INVENTÁRIO
RECLAMAÇÃO DE BENS
TRÉPLICA
Sumário

Existindo reclamação dirigida à relação de bens e tendo o cabeça de casal respondido, nos termos do n.º 1 do artigo 1105.º do CPC, o juiz, ao abrigo dos poderes de gestão processual – artigo 6.º, n.º 1, do CPC – e de adequação formal – artigo 547.º do CPC –, deve admitir o interessado a deduzir um segundo articulado (tréplica) à resposta dada pelo cabeça de casal, quando este, na sua resposta, haja introduzido no processo factos novos com influência na partilha ou tenha deduzido alguma exceção, sem prejuízo do juiz poder deferir o contraditório para a audiência prévia ou para a conferência de interessados (artigos 1109.º e 1111.º do CPC).
(Sumário elaborado pelo Relator)

Texto Integral

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Acordam no Tribunal da Relação de Coimbra,


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Juiz relator……………..Alberto Augusto Vicente Ruço

1.º Juiz adjunto………..Fernando de Jesus Fonseca Monteiro

2.º Juiz adjunto………..José da Fonte Ramos


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Sumário:

Recorrente …………………..AA,

Recorrido…………………….BB.


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I. Relatório

a) O presente recurso insere-se num processo de inventário para separação de meações e vem interposto do despacho de 20 de novembro de 2024, que ordenou, quanto ao incidente de reclamação dirigido à relação de bens, o desentranhamento e devolução do requerimento de 7 de novembro de 2024, apresentado pela interessada reclamante, com fundamento na sua inadmissibilidade face ao disposto nos artigos 293.º, 1091.º, n.º 1, e 1105.º, todos do Código de Processo Civil.

A decisão sob recurso é esta:

«Incidente de reclamação à relação de bens:

Desentranhe e devolva o requerimento de 7 de novembro de 2024, por processualmente inadmissível (artigos 293.º, 1091.º, n.º 1, e 1105.º do Código de Processo Civil)».

b) As conclusões do recurso são as seguintes:

«1º Neste sentido deve a peça processual elaborada em 7.11.2024, referência citius 9269331, ser considerada admissível aos autos, essencialmente por ser resposta a matéria nova e ou de excepção contida na resposta à reclamação do cabeça de casal,

2º Bem como considerado o/s pedido/s de correcção/alteração nela contida e assim dada por reproduzida e integrada nos autos.

3º Assim como, dado a matéria nova invocada na resposta à reclamação – devida processualmente a solicitação, na ora peça processual mandada desentranhar, que o Tribunal “a quo”, em face da resposta à reclamação do cabeça de casal, ordene a este, para a descoberta da verdade material, o aí pedido, como por exemplo a indicação do número da conta do “Banco 1...” onde é liquidado o empréstimo para a aquisição de móveis e do imóvel, e, posteriormente, que a entidade bancária, e modo a apurar-se o quantitativo venha indicar quanto, desde o casamento do c.c. com a requerente, até ao divórcio, foi liquidado.

4º Deve ser anulado o despacho de 20.11.2024, refª 95685933, que ordenou quanto ao “Incidente de reclamação à relação de bens: Desentranhe e devolva o requerimento de 7 de novembro de 2024, por processualmente inadmissível;

5º ou, se assim não for entendido, deve a decisão de desentranhamento ser alterada, no sentido de ser considerada a referida peça apresentada, e aqui em causa, pela recorrente, devidamente recebida e incorporada nos autos.»

c) Não foram produzidas contra-alegações.

II. Objeto do recurso.

O recurso coloca duas questões:

Primeira – Se no processo de inventário é permitido ao interessado que reclamou da relação de bens responder à resposta apresentada pelo cabeça de casal a essa reclamação de bens, com fundamento na circunstância do cabeça de casal, na resposta, ter introduzido matéria de exceção ou matéria de facto nova.

Segunda – Se a resposta do cabeça de casal contém matéria de exceção ou matéria de facto nova.

III. Fundamentação

a) O articulado indeferido tem o seguinte teor:

«AA, requerente e interessada nos autos em epígrafe, em face da resposta oferecida pelo cabeça-de-casal, vem dizer o seguinte:

1 Há matéria na resposta que não é somente de mera impugnação à reclamação ou resposta a exata, mas de excepção, pelo que, devendo sempre existir igualdade entre as partes, aqui se expõe o a seguir:

2 Antes de mais, embora mais exemplificado, o ponto 57º da reclamação fala de imóvel. Mas foi lapso, por defeito, de escrita.

3 Deve ali constar também, em abono da verdade, móveis (recheio) da habitação, assim passando a constar. E ainda o valor de …. contraiu para aquisição de alguns móveis e do seu imóvel...

4 Ficando então assim a redação do 57 da reclamação: “E ainda o valor de 10.000,00 € respeitante à participação financeira que a Req.te/interessada fez para amortização do empréstimo que o c.c. contraiu para aquisição de alguns móveis e do seu imóvel (então casa de morada de família), apesar de bem próprio dele, e que, inclusivamente, a interessada começou a entregar ao c.c., a pedido deste, desde 02.03.2007, pelas expectativas de casamento e antes deste, com a Req.te a transferir desde então, e até 03.07.2015, da sua conta bancária de que era única titular (depois com 2 titulares como à frente se explicitará) para a conta bancária de que é único titular o c.c. (mas foi mais tempo, cujos dados agora não dispõe), repete-se de modo a ser amortizado o empréstimo bancário/hipoteca sobre o imóvel, o que a Req.te fazia depositando a quantia mensal de 100,00 (o que totaliza, para já, pelo menos 10.000,00 €) - doc. 14.”.

5 O c.c. e a requerente (req.te), não casaram de um dia para o outro, tiveram um largo período de namoro.

6 Os móveis foram adquiridos para, perdoe-se a “repetição”, mobilar a casa que seria a futura morada de casal – o que veio a acontecer.

7 Acontece que o c.c. induziu a req.te a acompanhar a compra dos móveis, apesar, de compra deste em solteiro.

8 Mais, o c.c. Ampliou o empréstimo bancário para este caso de aquisição de alguns móveis, e solicitou à req.te esta contribuir – directamente – para a participação do abatimento de tal empréstimo bancário.

9 Empréstimo bancário que foi aumentado assim ao empréstimo da aquisição do imóvel.

10 Aliás, seria ridículo que o c.c. contribuísse para as despesas correntes da família, com 500,00 € e depois recebesse, todos os meses 100,00 € para estas despesas conforme vem fazer crer a este Tribunal.

11 Então só daria 400,00 € para as despesas correntes.

O combinado foi especialmente a req.te contribuir no empréstimo bancário/aumentar este, como reforço para os móveis!.

12 Mas, mais ainda, e invocando o c.c. o art. 1697º, nº 2, e em face da questão da partilha do casal, há que dizer o seguinte:

13 O c.c., e a req.te, vivendo ambos dos seus salários, e sendo estes o exclusivo produto do trabalho dos cônjuges, são bens integrados na comunhão.

14 Assim, no caso, o pagamento que o c.c. fezz, desde o casamento até ao divórcio, das prestações pecuniárias bancárias do empréstimo hipotecário do imóvel, e não sendo o imóvel um bem comum, mas bem próprio do c,c., este terá que responder pelo pagamento durante tais anos, através de um bem comum – os salários.

15 Mas há que atender ao seguinte, e até já sufragado, quer doutrinalmente, quer jurisprudencialmente:

16 “Só faz sentido relacionar dívidas quando as mesmas têm de ser pagas pelo património comum, pois então o seu valor tem que ser deduzido a este património comum. Ora, como refere Lopes Cardoso a propósito das dívidas dos cônjuges entre si (“Partilhas Judiciais”, Volume III, Almedina, Coimbra, 1991, 4ª edição, pág. 392.) “estes créditos não respeitam ao património comum mas ao património individual do cônjuge credor, constituindo, em contrapartida, elemento negativo do do cônjuge devedor. Assim, não deverão ser objecto de relacionação isto mau grado deverem ser considerados no momento da partilha para serem satisfeitos na conformidade do disposto no art.  1689º-3 do Cod. Civil”.

17 Somente por este motivo, desde logo a req.te não reclamou, ou tinha de reclamar, ou podia, nos termos do disposto no art. 1104º do CPCiv., quanto a esta situação: sendo o rendimento dos cônjuges o rendimento do trabalho – salário – o pagamento do bem próprio do c.c. não tem de ser relacionado ou objecto de reclamação.

18 Mas, não sendo possível à req.te contabilizar a dívida e pagamento desta através de bem comum (salário), requer-se que o Tribunal ordene o reenvio desta questão para os meios comuns, dado sair do salário o pagamento das prestações mensais para liquidação do empréstimo bancário contraído para aquisição do imóvel e dos móveis.

19 Sitaução de Direito que, por estes factos, se pede que este Tribunal reconheça.

20 Assim, é de reconhecer que a interessada tem sobre o interessado cabeça-de-casal um crédito  a apurar, que, como previsto no art. 1689º nº3 do C. Civil, deve ser tido em conta na partilha de bens que ainda falta efectuar.

21 “Porém, tal dívida... não obstante ser de e a reconhecer nestes autos e de ser tida em conta na partilha que se vai efectuar por via do disposto naquele art. 1689º do C. Civil, não tem que ser relacionada” - neste mesmo sentido, vide o Acórdão da Relação de Lisboa de 7/5/2020, proferido no proc. nº1510/14.8TMLSB-A.L1-6, relatado pela Sra. Desembargadora Anabela Calafate (disponível em www.dgsi.pt).

22 Deste modo, mesmo que se tivesse contabilizado este crédito a favor da req.te, “para ser pago, em primeiro lugar, pela meação do cônjuge devedor no património comum (primeira parte do nº3 do art. 1689º do C. Civil) – que, como se sabe, sendo a sua meação, pertence ao seu património individual –, não há que fazer constar o mesmo da relação de bens, pois desta só fazem parte, como passivo, as dívidas a pagar pelo património comum (pois só estas são deduzidas a este – art. 1120º nº3 do CPC) e não as dívidas a pagar pelo património individual do ex-cônjuge”.

23 Aliás, tal convicção dos móveis deverem, no caso deverem ser relacionados, deve-se a tal convicção do combinado entre c.c. e req.te e, consubstanciada até pelo facto de o próprio c.c. E requerente terem, em conjunto feito a escolha dos mesmos.

24 Por outro lado, é impossível, sem mais e sem requerer à entidade bancária todo o extrato de prestações pagas, relacionadas com o referido empréstimo, e seu aditamento, quantificar o montante correcto.

25 Quer porque, com a alegado pelo c.c., quer pelo já alegado pela req.te, e porque estamos perante um caso de mera ampliação do valor dos 10.000,00 € alegados na reclamação, e ser o montante pago das prestações mensais durante a vigência do casamento pelo produto do rendimento/salário, pode ser por ser ampliado o pedido (265º, nº 2 do CPCiv.) de tal montante pecuniário (10.000,00€) a considerar,

26 dado que os bens relacionados (activo e passivo) não podem, neste caso ser objecto de reclamação, apesar do crédito da req.te sobre o c.c., decorrente de um crédito daquela sobre este e não de terceiros.

27 Pelo que se requer a este Tribunal, que reconheça nestes autos e de ser tida em conta na partilha que se vai efectuar por via do disposto naquele art. 1689º do C. Civil, apesar de não ter que ser relacionada a dívica do c.c. à req.te, pelo contributo desta para pagamento das prestações pecuniárias bancárias de liquidação do empréstimo contraído pelo c.c. para liquidação hipotecária do imóvel e empréstimo para aquisição de móveis para a casa de morada da família,

28 E deste modo ordene ao c.c. para indicar o número da conta do “Banco 1...” onde é liquidado o empréstimo para a aquisição de móveis e do imóvel, e, posteriormente, que a entidade bancária, e modo a apurar-se o quantitativo venha indicar quanto, desde o casamento do c.c. Com a requerente, até ao divórcio, foi liquidado.

29 No mais vai impugnado tudo o que estiver contrário à reclamação e presente peça.»

b) Apreciação das questões objeto do recurso

1 -  Se no processo de inventário é permitido ao interessado reclamante da relação de bens responder à resposta apresentada pelo cabeça de casal, com fundamento na circunstância do cabeça de casal, na resposta ter introduzido matéria de exceção ou matéria nova.

A questão vem disciplinada no artigo 1105.º (Tramitação subsequente) do C.P.C., nos seus n.ºs 1.º a 3.º, onde se diz o seguinte:

«1- Se for deduzida oposição, impugnação ou reclamação, nos termos do artigo anterior, são notificados os interessados, podendo responder, em 30 dias, aqueles que tenham legitimidade para se pronunciar sobre a questão suscitada.

2 - As provas são indicadas com os requerimentos e respostas.

3 - A questão é decidida depois de efetuadas as diligências probatórias necessárias, requeridas pelos interessados ou determinadas pelo juiz, sem prejuízo do disposto nos artigos 1092.º e 1093.º».

Resulta desta norma que cada interessado tem direito a um articulado, não estando prevista resposta à resposta apresentada pelo cabeça de casal relativamente à reclamação da relação de bens.

Porém, deve admitir-se um segundo articulado (tréplica) à resposta dada pelo cabeça de casal, quando o cabeça de casal, na sua resposta, traz ao processo factos novos com influência na partilha ou deduz alguma exceção.

Nestes casos, para evitar que um interessado fique prejudicado no exercício dos seus direitos o juiz, ao abrigo dos poderes de gestão processual e adequação formal, deve admitir a tréplica.

[Neste sentido, Miguel Teixeira de Sousa/C. Lopes do Rego/A. Abrantes Geraldes/P. Pinheiro Torres: «b) Se o interessado puder ser considerado como agindo de boa fé, então o juiz deve admitir a alegação do facto novo no articulado de resposta. Nesta hipótese, há que garantir o contraditório dos demais interessados, cabendo ao juiz, através dos poderes de gestão processual (art. 6.º, n.º 1) e de adequação formal (art. 547.º), admitir um articulado de resposta ou, por analogia com o disposto no artigo 3.º, n.º 4, deferir esse contraditório para a audiência prévia (art. 1109.º) ou para a conferência de interessados (art. 1111.º)» - Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na Legislação Processual Civil. Coimbra, Almedina, 2020, pág. 87]

Concluindo esta questão, existindo reclamação dirigida à relação de bens e tendo o cabeça de casal respondido, nos termos do n.º 1 do artigo 1105.º do CPC, o juiz, ao abrigo dos poderes de gestão processual – artigo 6.º, n.º 1, do CPC – e de adequação formal – artigo 547.º do CPC –, deve admitir o interessado a deduzir um segundo articulado (tréplica) à resposta dada pelo cabeça de casal, quando este, na sua resposta, haja introduzido ao processo factos novos com influência na partilha ou tenha deduzido alguma exceção, sem prejuízo do juiz poder deferir o contraditório para a audiência prévia ou para a conferência de interessados (artigos 1109.º e 1111.º do CPC).

2 – Vejamos se a resposta do cabeça de casal contém matéria de exceção ou facto novo relevante.

(a) Como referiu o Prof. Alberto dos Reis, na defesa por impugnação «...ao estado de facto descrito pelo autor o réu contrapõe um estado de facto diferente; quer dizer, apresenta ao tribunal uma exposição das ocorrências, diversa da que o autor oferecera.

A narração do autor e a narração do réu referem-se ao mesmo acontecimento; sòmente, cada uma das partes o encara e o apresenta através do seu prisma, através do aspecto que lhe é favorável. Daí resultam duas versões diversas da mesma ocorrência - a versão do autor e a versão do réu» - Código de Processo Civil Anotado, Vol. III, 3.ª Edição/Reimpressão, pág. 23.

Mas «Quando o réu, aceitando os fundamentos essenciais do pedido do autor ou abstraindo da sua verdade, aduz razões concludentes ao não acolhimento do pedido do autor, estamos em face da defesa por excepção» -  Prof. Castro Mendes, Direito Processual Civil, Vol. III, Edição da AAFDL, Lisboa/ 1980, pág. 96.

(b) No caso dos autos, a Recorrente não responde a matéria de exceção porquanto não foi invocada qualquer exceção na resposta que o cabeça de casal apresentou à reclamação de bens.

 A reclamante argumenta que o cabeça de casal apresentou matéria nova, mas não se afigura que tal também ocorra, pelo menos a interessada não a individualiza de modo a saber-se qual é.

Verdadeiramente, o que a Recorrente parece pretender é alegar mais matéria factual para esta ser considerada como excesso de contribuições monetárias que terá realizado durante o casamento, em prol da vida comum, para pedir que lhe seja restituída no momento da partilha.

Por isso, pretende, com o novo articulado, incluir no artigo 57.º da sua reclamação, onde só aludiu ao imóvel que é bem próprio do cabeça de casal e para cuja amortização do respetivo empréstimo terá contribuído, pretende agora incluir nesse artigo 57.º bens móveis adquiridos pelo casal.

Porém, este aditamento de «móveis» não resulta da alegação de qualquer exceção pelo cabeça de casal ou facto novo relevante.

3- Cumpre, pelo exposto, julgar o recurso improcedente.

IV. Decisão

Considerando o exposto, julga-se o recurso improcedente e mantém-se a decisão recorrida. Custas pela recorrente.


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Coimbra, …