RECURSO DE ACÓRDÃO DA RELAÇÃO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
TENTATIVA
DUPLA CONFORME
INADMISSIBILIDADE
REJEIÇÃO DE RECURSO
Sumário


I. Apesar de os recursos dos arguidos terem sido admitidos in totum pelo despacho da Senhora Desembargadora relatora no TRL, de 06-01-2025 – o que nos termos do art. 414.º, n.º 3, do CPP, não vincula o tribunal superior –, ao abrigo do disposto nos artigos 400.º, n.º 1, al. f) e 432.º, n.º 1, al. b) a contr., do CPP, são de rejeitar os recursos dos arguidos quanto à decisão recorrida no tocante à (confirmação da) sua condenação, como coautores materiais e em concurso efetivo de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, agravado pela utilização da arma, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, alíneas h), e j), 22.º, 23.º e 73.º do Código Penal, e artigo 86.º, n.º 3 e 4, da Lei n.º 5/2006, de 23-02, por lhes terem sido aplicadas penas parcelares não superiores a 8 anos de prisão, por verificação de “dupla conforme”.
II. Também são de rejeitar, por inadmissibilidade, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 414.º, n.ºs 2 e 3, e 420.º, n.º 1, al. b), 432.º, n.º 1, al. b) e 434.º, do CPP, os recursos de ambos os arguidos quanto às questões colocadas nos recursos atinentes à decisão da matéria de facto, de vícios e nulidades não sanadas, previstos no art. 410.º, n.ºs 2 e 3, do CPP, bem como quanto a “questões novas”, ou seja, colocadas no recurso sem que tenham sido objeto de apreciação pelo tribunal da relação.
III. Não se pode tomar conhecimento de questões de inconstitucionalidade sem carácter normativo, apontando a desconformidade constitucional à própria decisão.

Texto Integral


Acordam na 5.ª Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça

I. Relatório

1. Por acórdão do tribunal coletivo do Juízo Central Criminal de .../Juiz ..., de 12 de julho de 2024 (Ref.ª Citius ...89), foram os arguidos e ora Recorrentes, AA e BB, julgados e condenados, entre outras determinações, nos seguintes termos:

«1) Condenar o arguido AA pela prática, em co-autoria material e em concurso real de:

a) um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, agravado pela utilização da arma, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, alíneas h), e j), do Código Penal, e artigo 86.º, n.º 3 e 4, da Lei 5/2006, de 23/02, na pena de 22 (vinte e dois) anos de prisão;

b) um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, agravado pela utilização da arma, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, alíneas h), e j), 22.º, 23.º e 73.º do Código Penal, e artigo 86.º, n.º 3 e 4, da Lei 5/2006, de 23/02, na pena de 8 (oito) anos de prisão;

c) Em cúmulo jurídico condenar o arguido AA na pena única de 25 (vinte e cinco) anos de prisão;

2) Condenar o arguido BB pela prática, em co-autoria material e em concurso real de:

a) um crime de homicídio qualificado, na forma consumada, agravado pela utilização da arma, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, alíneas h), e j), do Código Penal, e artigo 86.º, n.º 3 e 4, da Lei 5/2006, de 23/02, na pena de 18 (dezoito) anos de prisão;

b) um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, agravado pela utilização da arma, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, alíneas h), e j), 22.º, 23.º e 73.º do Código Penal, e artigo 86.º, n.º 3 e 4, da Lei 5/2006, de 23/02, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão;

c) Em cúmulo jurídico condenar o arguido BB na pena única de 19 (dezanove) anos de prisão;

3) Julgar, parcialmente, provado o pedido de indemnização civil formulado pela demandante CC, sendo os arguidos AA e BB condenados a pagarem, solidariamente (artigo 490.º do Código Civil) à mesma 130.000,00 (cento e trinta mil) euros, acrescido de juros legais, vincendos, desde a data de prolação do acórdão e até integral pagamento, sendo absolvidos do pedido remanescente.

4) Condenam-se os arguidos AA e BB a procederem ao pagamento solidário ao ofendido DD da quantia de 5.000,00 (cinco mil) euros que se arbitra como indemnização pelos danos morais que o mesmo sofreu.

5) Mais vão os arguidos condenados a pagarem as custas do processo, fixando a taxa de justiça, a ser paga por cada um deles, em 4 (quatro) UC´s.

6) As custas cíveis serão suportadas em 65% (sessenta e cinco por cento) pelos arguidos e 35% (trinta e cinco por cento) pela assistente, sem prejuízo de eventuais dispensas de pagamento das mesmas por concessão de apoio judiciário.

7) Determina-se a recolha de amostra de ADN dos arguidos, nos termos do disposto no artigo 8.º, n.º 2, da Lei 5/2008, de 12/02.»

2. Dessa decisão recorreram os arguidos para o Tribunal da Relação de Lisboa (doravante, também “TRL”), tendo este Tribunal, por acórdão de 20-11-2024 (Ref.ª Citius ...08), deliberado «(…) não conceder provimento aos recursos interpostos pelos arguidos AA e BB e, em consequência, confirmar na íntegra o acórdão recorrido.»

3. Deste Acórdão do TRL recorre o arguido BB, para este Supremo Tribunal de Justiça (doravante, também “STJ”), em 23-12-2024 (Ref.ª ...59), apresentando as conclusões seguintes:

«CONCLUSÕES:

A motivação do presente recurso prende-se essencialmente com os seguintes fatores:

A. Quanto á matéria de facto dada como provada e não provada,

B. Quanto á qualificação jurídica do crime de Homicídio qualificado,

C. Do não preenchimento do elemento subjetivo dolo direto

D. Quanto á medida da pena aplicada

B) O acórdão é recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça, sob pena de inconstitucionalidade, por ir contra o princípio fundamental da recorribilidade em pelo menos um grau das decisões judiciais limitadoras da liberdade contido no art.º 32º da CRP.

- INCONSTITUCIONALIDADE QUE DESDE JÁ SE ALEGA E REQUER PARA OS DEVIDOS EFEITOS LEGAIS.

Ie, a norma contida na al. f) do n.º 1 do art. 400.º do CPP, a qual, no entender do recorrente, viola o disposto no art. 32.º n.º 1 do CPP. quando interpretada no sentido de que não é admissível recurso interposto pelo arguido para o Supremo Tribunal de Justiça de um acórdão da Relação que, confirmando a decisão da 1ª Instância, o tenha condenado numa pena não superior a oito anos de prisão, mesmo quando o objeto do recurso é exclusivamente saber da verificação ou não da nulidade por omissão de pronuncia por parte do próprio Tribunal da Relação.

Se o Acórdão do Tribunal da Relação não decide todas as questões que o recorrente lhe colocou e que lhe cabia decidir, tendo o recorrente alegado a nulidade por omissão de pronuncia perante o Tribunal da Relação, tendo a Relação proferido acórdão quanto a tal matéria – esse último acórdão tem de admitir recurso para o STJ, sob pena do arguido não ter quanto a tal matéria um único grau de recurso.

O tema dissidente teve apenas uma e só uma abordagem jurisdicional: é por assim dizer uma decisão da Relação, mas em primeira instância. E todas as decisões penais de primeira instância são recorríveis.

Assim, no caso concreto, o acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa é recorrível para o Supremo Tribunal de Justiça, sob pena de inconstitucionalidade, por ir contra o princípio fundamental da recorribilidade em pelo menos um grau das decisões judiciais limitadoras da liberdade contido no art.º 32º da CRP. Tratar-se-ia, in casu, de norma inconstitucional, porque infratora do princípio fundamental da recorribilidade em um grau.

È que face à decisão a que ora nos reportamos, a sua falta de fundamentação é gritante quanto às questões levantadas no recurso interposto,

C) Omissão de Pronuncia, insuficiência de inquérito, ausência dos elementos subjetivos e objetivos do tipo crime, contradição da prova testemunhal contra as demais provas do processo, conceito autoria, coautoria e outro do crime de homicídio, erro notório na apreciação da prova, violação do principio do in dúbio pro reu …

D) A aqui signatária ficou com a enorme responsabilidade de patrocinar o arguido no presente recurso, plenamente consciente da dificuldade do seu encargo, perante o carácter “aparentemente” esmagador da elevada pena de prisão aplicada

Fê-lo porque, através da leitura, estudo e análise do Acórdão a que procedeu, bem como, dos demais elementos que se colhem da personalidade do ora recorrente, das testemunhas envolvidas e da deficiência da investigação, a convencem firmemente, de que a pena de prisão que lhe foi aplicada, salvo o devido respeito, consubstancia uma solução que viola os preceitos legais e princípios aplicáveis, afigurando-se como não rigorosa e irrazoável, devendo portanto, ser revogada, senão vejamos:

“Resisti ás primeiras aparências e nunca vos apresseis em julgar; Levai em conta que há coisas verosímeis que não são verdadeiras e que há coisas verdadeiras que não são verosímeis”

E) No Acórdão proferido pela 1ª Instância se fazem referências a contradições evidentes e graves entre o relatado pelas diversas testemunhas, não logrando identificar os pontos que não mereceram credibilidade mas apenas identificando o único ponto de convergência, que interessa para a condenação do arguido que será o de que o aqui arguido terá juntamente com os demais atentado contra a vida do senhor EE.

Tal confusão colide de forma flagrante com toda a prova produzida em audiência de julgamento, conforme explicou o recorrente na análise detalhada de todos os elementos probatórios.

F) O Inquérito resultou insuficiente e parcial investigando detalhadamente o homicídio ocorrido no bar, em ..., em detrimento de investigar todos os graves factos e intervenção dos sujeitos que se encontram conexos embora divididos em dois episódios.

Nos termos do artigo 24º, do CPP, o que não se sucedeu, com grave e sério prejuízo para o aqui recorrente pois que os crimes ocorridos em comparticipação eram causa e efeito uns dos outros e foram praticados por vários agentes reciprocamente. Tal circunstância releva grandemente para uma melhor apreciação da matéria de facto, da motivação, da qualificação jurídica dos atos praticados por cada um dos sujeitos, bem como a correta aplicação do Direito.

Conforme disposto no artigo 32º da Constituição da República Portuguesa!

Ora era direito dos arguidos responder a um processo justo e imparcial, que tratasse igual tanto ao nível da investigação como ao nível de credibilidade da prova na generalidade e não especificamente contra o recorrente.

G) “…Os factos provados 1) a 3) resultam do teor do auto de notícia de fls. 317/323, do teor do vídeo que se mostra no DVD junto a fls. 1201, e das declarações de FF, GG, DD, HH, II e JJ, testemunhas nos presentes autos e que reconheceram ter estado no concerto/festa do "KK" e to existido "uma confusão entre dois grupos" que resultou em ferimentos provocados por um objeto cortante nas costas do JJ.”

(nossas considerações), numa sequência lógica extraiu o Tribunal da Relação do depoimento das testemunhas que as mesmas reconhecem ter existido uma confusão entre dois grupos que resultou em ferimentos provocados nas costas de JJ, o que

não corresponde à realidade, pois que as testemunhas amigas do ofendido quanto a esse episódio, mentindo conscientemente (atentas as imagens juntas aos autos), demitem-se de qualquer responsabilidade chegando até a afirmar que não se aperceberam de ninguém com qualquer armo ou que tenha ficado ferido.

H) “Também em julgamento as testemunhas, supra enunciadas, reconheceram a existência de uma questão entre dois grupos "informais", mas todos tiveram muito cuidado em referir que quem começou foram "os outros", diminuindo a sua participação e a dos seus amigos, não reconhecendo a existência de grupos ou de questões anteriores entre os mesmos, algo que acabou por ser reconhecido apenas no final do julgamento pelo arguido AA e pela testemunha DD que reportou a existência de uma altercação anterior.”

(nossas considerações), neste ponto, as ilações retiradas pelo Tribunal da Relação, salvo o devido respeito, são impossíveis por ilógicas e contraditórias.

Pois que por um lado afirma que as testemunhas reconhe4cem a existência de dois grupos e na mesma frase afirma que não reconhecem a existência de dois grupos algo que acabou de ser reconhecido no final do julgamento por uma das testemunhas e por um dos arguidos.

Ora se todos se conheciam da pré-existência deste conflito, porque razão pretenderam ocultar esta informação perante o Tribunal falseando conscientemente a verdade?

I)

“O arguido BB reconhece mesmo que lhe tinham dito que quem teria esfaqueado o "LL" seria o DD e o EE do bairro de ..., que acabam por vir a ser as vítimas nos presentes autos.”

(nossas considerações), mais uma vez se mostra evidente a injusta investigação determinando que o DD e o EE foram as vítimas dos presentes autos, o que não corresponde à verdade.

O arguido AA e o suspeito MM também eles foram vítimas de atentado contra as suas vítimas, apenas nestes casos a justiça não lhes fez jus.

J) “o testemunho de NN, dono do estabelecimento, e pessoa estranha a este conflito, que corrobora que entram vários indivíduos, em grupo, que se dirigem de imediato ao falecido EE e que é nesse momento que começa a confusão, corroborando assim a versão apresentada pelas testemunhas que eram amigas do mesmo.

Esta testemunha é a única que vê uma das pessoas que entraram em grupo com uma faca, e que o arguido AA estava no grupo de pessoas que estava a bater no EE, sendo que é igualmente o único que consegue ver que foi desferida "uma facada" no corpo do EE.”

(nossas considerações), veja-se que contrariamente ao aferido pelo Tribunal este individuo não corrobora a versão apresentada pelos demais pois que afirma primeiramente ter-se iniciado uma confusão e não o disparo de um tiro conforme referido.

. A testemunha GG contrariamente ao alegado ao longo do processo afirmou ter visto aqui recorrente a disparar para a zona onde se encontra o DD.

O Tribunal conclui que a versão apresentada pelo arguido BB não merece credibilidade por contraditada pelas demais testemunhas sem explicar porque razão as incoerentes e contraditórias testemunhas, parciais e com interesse no desfecho do processo lograram obter a confiança deste Tribunal sobre os seu relatos.

O Tribunal conclui por fim que os arguidos e os membros do seu grupo sabiam ao que iam pois que se fizeram acompanhar de armas de fogo, mas na realidade também outros

membros do grupo rival se deslocaram à sua respetiva zona de residência com o intuito de se munirem de armas de fogo que utilizaram na mesma noite.

Ademais, se as testemunhas mais isentas revelaram que as pessoas que entraram com o arguido AA se encontravam encapuçadas, como poderia o aqui arguido BB ser identificado pela testemunha FF. É ilógico e irracional e não contendo de forma segura com as regras da experiência comum.

K) No que respeita a prova pericial representa em processo penal um desvio ao princípio da livre apreciação da prova plasmado no art. 127º do C.P.P.

Essa prova de apreciação vinculada, como é a prova pericial, “tem lugar quando a perceção ou a apreciação dos factos exigirem especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos” - art. 151º do C.P.P.

Tratando-se de exame pericial o resultado obtido no mesmo apenas pode ser colocado em crise por outro meio de prova idêntico e nunca pela análise das testemunhas, ou pelas declarações dos arguidos.

Existe erro notório na apreciação da prova, quando não existindo fundamentos válidos que permitam divergir da prova pericial, se decide pela aplicação do princípio da livre apreciação do artigo 127º do C.P.P.

Dos relatórios balísticos resulta de forma inequívoca de que nos eventos ocorridos no ... foram utilizadas pelo menos 6 armas distintas.

Segundo as palavras do Sr inspetor, o posicionamento dos vestígios balísticos são reveladores de que se tratou de uma troca de tiros entre os dois grupos envolvidos. E que o projétil que atingiu o ofendido EE terá sido disparado pelo menos a média distancia.

Tiro a curta distância (à queima-roupa): O tiro a curta distância é aquele em que o projétil é lançado contra o alvo a uma distância capaz de causar o ferimento de entrada e os efeitos secundários, os quais são as lesões decorrentes da ação dos resíduos de combustão e semicombustão da pólvora, e das partículas sólidas do projétil.

Não há um espaço em centímetros que determine o tiro a curta distância, sendo esse determinado pela presença dos efeitos secundários.

O ferimento desse tipo de tiro pode ter borda arredondada ou elíptica, orla de escoriação, zona de tatuagem, bordas invertidas, halo de enxugo, zona de esfumaçamento, zona de queimadura, aréola equimótica e zona de compressão de gases.

O tiro a queima-roupa é uma forma de tiro a curta distância que além das zonas de tatuagem e de esfumaçamento, há a queimadura superficial dos pelos cabelos, pele e zona de compressão de gases.

O que não se verifica vide imagem do ferimento balístico constante do relatório da autopsia ao ofendido junto aos autos. Pelo que, é de se descartar que o tiro tenha sido efetuado a curta distância conforme revelado por todas as testemunhas em sede de audiência de julgamento.

É de salientar que, todas as testemunhas, foram determinantes ao afirmar que o arguido AA terá agarrado o ofendido (cada uma das testemunhas descreve de forma diferente o modo como ocorreu o confronto corporal ), e que este terá efetuado vários disparos á queima roupa.

O que não colhe segundo a prova pericial. A prova pericial junto aos autos bem como o depoimento do Sr Inspetor, são determinantes ao avaliar que nenhum tiro á queima-roupa ocorreu.

Ora, existe aqui uma contradição entre a prova testemunhal e a prova pericial. Sendo que, perante este cenário, teria que o Tribunal fazer prevalecer a prova pericial, em detrimento da prova testemunhal.

L) Ao dizer-se no Acordão proferido que: “ iam para AGREDIR E/OU TIRAR A VIDA a quem entendiam ter sido culpados…. Vejamos,

É o próprio Tribunal que coloca em hipótese que a intenção dos envolvidos poderia ser ou agredir ou tirar a vida.

Colocando essas duas hipóteses na mesma frase o Tribunal demonstra não se ter convencido de que tenha sido uma ou outra, mas sim que talvez uma das duas. Só que ambas as hipóteses representam crimes diferentes.

Uma será uma ofensa á integridade física agravada pelo resultado.

A outra um homicídio.

Ou seja, O Tribunal condenou por um crime de homicídio os dois arguidos, ainda que levante ele próprio duvidas sobre a verdadeira intenção dos mesmos.

Violando assim e mais uma vez o princípio do in dúbio pro reo.

Optou pela mais grave das penas.

Mesmo reconhecendo desconhecer qual a verdadeira intenção.

É muito diferente de dizer-se que agiram com o propósito concretizado de matar o ofendido.

O Tribunal revela que esse propósito não ficou patente suficientemente para atingir um grau de certeza exigível, principalmente num caso como o dos presentes autos, e por isso mesmo não o conseguiu afirmar.

Colocando a dúvida mas decidindo com base numa certeza que o mesmo revelou não ter. O que é grave!!!!!

M) O arguido, note-se, nem sequer participou dos confrontos ocorridos anteriormente, pelo que desconhecia a identidade dos intervenientes.

Não ficou demonstrado tão pouco que o aqui recorrente tivesse afinidade bastante com o ofendido JJ para de alguma forma querer vingar o ataque que sofrera anteriormente por meio de golpes de faca.

Não se logrou, portanto, preencher o elemento subjectivo.

N) Ora, temos duas testemunhas directas que afirmam terem entrado no bar á excepção do arguido AA, pessoas encapuçadas, e temos quem referisse ter identificado o aqui arguido, não demonstrou o Tribunal esclarecer porque razão aderiu a uma das versões em detrimento da outra onde revelaram não lograr identificar os demais elementos do grupo, nomeadamente o próprio Gerente do Bar, conforme deu como provado o Tribunal ser pessoa mais isenta e imparcial.

Foi o próprio quem referiu que os que entraram atras do primeiro arguido estavam de cara tapada e que não vislumbrava identifica-los com clareza.

O Tribunal deu como assente que esta testemunha era a mais isenta.

Então como pode, na mesma decisão, dar como assente outro facto, completamente oposto, referido por outras duas testemunhas que o Tribunal aceita como menos imparciais e que colocam o recorrente como autor de um dos disparos?

O) Quanto á alegada participação ou co-autoria no crime de homicídio na forma consumada na pessoa do arguido EE, nenhuma referencia foi concretizada.

Estava perto?

Disparou também?

Agrediu somente?

Ou pura e simplesmente quanto a este sujeito nada fez?

Sobre esta questão, inexistem respostas.

Pior, inexistem respostas e muito menos fundamentação.

Assim sendo, mesmo que se admitisse que o arguido BB tivesse tido algum envolvimento no disparo contra o DD, o que não se concede nem se pode conceber, sempre teria o mesmo arguido que ser absolvido do crime de homicídio na forma consumada e no limite, ( pese embora erradamente ), condenado pela prática de um crime de homicídio na forma tentada contra DD.

Pois que nem as testemunhas referiram qualquer atuação por parte do aqui recorrente contra o EE.

Assim, condenou o Tribunal, sem qualquer sustentação, o aqui arguido por um crime que não cometeu, e que prova alguma foi feita nesse sentido.

Pelo que estamos perante uma decisão apreciada de forma desadequada, incorreta , sustenta em juízos ilógicos, e mesmo contraditórios, do ponto de vista do Homem médio.

Pois que, vários foram os populares que assistiram ao julgamento e não compreenderam a decisão adoptada quanto a este arguido.

Uma delas a mandatária subscritora deste recurso.

P) Porque se sérias dúvidas se levantam quanto á tentativa de homicídio por parte do aqui arguido contra o DD, e que sempre se teria que lançar mão do principio do in dúbio pro reo, atento o supra exposto, duvidas não restam que quanto ao ofendido EE prova alguma se fez que permita concluir pelo envolvimento deste.

TENDO-SE DADO COMO PROVADO O QUE NÃO ACONTECEU!

Não é que a versão do recorrente não coincida com a do Tribunal.

É muito mais além…..é que a prova existente e produzida indicia exatamente o oposto ao decidido, desde que apreciada de forma isenta, com olhar critico e analítico, e sem valorar depoimentos vingativos em detrimento de outros, sem qualquer justificação pela escolha e não escolha respetivamente.

Q) Tratou-se de um tiroteio, em que entre os envolvidos temos testemunhas e arguidos, e uns mais inteligentemente que outros ocuparam um lugar privilegiado processualmente, talvez por se terem determinado a prestar declarações, afastando os olhares sobre as suas próprias condutas, e levando a justiça a inclinar-se contra o recorrente-Não é inédito!

Basta apelarmos á experiencia e conhecimento geral, 99% das condenações injustas que mais tarde levaram a absolvições inéditas depois de anos de cumprimento de pesadas penas ( por exemplo EUA, Brasil, e creio que mesmo em Portugal, mas pouco se fala) ocorreram por depoimentos parciais, falsos, e tendenciosos.

E vários foram os condenados que segundo a convicção dos Tribunais mereciam penas duras que permaneceram por vários anos em carcere para depois serem libertados, por exemplo com a chegada da prova por ADN.

Mas e se essa prova não tivesse chegado?

Provavelmente estariam presos, quiçá até hoje, injustamente, mas sem que o julgador alguma vez soubesse que tinha errado ao dar tanto crédito a testemunhas maliciosas.

Ao invés de conceitos jurídicos, vazios de razão de ciência, o recorrente apenas queria intender o raciocínio logico e o entendimento por parte do Tribunal da prova produzida, mas na prática, não só e tão só na teoria.

R) Assim, ao omitir esse dever de fundamentação – não conhecendo do que devia no caso concreto, - já que a “valoração” que o Tribunal fez do comportamento da postura do arguido foi claramente ao arrepio do disposto neste art.º 355.º CPP (por isso, com violação do necessário contraditório), o douto acórdão cometeu a apontada nulidade de omissão de pronúncia que deve ser declarada por este Alto Tribunal.

Sendo por tal razão nulo o douto acórdão recorrido, nulidade que lhe advém do disposto no art.º 379.º n.º1 alínea c) do Código do Processo Penal. Tendo, ainda -. E por tudo o que fica alegado - o recorrido acórdão violado, por erro de interpretação, o princípio “in dubio pro reo”.

S) Entende-se, quanto é medida da pena, que atentos os critérios do art.º 40.º e 71.º do CP, a pena cumulatória a aplicar ao recorrente se deveria situar (atentos os fins das penas e aos princípios básicos ressocializadores de que enferma o nosso Direito Penal) num limiar mais baixo, a não ultrapassar os 8 anos de prisão, pela prática de um crime de ofensa á integridade física agravada, em cumulo, uma vez que os apontados preceitos legais (art,º 40.º e 71.º CP) foram violados na sua interpretação.

T) O crime alegadamente praticado quanto á pessoa do DD, foi quando muito um crime de ofensa à integridade física grave com agravação pelo resultado, ou, e sem conceder, ofensa à integridade física qualificada;

Foi o que resultou, máxime, das declarações das testemunhas, não havendo nenhuma outra prova no processo que confirme ou desminta que assim tenha ocorrido-

U) Não houve co-autoria no crime de homicídio qualificado.

O arguido que disparou a arma tomou uma atitude completamente fora do padrão de actuação do arguido, e sem que o mesmo o fizesse prever.

O individuo que terá desferido a facada, que não se logrou identificar, fê-lo á revelia, sem o conhecimento e consentimento do aqui recorrente.

Tanto que o aqui arguido desconhece quem terá desferido o golpe fatal, e na altura dos fatos nem se apercebeu que para além dos tiros a vitima havia sido golpeada.

V) Só este arguido que disparou tinha o domínio do facto, nenhum dos outros arguidos aderiu a este projecto criminoso autónomo (o homicídio ou ofensas graves), nenhum deles tem um comportamento concludente de forma a aferir-se que se conformaria com a actuação, pelo contrário, se pudessem adivinhar o que iria acontecer não se conformariam, tal é a conclusão face a todos os actos até aí praticados, e mesmo depois.

X) Pelo que deve o recorrente ser absolvido do crime de homicídio qualificado.

Z) Relativamente ao crime de homicídio, além de não ter ficado provado nos autos que o

Recorrente tenha tido intervenção neste, muito menos ficou provado que tenha sido este a disparar o tiro ou a facada que viera a causar a morte do EE, ou seja não se logrou provar o grau de culpa do Recorrente.

AA) E, ainda que se aceite a prática do crime em comparticipação, jamais se poderia aceitar, face à ausência de elementos que preencham o elemento subjetivo do tipo de crime, que ainda que hipoteticamente o Recorrente tivesse participado no mesmo, não se conseguiu apurar se o Recorrente se havia conformado ou se não tentaria, por exemplo, evitar a consumação do mesmo.

BB) Preceitua o n.o 1 do artigo 71.o do Código Penal que “a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção” – negrito nosso.

CC) Por seu turno, refere o n.o 2 do artigo 40.o do Código Penal que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.”

DD) E, mais ainda, estabelece o artigo 29.o do Código Penal que “cada comparticipante é punido segundo a sua culpa, independentemente da punição ou do grau de culpa dos outros comparticipantes.”, matéria que não nem sequer rebelicada pelo Douto Tribunal.

EE) Ora, sendo a culpa um elemento pessoal e individual, ainda que se admitisse a comparticipação, era exigível ao Tribunal a quo que na determinação da medida da pena,

descrevesse o grau de culpa de cada arguido individualmente.

FF) Nestes termos, não sendo procedente o recurso quanto à absolvição do Recorrente, o

que apenas se admite por mero dever de patrocínio, sempre deverá a pena aplicada ao

crime de homicídio qualificado ser reduzida para o mínimo de 12 anos, uma vez que não

foi apurado o grau de culpa do Recorrente, o que se requer.

GG) Neste sentido, deve tal alteração traduzir-se na redução substancial da pena única resultante do cúmulo jurídico das penas parcelares, de dois crimes, exceptuando-se o de homicídio na forma consumada.

Deste modo, dispunha o douto Tribunal de provas susceptíveis de poder fundamentar um juízo de prognose favorável quanto ao futuro do recorrente

Ao assim não proceder, violou, por mero erro interpretativo, o disposto nos art.º s 50.º e 53.º do CP e o princípio ressocializador nele consignado.

Assim e pelo exposto deverá o Tribunal absolver o arguido pelos crimes de que vem acusado por não se provar.

Caso assim não se entenda, deverá o arguido no limite ser condenado pela prática de um crime na forma tentada na pessoa do DD, pois a controversa prova apenas aponta nesse sentido.

Deverá o arguido ser condenado numa pena não superior a 6 anos de prisão.

A decisão recorrida, violou os Artigos, alíneas a), b) e c) do no 2 do arto 410o , 412º no 2 e 3, 374o no2 e 379o no 1a) todos do CPP, 26o, 132o, 144o, 145o do CP.

Nestes termos devem as nulidades suscitadas proceder e ser o acórdão ora

recorrido revogado sendo substituído por outro que faça justiça.

Deverá caso assim se entenda reenviar o processo para julgamento nos termos do art 426CPP para que se supram todos os vícios e nulidades incados.

Não deverá o arguido ser condenado para além da medida da culpa pela que, atendendo a todo o exposto e bem ao facto de que se tratou de uma rixa seguindo de tiroteio em que todos os participantes foram vitimas e agressores simultaneamente, havendo o mesmo numero de vitimas para cada um dos grupos envolvidos e não havendo nenhuma qualificativa, as agressões foram mutuas, as penas se mostram extremamente elevadas atendendo ao contexto.

Não tanto pelo sucintamente alegado, como pelo que mui doutamente os Venerandos desembargadores hão-de suprir, revogando a decisão ora em crise e substituindo-a por outra que, por mais douta e acertada, decida como peticionado, assim exercerão Vossas Excelências a melhor e mais acostumada»

4. O Arguido AA recorre também do acórdão do TRL, apresentando a sua motivação de recurso em 23-12-2024 (Ref.ª ...62), cujas conclusões são as seguintes:

«1) O acórdão recorrido não se pronunciou adequadamente sobre a impugnação da matéria de facto;

2) Pelo que foram aplicadas penas de prisão ao recorrente sem observar o dever de Fundamentação

3) O tribunal valorou meios de prova que não podia valorar.

4) Conforme resulta da motivação da decisão foi valorado depoimento contraditório das testemunhas.

5) Assim, tendo em conta o corolário do principio do in dúbio pró reo não pode ser o arguido condenado pelo crime de homicídio qualificado, na forma consumada, agravado na pessoa do EE.

6) Nem pode o arguido ser condenado por um de homicídio qualificado, na forma

tentada na pessoa do DD.

7) Quanto muito só pode ser o arguido condenado por um crime de ofensa é integridade física na pessoa do EE.

8) O arguido encontra-se inserido social e familiarmente.

9) O douto acórdão no nosso entender não respeita o nº 3 do artigo 71º do código penal.

Ora tal afigura-se desconforme à Constituição que impõe o dever de fundamentar as decisões judiciais, por forma a que as mesmas sejam legitimadas pela exposição das razões que conduziram à deliberação tomada, dando a conhecer os factores que foram considerados por quem tomou a resolução e permitindo aderir à motivação explanada ou dela discordar e impugná-la.

10) O arguido só pode ser condenado pelo crime de ofensa à integridade fisica e nunca numa pena superior a 5 anos.

Violaram-se as disposições citadas ao longo da motivação de recurso.

Nestes termos e demais de direito deverá o presente recurso obter provimento e decidir-se em conformidade, absolvendo-se o arguido dos crimes pelo quais foi condenado.»

5. Admitidos os recursos, nos termos do despacho da Senhora Desembargadora relatora no TRL, de 06-01-2025 (ref.ª Citius ...08), e notificado o Ministério Público junto daquele tribunal, a Senhora Procuradora-geral-adjunta ali em funções apresentou resposta, em 07-02-2025 (ref.ª ...93), concluindo nos termos seguintes:

«1. Os arguidos AA e BB recorrem do acórdão proferido a 20 de novembro de 2024, na 3.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa, que julgou improcedente os recursos que apresentaram e confirmou na íntegra a decisão proferida pelo Tribunal de 1.ª Instância.

2. Os Recorrentes não invocam qualquer novo fundamento para justificar que outra deveria ter sido a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, o que sugere que apenas pretendem que se aprecie da bondade dos argumentos avançados no acórdão recorrido e que determinaram que fossem julgadas improcedentes as razões por si aduzidas,

3. O Recorrente AA alega que «a análise que o acórdão recorrido realizou à impugnação da matéria de facto é no mínimo insuficiente e de um enorme vazio», reiterando que «o Tribunal a quo não procedeu a um verdadeiro exame crítico da prova, a qual devidamente analisada noutra coisa que assentaria, que não a condenação do arguido nos termos e para os efeitos do art. 21.º, nos moldes em que o foi, pois só pode ser imputado ao arguido o crime de ofensa à integridade física na pessoa do EE»,

4. Por seu turno, as questões suscitadas pelo Recorrente BB prendem-se, uma vez mais, com «a matéria de facto dada como provada e não provada», com a «qualificação jurídica do crime de Homicídio qualificado», com o «não preenchimento do elemento subjetivo/dolo direto», e com a concreta «medida da pena aplicada»,

5. No entanto, contrariamente ao sugerido pelos Recorrentes, o douto acórdão recorrido, ao julgar improcedente os recursos que interpuseram, apreciou adequadamente todas as questões suscitadas,

6. Tendo concluído que a avaliação da prova produzida em sede de julgamento se mostrava conforme com as regras da experiência comum e da normalidade dos acontecimentos, bem como de acordo com critérios de lógica e racionalidade,

7. Com efeito, analisando o acórdão proferido pelo Tribunal de 1.ª Instância, não se vislumbra a existência de qualquer erro ou vício, sendo que a factualidade considerada como provada permite fundamentar a decisão jurídica, não existindo, assim, a alegada insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito,

8. Nesta conformidade, o acórdão recorrido não merece qualquer reparo, tendo feito correta interpretação e aplicação do direito, não tendo violado qualquer preceito legal nem quaisquer princípios gerais, devendo assim ser confirmado na íntegra.

Termos em que, negando provimento

aos recursos e mantendo o acórdão

recorrido farão V.Exas.

JUSTIÇA»

6. A Assistente CC respondeu ao recurso dos arguidos, em 02-01-2025 (Ref.ª ...19), o que reiterou em 14-01-2025 (Ref.ª ...58), concluindo nos termos seguintes:

«a) O acórdão de primeira instância não padece de qualquer dos vícios do nº 2 do artº 410º do C.P.P., ou quaisquer outros.

b) Isso mesmo foi confirmado pelo acórdão em crise tirado no TRL, que se mostra judicioso e não merece qualquer censura quanto à apreciação feita.

c) Na verdade, este tampouco padece de qualquer vicio ou nulidade, já que apreciou e decidiu todas as questões que lhe foram submetidas.

d) Vista a matéria de facto dada como assente, agora consolidada, afigura-se que o tribunal a quo aplicou correctamente o direito.

e) Com efeito, o acórdão ora em crise não merece qualquer censura quanto à apreciação feita, à qualificação jurídica dos factos, à dosimetria das penas impostas aos recorrentes ou ao montante indemnizatório em que foram condenados a pagar à assistente.

f) Destarte, os recursos interpostos devem improceder na totalidade.

Assim é de J U S T I Ç A

7. Remetidos os autos a este STJ, o Senhor Procurador-geral-adjunto aqui em funções emitiu parecer em 25-02 -2025 (ref.ª Citius ...58), no qual expendeu pertinentes considerações, sumariadas, a final, nos termos seguinte:

«(…)

Em síntese:

Deve ser rejeitado o recurso quanto à questão da medida das penas, por falta de objecto (decisão);

Deve ser rejeitado o recurso quanto à questão do ao “homicídio qualificado” na forma tentada, por dupla conforme;

Deve ser rejeitado o recurso quanto às questões da impugnação da matéria-de-facto, da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova, por inadmissibilidade legal;

Não padece o Acórdão recorrido da nulidade de “falta de fundamentação”, pois que contém a motivação do prudente sindicar da formação da livre convicção do Tribunal Colectivo;

Não padece o Acórdão recorrido da nulidade de “omissão de pronúncia”, pois que decidiu todas as questões suscitadas pelos ali também recorrentes;

Não foi violado o in dubio pro reo, pois que o Tribunal “a quo” não sancionou qualquer estado de dúvida séria do Tribunal Colectivo.

IV

Em conclusão:

Motivo por que o Ministério Público dá Parecer que:

-Deverão os presentes recursos ser rejeitados quanto às questões do crime de “homicídio qualificado” na forma tentada, da impugnação da matéria-de-facto, da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e do erro notório na apreciação da prova e da medida das penas;

-No restante, deverão os recursos ser julgados não providos e improcedentes, sendo de manter os termos da decisão recorrida.»

8. Notificados os sujeitos processuais de tal parecer, nos termos do art. 417.º, n.º 2, do CPP, nada vieram dizer ou requerer.

9. Colhidos os vistos, mantendo-se a regularidade e a validade da instância recursiva, não tendo sido requerida audiência, foram os autos julgados em conferência - artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.

Cumpre apreciar e decidir.

II. Fundamentação

II.1. Factos provados e não provados

10. Encontra-se assente pelas instâncias a seguinte factualidade, provada e não provada (transcrição):

«(…)

II-

a) Matéria de Facto Assente:

Factos Provados:

1)No dia 16-04-2023, em momento que se não apura em concreto, mas anterior às 02:00 horas, no Pavilhão ..., em ..., na sequência de evento musical que ali havia decorrido, ocorreram desacatos entre dois grupos de jovens dos Bairros da ... e dos ..., respectivamente;

2)Nos referidos desacatos, JJ sofreu ferimentos nas costas, decorrentes de cortes;

3)No grupo de jovens do Bairro dos ... encontravam-se, entre outros indivíduos, DD, GG, FF e EE;

4)Em hora não concretamente apurada, mas entre as 4:30 horas e as 5:00 horas, do dia 16 de Abril de 2023, DD, GG, FF e EE deslocaram-se ao estabelecimento comercial "...", sito na Rua da ..., no ..., em ...;

5)Após os acontecimentos ocorridos no Pavilhão ... e por terem tomado conhecimento do paradeiro de DD, GG, FF e EE, os arguidos AA, tio de JJ, BB, MM, um indivíduo conhecido por "OO" e pelo menos outros dois indivíduos, elaboraram um plano e acordaram em deslocar-se ao estabelecimento "..." munidos de armas de fogo e, pelo menos, um objecto corto-perfurante para matarem os referidos indivíduos, como retaliação pelas agressões a JJ que acreditavam terem sido desferidas por estes;

6)Para a execução do referido plano, previamente, muniram-se, pelo menos, de duas armas de fogo, de características não concretamente apuradas, aptas a produzir disparos de munições de calibre de 6,35mm Browning e 7,65mm Browning e um objecto corto-perfurante;

7) No mesmo dia, por volta das 6:00 horas, os arguidos AA, BB, MM, o aludido "OO" e pelo menos, mais duas pessoas, dirigiram-se ao estabelecimento "...", munidos das referidas armas de fogo e objecto corto-perfurante;

8) Ao entrarem no referido estabelecimento, o arguido AA dirigiu-se a EE, apontou-lhe a arma de fogo de que vinha munido e efectuou um disparo, em direcção da zona abdominal/ toráxica esquerda do mesmo;

9)O arguido AA atingiu EE no antebraço esquerdo, uma vez que este o colocou à frente do seu corpo, acabando aquele por cair ao chão;

10)Acto contínuo, o arguido BB, o MM e o "OO", e mais dois indivíduos, aproximaram-se do arguido AA e todos, em conjunto, desferiram murros e pontapés no corpo de EE;

11) No decurso das agressões referidas, um dos indivíduos indicados em 10) cuja identidade não se apurou, com o objecto corto-perfurante de que vinha munido, desferiu um golpe no lado esquerdo do tórax e outra na anca esquerda de EE;

12) Durante a situação o arguido BB, com a arma de fogo que vinha munido, efectuou, pelo menos, um disparo em direcção do DD que se encontrava a tentar encontrar um local para se esconder, tendo-o atingido com uma bala, na face posterior da coxa direita;

13) De seguida, indivíduos cuja identidade não se logrou apurar efectuaram disparos contra os arguidos e quem os acompanhava, e que atingiram o arguido AA na região abdominal e MM na região dorsal, na região torácica direita e no membro superior direito, tendo estes, e quem os acompanhava, abandonado o local, colocando-se em fuga e pondo termo aos seus intentos;

14) Como consequência directa e necessária da acção dos arguidos e das pessoas que os acompanhavam EE para além da dor física decorrente de cada golpe na sua pessoa, sofreu as seguintes lesões na sua pessoa:

Na zona da cabeça:

Ferida cortante, com 1cm de comprimento, na região zigomática esquerda, que levaram a solução de continuidade com infiltração sanguínea;

Ferida cortante, com 1,5cm de comprimento, na região bucal esquerda; que levaram a solução de continuidade com infiltração sanguínea;

Equimose arroxeada, com 2x1,5cm de maiores dimensões, com zona de escoriação central na zona de zigomática direita;

No pescoço:

Ferida cortante, infracentímetra, na região cervical lateral direita, que fez solução de continuidade na pele e tecido celular subcutâneo;

Nos membros superiores:

Duas escoriações infracentimétricas, na face posterior, do terço proximal do antebraço esquerdo;

Escoriação infracentimétrica, na face posterior, do terço distal do antebraço;

Escoriação com 1,5x0,7cm, na face posterior do cotovelo direito;

Ferida de 0,5 cm de diâmetro com orla de contusão excêntrica, decorrente da entrada do projéctil de arma de fogo, que entrou na face anterior do terço médio do antebraço esquerdo e que ficou alojado ao nível dos tecidos moles da face posterior do cotovelo esquerdo.

Ferida cortante, com 0,5 cm de cumprimento no dorso da mão, ao nível do 1.° raio;

Ferida cortante, com 1,5 cm de cumprimento no dorso da mão, ao nível do 2.° raio;

No tórax:

Ferida corto-perfurante, com 3cm de comprimento, na face lateral do hemitórax esquerdo, que levou a uma solução de continuidade na face anterolateral do hemitorax esquerdo, que seccionou o pericárdio e a cavidade pericárdia anteriormente, levando a uma ferida cortante do coração, com 1,5 cm de comprimento, na face anterolateral do ventrículo esquerdo;

Membros inferiores:

Ferida corto-perfurante, com 1cm de comprimento, na face lateral da anca esquerda;

15)A ferida que o EE sofreu na face lateral do hemitorax esquerdo, que lhe seccionou o coração determinou a sua morte;

16) Como consequência directa e necessária do disparo da arma de fogo efectuado pelo arguido BB, DD sofreu dor física e uma ferida (um traumatismo de natureza perfurocontundente) na coxa direita, que teve de ser objecto de intervenção cirúrgica;

17) Resultaram também consequências permanentes para DD, nomeadamente, cicatriz operatória com 3 cm de cumprimento e vestígios de pontos de sutura na face interna da coxa direita;

18) As descritas lesões determinam para DD um período de 30 dias de doença, com afectação para o trabalho geral e estudantil;

19) Ao praticar os factos acima descritos, os arguidos agiram em conjugação de esforços e vontades, com o recurso a armas de fogo e um objecto corto-perfurante, com o propósito concretizado de atentar contra a vida de EE, com o qual tinham uma contenda e que ali se encontrava, querendo e representando disparar armas de fogo, desferir agressões e golpes com o objecto cortante, em zonas do corpo onde se alojam órgãos vitais;

20) Bem como, agiram em conjugação de esforços e vontades, com o recurso a armas de fogo e um objecto corto-perfurante, com o propósito de atentar contra a vida de DD, com o qual tinham uma contenda e que ali se encontrava, querendo e representando disparar armas de fogo contra o mesmo, sabendo que tal conduta é apta a causar lesões, hemorragia e morte, o que quiseram e apenas não lograram por motivos alheios às suas vontades;

21) Estavam ainda cientes de que actuavam por mera vingança em total desconsideração pela vida humana;

22) Os arguidos agiram sempre de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.

Mais se provou que:

23) O arguido BB foi condenado:

a) Por sentença proferida em 02-11-2021, no processo comum singular 65/20.9... do Juízo Local Criminal de ..., Juiz ..., que transitou em julgado em 02-12-2021, pena de 1 ano e 7 meses de pena de prisão, cuja execução ficou suspensa pelo mesmo período, com regime de prova, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, por factos de 28-08-2020;

b) Por sentença proferida em 07-02-2023, no processo singular 107/23.6... do Juízo Local Criminal de ..., Juiz ..., que transitou em julgado em 09-03-2023, pena de 160 dias de multa, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal e um crime de uso de documento de identificação ou de viagem alheio por factos de 27-01-2023. A pena de multa foi substituída por pena de prisão, que foi declarada extinta por perdão de pena em 19-10-2023.

24) À data dos factos que levaram à instauração do presente processo (abril de 2023) bem como até à data em que foi preso preventivamente (agosto de 2023) BB viveu num apartamento de tipologia T3, de renda social, localizado numa zona suburbana que se caracteriza pela existência de várias problemáticas de exclusão social.

O agregado foi composto pelo próprio, a mãe, a avó materna e dois irmãos menores de idade. Em meio familiar, BB foi descrito como capaz de cumprir com as regras instituídas, mantendo ainda relação estável e funcional com os restantes elementos do agregado, coadjuvando a progenitora designadamente cuidando do irmão mais novo, em parte do período em que a mãe se encontrava a trabalhar.

BB nunca trabalhou e encontrava-se desempregado. A situação financeira do agregado que foi caracterizada como modesta, tem assentado nos rendimentos da progenitora, como empregada de balcão e pensões de reforma e viuvez da avó, bem como ainda dos abonos de família atribuídos aos irmãos menores.

Foram reportados rendimentos mensais na ordem dos €1580 e despesas regulares com a renda e os consumos domésticos no valor de € 437 euros, considerando a progenitora que este quadro tem permitido assegurar a satisfação das necessidades básicas da família.

À data da instauração do presente processo BB não tinha qualquer atividade estruturada do seu tempo livre, afirmando ocupar o seu quotidiano no convívio com o grupo de referência, alegadamente constituído por jovens do bairro de residência que considera socialmente inseridos. A progenitora alegou desconhecer em concreto o seu quotidiano e estilo de vida fora do meio familiar/habitacional, referindo que o arguido tinha hábitos de frequência de estabelecimentos de diversão noturna.

O arguido assume consumos de estupefacientes.

No que se refere à sua história de desenvolvimento, BB é o mais velho de uma fratria de três irmãos uterinos, sendo o único filho da relação mantida entre os progenitores. Os pais separaram-se na sua infância sendo a mãe o principal elemento presente no seu processo educativo, sendo o ambiente familiar em que se desenvolveu aparentemente equilibrado a nível relacional. Destaca-se que durante a sua adolescência (14 aos 20 anos) a mãe permaneceu emigrada e BB ficou a cargo da avó, figura que teve menor capacidade de supervisão do seu comportamento.

De acordo com a progenitora o percurso escolar do arguido foi marcado por dificuldades na aprendizagem e falta de empenho, não tendo conseguido concluir o segundo ciclo do ensino. Ainda segundo esta fonte, o filho terá sido transferido para uma escola de ensino especial onde permaneceu até aos 17 anos de idade. Depois de ter abandonado a frequência escolar BB não teve qualquer experiência de formação profissional ou de cariz laboral.

No que se refere ao seu funcionamento pessoal, o arguido aparenta ser um sujeito reservado mesmo em contexto familiar, evidenciando dificuldades ao nível da gestão dos impulsos e da expressão de emoções.

25) O arguido AA foi condenado:

a) Por sentença proferida em 28-09-2005, no processo comum singular 2149/02.6... do ....° Juízo Criminal de ..., que transitou em julgado em 13-11-2006, pena de 150 dias de multa, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, e um crime de desobediência, por factos de 31-08-2002 e 02-09-2002. A pena de multa foi substituída por pena de prisão. A pena foi declarada extinta pelo cumprimento em 05-12-2009.

b) Por sentença proferida em 05-01-2007, no processo comum singular nº1137/02.7... do ...º Juízo Criminal de ... que transitou em julgado em julgado em 03-12-2007, pena de 200 dias de multa e um ano de prisão, cuja execução ficou suspensa por dois anos, pela prática de um crime de ofensa à integridade física simples e um crime de furto qualificado, por factos de 07-11-2002. O período de suspensão da pena de prisão passou a ser de um ano, e a pena de multa foi substituída por pena de prisão subsidiária que foi igualmente suspensa na execução por 3 anos, com condições. A suspensão da pena de prisão subsidiária foi declarada extinta em 04-05-2015. Foi revogada a suspensão da pena de prisão inicial que lhe foi aplicada, por despacho de 29-11-2011. O arguido cumpriu a pena de prisão inicialmente aplicada, que foi declarada extinta em 12-03-2018, por despacho proferido no processo 333/11.0... de Liberdade Condicional do TEP de Lisboa, ....º Juízo.

c) Por sentença proferida em 15-10-2007, no processo abreviado 1230/05.4... do ....º Juízo Criminal de ..., que transitou em julgado em 02-05-2008, pena de 100 dias de multa, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, por factos de 16-12-2005.

d) Por sentença proferida em 13-05-2008, no processo abreviado 1377/99.4... do ....º Juízo Criminal de ..., que transitou em julgado em 13-06-2008, pena de 30 dias de multa, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, por factos de 19-09-1999. A pena de multa foi substituída por pena de prisão subsidiária, que foi declarada extinta pelo cumprimento em 08-06-2010.

e) Por sentença proferida em 20-05-2008, no processo comum singular 290/06.5... do ....º Juízo Criminal de ..., que transitou em julgado em 09-06-2008, pena de 30 dias de multa, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, por factos de 12-03-2006. A pena de multa foi convertida em pena de prisão subsidiária que cumpriu, sendo declarada extinta em 18-01-2020.

f) Por acórdão proferido em 27-10-2008, no processo comum colectivo 40/08.1... do ....º Juízo Criminal de ..., que transitou em julgado em 26-11-2008, pena única de 18 anos de prisão, pela prática de um crime de homicídio qualificado e um crime de detenção de arma proibida, por factos de 12-01-2008 e 05-01-2008.

g) Por sentença de 15-12-2020 no processo de liberdade condicional 222/11.0... tramitado no Juízo de Execução de Penas, de ..., Juiz ..., foi concedida liberdade condicional ao arguido por referência à pena aplicada no processo 40/08.1... até 14-12- 2025.

h) Por sentença proferida em 20-07-2009, no processo comum singular 1095/06.9... do ....º Juízo Criminal de ..., que transitou em julgado em 09-09-2009, pena de 6 meses de prisão substituída por 180 dias de multa, pela prática de um crime de condução sem habilitação legal, por factos de 03-11-2006. A pena foi declarada extinta, pelo cumprimento, em 13-02-2012.

(…).»

«Factos não provados:

Não resultou provado que:

a) O arguido AA, tendo apontado novamente a arma de fogo de que vinha munido a EE efectuou novo disparo, não tendo logrado acertar-lhe, por motivo alheio à sua vontade.»

II.2. Mérito dos recursos

11. Os poderes de cognição do tribunal de recurso são delimitados pelo teor das conclusões da motivação do recorrente (artigos 402.º, 403.º, 412.º e 434.º do CPP), sem prejuízo dos poderes de conhecimento oficioso do tribunal ad quem quanto a vícios da decisão recorrida, a que se refere o artigo 410.º, n.º 2, do CPP (acórdão de fixação de Jurisprudência STJ n.º 7/95, DR-I.ª Série, de 28-12-1995), os quais devem resultar diretamente do texto desta, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, a nulidades não sanadas (n.º 3 do mesmo preceito) ou quanto a nulidades da sentença (artigo 379.º, n.º 2, do CPP, na redação da Lei n.º 20/2013, de 21 de fevereiro), alguns dos quais são expressamente suscitados pelos recorrentes, sendo objeto de oportuna pronúncia.

12. Das conclusões da motivação de recurso de cada um dos arguidos, extrai-se que os mesmos pretendem colocar à apreciação deste Supremo Tribunal de Justiça, as seguintes questões:

12.1. Recurso do arguido AA

i. Inadequação da pronúncia do tribunal sobre a impugnação da matéria de facto, valorando prova que não podia ter valorado, por contradição nos depoimento de testemunhas – Pontos 1), 3) e 4) das conclusões;

ii. Violação do princípio in dubio pro reo no tocante à conclusão pela atribuição ao recorrente da morte das vítimas EE e DD, pelo que nem pela tentativa do crime de homicídio qualificado deveria ser condenado, só podendo, quando muito, sê-lo pelo crime de ofensa à integridade física relativamente à vítima EE – Pontos 5), 6), 7) e 8) das conclusões;

iii. Excesso da medida da pena pelo único crime pelo qual deve ser condenado, devendo ser apenas condenado na pena de 5 anos de prisão – Ponto 10) das conclusões; e

iv. Inconstitucionalidade da interpretação do art. 71.º, n.º 3, do Código Penal – Pontos 2) e 9) das conclusões.

12.2. Recurso do arguido BB

i. Inconstitucionalidade da normacontidanaalínea f)do n.º 1 do art. 400.º do CPP, por violação do disposto no art. 32.º, n.º 1 do CPP, quando interpretada no sentido de que não é admissível recurso interposto pelo arguido para o Supremo Tribunal de Justiça de um acórdão da Relação que, confirmando a decisão da 1.ª Instância, o tenha condenado numa pena não superior a oito anos de prisão, mesmo quando o objeto do recurso é exclusivamente saber da verificação ou não da nulidade por omissão de pronuncia por parte do próprio Tribunal da Relação – Conclusão B);

ii. Omissão de Pronúncia, insuficiência de inquérito, ausência dos elementos subjetivos e objetivos do tipo crime, insuficiência e contradição da prova testemunhal contra as demais provas do processo, designadamente pericial, impugnação da matéria de facto – Conclusões C), D), E), F), G), H), I), J), K), M), N), O), P), Q);

iii. Erro notório na apreciação da prova – Conclusão K);

iv. Nulidade do acórdão, nos termos do art. 379.º n.º 1, alínea c) do CPP, por omissão de pronúncia – Conclusão R);

v. Excesso da “pena cumulatória”, que não deveria ultrapassar 8 ou 6 anos, “pela prática de um crime de ofensa á integridade física agravada [pelo resultado], em cumulo”, ou, quando muito, de ofensa à integridade física qualificada – Conclusões S) e T) e considerações do pedido final do recurso;

vi. Falta de prova da coautoria no crime de homicídio qualificado [consumado] – Conclusões U), V), X), Z);

vii. Excesso, no caso de improceder o pedido de absolvição, da medida da pena do crime de homicídio qualificado consumado, que deve ser reduzida, de acordo com a sua culpa, para 12 anos, o que terá implicações significativas na redução da medida da pena única – Conclusões AA), BB), CC), DD), EE), FF) e GG).

Proceder-se-á à apreciação destas questões, não pela ordem mencionada, mas pela de precedência lógica, uma vez que a decisão sobre algumas prejudicará a subsequente apreciação de outras.

13. Questão prévia: inadmissibilidade (parcial) dos recursos por verificação de “dupla conforme”

Os recursos dos arguidos foram admitidos na sua totalidade, como se disse supra, por despacho da Senhora Desembargadora relatora no TRL, de 06-01-2025 (Ref.ª Citius ...08).

Os recorrentes foram condenados pelo acórdão de 1.ª Instância – confirmado pelo acórdão, recorrido, do TRL de 20-11-2024 –, cada um deles, pela prática, além do crime de homicídio qualificado consumado, como coautores materiais e em concurso efetivo, de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, agravado pela utilização da arma, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, alíneas h), e j), 22.º, 23.º e 73.º do Código Penal, e artigo 86.º, n.º 3 e 4, da Lei n.º 5/2006, de 23-02, respetivamente, nas penas de 8 (oito) anos de prisão, o arguido AA, e de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão, o arguido BB.

As medidas concretas parcelares aplicadas a tais crimes não excedem os 8 (oito) anos de prisão, o que inviabiliza a admissibilidade do recurso e a reapreciação das questões colocadas a propósito do crime assim punido, ficando vedada aos arguidos a possibilidade de os seus recursos serem conhecidos quanto a tal matéria, nas dimensões que infra se enunciarão.

Trata-se do modelo de “dupla conforme”, enquanto manifestação ou indício de coincidente bom julgamento nas duas instâncias, que não supõe, necessariamente, identidade total, absoluta convergência, concordância plena, certificação simétrica, ou consonância total, integral, completa, ponto por ponto, entre as duas decisões.

A conformidade parcial, mesmo falhando a circunstância da identidade da qualificação jurídica (desde que daí resulte efetiva diminuição de pena, de espécie ou medida de pena), não deixará de traduzir ainda uma presunção de bom julgamento, de um julgamento certo e seguro.

É essa a solução legalmente consagrada nos artigos 400.º, n.º 1, al. f) e 432.º, n.º 1, al. b) a contr., do CPP.

Resulta do exposto que o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 20-11-2024 é irrecorrível na parte em que confirma, mantendo-as, as penas parcelares aplicadas a cada um dos arguidos pela prática do crime de homicídio qualificado, na forma tentada, agravado pela utilização da arma, sendo, pois, tais penas definitivas.

Esta solução quanto à irrecorribilidade de decisões proferidas, em recurso, pelo Tribunal da Relação, enquanto confirmativas da deliberação da primeira instância, que tenha aplicado pena de prisão igual ou inferior a oito anos, não ofende qualquer garantia do arguido, nomeadamente, o direito ao recurso, expressamente incluído na parte final do n.º 1 do artigo 32.º da Constituição pela 4.ª Revisão Constitucional (introduzida pela Lei Constitucional n.º 1/97, de 20 de Setembro – Diário da República, I-A, n.º 218/97, de 20-09-1997, entrada em vigor em 5 de outubro de 1997).

Dispõe o art. 400.º, n.º 1, al. f) do CPP (Decisões que não admitem recurso), o seguinte:

«1 - Não é admissível recurso:

(…)

f. De acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª Instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos;

(…)».

Por seu turno, o disposto no art. 432.º, n.º 1, al. b) do CPP (Recursos para o Supremo Tribunal de Justiça), tem a seguinte redação:

«1 - Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:

(…);

b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º;

(…).»

No caso vertente nos autos, a verificação da situação de «dupla conforme» traduz-se na manutenção das penas parcelares de prisão aplicadas aos arguidos, uma igual e outra inferior a oito anos, pela decisão do TRL, que confirmou a de 1.ª Instância.

Como é reconhecido pela doutrina e jurisprudência constitucionais, o legislador tem alguma latitude para conformar o regime de recursos, nomeadamente em matéria penal, desde que as soluções não atentem contra o núcleo do princípio do direito ao recurso, contra o princípio da legalidade ou contra o princípio do acesso ao direito e à tutela jurisdicional efetiva, consagrados, respetivamente, nos artigos 32.º, n.º 1, in fine 29.º, n.º 1, e 20.º, n.º l, todos da Constituição da República Portuguesa, considerando-se não ser obrigação do legislador a previsão sistemática de um duplo grau de recurso (ou triplo grau de jurisdição). Em matéria penal, o legislador infraconstitucional está apenas vinculado a prever um grau de recurso. Uma tal disciplina está, de resto, em conformidade com o preceituado no art. 2.º, n.º 1, do Protocolo N.º 7 à Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

No tocante à norma do art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, o Tribunal Constitucional (doravante, também “TC”) tem considerado, de forma sistemática e reiterada, não ser a mesma desconforme à Constituição (cfr., entre outros, os Acórdãos TC n.ºs 385/2011, 186/2013, 156/2016, 260/2016, 418/2016, 212/2017, 286/2017, 372/2017, 724/2017, 151/2018, 232/2018, 248/2018, 592/2018, 599/2018, 659/2018, 677/2018, 443/2019, 655/2019, 84/2020, 96/2021, 207/2021, 399/2021, 745/2021, 898/2021, 400/2022, 590/2022 e 261/2023).

Pelo Ac. do TC do seu Plenário n.º 186/2013, foi, aliás, decidido «Não julgar inconstitucional a norma constante da alínea f), do n.º 1, do artigo 400.º, do Código de Processo Penal, «na interpretação de que havendo uma pena única superior a 8 anos, não pode ser objeto do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça a matéria decisória referente aos crimes e penas parcelares inferiores a 8 anos de prisão.»

O Tribunal Constitucional considerou, também, no Acórdão n.º 232/2018 «não julgar inconstitucional a norma contida no artigo 400º n.º 1 alínea f), e 432º, n.º 1 alínea b), do Código de Processo Penal interpretados no sentido da irrecorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões dos tribunais da relação que, sendo proferidos em recurso, tenham aplicado pena de prisão não superior a 8 anos e inferior à que foi aplicada pelo tribunal de primeira instância, alterando uma parte da matéria de facto essencial à subsunção no tipo penal em causa». A título meramente exemplificativo, podem ainda indicar-se o Ac. do TC n.º 372/2017 – que confirmou a Decisão Sumária n.º 221/2017 –, no sentido de não julgar inconstitucional a «norma do artigo 400º, n.º 1, alínea f) do Código de Processo Penal, segundo a qual não é admissível recurso de acórdãos condenatórios proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1.ª Instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos, em caso de alteração da qualificação jurídico-penal da conduta apurada, por subsunção de um único crime, na forma continuada, e não de uma pluralidade de crimes em concurso real, resultando em “reformatio in mellius”».

Este entendimento é integralmente transponível para a apreciação dos recursos em apreço, relativamente à confirmação da condenação dos arguidos pelo crime que fundamenta a aplicação das penas parcelares do crime de homicídio qualificado, agravado pela utilização de arma, na forma tentada.

A inadmissibilidade do recurso prevista no art. 400.º, n.º 1, al. f), do CPP, vale separadamente para as questões atinentes às consequências dos crimes e da determinação das respetivas penas parcelares e para as questões respeitantes à pena conjunta, podendo acontecer que todas ou algumas das penas parcelares não sejam recorríveis, mas já o serem outras penas parcelares ou a pena única [a título de exemplo, cfr. os acórdãos do STJ de 21 de dezembro de 2020, proc. n.º 32/14.1SULSB-G.L1.S1, e de 15 de setembro de 2021, proc. n.º 1249/16.0JAPRT.P1.S1, ambos rel. Cons. Eduardo Loureiro, e de 27 de janeiro de 2022, proc. n.º 960/19.8JAAVR.P2.S1, rel. Cons. Maria do Carmo Silva Dias (www.dgsi.pt)], o que se verifica no caso em apreço.

Por outro lado, a irrecorribilidade da decisão por «dupla conforme» respeita a toda a decisão, abrangendo todas as questões processuais ou substanciais que digam respeito a essa decisão, tais como, v.g., os vícios indicados no artigo 410.º, n.º 2, do CPP; respetivas nulidades (artigos 379.º e 425.º, n.º 4, do CPP); aspetos relacionados com o julgamento dos crimes que constituem o seu objeto, aqui se incluindo as questões atinentes à apreciação da prova ou à a reapreciação da matéria de facto, seja em termos amplos (erro de julgamento) seja no âmbito dos vícios do artigo 410.º, do CPP (erro-vício), ou que envolvam respeito pela regra da livre apreciação (artigo 127.º do CPP) ou pelo princípio in dubio pro reo ou que se relacione com questões de proibições ou invalidade de prova; à qualificação jurídica dos factos ou que tenham que ver com a determinação das penas parcelares ou única, incluindo nesta determinação a aplicação do regime de atenuação especial da pena previsto no artigo 72.º do Código Penal, bem como questões de inconstitucionalidade suscitadas nesse âmbito (cfr., entre muitos outros, os acórdãos do STJ, de 13-05-2021, Proc. n.º 45/14.3SMLSB.L1.S1, rel. Cons. António Gama, de 12-01-2023, Processo n.º 757/20.2PGALM.L1.S1, rel. Cons. Orlando Gonçalves ou ainda o de 22-06-2023, Proc. n.º 275/21.1JAFUN.L1.S1, rel. Cons. Agostinho Torres).

Pelo exposto, e apesar de os recursos dos arguidos terem sido admitidos in totum pelo despacho da Senhora Desembargadora relatora no TRL, de 06-01-2025 – o que nos termos do art. 414.º, n.º 3, do CPP, não vincula o tribunal superior –, ao abrigo do disposto nos artigos 400.º, n.º 1, al. f) e 432.º, n.º 1, al. b) a contr., do CPP, ter-se-ão de rejeitar os recursos dos arguidos quanto à decisão recorrida no tocante à (confirmação da) sua condenação, como coautores materiais e em concurso efetivo de um crime de homicídio qualificado, na forma tentada, agravado pela utilização da arma, p. e p. pelos artigos 131.º e 132.º, n.º 1 e 2, alíneas h), e j), 22.º, 23.º e 73.º do Código Penal, e artigo 86.º, n.º 3 e 4, da Lei n.º 5/2006, de 23-02 (de que foi vítima DD), por lhes terem sido aplicadas penas parcelares não superiores a 8 anos de prisão, por verificação de “dupla conforme”.

Nessa conformidade, todas as questões respeitantes a tal matéria – elencadas nos pontos controvertidos dos respetivos recursos de ambos os arguidos – ficarão subtraídas à subsequente apreciação a que se procederá.

Em consequência, não se tomará conhecimento, por inadmissibilidade por “dupla conforme”, das invocadas questões de inconstitucionalidade mencionadas em 12.1. iv) do recurso do arguido AA, nesta dimensão recursiva, e em 12.2. i) do recurso do arguido BB.

14. Inadmissibilidade dos recursos dos arguidos para o STJ, do acórdão do TRL proferido em recurso, quanto a vícios e nulidades não sanadas – artigos 432.º, n.º 1, al. b) e 434.º, do CPP.

Os recursos dos arguidos veiculam, extensamente, pretensões discordantes sobre a formação da convicção do tribunal recorrido para obter conclusões probatórias, ao sancionar o exercício de apreciação crítica feito pelo tribunal de 1.ª Instância.

Nesse intuito, designadamente o arguido AA produz considerações atinentes a tal aspeto, concretamente na questão i) do ponto 12.1., supra elencada relativamente ao seu recurso.

Por seu turno, o arguido BB reedita quase integralmente o exercício do seu recurso amplo ou efetivo da matéria de facto, relativamente à decisão de 1.ª Instância (questão ii) do ponto 12.2., supra elencada do seu recurso).

Aí se exteriorizam variadas considerações que prosseguem na manifestação da sua discordância relativamente às conclusões probatórias resultantes da formação da convicção do tribunal recorrido.

O recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente matéria de direito, nos termos das disposições combinadas dos artigos 432.º, n.º 1, alíneas a) e c) e 434.º, do CPP.

Nos termos destas disposições resulta que “o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça visa exclusivamente o reexame da matéria de direito, sem prejuízo do disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do artigo 432.º”, sendo que na al. b) deste último preceito se prevê precisamente a hipótese de recurso como o presente, é dizer aquele interposto para o STJ “de decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do artigo 400.º”.

Mas, o regime do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça [redação da Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, entrada em vigor em 21 de março de 2022, dada ao art. 432.º do C. Processo Penal] estatui que os vícios da decisão e as nulidades que não devam considerar-se sanadas, previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º do CPP, só lhe podem servir de fundamento, relativamente a acórdão da relação proferido em 1.ª instância (alínea a) do n.º 1 do art. 432.º do CPP), ou a acórdão, em recurso per saltum, do tribunal de júri ou do tribunal coletivo que tenha aplicado pena de prisão superior a 5 anos (alínea c) do n.º 1 do art. 432.º do CPP).

Já não assim, nos casos subsumíveis à previsão da alínea b) do n.º 1 do art. 432.º do CPP. Aqui, estabelece-se a recorribilidade para o Supremo Tribunal de Justiça das decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do art. 400.º do CPP, mas não se contemplando, como fundamento do recurso, os vícios e as nulidades previstas nos n.ºs 2 e 3 do art. 410.º do mesmo código.

Concordantemente, o art. 434.º do CPP [igualmente na redação da Lei n.º 94/2021, de 21-12], restringe o recurso interposto para o Supremo Tribunal de Justiça ao reexame da matéria de direito, apenas excecionando da restrição, o disposto nas alíneas a) e c) do n.º 1 do art. 432.º.

Este entendimento – no sentido de que as nulidades e os vícios previstos nos n.ºs 2 e 3 do art. 410.º do CPP, não podem, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 432.º, n.º 1, al. b) e 434.º, do mesmo código, fundamentar recurso de acórdãos da relação proferidos em recurso – vem sendo uniforme e pacificamente acolhido pelo Supremo Tribunal de Justiça, como se evidencia, entre outros, nos acórdãos de 24 de abril de 2024, proc. n.º 2634/17.5T9LSB.L1.S1, de 29-02-2024, proc. n.º 9153/21.3T8LSB.L1.S1, de 29-02-2024, proc. n.º 864/20.1JABRG.G1.S1, de 15-02-2024, proc. n.º 135/22.9JAFUN.L1.S1, de 07-12-2023, proc. n.º 356/20.9PHLRS.L1.S1, de 08-11-2023, proc. n.º 651/18.7PAMGR.C3.S1, de 01-03-2023, proc. n.º 589/15.0JABRG.G2.S1 e de 23-03-2022, proc. n.º 4/17.4SFPRT.P1.S1, todos in www.dgsi.pt.

Assim sendo, também por esta via, apesar de terem sido admitidos pela Senhora Desembargadora relatora no TRL (no despacho de 06-01-2025) sem qualquer restrição – decisão que não vincula este STJ – os recursos teriam de ser rejeitados nessa parte, por inadmissibilidade legal, nos termos das citadas disposições legais, conjugadas com o disposto nos artigos 414.º, n.ºs 2 e 3, e 420.º, n.º 1, al. b), do mesmo diploma legal, sem prejuízo, naturalmente, da possibilidade do seu conhecimento oficioso, se do texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum, tais vícios e nulidades resultarem evidentes – como forma de permitir a correta aplicação do direito –, o que, manifestamente, aqui não ocorre, nem diretamente, nem indiretamente, por, como alegam os recorrentes, o acórdão recorrido ter sufragado o acórdão da 1.ª Instância eivado de alguns desses vícios e nulidades, na medida em que no mesmo foram expressamente apreciadas e fundamentadamente julgadas improcedentes todas as questões a esse respeito esgrimidas.

É por isso que não pode deixar de ficar subtraída à nossa apreciação, neste momento processual, o conjunto de todas as alegadas nulidades e vícios da decisão recorrida do TRL – ao reapreciar e julgar não merecedores de censura os fundamentos do acórdão do tribunal de 1.ª Instância relativamente às mesmas –, também no que respeitam à matéria do crime de homicídio qualificado e agravado consumado, versados nos recursos de ambos os arguidos, concretamente:

- No tocante ao recurso do arguido AA, as questões de inadequação da pronúncia do tribunal sobre a impugnação da matéria de facto, valorando prova que não podia ter valorado, por contradição nos depoimento de testemunhas (Pontos 1), 3) e 4) das conclusões); impossibilidade de atribuição de responsabilidade pela coautoria nos factos donde resultou o ferimento do ofendido DD (Pontos 5), 6), 7) e 8) das conclusões).

- No tocante ao recurso do arguido BB, as questões de omissão de pronúncia, insuficiência de inquérito, ausência dos elementos subjetivos e objetivos do tipo crime, insuficiência e contradição da prova testemunhal contra as demais provas do processo, designadamente pericial, impugnação da matéria de facto (Conclusões C), D), E), F), G), H), I), J), K), M), N), O), P), Q)); erro notório na apreciação da prova (Conclusão K); nulidade do acórdão, nos termos do art. 379.º n.º 1, alínea c) do CPP, por omissão de pronúncia (Conclusão R); falta de prova da coautoria no crime de homicídio qualificado [consumado] (Conclusões U), V), X), Z)).

No seu recurso, o arguido BB expressa por diversas vezes o propósito de demonstrar ter ocorrido a violação do princípio «in dúbio pro reo» (sc.), o que resulta dos pontos 35, 61, 91, 115, da motivação, bem como das Conclusões C), L), R) e P) (esta respeitante à situação recursiva do crime de homicídio qualificado na forma tentada, de que foi vítima o DD).

Conforme se deixou dito em 13., a questão da violação do princípio in dubio pro reo só relativamente ao segmento da condenação pelo crime de homicídio qualificado consumado poderia ser ponderado, caso oficiosamente se concluísse que o mesmo poderia ser apreciado no quadro do vício de erro notório na apreciação da prova (art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP), o que, como se disse, não decorre da atenta análise do acórdão recorrido e da sua fundamentação.

O princípio in dubio pro reo – conquanto não expressamente afirmado na lei fundamental, encontra suporte jurídico-constitucional no art. 32.º, n.º 2 da Constituição da República Portuguesa, enquanto corolário do princípio da presunção de inocência que neste tem assento – dá resposta à questão processual da dúvida sobre o facto, impondo ao juiz que o non liquet da prova seja resolvido a favor do arguido, assim assegurando a presunção de inocência, enquanto elemento estruturante do processo penal. O princípio in dubio pro reo, apesar de não se encontrar expressamente afirmado em qualquer preceito da Constituição ou da legislação ordinária, é unanimemente reconhecido, entre nós, como princípio que se reporta às consequências da não realização de prova sobre a verdade de um facto, ou seja, a um estado de dúvida, de non liquet, cuja verificação implica que tribunal deve decidir o facto em sentido favorável ao arguido. Na síntese de Figueiredo Dias, “O princípio in dubio pro reo vale só, evidentemente, em relação à prova da questão-de-facto e já não a qualquer dúvida suscitada dentro da questão-de-direito” (cf. Direito Processual Penal, vol. I, reimp., Coimbra, Coimbra Editora, 1981, p. 215), pelo que a sua violação respeita inequivocamente à decisão da matéria de facto e não ao reexame da matéria de direito.

Como é sabido, uma decisão penal tem de ancorar-se numa convicção para além de qualquer dúvida razoável. Mas só a dúvida razoável é plausível de constituir obstáculo a uma decisão condenatória, e não uma qualquer “dúvida” subjetiva, mais ou menos impregnada por preconceitos, que o recorrente pretenda subsistir no juízo decisório. A certeza processual (não ontológica) a que o tribunal pode chegar é uma certeza prático-jurídica, produzida por enunciados (hipóteses) factuais adquiridos por meios probatórios processualmente admissíveis, tendo como apoio as regras da experiência e da sã racionalidade. Na fase de recurso, a demonstração da violação do pro reo passa pela sua notoriedade, em moldes idênticos à demonstração do vício de erro notório na apreciação da prova, isto é, deve resultar do texto da decisão, de forma objetiva, clara e inequívoca, que o tribunal, tendo ficado na dúvida razoável sobre a verificação de determinado facto desfavorável ao agente, o considerou provado ou, inversamente, tendo ficado na dúvida razoável sobre a verificação de determinado facto favorável ao agente, o considerou não provado.

A dúvida razoável que vimos referindo, pressuposto da aplicação do pro reo, vale para toda a matéria de facto, mas não, também, para a matéria de direito, pois quanto a esta, prevalecerá o entendimento que se revelar mais correto (Maria João Antunes, Direito Processual Penal, Coimbra, Almedina, 2016, p. 172).

Por outro lado, a dúvida para este efeito relevante, não é a dúvida que o recorrente entende que deveria ter permanecido no espírito do julgador após a produção da prova, mas a dúvida que o julgador não logrou ultrapassar e fez constar da sentença, ou que é revelada, objetivamente, pelo respetivo texto (ac. do STJ de 27-04-2017, processo n.º 452/15.4JAPDL.L1.S1, in www.dgsi.pt).

A violação do princípio pode ser apreciada, como atrás se disse, em moldes análogos aos da consideração do erro na apreciação da prova, ao abrigo do art. 410.º, n.º 2, al. c), do CPP. O erro notório na apreciação da prova – como todos os demais vícios decisórios previstos no n.º 2 dos art. 410.º, do C. Processo Penal – constitui um defeito lógico da decisão penal, rectius, da sentença, e não, do julgamento, que se evidencia pelo respetivo texto, por si só ou em conjugação com as regras da experiência comum, o que significa que, para a sua comprovação, não é legalmente admissível lançar mão de elementos alheios à decisão, ainda que constem do processo. Ele ocorre quando o tribunal valorou prova contra as regras da experiência comum, contra critérios legalmente fixados ou contra as leges artis, aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de o erro não passar despercebido ao homem médio, ao cidadão comum, por ser evidente, grosseiro, ostensivo. Dizendo de outro modo, trata-se de um vício de raciocínio na apreciação das provas, que se evidencia aos olhos do homem médio pela simples leitura da decisão, e que consiste, basicamente, em dar-se como provado o que não pode ter acontecido, ou como não provado o que reconhecidamente aconteceu, mediante a formulação de juízos ilógicos e/ou arbitrários (Germano Marques da Silva, Direito Processual Penal Português, 3 vol., 3.ª reimp., Universidade Católica Portuguesa Editora, 2020, p. 326 e Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 9.ª ed., Lisboa, Rei dos Livros, 2020, p. 81).

A respeito da violação dos princípios in dubio pro reo e da presunção de inocência expressamente apreciada pelo tribunal a quo, por ter sido colocada nos recursos de ambos os arguidos, AA e BB “se a decisão recorrida viola o princípio do in dubio pro reo.” (recurso do arguido AA) e “se a decisão recorrida viola os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.” (recurso do arguido BB) – no acórdão recorrido foi considerado o seguinte:

«Ademais invoca o mesmo recorrente [AA] a violação do princípio in dubio pro reo sendo que esta pode e deve ser conhecida como vício do texto da decisão assumindo, nesta vertente, uma natureza subjetiva de dúvida histórica que o tribunal do julgamento, deveria ter tido e não teve.

Ora, se é o estado de dúvida subjetivamente sentida pelo julgador aquando da valoração e exame crítico dos meios de prova que constitui o pressuposto do aludido princípio este não resulta infringido se o tribunal de julgamento não se confrontou com dúvida relevante sobre a demonstração do facto desfavorável ao arguido.

Sendo um vício do texto da decisão a apreciação da sua verificação é feita nos termos sobreditos, isto é, através da análise da decisão recorrida por si ou conjugada com as regras da experiência comum e sem recurso à prova produzida ou qualquer outro elemento exterior.

Destarte “a violação do princípio in dubio pro reo, que dizendo respeito à matéria de facto (…) devendo, por isso, resultar do texto da decisão recorrida em termos análogos aos dos vícios do art. 410º nº 2 do CPP, só se verifica quando seguindo o processo decisório evidenciado através da motivação da convicção se chegar à conclusão de que o tribunal, tendo ficado num estado de dúvida, decidiu contra o arguido, ou quando a conclusão retirada pelo tribunal em matéria de prova se materialize numa decisão contra o arguido que não seja suportada de forma suficiente, de modo a não deixar dúvidas irremovíveis quanto ao seu sentido, pela prova em que assenta a convicção”1.

E, ainda, “A violação do princípio in dubio pro reo pressupõe que o tribunal tenha exprimido, com um mínimo de clareza, que se encontrou num estado de incerteza, de dúvida, quanto aos factos dados como provados e não provados, o que não sucede se não se deteta na leitura da decisão recorrida, nomeadamente, da fundamentação da matéria de facto, qualquer dúvida quanto aos factos que se devia dar por provados ou não provados”2.

Ora, no caso vertente na mera leitura do acórdão recorrido não se deteta qualquer estado de dúvida na explanação efetuada na fundamentação da matéria de facto, antes nela se manifesta a convicção segura baseada na indicada prova, pelo que não havia que lançar mão do princípio in dubio pro reo, destinado, como vimos, a fazer face aos estados dubitativos do julgador e não a dar resposta às dúvidas do recorrente arguido sobre a matéria de facto, no contexto da valoração probatória por ele efetuada e com base na qual pretende ver substituída a convicção formada pelo tribunal a quo.

As dúvidas, afinal, que o recorrente invoca são suas e não do tribunal, e assenta–as na sua interpretação e valoração da prova. Porém, não é a interpretação do recorrente que integra a dúvida relevante para efeitos do princípio pelo mesmo invocado, mas sim a dúvida do julgador nos termos sobreditos.

Não se configurando aqui qualquer dúvida por parte do tribunal a quo na motivação da sua decisão de facto e na demonstração dos factos que sustentam a culpa do arguido e ora recorrente, não havia lugar à respetiva ponderação em benefício deste último, inexistindo a invocada violação do princípio in dubio pro reo.

Assim, improcede (…) o recurso do arguido AA.»

Por seu turno, relativamente ao alegado a tal propósito no recurso do arguido BB, pronunciou-se o TRL nos seguintes termos:

«Por último, invoca o mesmo recorrente [BB] a violação dos princípios de presunção de inocência e do in dubio pro reo assentando tal violação na alegada circunstância do Tribunal recorrido ter formado a sua convicção e o ter condenado a pena quase máxima sem existir para tanto qualquer suporte probatório.

O artigo 32º nº2 da Constituição da República Portuguesa estipula que todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação. Como se refere no Ac. do Tribunal Constitucional nº 175/20221: “a consagração constitucional do princípio da presunção de inocência decorre que o processo penal tem de ser estruturado de forma a assegurar todas as garantias de defesa do arguido, tido à partida como inocente, por não haver qualquer fundamento para que aquele não se considere como tal enquanto não for julgado culpado por sentença transitada em julgado.

Em matéria de prova, este princípio é identificado por muitos autores com o princípio in dubio pro reo, o qual se traduz numa imposição dirigida ao julgador no sentido de que qualquer situação de dúvida a respeito dos factos relevantes para a decisão da causa ou da culpabilidade do arguido deve ser valorada a favor deste, resolvendo-se desta forma os casos de non liquet em matéria de prova (sobre as diferentes opiniões defendidas na doutrina acerca das relações entre o princípio da presunção de inocência e o princípio in dubio pro reo, cfr. Helena Magalhães Bolina, «Razão de ser, significado e consequências do princípio da presunção da inocência (art. 32.º, n.º 2, da CRP»), Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. LXX, Coimbra, 1994, págs. 440-442). No entanto, mesmo a nível probatório, ele tem um sentido e alcance mais amplos que o princípio in dubio pro reo, como explica Helena Magalhães Bolina (cit., págs. 443-446).

O princípio in dubio pro reo só se aplica no caso de surgir a dúvida quanto à apreciação da matéria de facto. O princípio da presunção de inocência, atento o objetivo que visa atingir, intervém em momento anterior, condicionando o surgimento dessa dúvida, impondo-o em todas as situações em que, à luz da verdade material, a culpabilidade do arguido não possa considerar-se afirmada com certeza.

A dúvida é, assim, por imposição do princípio de presunção de inocência, uma dúvida legal: uma dúvida que deve surgir em determinadas circunstâncias e constitui também matéria de direito, não só a questão de saber se a dúvida surgida na apreciação da prova foi resolvida favoravelmente ao arguido – caso em que se está perante a verificação do respeito do princípio in dubio pro reo –, mas também se, em face da prova produzida, a dúvida surgiu quando devia, ou, noutra perspetiva, se o juízo de certeza foi bem fundado. Nesse caso, o princípio cujo respeito se avalia é, não já o in dubio pro reo, mas, mais rigorosamente, o princípio da presunção de inocência.

O princípio da presunção de inocência distingue-se, assim, do princípio in dubio pro reo, não só pela sua relevância no tratamento do arguido ao longo de todo o processo e pelo seu reflexo extraprocessual como critério dirigido ao legislador ordinário, mas também, em sede de prova, impondo que a dúvida surja em determinadas circunstâncias, assim possibilitando, em momento lógico posterior, a aplicação do princípio in dubio pro reo”.

No caso vertente não se vislumbra qualquer violação do princípio da presunção da inocência do arguido recorrente porquanto ao mesmo foram asseguradas todas as garantias de defesa incluindo o direito ao recurso como se evidencia.

A circunstância de um tribunal no âmbito da sua função constitucionalmente consagrada de administração da justiça ter decidido condenar o arguido não belisca a presunção de inocência a qual persiste até a trânsito em julgado de tal decisão.

No que se reporta a alegada condenação sem prova trata-se de uma mera conclusão ou interpretação do arguido recorrente.

O acórdão recorrido descrimina os factos que entendeu como provados e a prova que fundamenta tal seleção explicando de modo claro, congruente e cabal o processo de formação da sua convicção, indicando os meios de prova utilizados e enunciando as ilações extraídas dos mesmos e subsumindo os factos provados ao enquadramento jurídico correspondente e aplicando uma consequência penal.

Não se verifica que, em face do teor do acórdão recorrido, que o arguido recorrente tenha sido condenado sem existir prova, o que se verifica é que o recorrente faz uma interpretação interessada da prova e pretende substituir a sua convicção à do tribunal recorrido.

Porém, tal exercício é inócuo e, por conseguinte, não se considera existir qualquer violação de tal princípio de que o arguido recorrente, aliás, continua a beneficiar até ao trânsito em julgado da decisão final.

No que à invocada violação do princípio do in dubio pro reo respeita é comummente afirmado que a condenação de um cidadão pela prática de um qualquer crime demanda que a convicção do julgador nesse sentido se alicerce numa certeza decorrente da confluência de elementos probatórios concretos e seguros o bastante e idónea a afastar a dúvida razoável e intransponível.

Assim, se o processo de formação da convicção do tribunal é inquinado por tal dúvida não é de assacar ao arguido a atuação que lhe é imputada uma vez que a mesma tem de ser valorada em benefício do arguido (in dubio pro reo).

Todavia “Se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objetivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção – obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.

O princípio in dubio pro reo não significa dar relevância às dúvidas que os sujeitos processuais encontram na decisão ou na sua interpretação da factualidade descrita e revelada nos autos – é, antes, uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.

Destarte e como se consigna no Acórdão da Relação de Coimbra de 10/12/2014 “a dúvida relevante de que cuidamos, não é a dúvida que o recorrente entende que deveria ter permanecido no espírito do julgador, após a produção da prova, mas antes apenas a dúvida que o Julgador não logrou ultrapassar”.

Ora, no presente caso, e analisando a fundamentação da decisão sobre a matéria de facto, constata-se que a mesma enuncia exaustivamente os meios de prova produzidos e dá conta dos critérios adotados na respetiva ponderação conjugada, permitindo compreender claramente a razão pela qual os factos plasmados na decisão foram dados como provados.

Essa apreciação da prova revela-se clara, tendo criticamente avaliado a prova produzida, segundo critérios lógicos e objetivos e em obediência as regras de experiência comum, segundo o princípio da livre (mas vinculada) apreciação da prova consagrado no artigo 127° do Código de Processo Penal, lançando mão dos princípios da imediação e da oralidade e conduzindo tal apreciação, sem qualquer margem para duvidas, a inevitável fixação daquela matéria de facto, mormente no que tange à coautoria dos factos imputada ao arguido recorrente.

Na explanação empreendida na sobredita motivação da decisão de facto não se deteta qualquer estado de dúvida, mas sim uma convicção segura assente na prova aí indicada e criticamente examinada e sopesada.

Não havia, pois, que recorrer no caso vertente ao princípio in dubio pro reo, pois que o mesmo não se destina a dar resposta às dúvidas do arguido recorrente sobre a matéria de facto na interpretação e valoração probatória pelo mesmo levada a cabo e com base na qual se pretende substituir à convicção formada pelo julgador do tribunal a quo.

É compreensível que a convicção do referido tribunal desagrade o recorrente, mas não é sua convicção, a sua interpretação da prova que tem idoneidade a conduzir a decisão diversa da contida na matéria de facto da decisão recorrida.

Não se verifica, pois, qualquer violação dos princípios invocados pelo arguido recorrente.»

Não divisamos razões suficientemente fortes para nos distanciarmos desta fundamentação. Em suma, decorre dos excertos do acórdão supra transcritos uma cabal apreciação da alegada violação dos princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo, no sentido de demonstrar que, não tendo o tribunal recorrido concluído pela inexistência de prova de certos factos, não se lhe pode objetar a violação de tais princípios, em virtude de as suas conclusões probatórias, obtidas de acordo com o princípio da livre apreciação da prova e da sã racionalidade, não coincidirem com as da perspetiva dos condenados-recorrentes.

Admitindo-se que, numa abordagem «naturalística» do problema, os recorrentes não aceitem que, por não se ter provado terem efetuado disparos causais da morte da vítima EE e potencialmente letais da (pretendida) morte da vítima DD, não poderiam ter sido condenados pelos correspondentes crimes de homicídio, consumado e tentado, importa não esquecer que se provou a sua comparticipação no plano criminoso homicida, ou seja, motivado pelo propósito vingativo de tirar a vida aos responsáveis pela agressão a JJ, ocorrida antes dos factos, por ocasião de concerto no Pavilhão ..., em .... É o que resulta dos pontos 5), 6), 7), 19), 20), 21) e 22), da matéria de facto provada:

«5) Após os acontecimentos ocorridos no Pavilhão ... e por terem tomado conhecimento do paradeiro de DD, GG, FF e EE, os arguidos AA, tio de JJ, BB, MM, um indivíduo conhecido por “OO” e pelo menos outros dois indivíduos, elaboraram um plano e acordaram em deslocar-se ao estabelecimento "..." munidos de armas de fogo e, pelo menos, um objecto corto-perfurante para matarem os referidos indivíduos, como retaliação pelas agressões a JJ que acreditavam terem sido desferidas por estes

6) Para a execução do referido plano, previamente, muniram-se, pelo menos, de duas armas de fogo, de características não concretamente apuradas, aptas a produzir disparos de munições de calibre de 6,35mm Browning e 7,65mm Browning, e um objecto corto-perfurante;

7) No mesmo dia, por volta das 6:00 horas, os arguidos AA, BB, MM, o aludido “OO” e pelo menos, mais duas pessoas, dirigiram-se ao estabelecimento "...", munidos das referidas armas de fogo e objecto corto-perfurante;

(…)

19) Ao praticar os factos acima descritos, os arguidos agiram em conjugação de esforços e vontades, com o recurso a armas de fogo e um objecto corto-perfurante, com o propósito concretizado de atentar contra a vida de EE, com o qual tinham uma contenda e que ali se encontrava, querendo e representando disparar armas de fogo, desferir agressões e golpes com o objecto cortante, em zonas do corpo onde se alojam órgãos vitais;

20) Bem como, agiram em conjugação de esforços e vontades, com o recurso a armas de fogo e um objecto corto-perfurante, com o propósito de atentar contra a vida de DD, com o qual tinham uma contenda e que ali se encontrava, querendo e representando disparar armas de fogo contra o mesmo, sabendo que tal conduta é apta a causar lesões, hemorragia e morte, o que quiseram e apenas não lograram por motivos alheios às suas vontades;

21) Estavam ainda cientes de que actuavam por mera vingança em total desconsideração pela vida humana;

22) Os arguidos agiram sempre de forma livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei, tendo capacidade para se determinar de acordo com esse conhecimento.»

Na coautoria – material, no caso em apreço – tem de haver uma perceção geral do facto ilícito: querer livremente um resultado, acordar e concorrer para a sua obtenção; não tem de se prever o preciso e concreto desenrolar da ação. A intervenção dos recorrentes no desenvolvimento da comparticipação criminosa, enquanto coautores, não os pode fazer eximir-se da responsabilidade criminal.

Mas há um outro aspeto que os ora recorrentes não devem também ignorar e escamotear, que consiste na circunstância de, no despacho prévio e de saneamento do despacho final proferido no inquérito, de 04-02-2024 (Ref.ª Citius ...45), o Ministério Público ter determinado a separação de processos e a autonomização da investigação, designadamente quanto aos suspeitos MM e PP, para não retardar a pendência do mesmo, face à situação de prisão preventiva em que se encontravam os recorrentes.

No caso em apreço não se verifica, assim, qualquer violação do princípio in dubio pro reo (ou da presunção de inocência) invocada pelos recorrentes AA e BB, bastando para isso ter em conta a fundamentação dos acórdãos recorrido e da 1ª Instância, por ele confirmado, nos quais, para além da indicação e identificação das provas consideradas, se procedeu ao seu exame crítico de modo objetivo e coerente e conjugado com as regras da experiência, numa cabal demonstração do iter racional e cognitivo percorrido na sua apreciação, valoração e contributo para a formação da convicção do tribunal, de molde a permitir o seu escrutínio externo pelos sujeitos processuais e pelos tribunais de recurso, sem que delas ressalte qualquer dúvida capaz de justificar a intervenção da “contra face” daquele princípio, é dizer o do in dubio pro reo, quanto a essa convicção, cuja violação poderia, na verdade, analisar-se também como vício de erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, como tem sido entendido pelo STJ, mas que, repete-se, aqui não ocorre, porque integralmente respeitado o disposto no artigo 127.º do CPP.

Será, ainda, de registar, que o TRL considerou no seu acórdão recorrido ser improcedente a impugnação ampla da matéria de facto que o arguido AA pretendeu fazer no seu recurso da decisão do tribunal de 1.ª Instância, e, relativamente ao recurso do arguido BB, não ter sequer o mesmo feito qualquer apelo ao regime do art. 412.º, n.º 3, do CPP, invocando apenas o erro de julgamento (“impugnação da convicção do tribunal recorrido”), em função do que se manteve integralmente o acervo factual processualmente relevante. Em ambos os casos, o TRL concluiu pela improcedência dos recursos dos arguidos, nessa dimensão de impugnação ampla da matéria de facto.

Invoca, também, o arguido BB, no seu recurso, a nulidade do acórdão, nos termos do art. 379.º, n.º 1, al. c) do CPP, por omissão de pronúncia, sobre o que o TRL se pronunciou, no acórdão recorrido, nos termos seguintes:

«Também, neste caso, não se verifica qualquer falta de fundamentação porquanto a decisão recorrida, como decorre da transcrição da mesma supra efetuada, enumera os factos provados e não provados e empreende uma explicitação dos motivos de facto e de direito com indicação e exame crítico das provas que sustentam a formação de convicção do julgador observando o preceituado no artigo 374º nº2 do Código de Processo Penal.

O que ocorre é que o recorrente arguido BB diverge da seleção dos factos provados e do teor da fundamentação de facto empreendida no acórdão recorrido e pretende impor a sua própria valoração da prova à do tribunal recorrido, mas tal não consubstancia a nulidade que invoca.

Assim, inexiste falta de fundamentação e, consequentemente, qualquer nulidade do acórdão recorrido nos termos previstos nos artigos 374º nº2 e 379º nº1 al. a) ambos do Código de Processo Penal.

No que se reporta à alegada omissão de pronúncia refere o recorrente de forma genérica que existe omissão de pronúncia sobre vários temas abordados em audiência, reclamados pela defesa, mas nunca respondidos por parte do Tribunal.

A omissão de pronúncia consubstancia uma ausência de posição ou decisão do Tribunal relativamente a questões que a lei imponha que o juiz tome posição expressa ou que oficiosamente deva apreciar.

O recorrente limita-se a invocar genericamente tal omissão sem indicar quais as questões que não foram respondidas, pelo que estamos perante uma mera invocação desprovida de conteúdo concreto que possa ser apreciado por este Tribunal.

Assim, soçobra, naturalmente, esta invocação do recorrente.»

Relativamente à invocação da nulidade do acórdão recorrido por omissão de pronúncia, importa ter presente que tal ocorre quando o tribunal deixou de se pronunciar sobre questão que devia ter apreciado, seja esta questão suscitada no recurso, pelos sujeitos processuais, seja a mesma de conhecimento oficioso. É de difícil concretização o conceito de «questão que o tribunal devia apreciar». Porém a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça é unânime no sentido de que:

«Só existe omissão de pronúncia quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões cujo conhecimento lhe era imposto por lei apreciar ou que lhe tenham sido submetidas pelos sujeitos processuais, sendo que, quanto à matéria submetida pelos sujeitos processuais, a nulidade só ocorre quando não há pronúncia sobre as questões, e já não sobre os motivos ou razões que os sujeitos processuais alegam em sustentação das questões que submetem à apreciação do tribunal, entendendo-se por questão o dissídio ou problema concreto a decidir e não os simples argumentos, razões, opiniões ou doutrinas expendidos pela parte em defesa da sua pretensão[20];” Ou seja, “As questões a decidir não se confundem com considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes: a estes não tem o tribunal que dar resposta especificada ou individualizada, mas apenas aos que directamente contendam com a substanciação da causa de pedir e do pedido. Não ocorre a nulidade, por omissão de pronúncia, se não forem consideradas, na sentença, linhas de fundamentação jurídica que as partes hajam invocado» (Acórdão do STJ de 09-12-2014; P n.º 75/07.1TBCBT.G1.S1 - 1.ª Secção, acessível in www.stj.pt/jurisprudencia/sumários de acórdão/ Civil - Ano de 2014).

«A omissão de pronúncia circunscreve-se à não apreciação de questões em sentido técnico, questões essas que o tribunal tenha o dever de conhecer com vista à decisão da causa e de que não haja conhecido, apesar de não estarem prejudicadas pelo tratamento dado a outras» (acórdão do STJ de 23-04-2015; P n.º 2651/07.3TBSXL.L1.S1 - 7.ª Secção, acessível in www.stj.pt/jurisprudencia/sumários de acórdão/ Civil - Ano de 2015).

Também de difícil concretização e de especial relevância é a distinção entre «omissão de pronúncia sobre certa questão» e «erro de julgamento sobre determinada questão».

Quanto a esta matéria, recorda-se o acórdão deste Supremo Tribunal de 14-05-2015, proferido no processo n.º 405/13.7PHLRS.S1, 5.ª Secção, ao referir: «São coisas distintas omitir pronúncia sobre uma questão, que consiste em ela não ser, pura e simplesmente, objecto de qualquer ponderação, e tomar conhecimento da questão, decidindo-a mal. Na primeira hipótese verifica-se a nulidade do 1.º segmento da al. c) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP, na segunda hipótese ocorre um erro de julgamento». Neste mesmo sentido, o acórdão do STJ de 16-05-2012, proferido no processo n.º 30/09.7GCCLD.L1.S1 - 3.ª Secção: «Para haver omissão de pronúncia era necessário que perante questão suscitada pelo recorrente, o tribunal de recurso não se pronunciasse sobre ela, ao julgar o recurso».

Questão é, pois, o dissídio ou problema concreto a decidir que diretamente contendam com a substanciação da causa ou da lide e da pretensão processual em concreto, e só existe omissão de pronúncia quando não se pondera a questão, mas já não quando se faz uma errada ponderação da questão.

Ainda que se reconheça poder aplicar-se aos acórdãos proferidos em recurso o disposto no art. 379.º do CPP ex vi do art. 425.º, n.º 4, do CPP, concretamente o vício de nulidade, vejamos antes mais, em que termos o arguido BB sugere a existência de tal vício:

«(…)

65º

Efectivamente, de todo se percebe a relevância dada ao único elemento de suporte em que o Tribunal “a quo” se “agarrou” de forma tão pouco assertiva, os já aqui mencionados testemunhos, que conscientemente vieram dizer o que nunca disseram em inquérito, depoimentos que de forma tão reveladora vieram a mostrar-se construídos com base em informação que foi sendo obtida ao longo da investigação como por exemplo, os calibres das armas, ( estava na minha folha do processo, quando bem sabemos que testemunhas não recebem folhas com informação processual ) ou quando se diz que morreu de facada ( não não vi disseram ) etc Os factos apontados como provados na decisão recorrida, não encontram fundamentação na exposição da motivação do Tribunal, que peca, designadamente, por omitir a(s) circunstância(s) concreta(s) que levaram à formação da sua convicção Fica, assim, a descoberto uma omissão do acórdão que, por conseguinte, também aqui enferma de nulidade por violar o disposto no artigo 374.º n.º 2 do C.P.P., conforme vem descrito no art. 379.º n.º 1 al. a) do mesmo diploma legal, e que nesta sede se invoca;»

O recorrente BB confunde nulidade por omissão de pronúncia com discordância sobre a convicção do tribunal, uma vez que, como resulta da própria formulação do seu recurso, o TRL não omite qualquer pronúncia, apenas alcança um resultado probatório do qual o mesmo vem discordar, entendendo que deveria ter sido outro.

Não se crê que, em definitivo, o tribunal recorrido tenha incorrido no vício de falta de fundamentação, ou no de omissão de pronúncia. Por outro lado, tendo o arguido BB incumprido totalmente os específicos ónus de impugnação ampla da matéria de facto, foi tal segmento do seu recurso para o TRL julgado improcedente, também nessa parte.

Tal questão teria, assim, caso fosse passível de apreciação, de também improceder, o que, porém, está prejudicado pelo regime de inadmissibilidade de recursos de acórdãos proferidos em recurso pela relação, conforme se disse atrás.

Pelo exposto, o regime da (in)admissibilidade de recursos de acórdãos da relação proferidos em recurso, ao abrigo do disposto nos artigos 432.º, n.º 1, al. b) e 434.º, do CPP, inviabiliza o conhecimento pelo STJ das questões por nós enumeradas em 12.1. - i) e ii) (quanto ao recurso do arguido AA) e em 12.2. - ii), iii), iv) e vi) (quanto ao recurso do arguido BB).

Assim, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 414.º, n.ºs 2 e 3, e 420.º, n.º 1, al. b), 432.º, n.º 1, al. b) e 434.º, do CPP rejeitam-se, por inadmissibilidade, os recursos de ambos os arguidos nos apontados segmentos.

15. Sobraria a admissibilidade dos recursos dos arguidos, no que concerne às seguintes questões:

Respeitantes ao recurso do arguido AA:

iii. Excesso da medida da pena pelo único crime pelo qual deve ser condenado, devendo ser apenas condenado na pena de 5 anos de prisão – Ponto 10) das conclusões; e

Respeitantes ao recurso do arguido BB:

iv. Excesso da “pena cumulatória”, que não deveria ultrapassar 8 ou 6 anos, “pela prática de um crime de ofensa á integridade física agravada [pelo resultado], em cumulo”, ou, quando muito, de ofensa à integridade física qualificada – Conclusões S) e T) e considerações do pedido final do recurso;

vii) Excesso, no caso de improceder o pedido de absolvição, da medida da pena do crime de homicídio qualificado consumado, que deve ser reduzida, de acordo com a sua culpa, para 12 anos, o que terá implicações significativas na redução da medida da pena única – Conclusões AA), BB), CC), DD), EE), FF) e GG).

Importa, preambularmente, reconhecer que o TRL, no seu acórdão recorrido, se debruçou, apenas, sobre as seguintes questões, colocadas nos recursos dos arguidos (transcrição):

“Assim à luz do que o recorrente arguido AA delimita nas conclusões do seu recurso a questões a dirimir são:

- se a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação e excesso de pronúncia.

- se a decisão recorrida padece de erro de julgamento.

- se a decisão recorrida padece de erro notório na apreciação da prova.

- se a decisão recorrida viola o principio do in dubio pro reo.

No que se refere ao recurso do arguido BB e em face da delimitação operada nas conclusões as questões a dirimir são:

- se a decisão recorrida é nula por falta de fundamentação, por omissão de pronúncia e por excesso de pronúncia.

- se a decisão recorrida padece de erro de julgamento.

- se a decisão recorrida padece de insuficiência da matéria e erro notório na apreciação da prova.

- se a decisão recorrida viola os princípios da presunção de inocência e do in dubio pro reo.”

É, portanto, ostensivo que o TRL não apreciou qualquer questão respeitante à qualificação jurídica dos factos nem à medida das penas parcelares ou única, aplicadas aos arguidos.

Não apreciou, porque não foram adequadamente suscitadas nos recursos dos arguidos para ali interpostos.

É certo que, tendo julgado improcedentes os recursos dos arguidos, o acórdão confirmou, nessa medida, o acórdão impugnado do tribunal de 1.ª Instância. Mas isso não implica que, embora tenha implicitamente confirmado as penas aplicadas, se tenha debruçado, enquanto questões específicas, sobre quaisquer fundamentos recursivos discordantes dos critérios de determinação da medida das penas concretamente aplicadas.

Estaria em causa, como se disse, a medida das penas aplicadas aos arguidos pelos crimes de homicídio qualificado e agravado consumado (de que foi vítima EE), e da pena única, pelo concurso com o crime de homicídio qualificado e agravado na forma tentada.

A decisão do tribunal recorrido foi a seguinte:

«Nestes termos e em face do exposto acordam os Juízes Desembargadores desta 3ª Secção em não conceder provimento aos recursos interpostos pelos arguidos AA e BB e, em consequência, confirmar na íntegra o acórdão recorrido.»

Os recorrentes desatenderam o princípio de que os recursos se destinam a apreciar a decisão de que se recorre (neste caso, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa impugnado) e não a apreciar questões novas, que não foram colocadas no Tribunal recorrido, ressalvado aquelas que devam ser conhecidas oficiosamente, o que não é o caso.

Não o tendo feito (por opção da defesa), como deviam, perante a Relação, não podem os arguidos agora suscitar novas questões no recurso para o STJ.

Em conclusão: incumbindo ao STJ rever a decisão da Relação, não existindo decisão da Relação sobre as questões hipoteticamente suscitadas, mas efetivamente não colocadas naquele tribunal recorrido, respeitantes à qualificação jurídica dos factos e aos critérios de determinação da medida das penas (parcelares e únicas), não podem os mesmos pedir o seu “reexame” no recurso ora em apreço.

Analisando de forma atenta o acórdão recorrido, constata-se que não consta do enunciando das questões ali submetidas a reapreciação as ora questionadas questões da qualificação jurídica dos factos e da medida das penas de prisão em que os arguidos vinham condenados pelo tribunal de 1.ª Instância. Igualmente se verifica que, aquele aresto, em consonância, não reexaminou de todo em todo o procedimento e o mérito da determinação das (medidas das) penas de prisão.

Tratando-se de questões novas que o STJ não pode sindicar, nessa parte terão de improceder os recursos ora em apreciação.

Mesmo assim, revisitaram-se as conclusões das motivações dos recursos que os arguidos interpuseram perante a 2.ª Instância e confirmou-se que ali não vinham suscitadas as referidas questões.

O recurso do acórdão de 1.ª Instância do arguido AA direciona-se às questões da sua absolvição pelos crimes de que foi condenado e à improcedência do pedido de indemnização civil.

Também o recurso do arguido BB se dirige à absolvição dos dois crimes em que vem condenado, «Ou no limite, considerando as nulidades arguidas, certo seria que o julgamento fosse repetido suprindo todas as falhas e atendendo com rigor a tudo o que se expôs». A verdade é que, apesar de enunciar a questão da “medida das penas aplicadas” e de a ter tratado na motivação do recurso, depois do despacho-convite da Senhora juíza de Direito de turno, de 14-08-2024 (Ref.ª Citius ...35) – para que apresentasse conclusões –, o arguido BB não deu satisfação integral ao ali determinado, designadamente não apresentando conclusões respeitantes à questão das «medidas das penas aplicadas» (cfr. peça de “Conclusões”, apresentada em 28-08-2024, Ref.ª ...88), Daí, não ter sido equacionada tal questão na economia do acórdão recorrido.

Por outro lado, é incontroverso que as questões da qualificação jurídica dos factos e da determinação das penas não foram efetivamente abordadas no acórdão recorrido, até porque, sendo as conclusões que delimitam o âmbito cognitivo do recurso, e não constando as referidas questões das conclusões de ambos os recursos dos arguidos para o TRL, não tinha aquele Tribunal superior o dever de as apreciar (não tendo o arguido BB suscitado no recurso que ora se aprecia a, hipotética, nulidade por omissão de pronúncia quanto a tais questões, por parte do TRL).

Pode, portanto, concluir-se, que as questões da qualificação jurídica e da determinação das penas, somente agora são suscitadas, constituindo questões novas, que o Tribunal da Relação de Lisboa não foi chamado a conhecer, não sendo, também, questões de que devesse conhecer oficiosamente.

No nosso sistema processual, o objeto do recurso ordinário é o reexame da decisão recorrida, das questões julgadas na decisão recorrida ou que o tribunal ad quem deveria, por imposição normativa, ter conhecido e decidido, constituindo apenas um remédio processual que permite a reapreciação, em outra instância, de decisões sobre matérias e questões já submetidas e objeto de decisão do tribunal de que se recorre. No julgamento do recurso não se decide, em rigor, uma causa, mas apenas questões específicas e delimitadas, que tenham já sido objeto de decisão anterior pelo tribunal a quo. Sendo que as conclusões da motivação delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo do conhecimento oficioso das questões que o tribunal ad quem possa conhecer.

É realçado pela doutrina e está estabilizado na jurisprudência deste Supremo Tribunal, que “os recursos destinam-se ao reexame das questões submetidas ao julgamento do tribunal recorrido. O tribunal de recurso aprecia e conhece de questões já conhecidas pelo tribunal recorrido e não de questões que antes não tenham sido submetidas à apreciação deste tribunal – o tribunal de recurso reaprecia o concretamente já decidido, não profere decisões novas” (Acórdão do STJ, de 09-03-2017, proc. n.º 582/05.0TASTR.E1.S1 – 3.ª sec., in www.dgsi.pt.).

Entre muitos outros no mesmo sentido, no ac. do STJ de 13-03-2019, reafirmou-se e decidiu-se que “os recursos destinam-se ao reexame das questões submetidas ao julgamento do tribunal recorrido e não de questões que antes não tenham sido submetidas à apreciação deste tribunal, não sendo lícito invocar no recurso questões que não tenham sido suscitadas nem resolvidas na decisão de que se recorre, sendo de rejeitar o recurso, por inadmissibilidade legal, nos termos dos arts. 420.º, n.º 1, alínea b), e 414.º, n.º 2, do CPP” (Proc. 2400/11.1TASTB.E1.S1, in www.dgsi.pt.; também assim no Ac. STJ de 13-02-2019, proc. 65/14.8YREVR.S2, ibidem).

No ac. STJ de 20-12-2006, Proc. 06P3661, ibidem, expendeu-se posição no sentido em que: “I — É entendimento constante do STJ sobre a natureza e função processual do recurso o de que este não pode ter como objecto a decisão de questões novas, constituindo apenas um remédio processual que permite a reapreciação, em outra instância, de decisões expressas sobre matérias e questões já submetidas e objecto de decisão do tribunal de que se recorre: em fórmula impressiva, no recurso não se decide, com rigor, uma causa, mas apenas questões específicas e delimitadas que tenham já sido objecto de decisão anterior pelo tribunal a quo e que um interessado pretende ver reapreciadas.”

Por sua vez, no ac. STJ de 02-02-2006 – 3.ª secção, entendeu-se que “o recurso apresenta manifesta falta de fundamento se o recorrente suscita no recurso para o supremo Tribunal de Justiça questões relativas à determinação da medida da pena que não submeteu à consideração do Tribunal da Relação”.

Vai, também, nesse sentido o entendimento convergente dos acórdãos do STJ de 22-09-2021, Proc. n.º 797/14.0PAPTM.E2.S1: rel. Cons. Nuno Gonçalves; de 17-02-2022, Proc. n.º 18/20.7JELSB. L1.S1, e de 29-09- 2022, Proc. n.º 264/18.3PKLRS.L1.S1, ambos relatados pela Conselheira Maria do Carmo Silva Dias (in www.dgsi.pt).

A suscitação pelo recorrente, de uma questão nova, que não foi colocada perante o tribunal recorrido, pode, no limite, configurar-se como uma afronta ao princípio da lealdade processual que, como se vem sustentando, deve ser observado por todos os sujeitos processuais. Permitir que um sujeito processual venha, em recurso, suscitar, questões novas, questões que não expôs e não defendeu perante o tribunal recorrido, e que este legitimamente não apreciou, ofenderia irremediavelmente o princípio da lealdade processual com que sempre deve agir, mesmo que no exercício do mais amplo direito de defesa (cfr., neste sentido, o AUJ n.º 2/2011 do STJ, pub. DR n.º 19/2011, Série I, de 2011-01-27).

Neste entendimento, porque os arguidos apenas formularam expressamente as questões da qualificação jurídica dos factos e das medidas das penas aplicadas nas conclusões dos recursos para o Supremo Tribunal de Justiça, não podem conhecer-se, aqui, por se tratar de questões novas, que excedem o objeto permitido dos recursos, que tinham de limitar-se à discussão das questões suscitadas e/ou resolvidas na decisão de que agora recorrem.

Resulta do exposto que os recursos não deveriam ter sido admitidos. Contudo, a sua admissão no tribunal recorrido não obsta à rejeição no tribunal ad quem – art. 414.º, n.º 3, do CPP.

Perante o exposto, não resta senão rejeitar o recurso dos arguidos, por inadmissibilidade legal, nos termos dos artigos 420.º, n.º 1, alínea b), e 414.º, n.º 2, do CPP, na parte em que visava submeter a reexame, inovatoriamente, as apontadas questões, ou seja, as questões enumeradas nos pontos 12.1. iii) (quanto ao recurso do arguido AA) e 12.2. v) e vii) (quanto ao recurso do arguido BB).

16. Restaria apreciar a derradeira questão suscitada nas conclusões de recurso do arguido AA, que, como se disse, consiste na enumerada em 12.1.:

iv) Inconstitucionalidade da interpretação do art. 71.º, n.º 3, do Código Penal – Pontos 2) e 9) das conclusões.

A (suposta) inconstitucionalidade seria imputável ao acórdão recorrido, na medida em que não teria observado as exigências de fundamentação por não se terem exposto «(…) razões que conduziram à deliberação tomada, dando a conhecer os factores que foram considerados por quem tomou a resolução e permitindo aderir à motivação explanada ou dela discordar e impugná-la.»

Para além de o TRL não ter, na decisão recorrida, mobilizado direta ou indiretamente a aplicação da norma da referida disposição legal, seu segmento ou interpretação normativa da mesma, importa, desde logo, esclarecer que tal invocação apenas seria passível de ser apreciada quanto à condenação pelo crime de homicídio qualificada consumado, uma vez que tal apreciação ficou precludida quanto ao crime de homicídio qualificado agravado, na forma tentada.

Sucede que o arguido não enuncia o possível sentido em que a aplicação de tal norma violaria a Constituição, o que desde logo, tornaria inidóneo o objeto do recurso para o Tribunal Constitucional.

Acresce, e cremos que de forma mais decisiva, que o referido segmento do recurso do arguido AA se reporta à “decisão” em si mesma: é o que resulta da fórmula utilizada «O douto acórdão no nosso entender não respeita o nº 3 do artigo 71º do código penal. Ora tal afigura-se desconforme à Constituição (…)».

Caracterizando-se, como é sabido, o sistema de fiscalização concreta de constitucionalidade pela normatividade, o objeto normativo constitui a condição essencial do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da Lei n.º 28/82, de 15-11 (ou “LTC”).

Não se trata, porém, da única condição. Neste tipo de recursos, exige-se ainda (e exige-se cumulativamente): (i) o esgotamento prévio dos recursos normalmente admissíveis na ordem jurisdicional em questão; (ii) a prévia suscitação da questão de inconstitucionalidade normativa (com o específico sentido atrás apontado), “durante o processo” e “de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer” (n.º 2 do artigo 72.º da LTC); e, enfim, (iii) a aplicação, na decisão recorrida, como ratio decidendi, da norma tida por inconstitucional pelo recorrente, na concreta interpretação correspondente à dimensão normativa delimitada no requerimento de recurso, pois “[…] só assim um eventual juízo de inconstitucionalidade poderá determinar uma reformulação dessa decisão” (Ac. TC n.º 372/2015).

Por último, As questões de inconstitucionalidade normativa não se confundem com questões de inconstitucionalidade diretamente imputadas à decisão recorrida, como sucede neste recurso, ou seja, a fiscalização da constitucionalidade incide sobre normas, e não é um contencioso de decisões de qualquer natureza (assim, CARLOS LOPES DO REGO, Os Recursos de Fiscalização Concreta na Lei e na Jurisprudência do Tribunal Constitucional, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 26, 98; JORGE REIS NOVAIS, Sistema Português de Fiscalização da Constitucionalidade. Avaliação Crítica, AAFDL Editora, Lisboa, 2019, p. 51).

A falta de densidade normativa do objeto do recurso do arguido, nessa parte, é motivo para conduzir à inatendibilidade do mesmo, tornando-se inexigível a formulação de convite ao aperfeiçoamento, nos termos do art. 75.º-A, n.ºs 5 e 6, da LTC. Com efeito, importa distinguir pressupostos do recurso de constitucionalidade – enunciados nas várias alíneas do n.º 1 do art. 70.º e no art. 72.º da LTC, e os meros requisitos formais do requerimento de interposição do recurso de fiscalização concreta, enumerados no art. 75.º-A da LTC, «(…) sendo manifesto que o convite ao aperfeiçoamento só tem sentido e utilidade quando – verificando-se plausivelmente os pressupostos do recurso – faltam apenas alguns requisitos formais do respectivo requerimento de interposição» (Carlos Lopes do Rego, ob. cit., p. 217).

É por isso que não pode este Supremo Tribunal de Justiça conhecer de tal segmento do recurso do arguido AA, pelo que do mesmo não se toma conhecimento.

III. Decisão

Pelo exposto, acordam os juízes Conselheiros desta Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em:

I) rejeitar, por inadmissibilidade, face à verificação de “dupla conforme”, o recurso dos arguidos AA e BB quanto à decisão de condenação em penas (parcelares) não superiores a oito (8) anos de prisão, como coautores materiais do crime de homicídio qualificado, agravado pela utilização de arma de fogo, na forma tentada; e, em consequência;

II) não tomar conhecimento das questões de inconstitucionalidade mencionadas em 12.1. iv) do recurso do arguido AA e em 12.2. i) do recurso do arguido BB;

III) rejeitar, por inadmissibilidade, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 414.º, n.ºs 2 e 3, e 420.º, n.º 1, al. b), 432.º, n.º 1, al. b) e 434.º, do CPP, os recursos de ambos os arguidos quanto às questões por nós supra enumeradas em 12.1. - i) e ii) (quanto ao recurso do arguido AA) e em 12.2. - ii), iii), iv) e vi) (quanto ao recurso do arguido BB), bem como quanto às questões novas, a que aludem as questões enumeradas nos pontos 12.1. iii) (quanto ao recurso do arguido AA) e 12.2. v) e vii) (quanto ao recurso do arguido BB);

IV) não tomar conhecimento da questão de inconstitucionalidade mencionada em 12.1. iv) do recurso do arguido AA, e, em consequência,

em manter integralmente o acórdão recorrido.

Custas pelos arguidos, fixando-se a taxa de justiça em 7 (sete) UC – artigos 513.º, n.º 1, do CPP e 8.º, n.º 9 do RCP, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 34/2008, de 26-02, e Tabela III anexa – sendo ainda condenados em 3 (três) UC, nos termos do art. 420.º, n.ºs 1, al. b) e 3, do CPP.

Notifique, remetendo cópia à primeira instância.

*

Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 03-04-2025

Texto elaborado e informaticamente editado, integralmente revisto pelo Relator (art. 94.º, n.ºs 2 e 3, do CPP), sendo assinado eletronicamente pelo próprio e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos.

Os juízes Conselheiros

Jorge dos Reis Bravo (Relator)

Ana Paramés (1.ª adjunta)

José Piedade (2.º adjunto)