RECURSO DE DECISÃO CONTRA JURISPRUDÊNCIA FIXADA
ACÓRDÃO DE FIXAÇÃO DE JURISPRUDÊNCIA
PRESSUPOSTOS
INADMISSIBILIDADE
REJEIÇÃO DE RECURSO
Sumário


I - Já não revestindo no nosso ordenamento jurídico força obrigatória geral (na sequência do acórdão n.º 743/96 do TC, que, por ser o terceiro, declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral do art. 2.º do CC), a jurisprudência resultante de um acórdão uniformizador impõe-se aos tribunais judiciais, a estes só sendo lícito dela divergir se especiais razões a tal conduzirem – art. 445.º, n.º 3, do CPP.
II - É manifesta a falta de fundamento de um recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo STJ em que se pretende continuar a discutir uma decisão do tribunal da Relação que em nada se mostra desconforme à jurisprudência uniformizadora invocada como fundamento.

Texto Integral


Recurso Extraordinário de Decisão Proferida contra Jurisprudência Fixada pelo STJ

Acordam, em Conferência, os Juízes desta 5ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

No Juízo Local Criminal da ..., T.J. da Comarca de Castelo Branco, foi julgado AA, tendo sido proferida Sentença, com o seguinte dispositivo:

“Nestes termos, o tribunal julga a acusação pública procedente por provada e, em consequência:

a) Condena o arguido AA pela prática em 05/11/2022, um crime de condução sem habilitação legal, previsto e punido pelo artigo 3.º n.º 1 e 2, do Decreto-Lei nº 2/98 de 3/01, por referência ao artigo 121.º, n.º 1, do Código da Estrada, na pena de quinze meses de prisão.

b) Condena ainda o arguido em 2 UC de taxa de justiça (arts. 374.º, n.º 4, 513.º e 514.º, todos do Código de Processo Penal)”.

*

Desta Sentença foi interposto, em representação do arguido/condenado AA, recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra.

*

Pela Relação de Coimbra foi proferido Acórdão com o seguinte dispositivo:

“Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam as Juízas da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Coimbra em negar provimento ao recurso, mantendo a decisão recorrida nos seus precisos termos.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em quantia correspondente a 3 (três) unidades de conta”.

*

Esta Decisão transitou em Julgado, revestindo força executiva.

*

No prazo de 30 dias após o trânsito, foi interposto Recurso Extraordinário da Decisão Proferida contra Jurisprudência Fixada pelo STJ, em representação do AA, do Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, contendo as seguintes conclusões:

“1- O arguido, ora recorrente, foi condenado, em 1.ª instância, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal a uma pena de quinze meses de prisão;

2- Da descrição do elemento subjectivo na acusação constava que o arguido (e citamos) “Agiu de forma livre, deliberada e consciente, conduzindo como quis, um veículo a motor sem para tal estar legalmente habilitado. (…)”, tendo posteriormente sido dado como provado que o arguido “Agiu de forma livre, deliberada e consciente, conduzindo como quis, nas circunstâncias em 1, um veículo a motor sem para tal estar legalmente habilitado”;

3- A verificação do tipo legal de condução sem habilitação legal implica o preenchimento dos seguintes requisitos: condução de veículo a motor; sem que o agente esteja habilitado para o efeito nos termos previstos no Código da Estrada; em via pública ou equiparada.

4- O objecto do processo fica delimitado a partir do momento em que é proferida acusação, implicando necessariamente que os factos imputados ao arguido, de entre os quais os que se referem ao elemento subjectivo, tenham de estar aí devidamente descritos e especificados;

5- A acusação proferida nos presentes autos não incluía uma narração completa dos factos dado que nela faltavam elementos fundamentais quanto à representação e conhecimento, por parte do arguido, de todas as circunstâncias do facto (no caso, as de carácter normativo) na medida em que o Ministério Público não indicou que o arguido sabia que, sem possuir a devida habilitação para conduzir um veículo a motor, não poderia actuar de tal forma na via pública;

6- De igual modo e por conseguinte, sabendo dos termos em que a acusação foi redigida, também não se pode considerar que o elemento volitivo do dolo tenha ficado correctamente descrito na medida em que daquela formulação resulta que o arguido quis, somente, conduzir um veículo motorizado sem que para tal estivesse habilitado;

7- Tendo os autos sido despachados para julgamento, o tribunal de 1.ªinstância deveria ter rejeitado a acusação por ser manifestamente infundada na medida em que não continha uma precisa narração dos factos e estes não constituíam, na prática e no seu conjunto, um ilícito criminal;

8- Não estando o elemento subjectivo perfectibilizado na acusação e, caso não seja esta declarada nula, prosseguindo o processo para julgamento, está vedada ao Tribunal a utilização dos mecanismos dos arts. 358.º e 359.º do Código de Processo Penal para o completar;

9- O Tribunal de 1.ª instância, na sentença que proferiu, procedeu a uma alteração substancial dos factos (mais concretamente, do ponto 3. da acusação), condenando o arguido quando, ao invés, deveria tê-lo absolvido tal como nos ensina o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015;

10-Tendo, assim, sido violado o disposto nos arts. 1.º/f), 283.º, n.º 3, al. b), 311.º, n.º 2, al. a) e n.º 3, al. d), 358.º e 359.º, todos do Código de Processo Penal;

11- Após recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra no qual se suscitou a questão de não ter sido observada a jurisprudência anteriormente fixada por este Supremo Tribunal através do seu aresto n.º 1/2015, decidiu aquela instância manter a sentença inicialmente proferida;

12- Para o efeito, fundamentou dizendo que “A acusação em causa contém apenas 3 pontos sendo que no ponto 1 claramente se escreve que o arguido no dia 05.11.2022, pelas 15 horas conduzia a viatura Mazda com a matrícula ali melhor identificada, “na via pública sita no Caminho .... (…) Os factos que subsequentemente se descrevem estão inelutavelmente ligados a este primeiro facto, e portanto, quando se refere na acusação que o arguido sabia que não possuía título que o habilitasse a conduzir aquele veículo, está-se obviamente a referir às circunstâncias de tempo e lugar mencionadas no ponto 1 e, consequentemente, à condução na via pública.”;

13- De igual modo, frisou ainda que “(…) Analisando os factos que constam da acusação por contraponto com os constantes da sentença verificamos que nesta última foi acrescentada a expressão “conforme em 1” que não constava do libelo acusatório (…). Porém, esta expressão não constitui qualquer facto novo relevante. Como já deixamos expresso é nosso entendimento que a forma como foi redigida a acusação não suscita qualquer dúvida que a atuação livre deliberada e consciente do arguido conduzindo um veículo a motor sem para tal estar legalmente habilitado se refere ao dia, hora e local, mencionados em 1, sendo redundante a inclusão desta expressão “conforme em 1” no ponto 3 (…)” e que “(…) a expressão constante no ponto 3 “nas circunstâncias em 1” é redundante e serve apenas para reforçar o que já constava descrito na acusação (…).”;

14- Por conseguinte e entre outros aspectos, a fundamentação em causa legitimou o completamento de factos subjectivos deficientemente formulados na acusação através da extrapolação de factos objectivos;

15- Motivos pelos quais o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de que aqui se recorre desrespeitou de forma ostensiva a jurisprudência fixada por este Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão n.º 1/2015 quando, ao invés, tinha a obrigação de a aplicar.

Nestes termos e nos melhores de Direito, o presente recurso deverá ser julgado procedente, aplicando-se no caso em apreço a jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça através do seu Acórdão n.º 1/2015 o que, por sua vez e como consequência necessária, se traduzirá na absolvição do ora recorrente”.

*

Foi dado cumprimento ao contraditório previsto no art.º 439, n.º 1 do CPP.

*

O Ministério Público no Tribunal da Relação de Coimbra defendeu a rejeição deste recurso, por “não se verificar, no caso, o pressuposto do qual o art. 446º do Código de Processo Penal faz depender a possibilidade de interposição de recurso extraordinário de decisão proferida contra jurisprudência fixada”.

*

Neste Supremo Tribunal de Justiça o Ministério Público pronunciou-se pela manifesta improcedência do recurso “por não verificação dos pressupostos do recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, pelo que o recurso não deve prosseguir, não havendo razão para, v.g., ser determinado o reenvio do processo para aplicação da jurisprudência fixada, a qual não foi contrariada”.

*

*

Colhidos os Vistos, e efectuada a Conferência, cumpre apreciar e decidir:

*

*

Das conclusões, delimitadoras do respectivo objecto, extrai-se que o arguido/condenado AA pretende interpor o presente recurso extraordinário, com fundamento em o Acórdão recorrido ter desrespeitado “de forma ostensiva (sic) a jurisprudência fixada por este Supremo Tribunal de Justiça no seu Acórdão n.º 1/2015 quando, ao invés, tinha a obrigação de a aplicar”.

*

O aqui recorrente encontra-se condenado pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de 15 meses de prisão.

Essa decisão transitou em julgado, pelo que deveria estar em execução (tendo este recurso efeito meramente devolutivo; constituída a certidão prevista no art.º 439, n.º 3 do CPP, o processo principal deverá ser remetido à 1ª Instância).

No recurso alega-se, em síntese, que o Tribunal da 1ª Instância “procedeu a uma alteração substancial dos factos (mais concretamente, do ponto 3. da acusação), condenando o arguido quando, ao invés, deveria tê-lo absolvido tal como nos ensina o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 1/2015”.

E a Relação de Coimbra “na qual se suscitou a questão de não ter sido observada a jurisprudência anteriormente fixada por este Supremo Tribunal através do seu aresto n.º 1/2015, decidiu manter a Sentença inicialmente proferida”.

Acrescenta-se que o Tribunal de que se pretende recorrer “legitimou o completamento de factos subjectivos deficientemente formulados na acusação através da extrapolação de factos objectivos”.

*

Vejamos:

Os recursos extraordinários — assim chamados porque incidem sobre decisões já transitadas em Julgado (por contraposição aos recursos ordinários) — visam reparar erros Judiciários que, constatados após o trânsito em Julgado, pela sua gravidade e importância não podem ser considerados sanados.

O respectivo procedimento e condições de admissibilidade, vêm regulados no Título II do CPP, sob a epígrafe dos Recursos Extraordinários, encontrando-se previsto no art.º 446 o recurso de decisão proferida contra jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça, pela forma seguinte:

“1 - É admissível recurso directo para o Supremo Tribunal de Justiça de qualquer decisão proferida contra jurisprudência por ele fixada, a interpor no prazo de 30 dias a contar do trânsito em julgado da decisão recorrida, sendo correspondentemente aplicáveis as disposições do presente capítulo”.

Na versão original do Código e das seguintes, até à versão instituída pela Lei 48/2007 de 29/08, a legitimidade para interposição desta espécie de recurso extraordinário era apenas atribuída ao Ministério Público na sua qualidade de órgão defensor da legalidade.

Na assinalada revisão do Código foi alargada a legitimidade para a interposição deste recurso, através da introdução do n.º 2: “O recurso pode ser interposto pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis e é obrigatório para o Ministério Público”.

Porém, a razão de ser da sua existência (a sua “ratio”) mantém-se a mesma: a possibilidade de se reagir contra decisões que não acatem Jurisprudência fixada, que se mostrem à mesma desconformes, sem qualquer fundamentação especial e acrescida que o justifique.

O interesse que se pretende assegurar é — como é evidente — o interesse na unidade de Direito, a necessidade de coerência das decisões Judiciais.

Isto porque já não revestindo no nosso Ordenamento Jurídico força obrigatória geral (na sequência do Acórdão n.º 743/96 do T. C. que, por ser o terceiro, declarou a inconstitucionalidade com força obrigatória geral do art.º 2 do Código Civil), a Jurisprudência resultante de um Acórdão uniformizador impõe-se aos Tribunais Judiciais, a estes só sendo lícito dela divergir, se especiais razões a tal conduzirem — art.º 445, n.º 3, do CPP.

(Note-se, porém, que a formulação do Acórdão citado — e dos dois que o antecederam — permitia o entendimento da subsistência dos Assentos, desde que vinculassem apenas os Tribunais e não dispusessem da força obrigatória geral que o, então art.º 2 do Código Civil lhes atribuía)

*

No caso, e como resulta do acima sintetizado, no recurso sob apreciação, insistindo-se na argumentação refutada pela Relação de Coimbra no Acórdão de que se pretende recorrer, persiste-se em alegar que o Tribunal da 1ª Instância “procedeu a uma alteração substancial dos factos (mais concretamente, do ponto 3. da acusação)”.

E, em seguida, formula-se a queixa de que o Tribunal da Relação “legitimou o completamento de factos subjectivos deficientemente formulados na acusação através da extrapolação de factos objectivos”.

Ora, como é evidente, o que se alcança deste argumentário é que se pretende continuar a discutir a verificação de uma “alteração substancial dos factos”, apesar da Relação de Coimbra, ter decidido que se não verificava.

A alegada oposição ao Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 1/2015 surge como um mero pretexto para a interposição deste recurso Extraordinário, nunca surgindo devidamente concretizada e fundamentada.

Nesse Acórdão — proferido num caso em que a acusação seria de rejeitar no momento processual previsto no art.º 311.º, do C.P.P e não o foi — uniformizou-se Jurisprudência no sentido de que “a falta de descrição, na acusação, dos elementos subjectivos do crime, nomeadamente dos que se traduzem no conhecimento, representação ou previsão e todas as circunstâncias da factualidade típica, na livre determinação do agente e na vontade de praticar o facto com o sentido do correspondente desvalor, não pode ser integrada, em Julgamento, por recurso ao mecanismo previsto no art.º 358.º do Código de Processo Penal”.

No Acórdão de que se pretende recorrer considera-se — e bem, diga-se — que o acrescento efectuado ao ponto 3 (da acusação), “nas circunstâncias em 1” (“Agiu de forma livre, deliberada e consciente, conduzindo como quis, nas circunstâncias em 1, um veículo a motor sem para tal estar legalmente habilitado”) não constituía uma “alteração substancial dos factos”, e nem sequer uma alteração “não substancial”, já integrando a acusação os elementos objectivos e subjectivos do tipo, não sendo caso de aplicação Acórdão de Uniformização de Jurisprudência invocado como Acórdão-fundamento neste recurso.

Assim, a decisão da Relação de Coimbra não foi proferida contra a invocada jurisprudência fixada pelo STJ, nem se mostra desconforme à mesma.

Em conclusão, o que é ostensivo e notório é a não verificação da previsão do art.º 446, n.º 1 do CPP, sendo manifesta a falta de fundamento deste recurso.

*

*

*

Nos termos relatados, decide-se rejeitar o presente Recurso Extraordinário de Decisão Proferida contra Jurisprudência Fixada pelo STJ, interposto em representação de AA, por ser manifesta a sua falta de fundamento.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC´s.

*

Lisboa, 03/04/25

José Piedade (Relator)

Ernesto Nascimento

Ana Paramés

Helena Moniz (Presidente da Secção)