I. A admissibilidade do recurso da decisão em matéria civil, com base em ofensa do caso julgado, apesar da dupla conforme, resulta, apesar da autonomia do regime de recursos em matéria penal, do disposto no art. 629.º, n.º 2, al. b), in fine, do CPC.
II. Nos ilícitos criminais de natureza tributária coexistem, em princípio, três espécies de responsabilidade: a tributária – envolvendo a totalidade da dívida tributária, juros e demais encargos legais, disciplinada pela LGT e pelo CPPT –, a penal tributária – regulada pelo RGIT e subsidiariamente, pelo Código Penal – e a civil, conexa com a anterior, a que se aplica o Código Civil e legislação complementar, por força do art. 129.º do CP.
III. Não ocorre violação de caso julgado perante uma situação de formulação do pedido de indemnização civil pelo Estado-Administração Fiscal relativamente a uma importância de IRS já liquidada e em fase de execução fiscal.
I. Relatório
1. Por acórdão proferido em 08-01-2024 (Ref.ª Citius ...95) no Juízo Central Criminal de .../ Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Viseu, foi decidido julgar procedente a acusação contra o arguido e ora recorrente AA, melhor identificado nos autos, entre outros, e, em consequência:
«3. Condenar o arguido AA pela prática, em autoria material e concurso efectivo, de:
d) um crime de fraude na obtenção de subsídio ou subvenção, p. e p. pelo art. 36.º, n.º 1 al. c), 2 e 5 al. a), do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro (praticado até 31/10/2016), na pena de 3 (três) anos de prisão;
e) um crime de branqueamento, p. e p. pelo art. 368.º-A, n.º 1 al. k) e n.º 12 do Código Penal (praticado até ao final do ano de 2016), na pena de 2 (dois) anos de prisão;
f) um crime de fraude fiscal qualificada (IRS de 2014), p. e p. pelo art. 103.º, n.º 1 al. b) e 104.º, n.º 2 al. b) do Regime Geral das Infracções Tributárias (praticado em 31/03/2015), na pena de 2 (dois) anos de prisão;
g) um crime de fraude fiscal qualificada (IRC de 2014), p. e p. pelo art. 103.º, n.º 1 al. a) e 104.º, n.º 2 al. b) do Regime Geral das Infracções Tributárias (praticado em 31/05/2015), na pena de 1 (um) ano e 6 (seis) meses de prisão.
Em cúmulo jurídico das penas parcelares acima referidas a) a c), condenar o arguido AA na pena única de 4 (quatro) anos e 4 (quatro) meses de prisão.
Mais se decide suspender na sua execução da pena de prisão pelo período de 5 (cinco) anos, sujeitando tal suspensão a regime de prova, assente num plano individual de readaptação social, a delinear pela Direcção-Geral de Reinserção Social e Serviços Prisionais, bem como ao cumprimento, em alternativa, de uma das seguintes obrigações:
- proceder ao pagamento ao IFAP de quantia não inferior a € 12.000,00 [a descontar na obrigação de restituição que infra se estabelecerá, caso não seja cumprida antes disso], comprovando semestralmente nos autos o pagamento de € 1.200,00; ou
- prestar, com regularidade pelo menos quinzenal e com duração equivalente a pelo menos um período do dia, serviço de voluntariado a instituição de apoio a sem-abrigo ou pessoas carenciadas, comprovando-o trimestralmente nos autos.
4. Nos termos dos art.ºs 8.º, al. f) e 14.º, n. ºs 1 e 2 do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, condenar os arguidos Q..., Lda., BB e AA, na pena acessória de privação do direito a subsídios ou subvenções outorgados por entidades ou serviços públicos, pelo período de 3 (três) anos;
5. Nos termos do art. 39.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro, condenar, solidariamente, os arguidos Q..., Lda., BB e AA, a restituir ao IFAP a quantia de € 263.631,25 (duzentos e sessenta e três mil, seiscentos e trinta e um euros e vinte e cinco cêntimos).
***
6. Julgar parcialmente procedente por provado o pedido de indemnização civil deduzido pelo MINISTÉRIO PÚBLICO em representação do Estado e, em consequência, condenar o arguido AA, a pagar ao demandante a quantia de € 250.122,43 (duzentos e cinquenta mil, cento e vinte e dois euros e quarenta e três cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal, desde a data da notificação do pedido ao arguido, até efectivo e integral pagamento.»
2. Inconformado com o acórdão proferido, o arguido e recorrente AA interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Coimbra (doravante, também TRC), tendo este Tribunal proferido acórdão em 10-07-2024 (Ref.ª Citius ...25), pelo qual se decidiu julgar totalmente improcedente o seu recurso e confirmar na íntegra o acórdão recorrido.
3. Em face de tal decisão, interpôs o arguido recurso da mesma para este Supremo Tribunal de Justiça (doravante, também “STJ”), em 11-09-2024 (Ref.ª Citius ...93), tendo concluído da forma seguinte (transcrição):
« A) O presente Recurso é interposto para o Supremo Tribunal de Justiça nos termos do disposto no artigo 672º, nº1, al.a) e b), aplicável em sede de Processo penal por força do disposto no artigo 4º do C. P. Penal, com o qual se pretende, por um lado, obter uma melhor clarificação e aplicação do direito às questões suscitadas, quer em sede de primeira instância, quer no Recurso apresentado para o Venerando Tribunal da Relação. E com especial relevância, quanto ao julgamento do pedido cível, dado que, quanto à parte cível, verifica-se a violação do principio constitucional do “ne bis in idem” e a violação quer do caso julgado, em sede cível, quer a verificação de litispendência em mesma sede.
B) Estas questões justificam a apreciação por este Mais Alto Tribunal, seja para melhor apreciação e aplicação do direito, seja pelo fato de, existindo jurisprudência divergente sobre tais questões, se justificar a respetiva pronúncia pelo Tribunal Superior.
C) Salvo melhor entendimento, o Tribunal a quo não podia, com base nos mesmos fatos, por um lado, entender que existe fraude na obtenção de subsídios e, por outro lado, concluir que os mesmos valores obtidos através da fraude constituem rendimentos do ora recorrente e, como tal, tributados em sede de IRS.
D) O Acórdão recorrido, ao considerar, por um lado, que existiu fraude na obtenção de subsídio e, por outro lado, que o arguido AA fez “rolar” o valor do subsídio recebido, fazendo-o entrar na Sociedade F..., preenchendo o tipo legal de crime de fraude na obtenção de subsídio; e, por outro lado, que retirou, em proveito próprio, os mesmos valores da mencionada sociedade, devendo ser tributado por tais rendimentos em sede de IRS, labora em contradição lógica insanável.
E) Com efeito, ou o referido valor resultou de subsídio fraudulentamente obtido ou correspondente a rendimentos auferidos pelo arguido AA, o qual, por não os ter declarado em sede de IRS, preencheu o tipo legal de tipo de fraude tributária.
F) É factual, objetiva e logicamente impossível que o mesmo valor tenha sido utilizado para o preenchido dos dois tipos legais de crimes.
G) Perante tal impossibilidade objetiva, de duas, uma: ou o arguido é condenado na perda de vantagem pelo recebimento do subsídio indevido ou se entende que o arguido incorreu no crime de fraude tributária, devendo ser condenado no pagamento dos impostos devidos e os quais já lhe foram exigidos em sede próprio, tal como resulta provados dos autos;
H) Como, reiteradamente, se deixou exposto nos autos, tal entendimento traduz um duplo julgamento e uma dupla condenação, com base nos mesmos fatos, em violação do princípio constitucional do ne bis in idem.
I) O Acórdão ora recorrido, tal como sucedera com a decisão de primeira instância, não se pronunciou, de forma clara e objetiva, no sentido de reconhecer que os factos em apreço eram (ou não) efetivamente os mesmos, o que, salvo melhor opinião, acarretará mesmo, a verificação do vicio de omissão de pronúncia, ferindo de nulidade a decisão, nos termos previstos nos artigos 615º, nº1, al.d) do C. P. Civil.
J) Impunha-se esta clarificação, dado que tais fatos devem ser tidos em conta como relevantes no preenchimento do crime de fraude na obtenção de subsídio, mas não de burla tributária e, consequentemente, desta realidade de fato, impunha-se diferente julgamento do pedido de indemnização civil, em relação ao qual se deveria ter reconhecido a violação do caso julgado e a litispendência.
K) Deverá reconhecer-se que se verifica a violação do princípio constitucional ne bis in idem, previsto no artigo 29º n.º 5 da C. da República Portuguesa. A consagração deste princípio constitucional tem como exigência a liberdade e a dignidade do individuo enquanto pessoa e cidadão, e visa impedir que os mesmos fatos sejam apreciados repetidamente, implicando a repetição uma perseguição penal sobre os mesmos factos, o que só pode ocorre uma vez.
L) Existindo processo de execução fiscal pendente no Serviço de Finanças competente, não pode ser objeto de apreciação e decisão condenatória em sede de pedido cível no processo crime, sob pena de existir litispendência e violação de caso julgado;
M) O Tribunal a quo deveria ter reconhecido a exceção de caso julgado relativamente às liquidações tributárias e impostos em dívida perante a pendência de execução tributária, reconhecer a litispendência de procedimentos, nos termos do disposto nos artigos 576º e 577º, al. i) do C. P. Civil.
N) Se já existe título executivo e processo de cobrança, não pode, tal valor, ser objeto de discussão, apreciação e decisão em processo declarativo cível enxertado em processo penal e, consequentemente, a decisão do pedido cível, só poderia conhecer da diferença e do valor não incluído em processo executivo.
O) Citamos, a este propósito, a conclusão contante do Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Évora, no âmbito do Processo nº 312/17.4T8PTM.E1: “(…) Estamos assim perante causas de pedir idênticas e a absolvição do agora réu do pedido cível deduzido no processo penal, porque referida a fundamentos factuais e jurídicos iguais, forma caso julgado impeditivo do conhecimento desta ação cível. (…)”. E perante estes pressupostos, havendo um título executivo e um processo de cobrança relativamente a determinados valores, o Representante do Estado (MP) carece de legitimidade e interesse em agir em relação a tais valores.
P) O Acórdão recorrido incorre nos vícios constantes das alíneas b) e c) do nº 2 do artigo 410º do C. P. Penal, viola as normas constantes dos artigos 576º e 577º, al.i) do C. P. Civil e viola o princípio, princípio constitucional ne bis in idem, previsto no artigo 29º n.º 5 da C. da República Portuguesa.
Nestes termos e mais de direito, revogando o douto Acórdão, e substituindo-o por outro nos termos supra expostos, Vossas Excelências, como sempre, farão,
JUSTIÇA»
4. Por despacho da Senhora Desembargadora relatora no TRC, de 13-10-2024 (Ref.ª Citius ...88), o recurso do arguido não foi admitido «(…) quanto ao decidido no acórdão deste Tribunal da Relação atinente à parte criminal.», em razão do regime da “dupla conforme”, mas, relativamente à decisão respeitante ao pedido de indemnização civil deduzido nos autos, foi decidido «(…) ser o mesmo de admitir, ao abrigo do disposto no art. 672º do CPC, ex vi art 4º do CPP.».
Tal despacho não foi objeto de reclamação, pelo que o recurso apenas foi remetido a este STJ para apreciação da parte da decisão recorrida respeitante à confirmação da condenação do recorrente no pedido de indemnização civil.
5. Respondeu o Ministério Público junto do TRC, em 16-10-2024 (Ref.ª Citius ...76), pugnando pela improcedência do recurso.
6. Neste STJ, o Senhor Procurador-geral-adjunto aqui em funções emitiu parecer em 03-12-2024 (Ref.ª Citius ...04), no qual remeteu para a posição da Senhora magistrada do Ministério Público junto do TRC.
7. Notificado tal parecer ao arguido e aos assistentes e parte civil, para, querendo, se pronunciarem, ao abrigo do disposto no art. 417.º, n.º 2, do CPP, os mesmos nada vieram requerer.
8. Não tendo sido requerida audiência, colhidos os vistos, foram os autos julgados em conferência - artigos 411.º, n.º 5, e 419.º, n.º 3, alínea c), do CPP.
9. Por acórdão proferido em 23-01-2025 (Ref.ª Citius ...21) foi deliberada a remessa dos autos à formação a que alude o n.º 3 do art. 672.º do Código de Processo Civil, para apreciação preliminar sumária, do recurso de revista excecional do acórdão do TRC, na parte da decisão em matéria cível em que o recorrente visa a sua absolvição do pedido de indemnização civil, com base em litispendência e ofensa de caso julgado.
10. A formação a que alude o n.º 3 do art. 672.º do Código de Processo Civil, por acórdão de 19-02-2025 (Ref.ª Citius ...91), deliberou não admitir a revista excecional, com fundamento em incumprimento dos ónus de alegação previstos no art. 672.º/2/a)/c) do CPC, relativamente à questão da verificação de litispendência suscitada pelo recorrente, bem como remeter os autos ao Conselheiro relator originário para efeitos de ponderação da admissibilidade do recurso, ao abrigo da alínea a) do n.º 2 do art. 629.º do CPC, quanto ao fundamento recursório atinente à ofensa do caso julgado.
Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
11. Fundamentação de facto.
O acervo factual dado como provado pelas instâncias é o seguinte:
«1. A sociedade arguida “Q..., Lda.” (doravante Q...), com sede na Rua da ..., em ..., comarca de ..., foi constituída em 14 de Novembro de 2011, tendo como objecto social a exploração avícola e criação de galináceos.
2. A arguida BB é sócia única e gerente da sociedade arguida Q... desde a sua constituição.
3. Sendo ela que assume, de facto e direito, a gerência, sendo igualmente a responsável pela administração e giro comercial da sociedade arguida Q....
4. A sociedade “F..., Lda.” (doravante F...), com sede Largo ..., ... em ..., foi constituída em 23 de Setembro de 2011, tendo tido como objecto social, Indústria metalomecânica, projectos e construções metálicas, serralharia civil, construção civil, instalações eléctricas, de canalizações, de climatização e outras instalações, comércio, e importação e exportação de equipamentos para indústria e agro-pecuária.
5. O arguido AA foi seu sócio-gerente desde a sua constituição, assumindo de facto e direito a gerência da sociedade, sendo, por isso, o responsável pela administração da sociedade F....
6. A sociedade F... foi declarada insolvente por decisão judicial de 2 de Novembro de 2015, tendo sido cancelada a sua matrícula em 7 de Junho de 2018.
I – Da Fraude na Obtenção de Subsidio e Branqueamento
7. Em data não concretamente apurada do ano de 2011, a arguida BB, que pretendia construir um aviário para exploração intensiva de galináceos, tomou a resolução de apresentar uma candidatura a um programa de fundos comunitários, em nome e no interesse da sociedade.
8. Para o efeito, e como não pretendia investir quantia monetária proveniente de capitais próprios, tal como era pressuposto do programa de fundos a que se candidatava, gizou um plano com AA de acordo com o qual este lhe providenciaria facturas no valor do investimento elegível (se necessário fosse, empolando os custos) e ambos fariam circular os valores libertados no âmbito da candidatura, de forma a demonstrar o pagamento daquelas facturas.
9. Tinham, ambos os arguidos, o propósito concretizado de realizar todo o investimento com montantes pecuniários provenientes do investimento público que serviria para construção da quase totalidade do projecto, sem que as arguidas BB e Q... tivessem que investir quantia monetária proveniente de capitais próprios.
10. Os arguidos BB e AA, de modo a concretizar o plano entre ambos delineado, mais decidiram em comunhão de esforços fazer uso da sociedade F..., da qual era sócio gerente o arguido AA, para realizar a construção das instalações.
Assim, e em execução do plano delineado:
11. Em 2011, a arguida BB, em representação da firma arguida Q..., apresentou candidatura a apoios comunitários concedidos no âmbito do PRODER — Acção 113 — Instalação de Jovem Agricultor.
12. A candidatura foi aprovada em 29 de Fevereiro de 2012, tendo sido, em 2 de Maio de 2012, celebrado o Contrato de Concessão de Incentivos Financeiros entre o IFAP — Instituto de Financiamento da Agricultura e Pescas. I.P. e a sociedade arguida, representada pela arguida BB
13. A operação n.º ...09 foi aprovada, com um investimento total de € 522.900,00, assumindo o investimento elegível o valor global de € 497.900,00, sendo o incentivo público no valor de € 280.000,00 (€ 250.000,00 de subsídio não reembolsável e € 30.000,00 de prémio) e a participação do beneficiário de € 272.900,00, correspondendo esta à aplicação da taxa de 52,19% sobre o montante das despesas consideradas elegíveis.
14. Tal como consta do contrato de financiamento celebrado entre o IFAP e a sociedade arguida, ali representada pela arguida BB, a operação destinava-se, designadamente à instalação de uma jovem agricultora (a arguida BB) numa exploração avícola de produção intensiva de frangos, sendo necessário para tanto a construção de um pavilhão avícola (aviário).
15. Os pedidos de pagamento ao investimento reportavam-se às despesas efectivamente realizadas e pagas, por transferência bancária, débito em conta ou cheque, devendo os comprovativos das mesmas (com o respectivo extracto bancário demonstrativo do pagamento) ser entregues no prazo estipulado.
16. A taxa de execução da operação foi de 93,5%, no montante global de € 465.300,00, tendo o IFAP procedido à transferência da quantia global de € 263.631,25.
17. Sucede que a arguida BB, sócia única e responsável pela gestão e tomada de decisões da arguida Q..., com vista a receber o apoio monetário contratado com o IFAP acertou com o arguido AA, legal representante e gerente da sociedade F..., que esta sociedade emitiria facturas titulando adiantamentos, e correspondentes recibos, até ao montante global do investimento ainda que este fosse – como foi – superior aos valores efectivamente despendidos na construção, empolando deste modo os custos.
18. Após a apresentação daquele número de facturas e recibos, acompanhadas da documentação de suporte (extractos bancários), junto dos serviços competentes serem validadas e, deste modo, ser transferido para a conta bancária da arguida Q... o montante proveniente do investimento público, esta efectuaria o pagamento à sociedade F....
19. De seguida, o arguido AA, na qualidade de sócio gerente daquela sociedade, procedia ao levantamento de tais quantias em numerário e/ou dava ordem de transferência a crédito para contas particulares suas.
20. Depois, os montantes assim retirados das contas da sociedade F... eram entregues à arguida BB, via quantias em numerário e/ou transferências para contas particulares das quais era titular e/ou co-titular.
21. Posteriormente, a arguida BB procedia à entrega daquelas quantias monetárias na conta bancária da arguida Q..., mediante depósitos de numerário e/ou transferências bancárias como se de suprimentos (e deste modo capitais próprios) se tratassem.
22. Tais movimentos reflectidos na conta bancária da arguida Q... serviriam para, ainda que de modo ilusório, demonstrar junto do IFAP que o investimento em causa se processava nos moldes acordados e pelos montantes fixados no contrato assinado pelas arguidas e o IFAP.
23. Visando o circuito bancário, acima descrito, dissimular a proveniência das quantias monetárias que eram creditadas na conta da sociedade arguida, como capitais próprios/suprimentos.
24. Assim, de harmonia com o previamente acordado e aceite pelos arguidos BB e AA, a sociedade F... emitiu 16 facturas (e correspondentes recibos) à sociedade arguida nas seguintes datas e com os seguintes valores:
Factura | Data | VALOR | Obs. | Fls. |
Ft 2012/16 | 30-05- 2014 | 30.000/00 € | Adiant. Const. Civil de Pavilhão avícola | 557 |
Ft 2012/17 | 17-06- 2014 | 31,000.00 € | Adiant. Const. Metálica Pavilhão avícola | 555 |
Ft 2012/19 | 30-07- 2014 | 10.000.00 € | Adiant. Const. Civil Pavilhão avícola | 553 |
Ft 2012/21 | 17-09- 2014 | 32.500.00 € | Adiant. Const. Metálica Pavilhão avícola | 572 |
Ft 2012/23 | 01-10- 2014 | 30.000,00 € | Adiant. Const. Pavilhão avícola | 574 |
Ft 2012/24 | 04-10- 2014 | 25.000,00 € | Adiant. Const. Metálica Pavilhão avícola | 576 |
Ft 2012/25 | 24-10- 2014 | 10.000.00 € | Adiant. Const. Civil Pavilhão avícola | 561 |
Ft 2012/26 | 28-10- 2014 | 22.000,00 € | Adiant. Const. Civil Pavilhão avícola | 563 |
Ft 2012/27 | 28-10- 2014 | 21.500,00 € | Adiant. Const. Metálica Pavilhão avícola | 564 |
Ft 2012/28 | 01-11- 2014 | 50.000,00 € | Adiant. Const. Metálica Pavilhão avícola | 566 |
Ft 2012/29 | 07-11- 2014 | 32.000,00 € | Adiant. Const. Metálica Pavilhão avícola | 568 |
Ft 2012/30 | 07-11- 2014 | 15.000,00 € | Adiant. Sist. Aquec./p. radiante Pavilhão avícola | 569 |
Ft 2012/31 | 01-12- 2014 | 40.000,00 € | Sist. Aquec./Piso radiante | 583 |
Ft2012/32 | 01-12-2014 | 35.800,00 € | Adiant. Forn. Inst. Equip. avícola | 582 |
Ft 2012/33 | 29-12-2014 | 70.000,00 € | Adiant. Forn. Inst, Equip. avícola | 580 |
Ft 2012/34 | 17-03-2015 | 10.000,00 € | Adiant. Forn. Inst. Equip. avícola | 578 |
Total | 464.800,00 € |
Totalizando o montante de € 464.800,00
25. Após, em execução do plano formulado e aceite pelos arguidos AA e BB, esta, na qualidade de sócia gerente e em nome e no interesse da arguida Q..., na posse das facturas emitidas pela sociedade F..., representada pelo arguido AA, procedeu à sua entrega junto dos serviços competentes do IFAP;
26. Atentos os documentos juntos (facturas e extractos bancários) que aparentemente demonstravam um efectivo cumprimento dos investimentos e cumpridas as demais condições do contrato programa, o IFAP, acreditando que aquelas facturas espelhavam o custo real do investimento (designadamente da construção do aviário pela arguida Q...) e pagamentos efectivamente suportados previamente pela sociedade arguida, foi procedendo ao reembolso/pagamento, por transferência na conta bancária n.º ...00 sedeada no Banco Popular, da qual é titular a sociedade arguida, da quota-parte de incentivos financeiros nos moldes estipulados no contrato, tendo em conta as taxas de execução do projecto, nas seguintes datas (fls. 698):
Data-Movimento | Crédito |
30-05-2012 | 30.000,00 € |
29-08-2014 | 35.649,73 € |
31-10-2014 | 43.934,53 € |
28-11-2014 | 75.818,43 € |
31-10-2016 | 78.228,56 € |
TOTAL | 263.631,25 € |
27. Sucede que tais quantias, tendo inicialmente sido transferidas para a conta do BANIF com o IBAN ...43, titulada pelo fornecedor da sociedade arguida – a sociedade F... – foram depois alvo de transferência, levantamento em numerário e/ou emissão de cheques de caixa para a conta pessoal do sócio gerente da F..., o aqui arguido AA, que por sua vez transferiu tais montantes para contas pessoais da arguida BB.
28. Esta, depois de creditadas as suas contas com tais montantes, procedia a nova transferência para a conta da firma arguida, servindo tais montantes como suporte e prova de que havia sido igualmente realizado o investimento próprio, tal como acordado no contrato celebrado com o IFAP.
Assim e concretizando:
29. Após a arguida entregar no IFAP as facturas n.º 2012/16, 2012/17 e 2012/19, acompanhadas dos recibos e comprovativos de pagamento (titulando o aparente investimento de € 71.000,00), no dia 29 de Agosto de 2014, o IFAP transferiu para a conta bancária n.º ...00 do Banco Popular, titulada pela sociedade arguida, o montante de € 35.649,73, correspondendo à primeira tranche do apoio, por referência ao reembolso da respectiva quota- parte no investimento elegível.
30. No dia 21 de Setembro de 2014, a sociedade arguida utilizou tal montante para pagar a factura n.º 2012/21 da sociedade F..., tendo a arguida BB dado ordem de transferência de € 32.500,00 para a conta daquela, no Banco Banif, com o IBAN ...43.
31. No dia 25 de Setembro de 2014, ao ficar disponível aquele montante, o arguido AA, na qualidade de sócio gerente da sociedade F..., efectuou um levantamento de € 32.000,00 em numerário, mediante desconto de um cheque de caixa no valor de € 30.000,00 e um cheque compensação no valor de € 2.000,00.
32. Após, o arguido AA procedeu à entrega de tal quantia em numerário à arguida BB que, logo, no dia 26 de Setembro, depositou:
- a quantia de € 14.000,00 na conta n.º ...11 do Crédito Agrícola CCAM ... da qual é co-titular,
- e a quantia de € 10.000,00 € na conta n.º ...27 do Banco Montepio Geral da qual é titular
33. No dia 29 de Setembro de 2014, a arguida BB depositou a quantia remanescente de € 6.000,00 na conta n.º ...11 do Crédito Agrícola — CCAM ... da qual é co-titular.
34. Nos dias 29 e 30 de Setembro e 1 de Outubro de 2014, a arguida BB efectuou 3 transferências bancárias, totalizando € 30.000,00 para a conta bancária n.º ...00 do Banco Popular, titulada pela arguida Q....
35. De imediato, no dia 1 de Outubro, a arguida BB na qualidade de legal representante da arguida Q... efectuou uma transferência bancária de € 30.000,00 para a conta da sociedade F... para pagamento da factura 2012/23.
36. No dia 3 de Outubro de 2014, ao ficar disponível aquele montante, o arguido AA, na qualidade de sócio gerente da F... efectuou um levantamento de € 25.000,00 em numerário, mediante desconto de um cheque de caixa.
37. Na posse daquela quantia em numerário, o arguido AA procedeu à entrega da mesma à arguida BB que logo no mesmo dia procede ao depósito daquele montante:
- a quantia de € 14.000,00 na conta na conta n.º ...11 do Crédito Agrícola — CCAM ... da qual é co-titular;
- a quantia de € 9.000,00 na conta n.º ...27 do Banco Montepio Geral da qual é titular, e
- a quantia de € 2.000,00 na conta n.º ...00 do Banco Popular, da qual é titular a arguida Q...
38. No dia 3 de Outubro de 2014, a arguida BB procede à transferência daqueles montantes (de € 14.000,00 e € 9.000,00) para a conta bancária n.º ...00 do Banco Popular, titulada pela arguida Q....
39. No dia 6 de Outubro de 2014, estando tais quantias disponíveis em conta, a arguida BB, na qualidade de legal representante da arguida Q... efectuou uma transferência bancária no valor de € 25.000,00 para a conta da sociedade F... para pagamento da factura 2012/24.
40. Ou seja, com quantia paga pelo IFAP, no valor de € 35.649,73, em 29/08/2014, e com os sucessivos levantamentos e depósitos, conseguiram os arguidos simular o montante de pelo menos € 55.000,00 de investimento próprio.
41. Após a arguida entregar no IFAP as facturas n.º 2012/21, 2012/23 e 2012/24, acompanhadas dos recibos e comprovativos de pagamento (titulando o aparente investimento de € 87.500,00), no dia 31 de Outubro de 2014, o IFAP transferiu para a conta bancária n.º ...00 do Banco Popular, titulada pela arguida Q... o montante de € 43.934,53, correspondendo à segunda tranche do apoio, por referência ao reembolso da respectiva quota-parte no investimento elegível.
42. No mesmo dia, a arguida utilizou essa quantia, para pagar as facturas n.º 2012/26 e 2012/27 da sociedade F..., efectuando uma transferência de € 43.500,00 para a conta daquela, no Banco Banif.
43. No dia 3 de Novembro de 2014, ao ficar disponível aquele montante, o arguido AA, na qualidade de sócio gerente da F... efectuou uma transferência bancária de € 49.500,00 para a sua conta pessoal, no Montepio Geral com o n.º ...67
44. No dia seguinte, e quando ficou disponível na sua conta bancária, o arguido AA deu ordem de transferência pelo mesmo montante de € 49.500,00 para a conta pessoal da arguida BB, também no Montepio Geral, com o n.º ...27.
45. Estando esta quantia creditada na sua conta pessoal, a arguida BB, no dia 5 de Novembro de 2014 deu ordem de transferência daquele montante para a conta da firma arguida Q....
46. De seguida, no mesmo dia 5 de Novembro de 2014, foi adicionado a um depósito de numerário de € 500,00, e novamente movimentado – pelo total de € 50.000,00 – para a conta da F... no Banif para pagamento da factura n.º 2012/28 emitida pela F... no valor de € 50.000,00..
47. Tendo este valor (€ 50.000,00) sido creditado na conta bancária da F..., logo no dia 6 de Novembro de 2014, o arguido AA procedeu a uma ordem de transferência a débito de € 49.000,00, para a sua conta pessoal no Montepio Geral.
48. No dia 7 de Novembro de 2014, a quantia de € 49.000,00 acrescida de um depósito de numerário de € 500,00 naquela conta, foi novamente transferida, pelo arguido AA, para a conta n.º ...27 do Montepio Geral da arguida BB -.
49. Após, a arguida BB procedeu à transferência da mesma quantia (€ 49.500,00) para a conta da firma arguida Q..., como se de suprimentos se tratasse.
50. No dia 10/11/2014, a quantia de € 49.500,00 foi novamente alvo de uma transferência, desta vez no montante de € 47.000,00 para a F... para pagamento das facturas n.º 2012/29 e 2012/30
51. Ou seja, com a quantia paga pelo IFAP no valor de € 43.934,53, em 31/10/2014, e os sucessivos levantamentos e depósitos de que foi alvo, conseguiram os arguidos simular o montante de pelo menos € 97.000,00 de investimento próprio.
52. Após a arguida entregar no IFAP as facturas n.º 2012/25, 2012/26 2012/27, 2012/28, 2012/29 e 2012/30 da F... e a factura 1/82 da G..., acompanhadas dos recibos e comprovativos de pagamento (titulando o aparente investimento de € 153.000,00), no dia 28 de Novembro de 2014, o IFAP transferiu para a conta bancária n.º ...00 do Banco Popular, titulada pela firma arguida o montante de € 75.818,43, correspondendo à terceira tranche do apoio, por referência ao reembolso da respectiva quota-parte no investimento elegível.
53. No dia 2 de Dezembro de 2014, a sociedade arguida utilizou tal montante para pagar as Facturas n.º 31/2012 e 32/2012 da sociedade F..., tendo a arguida BB dado ordem de transferência no montante de € 75.800,00 para a conta daquela, no Banco Banif, com o IBAN ...43.
54. Ao ficar disponível aquele montante, o arguido AA, na qualidade de sócio gerente da sociedade F..., nos dias 5, 9 e 10 de Dezembro efectuou o levantamento de € 64.500,00 em numerário, mediante desconto de três cheques de caixa no valor de € 12.000,00, € 30.000,00 e € 22.500,00, respectivamente.
55. Com esta actuação os arguidos apoderaram-se para proveito próprio da quantia de € 64.500,00.
56. Após a arguida entregar no IFAP as facturas n.º 2012/31, 2012/32, 2012/33 e 2012/34 emitidas pela F..., acompanhadas dos recibos e comprovativos de pagamento (titulando o aparente investimento de € 155.800,00), no dia 31 de Outubro de 2016, o IFAP transferiu para a conta bancária n.º ...00 do Banco Popular, titulada pela sociedade arguida o montante de € 78.228,56, correspondendo à quarta e última tranche do apoio por referência ao reembolso da respectiva quota-parte no investimento elegível.
57. A última tranche do apoio concedido pelo IFAP foi antecedida da verificação física, mediante visitas à exploração realizadas em 21/12/2015 e 26/07/2016 por técnico do Ministério da Agricultura, que concluiu que apesar dos atrasos no início e conclusão da obra, o projecto foi materialmente concluído e a exploração se iniciou em 22/07/2016.
58. Para a execução de, pelo menos, parte dessa exploração, o arguido AA, através da sociedade F...,, deu de subempreitada a construção das infra- estruturas e instalação de equipamentos, a empresas que viriam a reclamar os pagamentos em dívida na acção de insolvência da sociedade F....
59. Na posse do montante referente à última tranche do apoio, os arguidos decidiram apoderar-se de pelo menos parte da quantia acima referida, fazendo-a sua.
60. Para tanto, nos dias 4 e 11 Novembro de 2016, a arguida BB deu ordem de transferência do montante de € 25.000,00 (€ 10.000,00 + € 15.000,00) para a conta ...80, da CCAM da qual era co-titular.
61. Quantias essas que foram posteriormente levantadas, em numerário, ao balcão, assim se apoderando das mesmas.
62. Os arguidos agiram sempre com a intenção, concretizada, de ludibriar o IFAP, fornecendo a este Instituto dados e informações incorrectos, de molde a que fossem transferidos fundos/subsídios, em montantes superiores aos por si despendidos no projecto candidato, para a conta bancária da arguida Q..., que a arguida BB representava legalmente e de facto, a que, de outra forma, sabiam não ter direito.
63. Os arguidos BB e AA, sendo que arguida BB agiu em seu interesse e em representação e no interesse da sociedade arguida, agiram sempre com a intenção, concretizada, de ludibriar o IFAP, bem sabendo que o valor global constante das facturas emitidas pela F..., da qual era sócio gerente o arguido AA não correspondiam à totalidade do investimento efectuado, sendo as mesmas forjadas, e que as mesmas tinham como único objectivo ser apresentadas junto do IFAP, pela arguida BB, na qualidade única legal representante da sociedade arguida, com o intuito de obtenção de um montante de apoio a que, de outra forma, sabiam não ter direito.
64. Tinham os arguidos AA e BB conhecimento que ao elaborarem e usarem as facturas e recibos como se de custos efectivamente por si suportados se tratassem abalavam a credibilidade e fé pública que os documentos merecem, bem como a segurança e confiança no tráfico jurídico e não desconheciam que faziam constar dos ditos documentos factos juridicamente relevantes, o que quiseram e lograram.
65. Agiram, ainda, os arguidos com intenção de dissimular a proveniência dos montantes obtidos de forma ilegítima e usados para simular o investimento de capitais próprios junto de entidade pública, convertendo, assim, tais vantagens, em património de natureza diversa, obstando desta forma ao seu conhecimento e confisco por parte das autoridades.
66. Pretendiam, igualmente, os arguidos, com este comportamento, eximir-se a responsabilidade criminal impedindo a descoberta da sua actuação.
67. Todos os arguidos agiram sempre de forma livre, voluntária e consciente, de comum acordo e em comunhão de esforços, bem sabendo que todas as suas condutas eram punidas e proibidas por lei penal.
II -Da Falsificação
68. Em 19 de Fevereiro de 2016, foi determinada uma acção inspectiva tributária ao sujeito passivo e aqui arguida BB, com o NIF ...61, ao ano de 2014, face a divergências não justificadas entre acréscimos de património ou despesa efectuadas com os rendimentos declarados. – relatório de inspecção tributária de fls. 4 e ss.
69. Com efeito face a elementos recolhidos na contabilidade da sociedade “Q..., Lda.”, a arguida BB, sócia gerente daquela sociedade emprestara à sociedade, no ano de 2014, a quantia de € 251.913,68.
70. Como os empréstimos ou suprimentos efectuados pela arguida não eram compatíveis com o rendimento colectável por si declarado e que se cifrou no montante total de € 2.403,93 foi a arguida notificada pela Autoridade tributária para informar da origem dos valores do empréstimo e juntar os respectivos comprovativos.
71. Em data não concretamente determinada mas que se situa entre o dia 16 de Maio e o dia 8 de Junho de 2016, de modo e em circunstâncias não concretamente apuradas a arguida elaborou um documento intitulado “contrato de mútuo” onde consta como primeiro outorgante a sociedade S..., LLC, com sede no Delaware, EUA e representada pelo seu procurador com poderes para o acto CC e como segundo outorgante a arguida BB.
72. Mais ali fez constar que a primeira outorgante empresta à segunda o montante de € 275.000,00, com vista ao financiamento da construção de pavilhões avícolas.
73. O mencionado documento está datado de 15 de Dezembro de 2010 e encontra-se assinado manualmente, estando ainda aposto um carimbo junto ao 1.º contraente
74. Após, a arguida para comprovar o modo como obteve os montantes que emprestou à sociedade Q..., Lda. remeteu o documento elaborado nos moldes acima mencionados acompanhado de requerimento que deu entrada nos serviços das Finanças de ... em 08/06/2016 –
75. Sucede que a sociedade S..., LLC nunca efectuou qualquer empréstimo à arguida BB e CC, indivíduo de nacionalidade brasileira, nunca foi procurador da mesma nem procedeu à assinatura daquele documento e o carimbo aposto não pertence à sociedade
76. Pretendia a arguida com esta sua actuação ludibriar as entidades públicas, in casu, a Autoridade Tributária., ao apresentar o mesmo falsamente como comprovativo do recebimento legitimo de uma quantia.
77. A arguida sabia que o contrato de mútuo apresentado era falso, não havia sido subscrito pelo legal representante da sociedade S..., LLC, bem como esta não lhe havia emprestado qualquer quantia monetária, e que ao actuar dessa forma estava a induzir em erro funcionários daquela entidade.
78. Estava, ainda, a arguida ciente de que não tinha legitimidade para usar aquele contrato de mútuo que sabia não estar regularmente emitido.
79. A arguida agiu livre, voluntária e conscientemente, com a intenção de se eximir à acção do Estado.
80. Além disso, com a sua conduta, a arguida pôs em causa a segurança e credibilidade no tráfico jurídico inerente ao uso de documentos como, neste caso, são contratos celebrados entre duas partes, e ao usar, assim, indevidamente um documento que não lhe pertence e que sabe ser falso.
81. Bem sabia a arguida que a sua conduta era proibida e punida por lei penal. Apenso A
82. A sociedade comercial “F..., Lda.” (“F...”), possuía o capital social de € 150.000, distribuído pelo arguido AA (€ 149.850) e por “I..., Lda.” (“I...”) (€ 150), sociedade unipessoal por quotas que tem por único sócio e gerente o arguido AA.
83. Era tributada em IRC pelo regime geral de tributação pela actividade de “Fabricação de Estruturas de construções metálicas”, a que corresponde o CAE ...10.
84. A 22 de Abril de 2014 a quota pertencente à sociedade “I...” foi adquirida pelo arguido AA, que, assim, passou a deter directamente todo o capital da F...”.
85. O arguido AA é o contribuinte fiscal n.º ...94, encontrando-se inscrito no Serviço de Finanças ....
IRS 2014
86. Relativamente ao ano de 2014, o arguido entregou, em 2015, a sua declaração periódica de rendimentos Modelo 3 -IRS.
87. Nessa declaração de rendimentos, o arguido declarou os seguintes rendimentos brutos e colectáveis, nas diferentes categorias de rendimentos previstos no Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (artigo 1.º e seguintes, do CIRS): Trabalho dependente (Categoria A): no valor de € 5.030,64, pagos pela F...”.
88. No entanto, no decurso do ano de 2014, o arguido AA recebeu da sociedade F...” e para além dos salários que declarou, um total de € 332.250, por transferências de contas da sociedade para as suas contas pessoais, levantamentos em caixas ATM e ao balcão.
89. Assim, da conta bancária titulada pela F...” do Banco BANIF, com o n.º ...10, o arguido retirou os seguintes valores:
DATA | DESCRITIVO | N. DOC | VALOR |
05.06.2014 | Cheque caixa | ...46 | 6.000,00 |
19.05.2014 | Cheque caixa | ...43 | 2.100,00 |
19.06.2014 | Cheque caixa | ...47 | 30.000,00 |
23.06.2014 | Cheque caixa | ...48 | 29.000,00 |
25.09.2014 | Cheque caixa | ...59 | 30.000,00 |
09.12.2014 | Cheque caixa | ...92 | 30.000,00 |
03.10.2014 | Cheque caixa | ...65 | 25.000,00 |
03.11.2014 | Cheque caixa | ...80 | 2.500,00 |
11.11.2014 | Cheque caixa | ...79 | 6.000,00 |
05.12.2014 | Cheque caixa | ...89 | 12.000,00 |
13.11.2014 | Cheque caixa | ...91 | 7.000,00 |
10.12.2014 | Cheque caixa | ...93 | 22.500,00 |
30.10.2014 | Cheque caixa | ...77 | 10.000,00 |
14.11.2014 | Cheque caixa | ...92 | 6.000,00 |
03.11.2014 | TRF AA -...01 | 49.500,00 | |
06.11.2014 | TRF AA -...01 | 49.000,00 | |
TOTAL | 316.600,00 |
90. 12. E retirou da mesma conta, por levantamentos ao balcão ou em caixas ATM, entre 22 de Janeiro de 2014 e 26 de Dezembro do mesmo ano, o valor global de € 15.650, assim discriminado:
DATA | VALOR | DESCRIÇÃO |
22-01-2014 | 200,00 | Levantamento |
22-01-2014 | 200,00 | Levantamento |
28-01-2014 | 950,00 | Cheque Caixa |
31-01-2014 | 40,00 | Levantamento |
31-01-2014 | 100,00 | Levantamento |
04-02-2014 | 100,00 | Levantamento |
07-02-2014 | 200,00 | Levantamento |
08-02-2014 | 60,00 | Levantamento |
11-02-2014 | 200,00 | Levantamento |
11-02-2014 | 60,00 | Levantamento |
11-02-2014 | 100,00 | Levantamento |
13-03-2014 | 100,00 | Levantamento |
17-03-2014 | 100,00 | Levantamento |
26-04-2014 | 200,00 | Levantamento |
26-04-2014 | 140,00 | Levantamento |
05-05-2014 | 100,00 | Levantamento |
06-05-2014 | 60,00 | Levantamento |
15-05-2014 | 100,00 | Levantamento |
22-05-2014 | 200,00 | Levantamento |
22-05-2014 | 200,00 | Levantamento |
02-06-2014 | 100,00 | Levantamento |
03-06-2014 | 200,00 | Levantamento |
16-06-2014 | 90,00 | Levantamento |
01-07-2014 | 200,00 | Levantamento |
24-07-2014 | 60,00 | Levantamento |
07-08-2014 | 100,00 | Levantamento |
10-08-2014 | 150,00 | Levantamento |
12-08-2014 | 150,00 | Levantamento |
13-08-2014 | 150,00 | Levantamento |
15-08-2014 | 200,00 | Levantamento |
16-08-2014 | 200,00 | Levantamento |
20-08-2014 | 200,00 | Levantamento |
20-08-2014 | 200,00 | Levantamento |
03-09-2014 | 200,00 | Levantamento |
04-09-2014 | 200,00 | Levantamento |
05-09-2014 | 200,00 | Levantamento |
08-09-2014 | 200,00 | Levantamento |
08-09-2014 | 200,00 | Levantamento |
12-09-2014 | 150,00 | Levantamento |
30-09-2014 | 100,00 | Levantamento |
02-10-2014 | 200,00 | Levantamento |
02-10-2014 | 200,00 | Levantamento |
03-10-2014 | 100,00 | Levantamento |
05-10-2014 | 100,00 | Levantamento |
06-10-2014 | 150,00 | Levantamento |
07-10-2014 | 100,00 | Levantamento |
08-10-2014 | 200,00 | Levantamento |
08-10-2014 | 150,00 | Levantamento |
09-10-2014 | 200,00 | Levantamento |
09-10-2014 | 200,00 | Levantamento |
11-10-2014 | 100,00 | Levantamento |
13-10-2014 | 200,00 | Levantamento |
13-10-2014 | 200,00 | Levantamento |
17-10-2014 | 100,00 | Levantamento |
18-10-2014 | 100,00 | Levantamento |
22-10-2014 | 150,00 | Levantamento |
23-10-2014 | 100,00 | Levantamento |
24-10-2014 | 100,00 | Levantamento |
31-10-2014 | 40,00 | Levantamento |
31-10-2014 | 200,00 | Levantamento |
04-11-2014 | 200,00 | Levantamento |
04-11-2014 | 200,00 | Levantamento |
06-11-2014 | 200,00 | Levantamento |
06-11-2014 | 200,00 | Levantamento |
07-11-2014 | 200,00 | Levantamento |
07-11-2014 | 100,00 | Levantamento |
08-11-2014 | 100,00 | Levantamento |
10-11-2014 | 60,00 | Levantamento |
10-11-2014 | 40,00 | Levantamento |
11-11-2014 | 200,00 | Levantamento |
11-11-2014 | 200,00 | Levantamento |
13-11-2014 | 200,00 | Levantamento |
21-11-2014 | 200,00 | Levantamento |
21-11-2014 | 100,00 | Levantamento |
21-11-2014 | 100,00 | Levantamento |
22-11-2014 | 100,00 | Levantamento |
23-11-2014 | 200,00 | Levantamento |
23-11-2014 | 150,00 | Levantamento |
26-11-2014 | 100,00 | Levantamento |
28-11-2014 | 100,00 | Levantamento |
29-11-2014 | 200,00 | Levantamento |
01-12-2014 | 200,00 | Levantamento |
03-12-2014 | 200,00 | Levantamento |
03-12-2014 | 150,00 | Levantamento |
07-12-2014 | 200,00 | Levantamento |
09-12-2014 | 200,00 | Levantamento |
15-12-2014 | 200,00 | Levantamento |
16-12-2014 | 200,00 | Levantamento |
18-12-2014 | 200,00 | Levantamento |
19-12-2014 | 200,00 | Levantamento |
22-12-2014 | 200,00 | Levantamento |
23-12-2014 | 200,00 | Levantamento |
24-12-2014 | 200,00 | Levantamento |
24-12-2014 | 200,00 | Levantamento |
26-12-2014 | 200,00 | Levantamento |
26-12-2014 | 200,00 | Levantamento |
TOTAL | 15.650 |
91. No entanto, o arguido AA não entregou, relativamente ao ano de 2014, conjuntamente com a Declaração Modelo 3 de IRS, o Anexo E, omitindo todo este rendimento à Administração Tributária.
92. Estes valores foram retirados da F...” pelo arguido na qualidade de seu sócio gerente e detentor da totalidade do respectivo capital social, tratando-se de frutos procedentes de uma situação mobiliária e, como tal, de rendimentos enquadráveis na categoria E de IRS, tributáveis nos termos do art. 5º do CIRS.
93. Com base no apuramento deste rendimento ao arguido AA, a Administração Tributária elaborou um Documento de Correcção ao IRS de 2014, com o n.º ...96, no qual reflectiu a consideração do valor de € 332.250,00 como rendimentos de capitais - Categoria E de IRS - auferido pelo arguido em 2014, documento de que resultou a emissão de liquidação de IRS n.º ...27, com o valor total a pagar de € 192.792,06 (imposto e juros moratórios).
94. Concretamente, foi apurado o seguinte valor de imposto:
- Colecta líquida: € 158.241,48;
- Sobretaxa de IRS: € 11.420,74
Total de Imposto apurado (1 +2): € 169. 662,22.
95. A actuação do arguido AA levou, pois, a que tivesse, relativamente ao ano de 2014 e em sede de IRS, uma vantagem pecuniária indevida de € 169.662,22.
IRC 2014 (“F...”)
96. No que diz respeito à contabilidade da sociedade F...”, os valores daí retirados pelo arguido e supra descritos foram registados na subconta 111-Caixa Sede e daí transferidos para a conta 688852 - Indemnizações contratuais pagas a terceiros.
97. Inexistia, no entanto, qualquer indemnização a pagar, vindo tais valores a ser transferidos ou levantados pelo arguido AA, que os fez seus e deles dispôs como entendeu.
98. Na identificada conta 688852 - Indemnizações contratuais pagas a terceiros foram registados pelo arguido AA, em 2014, para além dos valores descritos supra, outros valores. perfazendo o montante global de € 403.000,00, assim discriminados:
Conta 688852 Indemnizações contratuais | DÉBITO | CONTRAPARTIDA |
31-01-2014 | 25.000 | 278812 - AA |
31-03-2014 | 35.000 | 278812 - AA |
30-04-2014 | 20.000 | 278812 - AA |
31-05-2014 | 12.500 | 278812 - AA |
30-06-2014 | 25.000 | 1202 - Banif |
31-07-2014 | 20.000 | 111 Caixa Sede |
31-08-2014 | 14.500 | 111 Caixa Sede |
30-09-2014 | 30.000 | 1202 - Banif |
31-10-2014 | 13.000 | 111 Caixa Sede |
31-10-2014 | 25.000 | 111 Caixa Sede |
30-11-2014 | 50.000 | 111 Caixa Sede |
30-11-2014 | 50.000 | 111 Caixa Sede |
31-12-2014 | 40.000 | 111 Caixa Sede |
31-12-2014 | 43.000 | 111 Caixa Sede |
TOTAL | 403.000 | 403.000 |
99. Como contrapartida destes registos de gastos, foram, assim, creditadas as seguintes contas da F...”:
- 111 - Caixa Sede: € 255.000;
- 1202 Banif: € 55.000;
- 278812 - AA: € 92.500
100. Inexistem documentos que comprovem tais “gastos”, não foram, no ano em causa, efectuados pagamentos a credores da F...” com os valores em causa, que não estão, como tal, reflectidos na contabilidade da sociedade.
101. Tanto mais, que todos os pagamentos a credores/fornecedores da F...” eram efectuados por cheque ou transferência bancária.
102. A totalidade dos valores inscritos na conta 688852 - Indemnizações contratuais pagas a terceiros, € 403.000,00, em face de tal inserção na contabilidade da F...” foi, para efeitos de cálculo do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas relativamente a tal sociedade no ano de 2014, considerada indevidamente como gastos.
103. E assim fez o arguido AA constar da declaração de MOD 22 de IRC que, a 29 de Maio de 2015, apresentou à Autoridade Tributária, relativa ao exercício de 2014 da sua representada F...”.
104. Como resultado de tal inserção contabilística, a F...” apresentou, em 2014, um resultado tributável de € - 49.259,97 (Prejuízo para efeitos fiscais).
105. Constou, assim, da declaração Modelo 22 de IRC entregue pelo arguido AA à AT em 2015 e relativa a 2014, como rendimentos da F...”, o valor de € 503.679,74, Volume de Negócios, € 495.168,71, Resultado líquido € - 48.227,37, Resultado Final, € - 49.259,97.
106. O que conduziu ao apuramento de imposto a restituir, correspondente a retenções de IRC efectuadas na fonte, de € 162,88, valor que foi devolvido à F...”.
107. Uma vez que o valor de € 403.000,00 não corresponde, efectivamente, a quaisquer indemnizações pagas a terceiros, retirado o mesmo dos gastos da F...” em 2014, apurou-se que a sociedade em causa teve, na realidade, um lucro tributável em IRC de € 353.740,03 (-49.259,97 + € 403.000,00).
108. Em face desta circunstância, o cálculo relativo ao exercício de 2014, em sede de IRC, relativamente à F...” (e sem considerar a retenção na fonte, que já lhe fora devolvida) é o seguinte:
Legislação | Cálculos | Valor |
Art. 87º, n.º 2 CIRC | 15.000 x 17% | 2.550,00 |
Art. 87º, n.º 1 CIRC | (353.740,03 - 15.000) x 23% | 77.910,21 |
COLECTA | 80.460,21 |
109. Furtou-se, assim, a sociedade F...”, por via da actuação do arguido AA, ao pagamento do Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas por si devido em 2014, no valor de € 80.460,21.
***
110. O arguido AA bem sabia que tinha o dever de integrar aqueles € 332.250,00 na sua declaração periódica de rendimentos Modelo 3 - IRS do ano de 2014, na medida em que se tratava de rendimentos de capitais, que recebeu da F...” no ano em causa, em virtude de ser o seu único sócio e gerente, com enquadramento nas normas de incidência de IRS da Categoria E e como tal tributados.
111. O arguido bem sabia, igualmente, que tinha o dever de proceder ao pagamento do imposto que se viesse a apurar de acordo com o regime aplicável.
112. Obrigações essas que o arguido, deliberadamente, não cumpriu, ocultando tais quantias monetárias à AT – Autoridade Tributária e Aduaneira, que, por esse motivo, não aferiu do seu enquadramento fiscal para efeitos de tributação em sede de IRS e não as sujeitou a tributação, com o propósito conseguido de, com esta sua conduta omissiva, obter um acréscimo patrimonial de € 332.250 e, assim, se enriquecer ilicitamente à custa da Fazenda Pública, tendo auferido uma vantagem patrimonial ilegítima, no valor de € 169.662,22, a que acrescem juros compensatórios, a integrar no cálculo final, bem como todas as cominações legais por falta de pagamento voluntário, ou seja, juros de mora e custas do processo de execução fiscal, estando em dívida nas execuções instauradas, a 25 de Maio de 2022, € 226.813,04€.
***
113. Sabia, também, o AA que o valor de € 403.000 que integrou na conta da sua representada F...” 688852 - Indemnizações contratuais pagas a terceiros, não correspondia a qualquer dívida paga a terceiros.
114. Mais sabia que ao fazer constar tal valor da contabilidade da empresa e da declaração que enviou à AT em 2015 para efeitos de cálculo de IRC de 2014 levou a que o mesmo, erradamente, fosse considerado como um custo, assim conduzindo a que pela AT fosse apurado, em tal ano, um prejuízo para a F...”, em sede de IRC, de - €49.259,97.
115. Na verdade, a F...” teve, em 2014, um lucro que levou à liquidação de Imposto Sobre o Rendimento das Pessoas Colectivas no valor de € 80.460,21.
116. O arguido bem sabia, igualmente, que tinha o dever de proceder ao pagamento do imposto que se viesse a apurar de acordo com o regime aplicável.
117. Obrigações essas que o arguido, deliberadamente, não cumpriu, ao ocultar os lucros tributáveis da F...” da forma descrita, ficcionando pagamentos de dívidas inexistentes, assim levando a que a AT - Autoridade Tributária e Aduaneira não tenha aferido do seu enquadramento fiscal para efeitos de tributação em sede de IRC, não as sujeitando a tributação, com o propósito conseguido de, com esta sua conduta se enriquecer e à sua representada “F...” ilicitamente à custa da Fazenda Pública, tendo auferido uma vantagem patrimonial ilegítima, no valor de € 80.460,21, a que acrescem juros compensatórios, a integrar no cálculo final, bem como todas as cominações legais por falta de pagamento voluntário, ou seja, juros de mora e custas de um eventual processo de execução fiscal.
118. O arguido actuou, sempre, de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.
Do pedido de indemnização civil
119. Com a actuação descrita em 80 a 116, o arguido AA causou ao Estado Português – Ministério das Finanças – um empobrecimento no montante global de € 250.122,43, correspondentes às vantagens patrimoniais de IRS relativamente ao próprio em 2014 - € 169. 662,22 - e de IRC relativamente à sociedade F...”, no mesmo ano - € 80.460,21.
120. Essa quantia, no valor global de € 250.122,43, nunca foi entregue à Fazenda Nacional, pelo arguido ou pela já extinta F...” (quanto a esta, apenas o IRC de 2014).
121. Para cobrança de tais quantias foram, pela AT, instauradas as seguintes execuções:
N.º | Imposto | Juros | Total | Valor em dívida a 25 de Maio de 2022 |
...61 0 IRS 2014 | € 158.241,48 | € 21.611,67 | € 179.853,15 | € 212.712,69 |
...38 70 Sobretaxa IR | € 11.420,74 | € 1.518,17 | € 12.938,91 | € 14.100,35 |
122. Não foi instaurada execução fiscal para cobrança do IRC em dívida de 2014, relativamente à “F...”, € 80.460,21.
123. O arguido AA sabia que, com as acções descritas em 79 a 115, diminuía as receitas tributárias, causando prejuízo ao Estado Português, aqui demandante, e colocando em crise o regular funcionamento do sistema fiscal e dos interesses que este deve satisfazer.
Mais se provou que:
124. Nenhum dos arguidos tem antecedentes criminais registados.
125. A arguida BB é natural de ..., localidade onde viveu até aos 17 anos de idade, integrando o agregado familiar de origem, constituído pelos pais e um irmão mais velho, casado e com duas filhas menores. Os pais haveriam de separar- se há cerca de quinze anos, separação impulsionada pelo pai, com quem verbaliza um corte quase total de relações o qual, tanto quanto sabe, já se encontrará reformado e residirá actualmente em .... Já a mãe reside em ..., o mesmo acontecendo com o seu irmão.
126. Iniciou processo escolarização em idade própria, tendo por último frequentado curso de formação profissional, designado “Técnico(a) Profissional de Contabilidade”, em ... o qual iniciou aos 17 anos de idade e concluiu por volta dos 20/21 anos de idade, curso que lhe conferiu equivalência ao 12º ano da escolaridade. Inicia-se no mundo do trabalho pouco tempo depois de concluir o referido processo de formação profissional, começando por trabalhar numa papelaria, em ..., até ficar desempregada, mas a coberto de subsídio de desemprego, realidade que coincide com a altura em que os pais se separaram.
127. Algum tempo depois veio trabalhar para ..., numa sapataria situada o ..., altura em que viveu na Quinta do ..., partilhando o apartamento com outra pessoa.
Deixou de exercer aquela actividade cerca de dois anos depois, quando a sapataria encerrou.
128. Trabalhou depois na promoção de produtos, em supermercados e hipermercados, por conta de uma empresa de prestação de serviços, durante cerca de três anos, a que se seguiu um período de trabalho de pouco mais de um ano numa chocolataria no Fórum, em ..., outro de cerca de cinco anos, como administrativa numa loja de venda de materiais de construção, em ... e outro ainda de cerca de quatro anos no Hipermercado Continente.
129. Entretanto, iniciou actividade de gerência na empresa “Q..., Lda.”, dedicada à actividade de exploração agrícola e criação de galináceos, que apesar de ter sido criada em Novembro de 2011, só iniciou a produção em 2016. A empresa continua a laborar sob a gerência da arguida, nela trabalhando também o co-arguido AA, na qualidade de assalariado, pelo menos desde 2021.
130. A arguida vive actualmente com DD, de 46 anos de idade, solteiro, com quem iniciou relação há cerca de três anos, o qual desempenha serviço de motorista de pesados, fazendo apenas serviço nacional, em empresa sedeada na zona de .... Tem um filho de relacionamento anterior de 5 anos de idade. Tem uma filha nascida na pendência desta relação, EE, com 4 anos de idade.
131. Reside em moradia propriedade da sua mãe, de 61 anos, que também lá reside, trabalhando a tempo parcial na empresa que a filha gere. Contudo, ultimamente, tem dividido o seu tempo entre a casa da sua mãe e a do seu actual companheiro, uma moradia da propriedade deste último, situada na localidade de ..., no concelho de ..., adquirida com recurso a crédito bancário, que este ainda se encontra a pagar, onde verbaliza pretender fixar-se, futuramente, se tudo se mantiver estável.
132. A arguida mantém-se a trabalhar na empresa “Q..., Lda.”, na qualidade de gerente. Também ali trabalha a tempo inteiro o co-arguido e a tempo parcial a sua mãe, contratando ainda, pontualmente, outras pessoas para o desempenho de tarefas especificas, como por exemplo a da apanha de aves. Os rendimentos que lhe são conhecidos provêm da actividade profissional que ali desenvolve, que, de acordo com a mesma, correspondem ao seu salário líquido mensal actual de €520,00 (quinhentos e vinte euros). Já o companheiro auferirá um salário líquido mensal que se aproximará a €1.200,00 (mil e duzentos euros). Ainda de acordo com a arguida, a empresa tem um rendimento médio mensal situado entre os €2000,00 (dois mil) e os €3000,00 (três mil euros) produto da sua actividade comercial, do qual retira, na medida do necessário, algum dinheiro para os seus gastos pessoais, reinvestindo o remanescente na própria empresa. Os encargos mensais fixos com maior peso no seu rendimento disponível, surgem associados às despesas com alimentação, em valor variável, mas nunca inferior a €300,00. Participa ainda nos custos derivados dos consumos domésticos (água, luz, gás), conforme o espaço habitacional onde permanece, alternando o pagamento desses consumos, ora com a mãe, ora com o companheiro. Das despesas fixas da empresa salienta a arguida o pagamento de um empréstimo bancário no valor de €100.000,00 (cem mil euros), sendo de €1.900,00 (mil e novecentos euros) o valor pago mensalmente para amortizar a referida dívida, custo que terá ainda de suportar até ao ano 2026.
133. No meio residencial onde cresceu não lhe são conhecidos comportamentos ou relacionamentos desajustados, ali gozando, tanto ela com os elementos do seu núcleo familiar de origem, de uma imagem globalmente positiva, mantendo níveis de comunicação e relacionamento adequados nas interacções que estabelece com os outros.
134. Resulta do relatório social que: “A arguida assume uma postura de desvalorização e minimização dos factos que sustentam a acusação, verbalizando que em momento algum agiu com intenção de lesar as entidades públicas”.
135. O arguido AA é natural de ..., onde integrou o agregado familiar de origem, constituído pelos pais, actualmente reformados, ele com 77 anos de idade, empresário do ramo comercial durante a vida activa e ela com 70 anos de idade, professora primária e uma irmã mais velha. Sempre manteve uma relação de proximidade afectiva com os pais e com a irmã, que procurou manter afastados da presente realidade jurídico-penal, apenas lhes dando conhecimento da mesma após a realização da entrevista com o técnico da DGRSP.
136. Iniciou o processo de escolarização em idade própria, no decurso do qual experimentaria alguns problemas de saúde (crises de ansiedade, na sequência de incêndio junto à sua habitação, quando tinha 8/9 aos de idade e fobias na sequência de acidente de viação aos 10/11 aos de idade) que justificaram o seu acompanhamento médico e pedopsiquiátrico e um percurso escolar absentista, com algumas retenções. Acabou por abandonar a escola aos 15/16 anos de idade, quando frequentava o 8º ano da escolaridade. Logo se iniciou no mundo do trabalho, na venda de materiais de construção, na empresa do seu pai, mantendo acompanhamento médico e pedopsiquiátrico até aos 18/19 anos de idade.
137. Em 2003, tinha então 21 anos de idade, o pai ficou impossibilitado de exercer as suas funções durante um ano, período em que o arguido teve de ficar sozinho à frente da empresa. Entretanto, o pai voltou ao trabalho, mas o negócio não correria muito bem, porque vendia e não lhe pagavam, o que originava bastantes discussões entre os pais. Por outro lado, a relação profissional do arguido com o pai decorria com alguma divergências, acabando o arguido por sair da empresa em 2007, vindo o pai pouco tempo depois a encerrar a actividade da mesma e a reformar-se. Nessa altura, em sociedade com outro individuo, criou a empresa “V..., Lda.”, a qual se dedicava ao fabrico, montagem e comercialização na área de actividade de serralharia, empresa à qual permaneceu associado cerca de um ano.
138. Já em 2010 viria a criar a empresa “F..., Lda.”, sociedade por quotas com sede em ..., com actividade no ramo da metalomecânica e montagem de equipamento agro-pecuário, empresa que terá mantido em actividade cerca de cinco anos, até ser declarada insolvente. Depois terá ficado a trabalhar no mesmo ramo, como vendedor de equipamentos, até que em 2021 começou a trabalhar, como assalariado, na empresa “Q..., Lda.”, gerida pela co-arguida dos autos.
139. O arguido vive actualmente sozinho, num espaço habitacional arrendado do tipo apartamento, T2. Por sua vez, os pais, residem na Quinta do ..., em ..., junto deles residindo também a irmã do arguido, actualmente desempregada e a filha daquela.
140. Trabalha há pouco mais de dois anos na empresa “Q..., Lda.”. Ali executa diferentes actividades que vão desde a manutenção dos pavilhões à criação de frangos, a troco do salário mínimo nacional, verbalizando um rendimento mensal líquido, já com subsídio de refeição incluído, de €760,00 (setecentos e sessenta euros). Os encargos mensais com maior peso no seu rendimento disponível, para além das despesas com alimentação e vestuário, em valor variável mas não inferior a €300,00 (trezentos euros), surgem associados à renda do espaço habitacional onde reside, €90,00 (noventa euros), a uma penhora movida pela autoridade tributária, cujo valor da prestação mensal é de €11,32 (onze euros e trinta e dois cêntimos) e às despesas com consumos domésticos (água e electricidade), no valor de cerca de €50,00 (cinquenta euros).
141. Em termos de saúde mantém acompanhamento psiquiátrico, a título particular, e tratamento farmacológico.
142. Mantém actualmente uma relação cordial com os pais e irmã, os quais visita regularmente. A mãe descreve-o como educado e respeitador das regras instituídas pelos pais, acrescentando que nunca tiveram de se preocupar com ele, pois que na comunidade onde efectuou o seu processo de desenvolvimento sempre gozou de uma imagem positiva, associada a uma postura adequada ao nível do relacionamento e comunicação com os outros.
143. Resulta ainda do relatório social que: “O arguido considera a presente acusação como injusta”.
*
Factos não provados:
Não há factos não provados com relevo para a discussão da causa.»
12. Da admissibilidade do recurso relativamente à decisão em matéria civil, com fundamento atinente à ofensa de caso julgado.
Conforme referido no ponto 4. do relatório deste acórdão, bem como do acórdão da formação deste STJ a que alude o art. 672.º, n.º 3, do CPC, face à decisão de não admitir a revista excecional relativamente à questão da verificação de litispendência suscitada pelo recorrente, sobra, apenas, apreciar a admissibilidade do recurso, quanto ao fundamento recursório atinente à ofensa do caso julgado ao abrigo da alínea a) in fine do n.º 2 do artigo 629.º do CPC.
Lembre-se que o recorrente-demandado havia suscitado, no âmbito do seu recurso, as questões da «(…) violação do princípio constitucional do “ne bis in idem” e a violação quer do caso julgado, em sede cível, quer a verificação de litispendência em mesma sede». (Conclusões M) e O))
Preambularmente, cabe esclarecer que a pretensão do arguido-demandado com a interposição do presente recurso apenas na vertente da decisão em sede civil – e na concreta questão da ofensa de caso julgado – pode ser apreciada e ter, virtualmente, algum efeito processual útil. Porém, uma decisão proferida a tal respeito, mesmo a ser procedente, seria insuscetível de modificar a decisão em matéria penal.
Conforme se viu, apesar de o demandado-recorrente ter formulado o seu pedido de apreciação do recurso em matéria civil em termos algo confusos e mesmo sobreponíveis, relativamente aos conceitos de litispendência e de caso julgado, o certo é que a questão relativa à litispendência se acha definitivamente julgada pelo acórdão do formação do STJ a que alude o art. 672.º, n.º 2, do CPC.
Litispendência e caso julgado são conceitos matricialmente originários, mas não privativos, do processo civil. No processo penal vigora o princípio da proibição do non bis in idem, sendo, contudo, aqueles conceitos, por razões operativas e sistémicas, aplicáveis ao processo penal ex vi do art. 4.º do CPP.
São definidos, nos termos do art. 580.º do CPC, nos seguintes termos:
1 - As exceções da litispendência e do caso julgado pressupõem a repetição de uma causa; se a causa se repete estando a anterior ainda em curso, há lugar à litispendência; se a repetição se verifica depois de a primeira causa ter sido decidida por sentença que já não admite recurso ordinário, há lugar à exceção do caso julgado.
2 - Tanto a exceção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior.
3 - É irrelevante a pendência da causa perante jurisdição estrangeira, salvo se outra for a solução estabelecida em convenções internacionais.
Por seu turno, o art. 581.º do CPC, dispõe que:
1 - Repete-se a causa quando se propõe uma ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir.
2 - Há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica.
3 - Há identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico.
4 - Há identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas ações procede do mesmo facto jurídico. Nas ações reais a causa de pedir é o facto jurídico de que deriva o direito real; nas ações constitutivas e de anulação é o facto concreto ou a nulidade específica que se invoca para obter o efeito pretendido.
A pretensão do recorrente fora já ensaiada no âmbito do seu recurso da decisão de 1.ª Instância, tendo sido profusamente abordada pela decisão recorrida, sendo certo que o mesmo discorda da forma (alegadamente) omissa como (não) foi apreciada.
É o que resulta do seguinte trecho das suas motivações de recurso, quando refere:
«6. Efetivamente, no Acórdão recorrido e na decisão da primeira instância que o mesmo reproduz, é analisada, doutamente, a questão jurídica da violação das normas, sendo feitas doutas considerações sobre a qualificação jurídica dos crimes em apreço.
7. Porém, não se pronuncia, de forma clara e objetiva, sobre a repetição (ou não) dos mesmos fatos, questão suscitada pelo Recorrente ao longo do processo.
8. Com efeito, entre a pag.53 e pag.67 do Acórdão recorrido, podemos ler a analisar tais considerações jurídicas, mas a questão em apreço não se encontra decidida.»
Bem como da Alínea l) das Conclusões do seu recurso:
«l) O Acórdão ora recorrido, tal como sucedera com a decisão de primeira instância, não se pronunciou, de forma clara e objetiva, no sentido de reconhecer que os factos em apreço eram (ou não) efetivamente os mesmos, o que, salvo melhor opinião, acarretará mesmo, a verificação do vicio de omissão de pronúncia, ferindo de nulidade a decisão, nos termos previstos nos artigos 615º, nº1, al.d) do C. P. Civil.»
Sucede que no acórdão recorrido foi abordada a questão da violação do princípio non bis in idem, já tratada no acórdão de 1.ª Instância – matéria subtraída à nossa apreciação – a partir de pág. 53.
A partir da página 67 do acórdão, o tribunal recorrido começa a abordar a questão «Da verificação das exceções de caso julgado e de litispendência relativamente ao pedido de indemnização civil deduzido pelo Ministério Público em representação do Estado».
A decisão de tal questão mereceu a seguinte apreciação:
«(…)
Em consonância com o entendimento que, desta forma, sufragou, ao proceder à apreciação do pedido de indemnização civil deduzido nos autos pelo Ministério Público em representação do Estado, que julgou parcialmente procedente, o tribunal recorrido decidiu-se pela condenação do arguido/demandado AA no pagamento ao Estado do valor global de € 250.122,43, correspondente aos valores que, por força da atuação ilícita do mesmo, a Administração Fiscal deixou de arrecadar (€ 169.662,22 de IRS + € 80.460,21 de IRC), considerando ser apenas este o valor do dano indemnizável no âmbito do pedido de indemnização civil deduzido, em virtude de corresponder ao valor dos impostos que o arguido – por si e em representação da sociedade F... – com a prática dos crimes de fraude fiscal, evitou pagar.
Tal entendimento sufragado pelo tribunal recorrido relativamente à não verificação das exceções de litispendência e de caso julgado invocadas pelo arguido e ora recorrente não nos merece qualquer censura.
Com efeito, os montantes reclamados em sede de pedido de indemnização civil formulado nos autos pelo Ministério Público em representação do Estado, em cujo pagamento veio o arguido a ser condenado no acórdão recorrido, correspondem aos montantes dos impostos (IRS e IRC) que nele vieram a ser considerados em dívida, condenação essa que emerge da prática pelo mesmo dos crimes de fraude fiscal qualificada que lhes vinham imputados, nele também decidida, pelo que, nos termos do artº 71 do CPP, tal pedido podia e devia ser deduzido nos presentes autos e nele ser, como foi, apreciado.
Não há, nesta situação, qualquer utilização de um meio processual impróprio, já que o processo penal é, nos termos do artº 71º do respetivo Código, o meio idóneo para se conhecer do pedido, que resulte e seja consequência dos crimes praticados pelo arguido e ora recorrente e pelos quais o mesmo foi condenado.
Não está em causa a análise de dívidas tributárias, mas sim, a apreciação da responsabilidade civil decorrente de dois crimes de fraude fiscal qualificada, pelo que não se coloca a questão da competência material do tribunal para apreciar o pedido de indemnização civil deduzido nos autos pelo Ministério Público em representação do Estado, a qual resulta, naturalmente, da sua competência própria para dirimir a instância criminal e, por adesão, o pedido civil dela decorrente, nem, também, a da existência de caso julgado.
Uma coisa são os litígios relativos à liquidação das dívidas tributárias e às execuções de natureza fiscal, cuja competência, evidentemente, compete aos tribunais administrativos e fiscais, outra, bem diversa, é o direito à indemnização decorrente do processo penal cuja apreciação cumpre neste fazer quando para tal é nele deduzido pedido de indemnização civil.
A causa de pedir que subjaz ao pedido de indemnização civil deduzido em processo penal é o facto penal ilícito gerador da obrigação de indemnizar, que deve ser conhecida no processo crime por força do princípio da adesão plasmado no Artº 71 do CPP; os processos tributários, incluindo as respetivas execuções, já têm, como seu suporte, uma responsabilidade intrinsecamente tributária, distinta da responsabilidade civil fundada na prática de crime, apesar de uma e a mesma pessoa poder ocupar, aqui, o lugar de contribuinte relapso e ali, a posição de arguido/demandado em processo-crime.
E tal assim sucede, porquanto, os factos geradores das duas responsabilidades em causa - ainda que se possam traduzir na mesma realidade, como acontece no caso concreto, ou seja, na omissão de entrega ao Estado das quantias devidas a título de imposto de IRS e de IRC-, são substancialmente distintos mesmo que possa haver, total ou parcial concordância dos montantes envolvidos: num caso, a prática de um crime, noutro, o mero incumprimento de uma obrigação contributiva.
O que se discute nos presentes autos no concernente ao pedido de indemnização civil deduzido nos autos pelo Ministério Público em representação do Estado contra o arguido e ora recorrente AA, é, apenas e só, a responsabilidade civil do mesmo resultante da prática dos dois crimes de fraude fiscal qualificada que neles lhe vêm imputados e essa responsabilidade civil pode e deve ser apreciada nestes autos, nos termos do artº 71º do CPP.
A circunstância de poder existir já título executivo para obter a cobrança dessa obrigação contributiva, como acontece no tocante ao IRS (no valor de 169.662,22) – o mesmo não se verificando em relação ao IRC (no valor de € 80.460,21) - não impede a dedução nem a apreciação do presente pedido de indemnização civil deduzido nos autos pelo Ministério Público.
A propósito da pendência simultânea de uma ação cível enxertada no processo penal (por infração fiscal ou contra a segurança social) e da cobrança coerciva da mesma dívida em processo de execução fiscal, decidiu-se no ac. do Tribunal da Relação de Évora, datado de 07.11.2017, disponível em www.dgsi.pt, que não existe litispendência entre o pedido cível formulado no processo penal ao abrigo do princípio da adesão e as eventuais execuções fiscais que corram termos contra o mesmo arguido, por não se verificar identidade de pedido nem de causa de pedir, com base na seguinte argumentação, que perfilhamos:
“ Assim, e a propósito da pendência simultânea dos dois processos (a acção cível enxertada no processo penal e a execução fiscal), considerou-se já em anterior acórdão (que teve a Relatora do presente) não existir litispendência entre o pedido cível formulado no processo penal ao abrigo do princípio da adesão e as eventuais execuções fiscais que corram termos contra o mesmo arguido, por não se verificar identidade de pedido nem de causa de pedir.
A litispendência é uma excepção dilatória que pressupõe a repetição de uma causa, ocorre quando a causa anterior ainda está em curso (arts 577º- al. i) e 580º do CPC, ex vi art. 4º do CPP), e verifica-se a repetição da causa quando as acções são idênticas quanto aos sujeitos, pedido, e causa de pedir (art. 581.º do CPC). Conforme art. 581º do CPC, há identidade de sujeitos quando as partes são as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, identidade de pedido quando numa e noutra causa se pretende obter o mesmo efeito jurídico e identidade de causa de pedir quando a pretensão deduzida nas duas acções procede do mesmo facto jurídico.
Considerou-se então nesse acórdão (acórdão TRE de 04.06.2013) que nestes casos falha uma identidade da causa de pedir e do pedido, reconhecendo-se embora uma “zona de intersecção” protagonizada pelas contribuições/cotizações devidas à Segurança Social, o que não deixará de desencadear consequências jurídicas, mas noutra sede e a outro propósito.
Aqui, o pedido cível tem como causa de pedir o facto (penal e civilmente) ilícito, gerador de obrigação de indemnizar. Objecto da causa cível fundada na prática do crime é, pois, o facto ilícito, ao lado do dano, do nexo causal e da imputação daquele ao agente.
A responsabilidade civil por facto penalmente ilícito é conhecida no processo-crime por força do princípio da adesão (art. 71º do CPP), e o lesado só pode fazer valer os seus direitos em separado perante o tribunal civil nas situações excepcionais previstas no art. 72º nº1 do CPP.
Já as execuções tributárias pendentes contra o contribuinte relapso – que poderá ou não ocupar, simultaneamente, a posição de arguido/demandado em processo-crime – terão na sua base uma responsabilidade tributária, distinta da responsabilidade civil fundada na prática de crime.
Como se dá nota no acórdão do TRP de 27 de Maio de 2009 (Rel. Carmo Dias), citando Germano Marques da Silva “nem o RGIT, nem a LGT afastam a regra geral constante dos arts. 483º a 498º do Código Civil, aplicáveis por remissão do art. 129º do Código Penal, porque nunca se referem aos danos emergentes do crime, salvo quando o art. 3, al. c), do RGIT manda aplicar subsidiariamente as disposições do Código Civil. A unidade e coerência do sistema impõem que se distinga a responsabilidade pelo pagamento do imposto (responsabilidade tributária), sendo então aplicável a legislação tributária, nomeadamente, a Lei Geral Tributária, e a responsabilidade emergente do crime, consequência civil resultante da prática do ilícito criminal causador do dano à administração tributária ou à administração da segurança social.”
Também no acórdão TRP de 20.04.2009, relatado pela agora Adjunta (Rel. Leonor Esteves), se distinguiu “a responsabilidade fundada no incumprimento da obrigação legal, que impendia sobre a entidade empregadora de descontar nas remunerações dos trabalhadores da sociedade arguida as respectivas contribuições obrigatórias para a segurança social e de as entregar à respectiva entidade, e a responsabilidade fundada na obrigação de indemnizar os danos causados pela prática do crime de abuso de confiança em relação à segurança social”.
Ali também se considerou tratar-se “de realidades diferentes, na medida em que os factos geradores da obrigação de indemnizar e da obrigação contributiva não são necessária e integralmente coincidentes, obedecendo a fins e regimes próprios. As causas de pedir em que se sustentam são distintas – a responsabilidade civil que pode ser feita valer no processo penal não emerge do incumprimento das obrigações contributivas, mas apenas do facto de a falta de entrega das mesmas constituir um facto ilícito –, podendo ou não haver coincidência, parcial ou total, entre os montantes envolvidos.”
Em igual sentido, aponta o ac. do STJ, de 11.12.2008, in www.dgsi.pt, segundo o qual “(…) fundando-se o pedido de indemnização na prática de crime, teria ele de ser deduzido por dependência da acção penal, como decorre do princípio da adesão estabelecido no art. 71.º do CPP, só o podendo ser em separado nos casos previstos na lei, como se acentuou no acórdão deste STJ de 06/01/2005, Proc. n.º 4450/04, da 5ª Secção, Sumários de Acórdãos do STJ, n.º 87, p. 108, de que o presente relator foi um dos adjuntos. Ora, não configura excepção a tal regra o facto de a legislação tributária permitir ao demandante obter o pagamento das quantias em dívida por outros meios, concretamente pela execução fiscal. E mesmo a existência de título executivo não obstaria a que o credor pudesse obter a condenação do devedor por meio do pedido cível, como se tem afirmado em diversa jurisprudência (…).
Entendimento este que, aliás, está em consonância com o sufragado pelo STJ em relação à dedução de pedido de indemnização civil em processo penal por crime de abuso de confiança contra a Segurança Social, que emana do AFJ 1/213, publicado no D.R. n.º 4, Série I de 2013-01-07.
Assim sendo, por se entender que não se verificam as invocadas exceções de caso julgado e de litispendência em relação ao pedido de indemnização civil deduzido nos autos.»
Como se vê, nenhuma nulidade por défice de fundamentação ou omissão de pronúncia sobre a questão em apreço pode ser assacada ao acórdão recorrido, sendo certo que aderimos à posição perfilhada no referido excerto, nenhum motivo havendo para dela nos distanciarmos.
A sobreposição fáctica entre a decisão condenatória civil nos autos apenas ocorre, de resto, relativamente à importância liquidada a título de IRS de 2014 (no valor de € 169.662,22), o mesmo não se verificando em relação ao IRC de 2014 (no valor de € 80.460,21), pois, como decorre do facto dado como provado em 122., não foi instaurada execução fiscal para a sua cobrança, o que resultou do facto de ter caducado o direito à liquidação, pelo que, nesta parte, nem sequer existe título executivo concorrente.
Importa, todavia, esclarecer que a ação executiva fiscal tem, não só diferentes fundamentos e finalidades, como pode ter diferentes obrigados dos da ação civil conexa com o processo penal fiscal. Por outro lado, cabe chamar a atenção para a possibilidade de suspensão do processo penal fiscal por força da mobilização do processo de impugnação judicial ou se tiver lugar oposição à execução – por qualquer dos executados –, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, em que se discuta situação tributária de cuja definição dependa a qualificação criminal dos factos imputados (art. 47.º, n.º 1, do RGIT, na redação da Lei n.º 53-A/2006, de 29-12), como parece ter ocorrido.
A decisão proferida em processo de impugnação judicial e a que tenha decidido da oposição de executado, nos termos do Código de Procedimento e de Processo Tributário, uma vez transitadas, constituem caso julgado para o processo penal tributário apenas relativamente às questões nelas decididas e nos precisos termos em que o foram – art. 48.º, do RGIT.
Sublinhe-se que não tendo, como no caso vertente, tido êxito tal providência de impugnação judicial, abrem-se, em idênticas situações, duas vias de ressarcimento do Estado: uma, por efeito da cobrança coerciva da prestação tributária (já liquidada) em dívida na execução – que pode abranger sujeitos contribuintes distintos do arguido-demandado em processo penal tributário – e outra, por efeito da condenação no pedido de indemnização civil conexo com o processo-crime.
Em suma, no que concerne aos ilícitos criminais de natureza tributária coexistem, em princípio, três espécies de responsabilidade: a tributária – envolvendo a totalidade da dívida tributária, juros e demais encargos legais, disciplinada pela LGT e pelo CPPT –, a penal tributária – regulada pelo RGIT e subsidiariamente, pelo Código Penal – e a civil, conexa com a anterior, a que se aplica o Código Civil e legislação complementar, por força do art. 129.º do CP (cfr., neste sentido, Albano Morais Pinto, «Aspectos do Pedido de Indemnização Civil no Crime de Fraude Fiscal», RMP, N.º 132.º, out.-dez., 2012, p. 174).
Encontra-se há muito estabelecido por este STJ o entendimento de que pelos danos causados pelos crimes tributários respondem os agentes dos crimes não nos termos da Lei Geral Tributária, mas nos termos da lei civil. Assim, o administrador da empresa que seja também agente do crime, não responderá subsidiariamente, mas solidariamente, como solidariamente respondem todos os demais agentes nos termos do que dispõe o art. 497.º do Código Civil. Pode, ainda, haver responsáveis civis demandados no processo penal que não sejam arguidos (Cfr., neste sentido, Acórdão de fixação de jurisprudência do STJ n.º 1/2013, de 15-11-2012, pub. DR n.º 4/2013, Série I, de 07-01-2013).
Como resulta do art. 3.º, al. c), do RGIT, quanto à responsabilidade civil, são aplicáveis subsidiariamente, as disposições do Código Civil e legislação complementar. Nestes casos de responsabilidade civil conexa com a criminal, a mesma tem a sua génese no crime, que é o seu facto constitutivo e a causa de pedir da pretensão ressarcitória.
A competência do tribunal criminal para conhecer do pedido cível conexo com a ação penal decorre da responsabilidade civil extracontratual do agente que cometa o facto ilícito e culposo. Os crimes tributários são julgados na jurisdição comum – concretamente nos juízos de competência criminal –, e não na jurisdição administrativa e fiscal.
Sendo distintos os sujeitos passivos numa e noutra demanda – pelo menos, os originários, podendo ocorrer reversão no quadro da execução tributária, que recaia sobre o responsável civil –, bem como a causa de pedir (a pretensão deduzida nas execuções fiscais e a pretensão formulada no processo penal tributário não procedem do mesmo facto jurídico - cf. art. 581.º, n.º 4, do CPC, a contr.), bem como o pedido – pois a indemnização aqui impetrada não se destina a liquidar uma obrigação tributária para com a Administração Fiscal –, nem se poderá colocar a questão de configuração da exceção dilatória da litispendência.
Enfim, como o pedido é o de indemnização e não o do pagamento relativo à obrigação do imposto, o processo onde seja formulado nada terá a ver com qualquer outro que exista ou venha a existir, destinado ao apuramento ou à execução da dívida tributária. Porém, a sua existência pode determinar que, em virtude da condenação pelo pedido de indemnização, tenha de efetuar-se a devida compensação, a fim de que, apesar da diversidade dos critérios de determinação dos respetivos montantes – os da lei tributária, no caso de apuramento dos tributos, e os da lei civil, no caso do pedido de indemnização no processo penal tributário – e títulos, não haja uma situação de enriquecimento ilegítimo por parte do Estado-Administração Fiscal (cfr., Ac. STJ de 06-01-2005, Proc. n.º 4450/04 – 5.ª Secção). Nada obsta, portanto, a que, com essa salvaguarda, apesar da existência de liquidação tributária, sobretudo com o efeito da preclusão externa ou de execução fiscal cujo montante coincida com o do objeto do pedido de indemnização civil, este possa ser formulado (neste mesmo sentido, Albano Morais Pinto, loc. cit., pp. 175-176).
Também o Ministério Público junto do tribunal de 1.ª Instância, na sua resposta ao recurso para o TRC, e o Ministério Público junto deste, pugnam no sentido da fundamentação e da decisão do acórdão recorrido, no que são acompanhados pelo Senhor Procurador-geral-adjunto em funções no STJ.
Não vemos, assim, decisivo fundamento para considerar procedente a única atendível fundamentação ínsita no recurso do arguido-demandado e nas respetivas conclusões, restrito à questão da ofensa de caso julgado.
Em suma, não se pode, por isso, acolher a pretensão do demandado-arguido AA, pelo que se impõe julgar improcedente o seu recurso.
III. Decisão
Por tudo quanto se expôs, acordam os juízes Conselheiros desta secção criminal do Supremo Tribunal de Justiça, em julgar improcedente o recurso do acórdão do TRC, em que o recorrente AA visa a sua absolvição do pedido de indemnização civil, por se considerar inexistir violação do caso julgado.
Custas pelo arguido-demandado em função do decaimento total.
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Lisboa, Supremo Tribunal de Justiça, 3 de abril de 2025
Texto elaborado e informaticamente editado, e integralmente revisto pelo Relator, sendo eletronicamente assinado pelo próprio e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos (art. 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)
Os juízes Conselheiros
Jorge dos Reis Bravo (Relator)
José Piedade (1.º adjunto)
Vasques Osório (2.º adjunto)