1. A aceitação da herança é um ato jurídico unilateral, indivisível e irrevogável, que corresponde ao exercício do direito de suceder conferido a um sucessível através da manifestação de vontade de adquirir a herança, que não obedece a forma legal, podendo até ser levada a efeito de modo tácito (art.ºs 2056º, n.º 1 e 217º, do CC).
2. O prazo de caducidade da ação de redução da liberalidade inoficiosa só começa a contar-se a partir da aceitação da herança por parte de cada herdeiro legitimário (art.º 2178º do CC).
3. O direito potestativo de redução de liberalidades inoficiosas tem de ser exercido dentro daquele prazo - que se não suspende, nem se interrompe (art.º 328º do CC) - sob pena de se extinguir, com a definição da situação jurídica dos interessados.
4. E assim sucederá se o donatário, não herdeiro, deduziu e viu atendida a sua oposição/impugnação no inventário.
5. A dita caducidade aplica-se quer o pedido de redução por inoficiosidade seja feito no inventário ou em ação autónoma - a caducidade atinge não um determinado meio processual, mas o próprio direito potestativo de produzir, como efeito jurídico, a redução da liberalidade inoficiosa.
(Sumário elaborado pelo Relator)
Relator: Fonte Ramos
Adjuntos: Vítor Amaral
Luís Cravo
Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra:
I. Em 05.12.2023, AA instaurou o presente processo de inventário por óbito de BB e mulher CC, seus pais[1] (falecidos a 12.01.2021 e 20.01.2021, respetivamente), contra DD (filho dos inventariados) e EE (neto dos inventariados e donatário).
Apresentou diversos documentos e a relação de bens.
DD e EE deduziram oposição ao inventário e reclamação contra a relação de bens (apresentada pelo cabeça de casal AA), alegando, nomeadamente, já ter decorrido o prazo de caducidade de dois anos para o cabeça de casal requerer a redução por inoficiosidade das doações dos imóveis feitas pelos inventariados.
Observado o contraditório e realizadas as audiências de 11.9.2024 e 19.11.2024 (a primeira, para tentativa de conciliação e, a segunda, para produção de prova), por decisão de 10.12.2024, o tribunal julgou totalmente procedente a reclamação contra a relação de bens apresentada pelos interessados DD e EE, determinando a inclusão na relação dos bens a partilhar por óbito dos inventariados dos bens descritos no facto provado 9) e a exclusão da relação dos bens a partilhar por óbito dos inventariados dos bens descritos nos factos não provados a); julgou procedente a exceção de caducidade do direito de ação relativamente às liberalidades inoficiosas por parte dos inventariados, determinando a exclusão (da relação de bens) dos bens imóveis relacionados pelo cabeça de casal.
Dizendo-se inconformado, o requerente apelou formulando as seguintes conclusões:
1ª - Todos os herdeiros têm o direito a aceitar ou não uma herança de acordo com o conhecimento que tenham do seu ativo e passivo.
2ª - E têm também o direito de a repudiar ao ter conhecimento do acervo hereditário.
3ª - A procura de bens que possam integrar uma herança pelo cabeça de casal, não significa a aceitação da mesma quando souber do seu acervo real.
4ª - O ponto 10 da sentença deve ser dado por não provado, pois embora os oponentes tivessem alegado na Oposição que o cabeça de casal “comunicou aos inquilinos do prédio urbano identificado nos autos nos factos provados que o prédio em causa pertencia à herança da qual era cabeça de casal e herdeiro, e que teriam, nessa medida, de abandonar o prédio” tal vai contra toda a tese do cabeça de casal no requerimento inicial e na resposta.
5ª - Tal alegação não tem o mérito de se declarar confessado sem mais, sem sequer os oponentes identificarem hipotéticos arrendatários.
6ª - Assim, de dar-se por não escrito – não provado o ponto 10 da sentença.
7ª - O Tribunal “a quo” entende que a aceitação da Herança se dá no dia da entrada da ação 33/21.... – 24.3.2021 – onde se pede a ineficácia de negócios jurídicos de modo a que alguns bens regressassem à herança.
8ª - Mal … pois o Autor - cabeça de casal - não sabia que bens existiriam.
9ª - O Juízo de Pinhel, entendeu nulos os negócios jurídicos em 17.3.2022 … e “declara-os da Herança”.
10ª - A Relação de Coimbra entendeu válidos os negócios dissimulados em 28.9.2022 … e aponta para a inoficiosidade e a necessidade de irem a Inventário.
11ª - O STJ entendeu do mesmo modo em 19.01.2023.
12ª - O pedido de Inventário deu entrada a 05.12.2023 – atempadamente.
13ª - O cabeça de casal só poderia avançar com o Inventário após saber se havia bens e do resultado da ação referida.
14ª - No máximo teria conhecimento parcial de direito com a sentença de Pinhel do dia 17.3.2022 … que veio a ser revogada.
15ª - A aceitação da herança dá-se, pois, com a entrada do Inventário tal como a Relação e o STJ “sugerem” expressamente.
16ª - Nunca aceitaria a herança para partilhar um carro de mulas e um de burros.
17ª - E tinha o dever de relacionar os bens na A.T. – como o fez.
18ª - E de chamar à Herança o seu irmão – únicos dois herdeiros legitimários, o que só poderia fazer – como o fez – após o trânsito em julgado do citado acórdão do STJ.
19º - A aceitação da herança não se dá na procura de bens da mesma.
20º - Só se pode aceitar uma herança quando se conhece.
21º - Conhecer é saber do ativo e passivo e dos encargos.
22º - O cabeça de casal só sabe do seu direito a herdar com o acórdão do STJ de 19.01.2023 ou, sem conceder, da sentença do Juízo de Pinhel de 17.3.2022.
23º - Assim, só a poderia aceitar – como aceitou – após tal ou tais datas, pelo que está atempado o procedimento de Inventário.
24ª - Violou ou mal interpretou o Tribunal “a quo” os art.ºs 2056º, 217º-1 do Código Civil (CC) e, claro, também o 2178º do CC.
Remata dizendo que deverá ser revogada a sentença e considerar que a aceitação da Herança se dá não na entrada da ação pauliana de 24.3.2021, mas após o conhecimento do acórdão do STJ de 19.01.2023, no Pr. 33/21.....
Os requeridos/recorridos responderam concluindo pela improcedência do recurso.
Atento o referido acervo conclusivo, delimitativo do objeto do recurso[2], importa apreciar e decidir, apenas, se caducou, ou não, o direito de ação de redução de liberalidades inoficiosas.
1) No dia 12.01.2021 faleceu o inventariado BB, no estado de casado com CC.
2) No dia 20.01.2021 faleceu a inventariada CC, no estado de viúva.
3) No dia 27.7.2005, perante o cartório notarial sito na cidade ..., foi celebrada escritura denominada por “Justificação e Doação”, onde BB e CC, na qualidade de primeiros outorgantes, declararam, além do mais constante da escritura junta como documento 2 do requerimento inicial, que, por conta da sua quota disponível, com reserva de usufruto simultâneo e sucessivo, doavam ao seu neto EE os seguintes bens imóveis:
i) Prédio rústico, inscrito na matriz sob o artigo ...02, sito em ..., freguesia e concelho ..., à data omisso na conservatória de registo predial;
ii) Prédio urbano, inscrito na matriz sob o artigo ...59, sito na Rua ..., freguesia e concelho ..., à data omisso na conservatória de registo predial.
4) Através de escritura pública de compra e venda datada de 23.7.2013, os inventariados venderam a FF e GG o prédio urbano, constituído por rés-do-chão e primeiro andar com logradouro, sito na Rua ..., na freguesia e concelho ..., inscrito na matriz predial urbana n.º ...95, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob a descrição ...84.
5) No âmbito do processo que correu termos no presente juízo sob o n.º 33/21...., instaurado em 24.3.2021, onde figurava como Autor o interessado AA e Réus FF e mulher GG e EE, e na qual peticionou o primeiro, além do mais, a declaração de ineficácia em relação ao Autor das doações efetuadas pelos aqui inventariados e melhor descritas em 3), assim como da compra e venda identificada em 4), declarando que tal ação se devia ao facto de pretender “proceder ao inventário por óbito daqueles falecidos, sendo cabeça de casal nesse inventário, descente mais por velho”, foi aquela ação julgada improcedente na sequência dos acórdão proferidos pelo Tribunal da Relação de Coimbra, o qual revogou a decisão proferida pela 1ª instância, assim como por acórdão proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça, este datado de 19.01.2023.
6) No dia 01.02.2021, o cabeça de casal AA, junto da Autoridade Tributária, participou o óbito dos inventariados, indicando como bens que compunham o acervo a partilhar os imóveis descritos em 3), pagando o respetivo imposto de selo.
7) No dia 10.02.2021, o cabeça de casal AA outorgou escritura denominada por “Habilitação de Herdeiros”, onde declarou, além do mais, que, por óbito dos aqui inventariados, sobrevieram-lhe como herdeiros o próprio cabeça de casal, assim como o interessado DD.
8) O presente processo de inventário foi instaurado no dia 05.12.2023.
9) À[4] data do óbito de BB e CC, os mesmos eram proprietários dos seguintes bens: i) Quarto de casal, composto por uma cama, duas mesas de cabeceira, uma cómoda e um guarda-fatos; ii) Mobília de um quarto; iii) Mobília sala de jantar, composta por um móvel de arrumação, uma mesa e quatro cadeiras; iv) Dois sofás de sala; v) Uma televisão; vi) Um frigorífico; vii) Uma máquina de lavar; viii) Um fogão; ix) Um carro de machos; x) Um carro de burra; xi) Um arado; xii) Um rádio a pilhas.
10) O cabeça de casal, após o falecimento dos inventariados, mais concretamente nos dias 12.01.2021 e 20.01.2021, comunicou aos inquilinos do prédio urbano identificado nos factos provados que o prédio em causa pertencia à herança, da qual era cabeça de casal e herdeiro, e que teriam, nessa medida, de abandonar o prédio.
2. E deu como não provado:
a) Que à[5] data do óbito dos inventariados ainda existissem os seguintes bens: i) Uma mobília de um outro quarto para além daqueles identificados em 9), al. i) e ii); ii) Um relógio de parede no valor de 500€; iii) Um relógio de parede no valor de 400€; iv) Um Frigorífico, para além daquele identificado em 9, al. vi), no valor de 200€; v) Quatro pipas de vinho no valor de 1000€; vi) Uma mala de enxoval no valor de 2500€; vii) Uma mala de enxoval no valor de 2000€; viii) Uma máquina de sulfatar no valor de 100€; ix) Uma charrua no valor de 100€.
3. Cumpre apreciar e decidir.
Consignou-se na fundamentação da decisão sobre a matéria de facto que «o facto 10 resulta da sua não impugnação por parte do cabeça de casal[6], o qual, em sede de resposta, não pôs em causa tal alegação por parte dos reclamantes».
No recurso, o requerente diz que o Tribunal a quo não podia dar por provada a matéria do ponto 10 da sentença, porquanto se “é facto que os oponentes escreveram isso no seu requerimento”, verifica-se, contudo, que quer no requerimento inicial quer na resposta o cabeça de casal esclarece o momento em que aceita a herança - após o acórdão do STJ na ação 33/21..... Concluiu que “não pode, pois, ser dado como provado o facto 10 da sentença (embora sem grande interesse para a questão ora em análise. (...) mesmo que tal facto ficasse dado por provado tal não representa aceitação da herança (...))”.
A este respeito, dir-se-á que se tratou de matéria invocada pelos requeridos/oponentes (sob o art.º 10º da oposição de 20.02.2024) e que não foi impugnada pelo requerente/recorrente, pelo que se considerou admitida por acordo (cf., v. g., art.ºs 549º, n.º 1, 574º e 587º do CPC).
Admitida a eventual relevância para a decisão do recurso, atentas as soluções plausíveis da questão de direito, afigura-se que nada obstava à sua inclusão no elenco dos factos considerados provados.
O assim decidido não merece censura.
4. A sucessão abre-se no momento da morte do seu autor e no lugar do último domicílio dele (art.º 2031º do CC[7]).
Diz-se jacente a herança aberta, mas ainda não aceita nem declarada vaga para o Estado (art.º 2046º, n.º 1).
O domínio e posse dos bens da herança adquirem-se pela aceitação, independentemente da sua apreensão material (art.º 2050º, n.º 1). Os efeitos da aceitação retrotraem-se ao momento da abertura da sucessão (n.º 2).
Sendo vários os sucessíveis, pode a herança ser aceita por algum ou alguns deles e repudiada pelos restantes (art.º 2051º).
A herança pode ser aceita pura e simplesmente ou a benefício de inventário (art.º 2052º, n.º 1).
A aceitação a benefício de inventário faz-se requerendo inventário, nos termos previstos em lei especial, ou intervindo em inventário pendente (art.º 2053º).
A aceitação pode ser expressa ou tácita (art.º 2056º, n.º 1). A aceitação é havida como expressa quando nalgum documento escrito o sucessível chamado à herança declara aceitá-la ou assume o título de herdeiro com a intenção de a adquirir (n.º 2). Os atos de administração praticados pelo sucessível não implicam aceitação tácita da herança (n.º 3).
A aceitação é irrevogável (art.º 2061º).
5. A declaração negocial pode ser expressa ou tácita: é expressa, quando feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio direto de manifestação da vontade, e tácita, quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam (art.º 217º, n.º 1).
A aceitação da herança jacente é um negócio jurídico singular, unilateral, indivisível, irrevogável e, não recetício, traduzido na vontade do sucessível de adquirir a herança, que não obedece a forma legal, podendo até levada a efeito de modo tácito (art.ºs 217º e 2056º, n.º 1).
6. A declaração é expressa quando feita por palavras, escrito ou quaisquer outros meios diretos, frontais, imediatos de expressão da vontade e é tácita quando do seu conteúdo direto se infere um outro (quando se deduz de factos que, com toda a probabilidade, a revelam).
A inequivocidade dos factos concludentes não exige que a dedução, no sentido do auto-regulamento tacitamente expresso, seja forçosa ou necessária, bastando que, conforme os usos do ambiente social, ela possa ter lugar com toda a probabilidade, no sentido de permitir concluir a latere um certo sentido negocial, não exige a consciência subjetiva por parte do seu autor desse significado implícito, bastando que, objetivamente, de fora, numa consideração de coerência, ele possa ser deduzido do comportamento do declarante.[8]
7. A lei civil define a aceitação expressa da herança (art.º 2056º, n.º 2) mas não concretiza ou define a aceitação tácita; não assim o art.º 2027º, § 2º do Código Civil de 1867, identificando a aceitação tácita como aquela em que “o herdeiro pratica algum facto de que necessariamente se deduz a intenção de aceitar, ou de tal natureza, que ele não poderia praticá-lo senão na qualidade de herdeiro” ou o art.º 29º, § 3º do Anteprojeto das Sucessões do Código Civil de 1966 (da autoria do Prof. I. Galvão Telles) que assim a definia: “A aceitação é tácita quando o sucessível pratica algum ato que pressupõe necessariamente a vontade de aceitar e que só poderia realizar na sua qualidade de herdeiro”[9].
É sabido que o legislador se mostrou particularmente cuidadoso e exigente na formalização da aceitação, tendo em vista obviar à equivocidade de muitos dos atos que os sucessíveis praticam em relação aos bens que integram a herança.
Assim, a aceitação expressa deve formalizar-se por escrito, em documento onde o sucessível chamado à herança declare aceitá-la ou assuma o título de herdeiro com a intenção de adquiri-la (n.º 2 do art.º 2056º). Já quanto à aceitação tácita da herança, a que é aplicável a noção geral dada no art.º 217º n.º 1, é afastada pela lei em casos como a mera prática de atos de administração da herança (n.º 3 do art.º 2056º e 2047º do CC). Do regime legal decorre que a declaração puramente verbal ou oral de aceitação da herança não vale sequer como aceitação tácita, a não ser que seja acompanhada de atos ou factos que confirmem, com grande probabilidade, a intenção do declarante de aceitar efetivamente a herança.
Caso típico de declaração tácita de aceitação, por força da lei, deve considerar-se o previsto no art.º 2049º, n.º 2 - Se o sucessível chamado à herança, sendo conhecido, a não aceitar nem repudiar dentro dos quinze dias seguintes, pode o tribunal, a requerimento do Ministério Público ou de qualquer interessado, mandá-lo notificar para, no prazo que lhe for fixado, declarar se a aceita ou repudia (n.º 1 do referido art.º). Na falta de declaração de aceitação, ou não sendo apresentado documento legal de repúdio dentro do prazo fixado, a herança tem-se por aceita (n.º 2).
Em tal situação, entende a lei que o silêncio do interpelado equivale a aceitação da herança.
A remissão implícita (do art.º 2056º) para a noção geral do art.º 217º, n.º 1, quanto à declaração tácita de aceitação, está de algum modo associada à circunstância de que na prática a herança é, as mais das vezes, aceite tacitamente, por factos (e não por palavras) ou por meras declarações verbais, sem os requisitos da declaração expressa exigidos no n.º 2 do art.º 2056º. O legislador não quis romper com essa prática de aceitação tácita, respeitando-se como tal, em homenagem à vontade real do sucessível, desde que ela obedeça ao requisito comum de comunicabilidade ou de objetividade das declarações tácitas de vontade definido no art.º 217º, n.º 1: o de os factos em que se apoia revelarem, com grande probabilidade (com toda a probabilidade), a sua existência.[10]
8. Ante o descrito enquadramento doutrinal e normativo, afigura-se, sem quebra do respeito sempre devido por entendimento contrário, que será de concluir que, pelo menos, ao instaurar a ação aludida em II. 1. 5), supra (em 24.3.2021), o requerente (cabeça de casal), chamado à herança por lei (como herdeiro legitimário/art.º 2157º), praticou ato que permitia/permite inferir a aceitação da herança em causa.
Na verdade, não se tratou de ato de administração da herança (com o efeito previsto no art.º 2056º, n.º 3), mas de uma clara manifestação de aceitação tácita da herança, traduzindo, inequivocamente, a aceitação da herança, da sua parte - ato ou comportamento do requerente que permite inferir que se comportou como titular de direitos e obrigações sobre a herança aberta por óbito de seus pais.[11]
Como se concluiu na decisão sob censura, então, ocorreu uma manifestação clara e inequívoca da vontade de o cabeça de casal aceitar a herança, ante o declarado propósito de vir a instaurar processo de inventário e beneficiar do estatuto de herdeiro que a lei lhe atribui, com a consequente partilha dos bens.[12]
9. Entende-se por legítima a porção de bens de que o testador não pode dispor, por ser legalmente destinada aos herdeiros legitimários (art.º 2156º).
São herdeiros legitimários o cônjuge, os descendentes e os ascendentes, pela ordem e segundo as regras estabelecidas para a sucessão legítima (art.º 2157º).
Dizem-se inoficiosas as liberalidades, entre vivos ou por morte, que ofendam a legítima dos herdeiros legitimários (art.º 2168º, n.º 1).
As liberalidades inoficiosas são redutíveis, a requerimento dos herdeiros legitimários ou dos seus sucessores, em tanto quanto for necessário para que a legítima seja preenchida (art.º 2169º).
A ação de redução de liberalidades inoficiosas caduca dentro de dois anos, a contar da aceitação da herança pelo herdeiro legitimário (art.º 2178º).
O prazo de caducidade não se suspende nem se interrompe senão nos casos em que a lei o determine (art.º 328º).
O prazo de caducidade, se a lei não fixar outra data, começa a correr no momento em que o direito puder ser legalmente exercido (art.º 329º).
10. O regime que a lei substantiva estabelece para a redução de liberalidades por inoficiosidade - pela ordem e nos termos regulados nos art.ºs 2171º e seguintes - destina-se à proteção dos herdeiros legitimários.[13]
A redução não opera oficiosamente e só pode ser requerida pelos próprios herdeiros legitimários ou pelos seus sucessores (art.º 2169º).[14]
E o art.º 2178º fixa o prazo dentro do qual pode ser requerida a ação de redução da liberalidade inoficiosa.
O direito potestativo de redução de liberalidades inoficiosas tem de ser exercido dentro de certo prazo, sob pena de se extinguir, para que, decorrido esse prazo, fique definida de vez a situação jurídica dos interessados. A imposição do aludido prazo de caducidade denota a preocupação de garantir a segurança e a certeza nas relações jurídicas.
O prazo fixado para a extinção da ação de redução é de caducidade, como expressamente se afirma no texto da disposição; e por isso se não suspende, nem se interrompe, o prazo para o exercício da ação, de acordo com o disposto no art.º 328º.
Contudo, o prazo de caducidade da ação de redução só começa a contar-se a partir da aceitação da herança por parte de cada herdeiro legitimário.[15]
11. Como salientado na decisão sob censura, na situação em análise, não importa tomar posição sobre se o prazo de caducidade previsto no art.º 2178º rege apenas para os casos em que o donatário é um terceiro em relação à herança e não faz parte do elenco dos herdeiros legitimários, ou se é igualmente aplicável às situações em que o donatário se apresenta como um dos herdeiros legitimários chamados à sucessão.
Sabemos que a resposta para essa questão não é unânime na jurisprudência.[16]
In causu, o donatário, neto dos inventariados, não é herdeiro.
12. Face às especificidades do caso em análise, será porventura de equacionar se tal prazo de caducidade apenas se aplica a ação autónoma com a finalidade de obter a redução das liberalidades inoficiosa ou se a sua razão de ser também se estende ao processo de inventário onde a questão venha ser a ser suscitada.
No caso vertente, foi instaurado processo de inventário e, na sequente oposição, os requeridos - donatário (terceiro) e o outro herdeiro legitimário - deduziram defesa por exceção arguindo a caducidade daquele direito de ação.
Tal oposição não poderia deixar de ser apreciada, pois, salvo o devido respeito, não se vê como fazer depender a aplicação da caducidade prevista no art.º 2178º consoante o pedido de redução por inoficiosidade seja feito no inventário ou em ação autónoma - a caducidade atinge não um determinado meio processual, mas o próprio direito potestativo de produzir, como efeito jurídico, a redução da liberalidade inoficiosa.[17]
13. Assim, consideradas as datas de instauração da ação dita em II. 1. 5), supra (decisiva para definir a aceitação da herança) e do presente inventário, onde se pretendeu exercitar a redução da liberalidade em causa, conclui-se que havia transcorrido o prazo fixado no art.º 2178º (de caducidade do direito de a requerer)[18], razão pela qual nada se poderá/deverá objetar à declarada caducidade do direito de ação e demais consequências assinaladas na decisão recorrida - mostra-se extinto, por caducidade, o direito a pedir a redução por inoficiosidade, com a consequente exclusão dos bens em causa.
Os oponentes, que arguiram a caducidade, demonstraram que a aceitação da herança se produziu havia mais de dois anos antes da propositura do inventário (cf. art.ºs 1104º, n.ºs 1, alínea d) e 3, do CPC[19] e 342º, n.º 2 e 343º, n.º 2, do CC).
14. Soçobram, desta forma, as “conclusões” da alegação de recurso, não se mostrando violadas quaisquer disposições legais.
Custas pelo cabeça de casal/apelante.
08.4.2025
[2] Admitido «a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo», e nada sendo de objetar à declarada tempestividade do recurso.
[3] Factualidade que se considerou relevante para a decisão da reclamação contra a relação de bens, atenta a prova produzida.
[4] Retificou-se.
[5] Idem.
[6] Sublinhado nosso, como o demais a incluir no texto.
[7] Diploma a que pertencem as disposições doravante citadas sem menção da origem.
[8] Vide C. A. Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª edição (2ª reimpressão), 2012, Coimbra Editora, págs. 422 e seguinte.
[9] Cf. BMJ 54º, pág. 33.
[10] Vide Pires de Lima e Antunes Varela, CC Anotado, Vol. VI, Coimbra Editora, 1998, págs. 92 e seguintes.
[11] Relativamente à aceitação da herança e sua concretização, vide J. A. Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Vol. III, 4ª edição, 1991, págs. 447 e seguintes e, de entre vários, acórdãos do STJ de 10.12.1997, 18.4.2006-processo 06A719, 28.6.2007-processo 07B2233, 19.3.2019-processo 384/17.1T8GMR-A.G1.S1, 10.9.2020-processo 3379/18.4T8LRS.L1.S1 e 30.5.2023-processo 28471/17.9T8LSB.L1.S1, da RP de 29.01.2013-processo 9638/07.4TBMAI-B.P1 e RL de 24.6.2008-processo 10557/2007-1, publicados, o primeiro, no BMJ 472º, 443 e, os restantes, no “site” da dgsi.
Cf., ainda, acórdãos da RC de 05.5.1987 e 22.10.1991, in CJ, XII, 3, 12 e XVI, 4, 115, respetivamente.
[12] Como explicitado na mesma decisão: “o cabeça de casal, ali autor, declarou expressamente que a instauração da mesma visava a integração daqueles imóveis na herança para que o mesmo, em seguida, pudesse instaurar o competente processo de inventário.”
[13] Explicita-se no acórdão da RL de 01.10.2011-processo 1948/08.0YXLSB-A.L1-2 (publicado no “site” da dgsi): «São qualificadas de “inoficiosas” (assim designadas por ofenderem o ´officium` – dever, obrigação – ´pietatis` familiar de que a sucessão legitimária retira o seu fundamento) as liberalidades, entre vivos ou por morte, que ofendam a legítima dos herdeiros legitimários (art.º 2 168º do CC), seja em benefício de sucessíveis não legitimários ou em relação a terceiros que não entrem sequer na sucessão, seja em benefício de herdeiro legitimário.»
[14] Nos termos da lei civil, a redução das liberalidades inoficiosas está dependente de requerimento dos herdeiros legitimários ou dos seus sucessores - vide, nomeadamente Lopes do Rego, Comentários ao CPC, vol. II, 2ª edição, 2004, Almedina, pág. 284.
[15] Vide, nomeadamente, Pires de Lima e Antunes Varela, ob. e vol. cit., pág. 285.
[16] Sobre tal divergência, cf., nomeadamente, acórdãos da RL de 01.10.2011-processo 1948/08.0YXLSB-A.L1-2 [concluindo-se: «A caducidade da ação de redução de doações inoficiosas, prevista no art.º 2178º do CC, pode ser invocada por qualquer beneficiário da liberalidade, seja ou não herdeiro do doador.»] e da RP de 08.10.2018-processo 2670/11.5TBPNF.P1 [com o sumário: «O prazo de caducidade fixado no artigo 2178º do Código Civil somente rege para o caso de liberalidade feita a pessoa que não seja herdeira do autor da sucessão que a realizou; já se o beneficiário dessa liberalidade for seu herdeiro legitimário, então, a todo o tempo, se pode pedir, no respetivo processo de inventário, a redução da liberalidade por inoficiosidade.»], publicados no “site” da dgsi.
Defendendo que o prazo do art.º 2178º do CC “só rege para o caso de doações feitas a pessoas que não são herdeiras do doador. Se o donatário é herdeiro, a todo o tempo se pode pedir, no respetivo processo de inventário, a redução da doação por inoficiosidade.”, vide J. A. Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, Vol. II, 4ª Edição, 1990, Almedina, pág. 406.
Para uma visão mais larga da divergência na Doutrina e Jurisprudência (quanto à interpretação do art.º 2178º, considerando, ou não, que o direito do herdeiro legitimário, de reduzir as liberalidades que se mostrem inoficiosas, está sujeito à caducidade aí prevista), cf., designadamente, a mencionada nos arestos citados.
[17] Sobre esta problemática, veja-se, por exemplo, o acórdão da RP de 03.6.2024-processo 6018/20.0T8MTS-A.P1 (publicado no “site” da dgsi), com a seguinte fundamentação:
«Como referem Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, a págs. 124 do seu “O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil” (Almedina, 2020), tem sido questão controvertida a articulação entre o incidente de verificação de inoficiosidades no processo de inventário e a ação de redução de liberalidades inoficiosas prevista no art.º 2178º do CC, bem como a aplicabilidade do prazo de caducidade estabelecido neste preceito aos pedidos de redução por inoficiosidade enxertados no inventário [vejam-se, a título de exemplo, os Acórdãos da RC de 18/2/2021 (proc. 1095/19.9T8VIS.C1), da RL de 7/3/2024 (proc. 8169/23.0T8LRS.L1-2), da RG de 16/3/2023 (proc. 3594/11.1TJVNF-D.G1), todos no sentido de que o prazo de caducidade previsto no art.º 2178º não é aplicável ao processo de inventário mas apenas à ação comum proposta pelo herdeiro contra o beneficiário de liberalidade que não seja herdeiro, e os Acórdãos da RE de 18/12/2023 (proc. 469/20.7T8ENT.E1) e da RP de 8/10/2018 (proc. 2670/11.5TBPNF.P1), que admitem aplicabilidade daquele prazo de caducidade quer em sede da ação comum a que alude o art.º 2178º quer em sede de inventário, sendo quanto a este no caso de liberalidade feita a pessoa que não é herdeira do autor da sucessão – todos disponíveis em www.dsgi.pt]. / Por nós, parece-nos que a caducidade prevista no art.º 2178º apenas fará sentido ser equacionada no âmbito da ação autónoma ali prevista, a qual, tanto quanto cogitamos, só será pertinente e útil propor no caso de haver um único herdeiro legitimário (pois só este pode requerer a redução – art.º 2169º do C. Civil) e ter havido liberalidade a terceiro não herdeiro, pois neste caso não há que proceder à partilha (neste sentido, Acórdão da RC de 10/2/2021, proc. 1095/19.9T8VIS.C1, em cujo texto se refere que “quando o autor é único herdeiro legitimário e não há dívidas a liquidar – caso em que não há lugar à partilha, mas, tão só e unicamente, à avaliação do património para efeito de determinar da eventual inoficiosidade da doação – poderá, eventualmente, ser adequado o recurso a uma ação autónoma”; vide também o Acórdão da RG de 14/1/2016, proc. 31/14.3T8VPC.G1, 1, no qual se refere que “A ação declarativa comum, e não o processo de inventário, é o meio processual adequado para o autor, único herdeiro legitimário do de cujus, pedir a redução/revogação de liberalidades por inoficiosidade”.) / (...) / Note-se, no mesmo sentido, como referem ainda aqueles autores (págs. 124 e 125), que ainda que não seja justificável fazer depender a aplicação da caducidade prevista no art.º 2178º consoante o pedido de redução por inoficiosidade seja feito incidentalmente no inventário ou em ação ordinária autónoma (pois a caducidade atinge não um determinado meio processual, mas o próprio direito potestativo de produzir, como efeito jurídico, a redução da liberalidade inoficiosa, sendo certo, por outro lado, que o incidente regulado no art.º 1118º tem uma estrutura semelhante à de uma ação), “há que reconhecer o bem fundado da orientação que exclui da sujeição ao prazo de caducidade as reduções que sejam requeridas em processo de inventário contra beneficiários de liberalidades que, por também serem interessados na partilha da herança [aqui, negrito e sublinhado nosso], também têm intervenção no processo de inventário como interessados diretos ou secundários”, pois “[n]este caso, os donatários e os legatários atingidos pela redução não podem deixar de ignorar que, na partilha da herança indivisa, não podem deixar de ser tomadas em conta as liberalidades de que beneficiaram, quando tal seja indispensável para a tutela da intangibilidade da legítima dos herdeiros”. / Ora, respeitando os autos a processo de inventário em que as legatárias têm intervenção quer nessa veste quer na veste de herdeiras testamentárias (nesta última como herdeiras do remanescente da quota disponível) e tendo o requerimento de redução por inoficiosidade sido formulado antes daquela fase processual referida no n.º 1 do art.º 1118º do CPC, é de considerar o mesmo perfeitamente tempestivo. / De qualquer modo, para finalizar, sempre é de referir que ainda que se equacionasse a aplicação ao caso vertente do prazo de caducidade previsto no art.º 2178º – o que, como se veio de referir antes, não se perfilha –, o mesmo, à data do requerimento de redução de inoficiosidade, ainda não tinha decorrido. (...)»
Sem quebra do respeito sempre devido, afigura-se que o entendimento expresso no referido aresto levaria a uma excessiva e injustificada restrição/limitação do campo de aplicação do art.º 2178º e do próprio instituto da caducidade.
[18] Considerada a alegação do recorrente (não acolhida), também se dirá que à data da prolação do acórdão do STJ (reproduzido a fls. 45) e do respetivo trânsito em julgado, corria ainda o respetivo prazo...
[19] Preceitua o n.º 3 do referido art.º: «Quando houver herdeiros legitimários, os legatários e donatários são admitidos a deduzir impugnação relativamente às questões que possam afetar os seus direitos.»