o possuidor, de boa ou má-fé, tem direito a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, sem detrimento dela, à luz do disposto no art.º 1273.º, n.º 1, do CCiv.):

«(…) teriam os autores, enquanto possuidores de má-fé, o direito a levantar as benfeitorias úteis realizadas no prédio, desde que o possam fazer sem detrimento dela.

Temos ainda que tais benfeitorias não podem sem levantadas sem o detrimento do prédio, por um lado atendendo à forma de construção de um poço e de realização de um sistema de rega feito à medida de um prédio, o que decorre das regras da experiência comum.

Deste nodo, não havendo lugar ao levantamento das benfeitorias supra, terá o titular do direito [de] satisfazer ao possuidor o valor delas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa.

No entanto, no caso em apreço, não tendo o réu efectuado um pedido reconvencional de reconhecimento da propriedade do prédio em causa, faculdade que lhe assistia, não podemos considerar o mesmo dono e legítimo proprietário do prédio em causa.

Deste modo, não tendo resultado, porque não peticionado, que o réu é o dono e legitimo proprietário do prédio em causa, não se pode concluir que este é o beneficiário das benfeitorias supra aludidas, pelo que não terá de indemnizar os autores pelas benfeitorias úteis realizadas por estes, por as mesmas não poderem ser levantadas do prédio sem detrimento do mesmo.».

Contrapõem os AA./Recorrentes que, improcedendo a ação de reivindicação, então teria o R. de ser julgado como proprietário do prédio beneficiado com as benfeitorias.

Com efeito – argumentaram –, se o pai do R. adquiriu por compra e se, por falecimento seu, lhe sucedeu o filho (R.) como único e universal herdeiro (factos 6.º e 7.º), então este adquiriu a propriedade, por aquisição derivada (por na base estarem a transmissão por contrato, primeiro, e a sucessão mortis causa, depois).

Acontece que, como visto já, a ação de reivindicação deve proceder, sendo os AA. – e não o R. – julgados como proprietários do prédio em discussão, com o que logo ficaria prejudicada a matéria das benfeitorias ([15]).

Assim, não sendo reconhecido como titular do domínio, o R. não é beneficiário das ditas benfeitorias ([16]), as quais em nada, por isso, são dotadas de aptidão para enriquecer o seu património.

Termos em que improcede também este subsidiário pedido.

As custas da ação e da apelação devem ser suportadas por AA./Recorrentes e R./Recorrido, na proporção do respetivo decaimento, que se fixa, por equitativo, em 1/3 para os AA. e 2/3 para o R. (cfr. art.ºs 527.º, n.ºs 1 e 2, 529.º, n.ºs 1 e 4, e 533.º, todos do NCPCiv.).

                                               ***

IV – Sumário (nos termos do art.º 663.º, n.º 7, do NCPCiv.): (…).

                                               ***

V – Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação, na procedência apenas em parte da apelação, em revogar (em parte) a sentença recorrida, com substituição ao Tribunal a quo, nos seguintes termos:
a) Na procedência em parte da ação, vai o R. condenado a:
1. - Reconhecer o direito de propriedade exclusiva dos AA. sobre o prédio identificado no ponto 1.º dos factos provados [cfr. supra III, B), 1.-, 1.º], adquirido por via de usucapião, bem como a não praticar quaisquer atos que impeçam ou dificultem a posse e/ou o exercício dos poderes inerentes ao direito dominial dos AA. sobre o mesmo prédio;
2. - Reconhecer a constituição de servidão de passagem pelo seu prédio vizinho [identificado supra em III, B), 1.-, 4.º] – mediante indemnização, se for exigida, a que alude o art.º 1554.º do CCiv. –, em benefício do prédio encravado dos AA. (o aludido em 1.º dos factos provados), bem como a abster-se de quaisquer atos que impeçam a utilização da passagem (descrita em 11.º dos factos provados) pelos AA.;
b) Mantendo-se no mais a sentença impugnada.

Custas da ação e da apelação por AA./Recorrentes e R./Recorrido, na proporção do respetivo decaimento, que se fixa em 1/3 para os AA. e 2/3 para o R..

Escrito e revisto pelo relator – texto redigido com aplicação da grafia do (novo) Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (ressalvadas citações de textos redigidos segundo a grafia anterior).

Assinaturas eletrónicas.

Coimbra, 08/04/2025

Vítor Amaral (relator)

Alberto Ruço

Luís Cravo


([1]) Cujo teor se deixa transcrito, com destaques retirados.
([2]) Excetuando questões de conhecimento oficioso, desde que não obviado por ocorrido trânsito em julgado.
([3]) Caso nenhuma das questões resulte prejudicada pela decisão de outras.
([4]) Itálico aditado.
([5]) Destaques aditados.
([6]) Como é consabido pode-se “tratar” por se ser proprietário, mas também a outros títulos, que não implicam qualquer direito dominial, como no caso do arrendatário (cfr. art.ºs 1022.º e seg. do CCiv.), comodatário (art.º 1129.º do mesmo Cód.), depositário (art.º 1185.º do mesmo Cód.) ou simples detentor ou possuidor precário (art.º 1253.º do dito Cód.). Nestes outros casos, embora as testemunhas possam ver alguém a “tratar”, tal não significa que se possa concluir que quem “trata” é dono.
([7]) Se fosse condenatória, o respetivo trânsito em julgado favoreceria os AA., acolhendo a sua pretensão e impedindo nova ação, entre as mesmas partes, sobre o mesmo objeto.
([8]) Cfr. Acs. STJ de 22/02/2018, Proc. 3747/13.8T2SNT.L1.S1 (Cons. Tomé Gomes), e de 20/06/2012, Proc. 241/07.0TTLSB.L1.S1 (Cons. Sampaio Gomes) – em cujo sumário pode ler-se que «A força do caso julgado não incide apenas sobre a parte decisória propriamente dita, antes se estende à decisão das questões preliminares que foram antecedente lógico, indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado» –, ambos disponíveis em www.dgsi.pt. Desta Relação e Secção, veja-se, inter alia, o Ac. TRC de 25/02/2025, Proc. 17/17.6T8OFR.C1, relatado pelo aqui 2.º Adj. e em que foi 2.º Adj. o aqui relator, também em www.dgsi.pt [ali se entendeu, em situação com concretos contornos diversos, que «a autoridade de caso julgado de anterior sentença absolutória impõe o seu acatamento, obstando a que a relação jurídica ali discutida (...), venha a ser apreciada, de novo, na presente ação», sendo nesse pressuposto que se acolheu a limitação da «produção de prova que no presente processo se pretende fazer, quanto aos fatos que naquela ação foram já dados como provados e não provados, constituindo objeto de apreciação judicial, encontrando-se, por isso, assentes»].
([9]) Na verdade, não é crível que quem outorga em contrato de compra e venda de imóvel, por um preço já elevado, com vista a adquirir esse imóvel, se desinteresse permanentemente do que assim “comprou”, permanecendo em total inércia e indiferença, durante anos a fio, pelo destino do imóvel e sua utilização/exploração por outrem (AA.). E nem o subsequente óbito de tal “comprador” muda o sentido das coisas, ante a habilitação do R., logo em 2013, como único e universal herdeiro daquele. O mesmo não poderia dizer-se, obviamente, se fossem os AA. a figurar como “compradores” em 2011, seguro, porém, que não foram estes quem declarou comprar e quem arcou com o pagamento do preço.
([10]) Cfr., por todos, na jurisprudência recente, o Ac. STJ, de 07/02/2013, Proc. 1952/06.2TBVCD.P1.S1 (Cons. Serra Baptista), em www.dgsi.pt.
([11]) Assim já era entendido no distante Ac. TRL, de 09/02/1993, Proc. 0066831 (Rel. Joaquim Dias), em www.dgsi.pt.
([12]) Cfr. Ac. STJ, de 16/06/1983, BMJ, 328.º - 546, citado por Abílio Neto, em Código Civil Anot., 6.ª ed., Livraria Petrony, Lisboa, 1987, p. 771.
([13]) Como sintetizam Pires de Lima e Antunes Varela, começada a posse, a “posse futura presume-se” – cfr. Cód. Civ. Anot., vol. III, 2.ª ed. revista e actualizada, Coimbra Editora, Coimbra, 1987, p. 16.
([14]) Pires de Lima e Antunes Varela, op. cit., ps. 636 e seg..
([15]) Como referem Pires de Lima e Antunes Varela, não são benfeitorias necessárias «os encargos (…), nem as despesas de cultura, sementes ou matérias-primas (…)», posto estas últimas serem «destinadas à frutificação da coisa e não à sua conservação». Acresce que a «obrigação de o titular do direito indemnizar o possuidor do custo das benfeitorias necessárias e das benfeitorias úteis que não possam ser levantadas sem detrimento da coisa deve ser considerada uma dívida de valor (…)». Havendo, por outro lado, a indemnização de ser fixada pelo valor das benfeitorias, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa, deve atender-se ao “custo das benfeitorias”, se este não exceder o valor do benefício ao tempo da entrega [doutro modo, a indemnização corresponderá “ao valor delas”] – cfr. Cód. Civ. Anot., cit., ps. 41 a 43, usando estes autores, em síntese, a fórmula latina “minus inter expensum et melioratum”. Ou seja, se bem se interpreta, é de atender ao menor dos dois (binómio custo/benefício).
([16]) Do que se trata agora é apenas da pretendida atribuição de indemnização por benfeitorias necessárias, dispondo o art.º 1273.º do CCiv.: “1. Tanto o possuidor de boa-fé como o de má-fé têm direito a ser indemnizados das benfeitorias necessárias que hajam feito, e bem assim a levantar as benfeitorias úteis realizadas na coisa, desde que o possam fazer sem detrimento dela. // 2. Quando, para evitar o detrimento da coisa, não haja lugar ao levantamento das benfeitorias, satisfará o titular do direito ao possuidor o valor delas, calculado segundo as regras do enriquecimento sem causa.”.