REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO PROVISÓRIA DO PROCESSO
CONTROLO JUDICIAL
DESOBEDIÊNCIA
CONDUÇÃO EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
CRIMES DA MESMA NATUREZA
Sumário


1. Nos processos especiais, o juiz de julgamento tem competência para conhecer da legalidade da decisão de revogação da suspensão provisória do processo decretada pelo Ministério .
2. Por força dos princípios constitucionais estruturantes da defesa efetiva dos direitos liberdades e garantias e do princípio da necessidade, impõe-se ao juiz do julgamento fazer prevalecer a substância sobre a forma e apreciar a eventual existência de patologias processuais suscetíveis de atingir as garantias de defesa e os direitos fundamentais do arguido.
3. O crime de desobediência - previsto nas disposições conjugadas dos arts. 152.º, n.º 1, al. a) e 153º, nºs 3 al. a) e 4, ambos do Código da Estrada, 69º e 348º, ambos do Código Penal – e o crime de condução de veículo em estado de embriaguez – previsto no art. 252º, nº 1 do mesmo diploma legal – são crimes da mesma natureza, pois ambos são ilícitos rodoviários e há entre si uma essência ontológica e uma estrutura axiológica comuns.

Texto Integral


Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães

I - Relatório:

- No Tribunal Judicial da Comarca de Braga, Juízo Local Criminal de Famalicão, Juiz ..., no processo n.º 646/21...., em que é arguido AA, acusado da prática de um crime de desobediência, p. e p. pelos art.s 348º, n.º 1, al. a), e 69.º, n.º 1, al c), ambos do Código Penal, por referência ao artigo 152.º, n.º 1, al. a) e n.º 3, do Código da Estrada, realizada a audiência de discussão e julgamento, veio a ser proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
“(…)
«II. Dispositivo
Por tudo o exposto, o Tribunal decide julgar verificada exceção inominada atípica, que obsta ao conhecimento do mérito da ação penal, por aplicação subsidiária do disposto no artigo 576.º, n.º 2, do CPC, e consequentemente, absolve o arguido AA da instância penal.
Sem custas.»

*
2. Inconformado com esta decisão, da mesma interpôs o Ministério Público o presente recurso, formulando no termo da motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“(…)
«CONCLUSÕES DO RECURSO:
AA.) - Objecto do recurso – enquadramento processual do caso
1. O objecto do presente recurso é a sentença proferida nestes autos a 25 de Janeiro de 2024, por via da qual foi decidida a absolvição do arguido em função do conhecimento duma questão prévia à apreciação da questão de fundo a tratar nos autos.
2. O Tribunal recorrido entendeu que o Ministério Público não podia, como fez, ter revogado a suspensão provisória do processo que nestes autos aplicara ao arguido, assim como não podia ter deduzido contra o mesmo a acusação pública constante dos autos pela prática de um crime um crime de desobediência pois, ao fazê-lo, violou os pressupostos do art. 282º, nº 4, do Código de Processo Penal.
3. Por dela discordarmos, pugnamos pela sua revogação e consequente prolacção de decisão substitutiva superior que imponha ao Tribunal de 1ª Instância o exame e apreciação de fundo da prova produzida em julgamento com a consequente formulação duma decisão sobre o mérito sobre a causa.
BB.) – Dos fundamentos da nossa discordância perante o teor e o sentido da decisão recorrida
4. BB.1 - Da questão relacionada com a falta de legitimidade para o Tribunal de julgamento conhecer e sindicar uma decisão de revogação da suspensão provisória do processo proferida pelo Ministério Público em inquérito: O Tribunal recorrido proferiu uma decisão sem legitimidade legal para o efeito.
5. Nem da disciplina legal resultante do instituto da suspensão provisória do processo – arts. 281º, 282º, 307º, nº 2, do Código de Processo Penal, nem do próprio art. 311º do Código de Processo Penal decorre qualquer tipo de possibilidade de o juiz da fase de julgamento poder, de alguma maneira, revogar uma decisão do Ministério Público que, por sua vez, determinara a revogação da aplicação duma S.P.P. e a consequente dedução da acusação pública com base nos factos que alimentaram essa suspensão.
6. Embora o Tribunal recorrido tenha invocado que a violação pelo Ministério Público do disposto no art. 282º, nº 4, alínea b), do Código de Processo Penal conduziu à verificação duma excepção dilatória inominada atípica que impediu o conhecimento do mérito da causa, o que é certo é que o Tribunal A Quo absolveu o arguido sem apreciar de fundo os factos da acusação pelo que, em termos práticos, revogou ou invalidou não só a acusação deduzida mas também o despacho do Ministério Público que a precedeu por via do qual foi revogada a S.P.P..
7. Foi portanto repristinada uma S.P.P. para depois ser extinta arquivando-se os autos quando este instituto processual fora já revogado pelo Ministério Público dentro do mesmo processo e quando fora já deduzida a competente acusação pública.
8. No caso dos autos NÃO houve fase de instrução pelo que em nenhum momento poderia aplicar-se o regime do art. 307º do Código de Processo Penal.
9. Logo, se a tese subjacente ao aqui decidido prevalecer estaremos, no fundo, a admitir que o juiz de julgamento pode livremente intervir na decisão sobre a suspensão provisória do processo tomada em inquérito, ainda para mais de forma tão decisiva e drástica como sucede num caso em que decide a revogação dum despacho de acusação proferido pelo Ministério Público após ter revogado a S.P.P..
10. Se o legislador tivesse pretendido que o juiz de julgamento pudesse de alguma maneira controlar uma decisão sobre a suspensão provisória do processo tomada pelo Ministério Público no inquérito, tê-lo ia seguramente previsto, o que claramente não acontece. Note-se, a este título, que a lei define clara e taxativamente os casos ou limites em que o juiz da fase de julgamento pode sindicar a acusação deduzida nos autos e estes estão perfeitamente balizados no art. 311º do Código de Processo Penal, onde não se encaixa a situação dos autos.
11. Face a este conjunto de razões, é nosso parecer que não colhe a tese do Tribunal recorrido que, ademais, teve de socorrer-se da aplicação subsidiária da lei processual civil com respaldo numa excepção dilatória para fundamentar o que, materialmente, se traduz num poder revogatório do Tribunal de julgamento face a uma decisão de acusação do Ministério Público.
12. Se aceitarmos este raciocínio estaremos a abrir caminho para concentrar todo o poder processual penal num só decisor e para o inerente perigo de arbitrariedade que daí dimana: a mera aparência e camuflagem da existência de um sistema acusatório formal no seio do qual se deveria distinguir claramente quem acusa e quem decide mas em que estas entidades acabam por perigosamente se fundir numa só ...
13. BB.2 - Da questão relacionada com a ausência de fundamento objectivo e concreto para sustentar qualquer invalidade jurídico processual da decisão do Ministério Público que revogou a S.P.P.: Na situação dos presentes autos, e a ter ocorrido o vício ou a violação da lei relacionada com a alegada errada interpretação e aplicação, pelo Ministério Público, do disposto no art. 282º, nº 4, alínea b), do Código de Processo Penal, quando decidiu revogar a S.P.P. e acusar o arguido, temos que esta suposta ilegalidade corresponderia, nos termos da lei, a uma mera irregularidade processual.
14. Por conseguinte, esta alegada violação do disposto no art. 282º, nº 4, alínea b), do Código de Processo Penal, a confirmar-se, teria de ser sempre tratada como uma mera irregularidade processual, o que é o mesmo que dizer que tal irregularidade processual teria de ter sido invocada pelo arguido no prazo de três dias após ter sido notificado da acusação ou, no limite, dentro do prazo para requerer a abertura de instrução ou a intervenção hierárquica, de acordo com os prazos previstos, respectivamente, nos arts. 287º e 278º do Código de Processo Penal.
15. Todavia, o arguido nunca o fez. Aliás, o arguido apenas invoca a pretensa invalidade do acto de revogação da S.P.P. e da subsequente dedução da acusação pública quando deduz a contestação já na fase de julgamento, o que significa que neste momento já há muito que o pretenso acto inválido estaria convalidado, atento o decurso do tempo e a ausência de oposição, conforme se extrai do regime legal estabelecido nos já mencionados arts. 118º, 121º e 123º, todos do Código de Processo Penal.
16. Como tal, não dispunha o Tribunal A Quo de qualquer fundamento para não examinar a prova produzida em julgamento e proferir uma sentença onde apreciasse o mérito da causa.
17. Na realidade, a revogação da suspensão e a acusação decididas pelo Ministério Público nestes autos, face ao tempo decorrido desde o momento em que tais decisões foram proferidas, já se tinham estabilizado definitivamente na ordem jurídica com força de caso julgado material não podendo, portanto, ser de modo algum alteradas na presente situação e impondo-se, assim, o cumprimento dos comandos legais nelas contidos.
18. BB.3 - Da questão relacionada com o erro de interpretação e avaliação do pressuposto previsto no art. 282º, nº 4, alínea b), do Código de Processo Penal, como factor de revogação da suspensão provisória do processo [que se traduz na verificação do cometimento de crime da mesma natureza durante o período da suspensão]: Também não podemos concordar com o Tribunal recorrido quando afirma que o crime de desobediência pelo qual o arguido foi acusado no âmbito dos presentes autos e o crime de condução de veículo em estado de embriaguez praticado pelo arguido durante o período da suspensão não são crimes da mesma natureza.
19. Não podemos de forma alguma esquecer que o crime de desobediência nestes autos imputado ao arguido não é um crime de desobediência comum pois traduz, na verdade, um crime de desobediência que está previsto e punido pelo art. 348º, nº 1, alínea a), e 69º, nº 1, alínea c), ambos do Código Penal, por referência ao art. 152º, nrs. 1, alínea a) e 3, do Código da Estrada.
20. Ou seja, estamos perante um crime de desobediência especial na medida em que está previsto em legislação rodoviária o que significa que é, também por isso, um crime de natureza rodoviária.
21. Este crime especial de desobediência diz respeito, precisamente, à situações em que um indivíduo é fiscalizado quando conduz um veículo na via-pública e recusa realizar o teste de pesquisa de álcool no sangue violando ordem proferida nessa sentido pela autoridade policial fiscalizadora que, por sua vez, tinha como finalidade aferir se aquele condutor estava a conduzir embriagado em ordem a acautelar e preservar a segurança rodoviária.
22. Ademais, este crime também é sempre punido com uma pena acessória de proibição de conduzir e os condutores que se recusam realizar o teste do álcool são proibidos por lei de retomarem a condução, conforme se extrai do disposto no nº 4 do art. 152º do Código da Estrada.
23. Ora, perante este denso conjunto de dados convergentes entre estes dois crimes, julgamos ser imperativo reconhecer que estas incriminações visam ambas proteger a segurança rodoviária, ainda que no tocante ao crime de desobediência haja igualmente a vontade legal de proteger a autonomia intencional do Estado e, por isso, estejamos neste caso perante um caso de uma incriminação com um bem jurídico misto - protecção da autonomia intencional do Estado e da segurança rodoviária – mas em que a protecção da segurança rodoviária assume, ainda assim, um papel decisivo, nuclear e mesmo caracterizador do tipo de ilícito
24. Nesta ordem de ideias julgamos ser indiscutível dever considerar que os dois crimes em apreço são crimes da mesma natureza, nomeadamente nos termos e para os efeitos previstos na aplicação do disposto no art. 282º, nº 4, alínea b), do Código de Processo Penal. Do mesmo modo, também julgamos ser indiscutível que a decisão de revogação da suspensão provisória do processo proferida em inquérito pelo Ministério Público foi inteiramente acertada não podendo, portanto, ter sido censurada como foi pelo Tribunal de julgamento.
CC.) Das normas jurídicas violadas, por errada interpretação, pelo Tribunal recorrido e da correcta interpretação e aplicação das mesmas
25. Aqui chegados, resta recuperar o que já foi dito nos pontos A.) a C.) da motivação de recurso que antecede [a qual aqui damos por integralmente reproduzidos para os devidos efeitos legais] sublinhando-se, novamente, que a sentença recorrida proferida pelo Tribunal A Quo está ferida de erro insanável à luz dos aspectos supra salientados porquanto: i) - considerou que o Ministério Público não podia ter decidido pela revogação da suspensão e dedução de acusação contra o arguido e, bem assim, que por força de tal circunstância se verificou uma excepção dilatória inominada atípica impeditiva do conhecimento do mérito da causa que conduziu à absolvição do arguido – este entendimento consubstanciou uma errada interpretação e aplicação, bem como a consequente violação, do disposto nos arts. 281º, 282º, nº 4, alínea b), e 311º, todos do Código de Processo Penal, e do disposto no art. 4º do mesmo diploma legal e 576º, nº 2, do Código de Processo Civil; ii) – considerou que podia proferir uma decisão que, na prática, significou o exercício dum poder de controlo e sindicância que lhe estava vedado pela lei processual penal e que consistiu numa dupla revogação do que já fora de forma imodificável decidido pelo Ministério Público em inquérito: a revogação da suspensão e ulterior decisão de acusação - este entendimento consubstanciou uma errada interpretação e aplicação, bem como a consequente violação, do disposto nos arts.281º, 282º, nº 4, alínea b), e 311º, todos do Código de Processo Penal, bem como do disposto no art. 4º do mesmo diploma legal e 576º, nº 2, do Código de Processo Civil; iii) - considerou que podia modificar duas decisões que já se tinham estabilizado definitivamente na ordem jurídica com força de caso julgado e que não podiam, portanto, ser alteradas – este entendimento consubstanciou uma errada interpretação e aplicação, bem como a consequente violação, do disposto nos normativos referidos em i) e ii) conjuntamente com o disposto nos arts. 118º, 121º e 123º, todos do Código de Processo Penal; iiii) - considerou que os crimes de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelos arts. 292º, nº 1 e 69º, nº 1, alínea a), ambos do Código Penal, e de desobediência, previsto e punido pelos arts. 348º, nº 1, alínea a), e 69º, nº 1, alínea c), ambos do Código Penal, por referência ao art. 152º, nrs. 1, alínea a) e 3, do Código da Estrada não são crimes da mesma natureza - este entendimento consubstanciou uma errada interpretação e aplicação, bem como a consequente violação, do disposto nestas mesmas normas incriminadoras em conjugação com o disposto no art. 284º, nº 2, alínea b), do Código de Processo Penal.
26. Na realidade, a correcta interpretação e aplicação de todas estas normas impunha, inelutavelmente, o afastamento no caso vertente do regime legal previsto no art. 576º, nº 2, do Código de Processo Civil bem como as seguintes conclusões: a) – que quando a suspensão provisória do processo é aplicada em virtude da indiciação suficiente da prática de um crime de desobediência previsto e punido pelos arts. 348º, nº 1, alínea a), e 69º, nº 1, alínea c), ambos do Código Penal, por referência ao art. 152º, nrs. 1, alínea a) e 3, do Código da Estradado, o cometimento pelo arguido dum crime de condução de veículo em estado de embriaguez previsto e punido pelo art. 292º, nº 1 e 69º, nº 1, alínea a), do Código Penal constitui crime da mesma natureza para efeitos de justificação bastante da revogação da suspensão; b) – que, perante a revogação da suspensão e consequente dedução da acusação pública que tiveram lugar na fase de inquérito por decisão do Ministério Público, e não havendo, como não houve, abertura de instrução ou suscitação da intervenção hierárquica, nem tão pouco nenhuma arguição tempestiva de qualquer nulidade relativa ou irregularidade processual, aquelas decisões, ainda que estivessem feridas de algum destes vícios, estabilizaram-se no ordenamento jurídico como tal por força do efeito do caso julgado material pelo que os seus comandos tinham obrigatoriamente de ser cumpridos;
c) - que, perante a revogação da suspensão e consequente dedução da acusação pública que tiveram lugar na fase de inquérito por decisão do Ministério Público, e não havendo, como não houve, qualquer fundamento para a rejeição da acusação nos termos do disposto no art. 311º do Código de Processo Penal, o Tribunal de julgamento estava obrigado a, após ter realizado o julgamento, ter procedido ao exame e apreciação de fundo da prova produzida em julgamento com a consequente e correspondente fixação da matéria de facto provada e não provada e com a ulterior subsunção dos factos ao direito extraindo daí, depois, as conclusões jurídico-penais que desses factos decorressem.
DD.) - Do conhecimento por parte do Venerando Tribunal da Relação das pretensões contidas no presente recurso
27. Dos autos constam todos os elementos necessários ao proferimento de uma ajustada decisão.
28. Por conseguinte, com a interposição do presente recurso requer-se que o Venerando Tribunal da Relação determine o seguinte: i) - a revogação da sentença proferida pelo Tribunal A Quo nestes autos no dia 25 de Janeiro de 2024 por via da qual absolveu o arguido e foi declarada a extinção do procedimento criminal; ii) - a sua substituição por outra decisão que reconheça a validade e eficácia das decisões proferidas pelo Ministério Público em sede de inquérito relacionadas com a revogação da S.P.P. aplicada e com a consequente dedução da acusação pública contra o arguido e, bem assim, que imponha ao Tribunal de 1ª Instância a realização do exame e apreciação de fundo da prova produzida em julgamento com a consequente e correspondente obrigação de fixar a matéria de facto provada e não provada e de efectuar a ulterior subsunção dos factos ao direito extraindo nessa sede as conclusões jurídico-penais que desses factos decorram.
Assim, se fará inteira JUSTIÇA.»
*
3. Notificado do requerimento de interposição de recurso o arguido respondeu, pugnando pela improcedência do mesmo e confirmação da decisão recorrida.
*
4. Neste Tribunal da Relação, após cumprimento do disposto no artigo 416.º do Código de Processo Penal, o Ex.mo Senhor Procurador Geral Adjunto, emitiu parecer no sentido de (transcrição):
“(…)
«Preocupados que estamos com a concisão, devemos asseverar relativamente ao recurso interposto, que perseguimos o seu mérito pelo que, revistando-o, aqui e agora o acompanhamos.
Seria estultícia estar a repetir o que então nele foi já exposto e argumentado.
Todavia, e a jeito de complemento, saliente-se o crucial argumento que levou à absolvição do arguido: o arguido cumpriu as injunções financeiras impostas no despacho que decretou a suspensão provisória do processo, e a sua condenação criminal em Espanha por haver conduzido em estado de embriaguez não constitui um crime da mesma natureza quando confrontado com o que agora lhe é imputado, um crime de desobediência - artigo 348.º, n.º 1 do CPenal.
Respeitosamente, não se persegue o entendimento da diversa natureza dos crimes em presença e que é seguida na decisão recorrida.
Mutatis mutandis, estamos com o que ficou a constar do acórdão do TRP, de 31/01/2024, proc. 474/22.9GDVFR-A.P1, com o relator desembargador Jorge Langweg quando assenta que
“I - O termo “mesma natureza” utilizado no artigo 13.º, nº 1, da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio, como é evidente – e pacífico - não diz respeito à natureza pública, semipública ou particular dos crimes, mas à sua essência ontológica e estrutura axiológica. II - Tendo um arguido sido condenado em pena de multa e numa pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo art. 348.º, n.º1, al. a), do CP, e pelo art. 152.º, n.º3, do Código da Estrada e constando no seu certificado de registo criminal uma condenação pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez previsto e punido pelo artigo 292º nº1, do Código Penal, não há qualquer dúvida em reconhecer que os crimes têm a mesma natureza: são crimes rodoviários. III - Essa identidade da natureza dos crimes justifica, ainda, que se conclua existir algum perigo de prática de novos crimes rodoviários por parte do arguido, afastando a possibilidade de não transcrição da nova condenação dos certificados de registo criminal a que se referem os art. 10.º n.º5 e 6 da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio, tendo em conta o estatuído no artigo 13.º, nº 1, da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio.”.
Ou seja, e ao contrário do que assevera a decisão recorrida, em causa estão crimes da mesma natureza, afinal ambos são crime rodoviários, tanto mais que a desobediência imputada ao arguido não decorre tão só do tipo legal do art.º 348, n.º1, al. a) do CPenal, mas sim, e em conjugação, do tipo previsto no art.º 152, n.º3 do Código da Estrada.
O mesmo é dizer que entre ambos os crimes há uma comum estrutura axiológico.
E os factos dados como provados não apontam para uma qualquer causa de exclusão da ilicitude e da culpa.
3.2
Assim e em conclusão:
O recurso do Ministério Público (MºPº) deverá ser julgado procedente e por isso revogada a sua absolvição, porquanto o arguido tornou-se autor do crime que lhe foi imputado e pelo qual foi julgado, estando preenchidos todos os seus elementos típicos, inexistindo qualquer causa que exclua a sua ilicitude ou a culpa, pois que aquele não agiu no exercício de um qualquer direito, como previsto na al. b) n.º 2 do art.º 31 do CPenal, sendo extemporâneo sindicar a legalidade do despacho de MºPº que revogara a decretada suspensão provisória do processo até porque, efectivamente, aquele, na pendência daquela praticou um crime da mesma natureza, um crime rodoviário.»
*
5- Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o arguido apresentou resposta ao parecer, pugnando pela manutenção da decisão recorrida .
*
6- Cumpre apreciar e decidir.
*
II - Fundamentação:

- Âmbito do recurso e questões a decidir:
O âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, face ao disposto no artigo 412.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, que estabelece que “a motivação enuncia especificadamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido”; são, pois, apenas as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas respetivas conclusões que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso (identificação de vícios da decisão recorrida, previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, pela simples leitura do texto da decisão, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum, e verificação de nulidades que não devam considerar-se sanadas, nos termos dos artigos 379.º, n.º 2, e 410.º, nº 3, do mesmo diploma legal).

Assim, atenta a conformação das conclusões formuladas, importa conhecer das seguintes questões:
- Legitimidade do juiz de julgamento para conhecer e sindicar uma decisão de revogação da suspensão provisória do processo proferida pelo Ministério Público em inquérito;
- Nulidade, ou irregularidade, da decisão do Ministério Público;
- Identidade da natureza dos crimes praticados pelo arguido;
- Violação das normas contidas nos artigos 118º, 121º, 123º, 281º, 282º, nº 4, alínea b), e 311º, todos do Código de Processo Penal.
*
A sentença recorrida:

É o seguinte o teor da decisão impugnada:
«“(…)
« a) Factos Provados
Da acusação pública,
1. No dia ../../2021, pelas 2h25m, o arguido conduzia o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula ..-NJ-.. na Rua ..., em ..., quando foi mandado parar por agentes da PSP para fiscalização de trânsito.
2. Na sequência, os agentes da PSP, devidamente uniformizados, abordaram o arguido e solicitaram-lhe que o mesmo realizasse teste de despistagem de álcool de exame qualitativo, tendo o mesmo acedido, tendo registado uma taxa de álcool de 1,43g/l.
3. De seguida, os referidos agentes solicitaram ao arguido para o mesmo ser submetido ao teste de álcool através de ar expirado, foi, ainda, sido solicitado ao mesmo para que acompanhasse os referidos agentes à Esquadra ..., tendo este acedido.
4. Já no interior da referida Esquadra, o agente da PSP ordenou ao arguido para que efetuasse o exame de pesquisa de álcool no ar expirado.
5. O arguido, por sua vez, recusou submeter-se à realização do mencionado exame, persistindo nessa sua recusa, apesar de advertido pelo referido agente de que, caso não o efetuasse, incorria na prática de um crime de desobediência.
6. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de não se submeter à realização do exame de pesquisa de álcool no ar expirado, sabendo que o fazia em relação a uma ordem legítima emanada de um agente de autoridade em exercício de funções.
7. Agiu, por fim, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Da audiência de discussão e julgamento:
8. O arguido é gerente de uma empresa de engenharia e estruturas metálicas, da qual é sócio.
9. Aufere vencimento mensal não inferior a 863,00 € mensais.
10. Vive com a mulher, empresária na área da gestão de condomínios, e 3 filhas, com 9, 6 e 3 anos de idade.
11. Habita em casa própria.
12. Tem um apartamento no ..., que se encontra arrendado e lhe confere um rendimento mensal de 800,00 €.

Dos autos:
13. Do certificado do registo criminal do arguido nada consta averbado.
14. O arguido tem registados em seu nome na CRA um veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-VQ-.., de marca ...; e um motociclo de matrícula ..-JG-.., de marca ....

Mais resulta dos autos que:
15. Por despacho de 11/11/2021, o Ministério Público determinou a suspensão provisória do inquérito, por um período de 6 meses mediante a imposição ao arguido das seguintes injunções cumulativas:
a) Pagamento do valor de 400,00 € ao Estado, em 4 prestações iguais e sucessivas, no valor unitário de 100,00 €, mediante a emissão de 4 DUC´s, vencendo-se a primeira, 10 dias após a notificação do despacho de suspensão provisória do processo e as restantes nos meses subsequentes;
b) Entrega da carta de condução nos serviços do Ministério Público ou na força policial da área da residência, informando de tal facto os SMP, no prazo de 10 dias, após ser notificado para tal, ficando proibido de conduzir veículos motorizados na via pública pelo período de 3 meses e 15 dias.
16. O despacho do Ministério Público mereceu a concordância do Juiz de Instrução Criminal, que a formalizou por despacho de 16/11/2021.
17. Em 18/11/2021 foi determinada a suspensão provisória do processo, nos termos referidos em 15 e ordenada a notificação do arguido.
18. O arguido foi notificado da decisão referida em 17, por ofício postal depositado em recetáculo postal domiciliário no dia 29/11/2021.
19. A suspensão provisória do processo teve início em 06/12/2021.
20. Em 09/12/2021 o arguido entregou a sua carta de condução na esquadra da PSP ....
21. Em 10/12/2021 o arguido procedeu ao pagamento da quantia de 100,00 €, por DUC.
22. Em 10/01/2022 o arguido procedeu ao pagamento da quantia de 100,00 €, por DUC.
23. Em 04/02/2022 o arguido procedeu ao pagamento da quantia de 100,00 €, por DUC.
24. Em 03/03/2022 o arguido procedeu ao pagamento da quantia de 100,00 €, por DUC.
25. A carta de condução foi devolvida ao arguido em 25/03/2022.
26. O arguido foi condenado por Tribunal de Espanha, pela autoria de um crime contra a segurança rodoviária, nos termos do n.º 2, alínea 2, do artigo 379.º do Código Penal, em relação ao n.º 1 do mesmo artigo, na pena de 4 meses de multa com uma taxa diária de 6 euros, com a responsabilidade prevista no artigo 53.º do Código Penal em caso de não pagamento e privação do direito de conduzir veículos a motor e ciclomotores durante 8 meses, aplicada por decisão transitada em julgado em 20/04/2022, por factos praticados em 14/04/2022.
27. Da sentença referida em 26 – proferida no processo sumário 59/2022 do Tribunal da 1.ª Instância e Instrução n.º 2 de ... – consta que o arguido foi condenado por ter resultado provado que, por volta das 08h00 do dia 14/04/2022, conduzia o veículo ..., modelo ..., matrícula ..-RB-.., na estrada N-532 (...), no município ..., sob a influência de uma intoxicação alcoólica contraída anteriormente, que o impedia de conduzir nas devidas condições de segurança, devido à diminuição dos seus reflexos.  Por intervenção das autoridades, o arguido foi submetido a um controle de alcoolemia ao quilómetro 14 da referida estrada, com um etilómetro de precisão, devidamente homologado, resultando em 0,83 e 0,79 miligramas de álcool por litro de ar expirado, respetivamente. Mais apresentava sintomas de influência do álcool na condução, tais como sonolência e cansaço, bem como halitose alcoólica e oscilações de verticalidade. 
28. O arguido pagou a pena de multa referida em 26, em 20/04/2022, e cumpriu a proibição de conduzir pelo tempo determinado, com início em 20/04/2022 e termo em 15/12/2022.

Das condições pessoais do arguido:
29. AA descende de um casal de condição socioeconómica e cultural média, sendo o único filho do casal.
30. O progenitor desenvolveu a atividade de responsável de vendas na empresa de EMP01... e a progenitora trabalhava como secretária na empresa das EMP02....
31. A dinâmica familiar foi pautada por uma integração positiva, com harmonia e pelos padrões educativos convencionais, veiculando valores pro-sociais, dominantes no seu meio socio- cultural.
32. O arguido iniciou o seu percurso escolar em idade própria, evidenciando uma trajetória escolar bem-sucedida, tendo ingressado no ensino superior, concluindo duas licenciaturas.
33. Com cerca de 21/22 anos de idade, passou a beneficiar do estatuto de trabalhador estudante, pelo facto de se integrar profissionalmente como informático na empresa “EMP03...”, onde se manteve a trabalhar até aos 32 anos de idade.
34. Aos 28 anos de idade AA casou com BB, passando em casa própria, apartamento de tipologia ..., dotado de razoáveis condições habitacionais inserido na cidade ....
35. Ao fim de três anos, o casal emigrou para ..., ..., onde trabalharam e viveram cerca de anos.
36. O arguido trabalhava para a empresa “EMP03...” e o cônjuge trabalhava na empresa EMP04....
37. O casal regressou a Portugal, pelo facto do cônjuge estar grávida da sua primeira filha.
38. Em Portugal passaram a residir em casa própria, adquirida com recurso a crédito bancário, que lhe oferece condições habitacionais e inserida na localidade de ....
39. O arguido criou a sua empresa de construção arquitetura, consultoria e engenharia, designada “EMP05...”, exercendo o cargo de Diretor-Geral.
40. O cônjuge, por sua vez, criou uma empresa de gestão de condomínios.
41. À data dos factos o arguido residia, como atualmente, com o cônjuge e as três filhas menores de idade, em meio ao qual não se associam problemáticas sociais relevantes.
42. Como despesas fixas, apresenta as inerentes aos consumos de água, luz, gás no valor mensal de cerca 250€, empréstimo destinado à habitação, no valor mensal de cerca de 500€, valores percecionados como adequados, para assegurar os compromissos assumidos pelo agregado.
43. A dinâmica familiar, é assinalada pela estabilidade e traduzida numa relação conjugal avaliada pelo arguido como gratificante.
44. O seu quotidiano é ocupado maioritariamente com a gestão da sua empresa, preenchendo o seu tempo livre com a família e amigos e ainda com a prática desportiva de futebol.
45. No meio social de residência, AA é referenciado como pessoa educada, com grande capacidade de trabalho e que evidência respeito pelas pessoas, beneficiando localmente de uma imagem positiva.

b) Factos não Provados
Inexistem.

b) Fundamentação da convicção do Tribunal
A convicção do Tribunal relativamente à matéria de facto resultou da avaliação englobante do contexto probatório dos autos, designadamente, os documentos que deles constam e prova testemunhal e por declarações do arguido, produzida em sede de audiência de discussão e julgamento, enriquecida pelo que foi dado ao Tribunal ouvir e ver, resultado da oralidade e imediação de que beneficiou.

No que à prova documental concerne, atendeu-se:
- Ao teor do auto de notícia de fls. 4 e seguintes, cujo teor foi confirmado em audiência pelo agente autuante;
- Ao teor do cartão de cidadão de fls. 26, quanto à idade do arguido;
- Ao teor do talão bancário de fls. 117, quanto ao vertido em 28;
- Ao teor das informações prestadas pelo ISS, IP a fls. 158 e print da base de dados respetiva de fls. 170, quanto ao vertido em 9;
- Ao teor dos prints da CRA de fls. 164-166, quanto ao vertido em 14;
- Ao teor do CRC do arguido de fls. 168 verso, quanto ao vertido em 13;
- Ao teor do relatório social de fls. 171 e seguintes, quanto ao vertido em 29 a 45.

No que tange à prova pessoal, o arguido AA não prestou declarações quanto aos factos imputados, limitando-se a retratar as suas condições pessoais e económicas, em moldes que se nos afiguraram verosímeis, não resultando infirmadas pelos demais meios de prova e com respaldo no relatório social elaborado pela DGRSP.

Depôs como testemunha, CC, agente da PSP, autor do auto de notícia de fls. 4 e seguintes, cujo teor confirmou. Relatou, de forma isenta e fluída, a abordagem do arguido e o contexto de fiscalização aleatória que a determinou, aludindo à suspeita de intoxicação do arguido por efeito do álcool, mercê do cheiro que exalava. Esclareceu que face à taxa positiva devolvida pelo exame qualitativo, o arguido acompanhou-o à esquadra, com vista à realização do teste quantitativo de pesquisa de álcool no sangue, pelo método de ar expirado. Naquele local, o arguido recusou a realização do teste, sem apresentar qualquer justificação ou incapacidade. Foi advertido expressamente para as consequências de tal recusa, em concreto que incorria em responsabilidade criminal por desobediência, facto que não demoveu o arguido.
Foi, ainda, ouvido DD, amigo do arguido e funcionário da empresa por ele gerida. Declarou apenas guardar memória de o arguido ter estado impedido de conduzir, em outubro de 2021, não se recordando o exato período de tempo em que ficou privado de exercer a condução.
No sobredito cotexto probatório, não teve o Tribunal quaisquer dúvidas em valorar positivamente o depoimento do agente da autoridade, reforçado pelo teor do auto de notícia por ele lavrado. Tal depoimento representou um relato direto, objetivo e imparcial dos acontecimentos, posto que desprovido de qualquer interesse pessoal no desfecho do processo.
Assim, a prova dos factos vertidos em 1 a 5 emanou do depoimento do agente autuante, vindo de aludir, conjugadamente com o teor do auto de notícia de fls. 4 e seguintes.
Quanto aos elementos subjetivos referidos em 6 a 7, enquanto factos psicológicos, indemonstráveis naturalisticamente a menos que confessados, a prova resulta do recurso às regras da experiência comum e da normalidade da vida, em face da atuação desenvolvida pelo arguido e das circunstâncias em que agiu, reveladas nos demais factos objetivos que se deram como provados. O conhecimento da tipicidade da conduta empreendida, retirou-se do depoimento do agente da PSP, do qual emanou a expressa advertência efetuada para a responsabilidade penal em que incorria, facto, aliás, do conhecimento generalizado de qualquer condutor, posto que é matéria que integra as normas do Código da Estrada, cujo cumprimento onera qualquer habilitado à condução.
O vertido em 8 a 12 retirou-se das declarações, a propósito, prestadas pelo arguido, com reforço no relatório social elaborado pela DGRSP.
O vertido em 13 emana do CRC de fls. 168 verso.
O vertido em 14 decorre do print da CRA.
O vertido em 15 a 28 decorre do compulso dos autos (fls. 28 e seguintes, 32, 34, 39, 51, 52, 55, 70, 75, 80, 84, 103, 117, 121, 122 e seguintes e 149 e seguintes).
O vertido em 29 a 45 emana do relatório social elaborado pela DGRSP, sopesadas que foram as respetivas fontes.

III. Fundamentação de Direito

Vem imputada ao arguido a prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, al. a), e 69.º, n.º 1, al c), ambos do Código Penal, por referência ao artigo 152.º, n.º 1, al. a) e n.º 3, do Código da Estrada.
Nos termos da norma incriminadora comete o crime de desobediência “quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente”, designadamente se uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples.
Neste tipo de crime o bem jurídico que se visa proteger é a autonomia intencional do Estado ou, por outras palavras, o interesse administrativo do Estado em garantir a obediência aos mandados legítimos da autoridade em matéria de serviço e ordem pública.
São elementos constitutivos do crime de desobediência, a ordem formal e substancialmente legal ou legítima, que esta dimane de autoridade ou funcionário competente, haja falta à sua obediência e intenção de desobedecer, e ainda, que exista disposição legal que comine, no caso a punição da desobediência simples ou na ausência de tal disposição legal, a autoridade fazer a correspondente cominação.
Uma ordem formalmente legal ou legítima é aquela que é emitida com as formalidades que a lei estipula para a sua emissão; se não houver na lei forma pautada para a fazer, usa-se qualquer uma admitida em direito.
A noção de funcionário é-nos dada pelo artigo 386º do Código Penal e a noção de autoridade supõe um poder autónomo de decidir e de ordenar.
No caso, a lei geral e abstrata em causa, anterior à prática do facto, é o artigo 152.º, n.º 3, do Código da Estrada (conjugado com o disposto no seu n.º 1, alínea a) e 153.º, n.º 8, do mesmo Código), nos termos da qual os condutores estão obrigados a submeter-se às provas estabelecidas para a deteção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas e a recusa de sujeição às mesmas é punida por crime de desobediência.
A nível subjetivo, exige-se o dolo em qualquer uma das suas modalidades: direto, necessário ou eventual.
Constata-se que: o arguido exercia a condução; foi fiscalizado por agente da PSP, devidamente uniformizado; foi-lhe solicitada a sujeição a exame quantitativo de pesquisa de álcool no sangue; recusou-se a efetuar tal exame; foi advertido de que incorria num crime de desobediência; e consciente da responsabilidade penal em que incorria, manteve, deliberadamente, a sua recusa.
Por conseguinte, a demonstrada conduta do arguido integra os elementos objetivos e subjetivos típicos do crime de desobediência em presença.
Aqui chegados, sustenta o arguido a nulidade da acusação contra ele proferida porquanto cumpriu as injunções que lhe foram estipuladas em sede da suspensão provisória do processo prévia e não praticou, no período da suspensão, crime da mesma natureza.
Importa começar por compreender o regime legal da suspensão provisória do processo, à luz do disposto nos artigos 281.º e 282.º do Código de Processo Penal.
Trata-se de «(…) uma solução processual, imbuída do espírito dos sistemas de oportunidade, para crimes de reduzida gravidade, em que o Ministério Público, com o acordo do arguido e do assistente e com a homologação do juiz, suspende provisoriamente a tramitação do processo penal e determina a sujeição do arguido a regras de comportamento ou injunções durante um determinado período de tempo. Se tais injunções forem cumpridas pelo arguido, o processo é arquivado; se não forem cumpridas, o Ministério Público revoga a suspensão, isto é, deduz acusação e o processo penal prossegue os seus ulteriores termos.» (cfr. Cláudia Isabel Ferraz Dias Matias, “A suspensão provisória do processo: o regime legal presente e perspectivado“, Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em 2014, pág. 5, que pode ser acedido no seguinte endereço da rede digital global: https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/28570/1/A%20suspensao%20provisoria%20do%20processo.pdf5]
Contrariamente ao que sucede com a decisão de suspensão provisória do processo, a decisão de revogação dessa suspensão compete em inquérito, exclusivamente, ao Ministério Público – sendo também pacífico o entendimento de que a revogação da suspensão do processo não decorre automaticamente de qualquer incumprimento, muito menos quando esse incumprimento é parcial –, envolvendo antes um juízo de culpa ou vontade de não cumprir por parte do arguido.
a) Se o arguido cumpriu as injunções e as regras de conduta, o Ministério Público arquiva o processo, não podendo o mesmo ser reaberto (artigo 282.º, n.º 3 do CPP). “A ação penal extingue-se, formando-se caso julgado material e o objeto do processo não pode ser reapreciado por força do princípio ne bis in idem” [ibidem, pág.25];
b) Se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta que lhe foram impostas ou cometer crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado, o processo penal prossegue.
Assim, a opção pela dedução de acusação cabe, exclusivamente, ao Ministério Público.
Isso não significa que que tal opção do Ministério Público não seja judicialmente sindicável.
É certo que em processo comum, não compete ao juiz de julgamento, quando recebe a acusação, avaliar as razões da opção do Ministério Público, imperando, nesta vertente, o princípio do acusatório. Não pode o juiz rejeitar a acusação com o fundamento de que não houve incumprimento do arguido, pois este fundamento não vem previsto no art. 311.º, n.ºs 2, al. a) e 3, do CPP, como causa de rejeição.
Inexistindo nulidades insanáveis, só restará ao juiz receber a acusação e designar data para julgamento.
É certo, também, que o arguido poderia (e deveria) ter reagido, requerendo a abertura da instrução e submetendo ao Juiz de Instrução Criminal a apreciação da decisão de acusar que o Ministério Público adotou.
Porém, tendo o arguido invocado, em sede de contestação, a nulidade da acusação, não pode esta deixar de ser objeto de apreciação por imperativo legal.
Pese embora ultrapassada a fase da instrução, entendemos, aderindo ao entendimento perfilhado nos Acórdãos da Relação de Coimbra de 13/09/2017 (proc. 81/14.0GTCBR.C1, acessível em www.dgsi.pt) e Acórdão da Relação de Lisboa de 16/10/2019 (proc. n° 506/15.7GBMFR.L1, acessível em www.pgdlisboa.pt), em mais recentemente no Acórdão da Relação de Coimbra de 11/10/2023 (proc. 403/21.7PBCLD.C1, in www.dgsi.pt) de que não está vedado ao Juiz do julgamento a apreciação de tal matéria, impondo-se fazer prevalecer a substância sobre a forma, revelando-se-nos inequívoco, até por apelo aos princípios constitucionais estruturantes da defesa efetiva dos direitos liberdades e garantias e do princípio da necessidade, expressos no artigo 18.ºda CRP, que ao juiz de julgamento compete apreciar da verificação de patologias processuais suscetíveis de atingir as garantias de defesa e os direitos fundamentais.
Aqui chegados, importa notar que, ao contrário do sustentado pelo Ministério Público, não cremos que, no momento em que foi proferida a acusação, se pudesse concluir pela verificação dos pressupostos de que a lei processual faz depender a revogação da suspensão provisória do processo.

Senão vejamos:

Dispõe o artigo 282.º, n.º 4, do Código de Processo Penal que “O processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas:
a) Se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta; ou
b) Se, durante o prazo de suspensão do processo, o arguido cometer crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado.”

No caso, da factualidade apurada, constata-se que o arguido cumpriu, na íntegra, as injunções que lhe foram impostas, pagando a quantia de 400,00 €, no tempo devido, e cumprindo a abstenção de conduzir pelo período determinado.
Entendeu, porém, o Ministério Público, que a condenação sofrida pelo arguido em Espanha integrou a hipótese legal vertida na alínea b), do n.º 4 do artigo 282.º do Código de Processo Penal.
Face ao teor da sentença junta aos autos, não restam dúvidas que o arguido cometeu um crime no período da suspensão provisória do processo, iniciado em 06/12/2021, posto que os factos que determinaram a sua condenação pelo Tribunal de Verin ocorreram em 14/04/2022.
Ao contrário do sustentado pela defesa do arguido os factos provados na referida sentença, se praticados em território português, integrariam, da mesma forma, a prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º,  n.º 1, do Código Penal.
Com efeito, o que sucede é que a Lei Espanhola, no artigo 379.º, n.º 2, do Código Penal, tipifica como crime contra a segurança rodoviária a conduta de quem conduzir um veículo a motor ou ciclomotor sob a influência de drogas tóxicas, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou de bebidas alcoólicas, acusando uma taxa de álcool no ar expirado superior a 0,60 miligramas por litro ou uma taxa de álcool no sangue superior a 1,2 gramas por litro.
Ou seja, enquanto o legislador elegeu em exclusivo como critério quantitativo a taxa de álcool no sangue, o legislador espanhol estabeleceu dois critérios alternativos a chamada TAE (taxa de álcool no ar expirado) e a TAS (taxa de álcool no sangue). Enquanto a TAE fornece o número indicador dos miligramas de álcool no ar expirado, a TAS fornece o número indicador de gramas de álcool presentes em cada litro de sangue (g/l).
Os alcoolímetros utilizados nas fiscalizações rodoviárias medem a concentração mássica de álcool por unidade de volume na análise do ar alveolar expirado. Tais aparelhos evidenciam os resultados em miligrama por litro - mg/l, de teor de álcool no ar expirado – TAE e uma indicação suplementar em grama por litro - g/l, de teor de álcool no sangue - TAS, com menção do respetivo fator de conversão (cfr. a este propósito a Portaria n.º 1556/2007 de 10 de dezembro).
Ora, em Portugal, a conversão dos valores do teor de álcool no ar expirado (TAE) em teor de álcool no sangue (TAS) é baseada no princípio de que 1 mg de álcool por litro de ar expirado é equivalente a 2,3 g de álcool por litro de sangue: 1 mg/L (TAE) = 2,3 g/ L (TAS) (cfr. art. 4.º da Lei n.º 65/98, de 02 de Setembro, que alterou o Código Penal e artigo 81, n.º 4, do Código da Estrada).
Assim, ainda que valorando o menor dos valores da moldura dos resultados registados pelo etilómetro – de 0,79 miligramas de álcool por litro de ar expirado- constata-se corresponder tal valor a uma taxa de álcool no sangue de 1,817.
Donde se conclui que a conduta do arguido integraria, da mesma forma, em Portugal a prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, e não uma mera contraordenação.
Porém, a discussão persiste no que tange à natureza do crime.
O crime de desobediência integra, no nosso Código Penal, o elenco dos crimes contra o Estado. Inclui-se na categoria dos denominados «crimes de violação de dever» [ cfr. Teresa Beleza, Direito Penal, 2.º vol. AAFDL, reimp. 2010, p. 110], protege a função de autoridade pública, constitui um caso que a doutrina costuma indicar de lei penal aberta ou de lei penal em branco [cfr. Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo 3, Coimbra Editora, 2001, anotação ao artigo 348.º, e J.L. Lopes da Mota, «Crimes contra a autoridade pública», in Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal, vol. II, Centro de Estudos Judiciários, 1998, p. 433ss.]. Dado o carácter subsidiário do tipo, a qualificação de um comportamento como crime de desobediência pode resultar da subsunção a uma disposição legal que concretamente comine a sua punição como desobediência, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 348.º; ou à alínea b) do n.º 1 do mesmo preceito, na ausência disposição legal, que requer a cominação de desobediência pelo agente de autoridade.
O caso da desobediência prevista no artigo 152.º, n.º 3, do Código da Estrada enquadra-se, assim, na previsão do n.º 1, al. a) do artigo 348.º do Código Penal. A conduta proibida reconduz-se, em substância, à violação do dever de submissão às provas estabelecidas para a deteção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas.
O bem jurídico protegido pelo crime de desobediência, como vimos, e como vem sendo unanimemente entendido na doutrina e na jurisprudência, é a «autonomia intencional do Estado», traduzida nos poderes de autoridade que lhe são constitucional e legalmente atribuídos para a prossecução dos interesses públicos que tem o dever de assegurar, e «de uma forma particular a não colocação de entraves à actividade administrativa por parte dos destinatários dos seus actos» [cfr. Cristina Líbano Monteiro, loc. cit., p. 350, e Francisco Borges, O Crime de desobediência à luz da Constituição, Almedina, 2011, p. 89.].
Em contraponto, o crime de condução de veículo em estado de embriaguez está previsto no artigo 292.º, n.º 1, inscrito no Capítulo IV (Dos crimes contra a segurança das comunicações) do Título IV (Dos crimes contra a vida em sociedade) do Código Penal.
O bem jurídico protegido pela norma penal é a segurança da circulação rodoviária, embora, indiretamente, se protejam outros bens jurídicos que se prendem com a segurança das pessoas face ao trânsito dos veículos, já que a segurança no tráfego evita riscos e lesões para a vida ou integridade física [cfr. Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, p. 1093 e também Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da Republica Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, p. 1025].
Trata-se de um crime de mera atividade, de perigo abstrato, pois que o perigo não é elemento do tipo legal, mas simplesmente motivo da proibição; o comportamento é tipificado em nome da perigosidade da atividade para o bem jurídico, sem que seja necessária a sua comprovação no caso concreto, sendo o agente punido independentemente de ter criado um perigo efetivo para o bem jurídico [cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª ed., 2007, p. 309, e José de Faria Costa, Comentário Conimbricense, cit., p. 868].
Feito o sobredito enquadramento, e pese embora o contexto da prática do crime de desobediência por violação da obrigação de dever de submissão às provas estabelecidas para a deteção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas esteja comummente associado à ocultação desse mesmo estado, o certo é que, os bens jurídicos tutelados pelos tipos incriminadores são substancialmente distintos.
Entendemos, pois, que assiste razão ao arguido quando sustenta tratarem-se de crimes de distinta natureza.
Dito isto, afigura-se-nos que as causas de revogação da suspensão provisória do processo são taxativas e que o legislador, ao prever a condenação por crime da mesma natureza como motivo justificativo da prossecução do inquérito, não disse mais do que pretendia dizer, como não o fez quando estabeleceu a ausência de antecedentes criminais, ou de suspensão anterior, por crime da mesma natureza, como requisito para a aplicação do instituto. Como efeito, se, em abstrato, um arguido pode beneficiar da suspensão provisória de processo com um antecedente por crime de distinta natureza (alteração que o legislador pretendeu introduzir com a Lei 48/2007 de 29/08), não se concebe que a distinta natureza de um crime cometido no período da suspensão conduza, inexoravelmente, à sua revogação. 
 A nosso ver, o que legitima a imposição da igual natureza do crime para justificar a revogação da suspensão é a constatação pelo Ministério Público de que deixou de exercer o  jus puniendi na errada assunção de que o arguido havia interiorizado a ilicitude da conduta censurada pelo cumprimento das injunções e regras de conduta que lhe foram impostas e não mais a repetiria. A falência dessa autocensura, espelhada pela prática de crime de igual natureza, ainda que cumpridas as sanções impostas ao arguido, justifica plenamente a revogação da suspensão.
Não foi, porém, o caso dos autos, em que o arguido desobedeceu a uma ordem emitida pelas autoridades policiais, atentando contra a autonomia intencional do Estado e, no decurso da suspensão, conduziu alcoolizado, atentando contra a segurança rodoviária.
Aqui chegados, concluímos pelo desacerto da decisão que revogou a suspensão provisória do processo, por inverificadas as hipóteses vertidas no artigo 282.º, n.º 4, do Código de Processo Penal.
No mais, o arguido cumpriu integralmente as injunções e regras de conduta que lhe foram impostas.
Tal cumprimento não pode ser ignorado, sob pena de se penalizar duplamente o arguido.
Não ocorrendo violação de caso julgado, não se tratando de nulidade, como sustentado pelo arguido, nem havendo norma que expressamente regule a situação que nos ocupa, há que fazer uso das normas do processo civil, nos termos previstos no artigo 4.º do Código de Processo Penal.
No uso dos argumentos expendidos, cremos que a solução que o caso reclama é a preconizada nos Acórdãos da Relação de Coimbra de 13/09/2017 (proc. 81/14.0GTCBR.C1, acessível em www.dgsi.pt), no Acórdão da Relação de Évora de 08/03/2018 (proc. 790/16.9PBSTB.E1) e no Acórdão da Relação de Lisboa de 16/10/2019 (proc. n° 506/15.7GBMFR.L1, acessível em www.pgdlisboa.pt), a que supra se aludiu, de considerar verificada uma exceção dilatória inominada, que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa penal, dando lugar à absolvição da instância penal (cfr. art.° 576.°, n° 2, CPC, aplicável subsidiariamente).
IV. Dispositivo
Por tudo o exposto, o Tribunal decide julgar verificada exceção inominada atípica, que obsta ao conhecimento do mérito da ação penal, por aplicação subsidiária do disposto no artigo 576.º, n.º 2, do CPC, e consequentemente, absolve o arguido AA da instância penal.
Sem custas.»
*
Apreciação do recurso:

Incidências processuais com interesse.
           
Por requerimento de 11/11/2021, com a ref: ...15, a magistrada do Ministério Público propôs a suspensão provisória do processo respeitante ao arguido AA, em que está indiciado da prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, por, no dia ../../2021, cerca das 02h65m, na Rua ..., ..., o arguido conduzir a viatura automóvel ligeiros de mercadorias, de matrícula ..-NJ-.., quando foi instado por militar da GNR para proceder ao teste de alcoolemia que, dolosamente, recusou;

A proposta de injunção então determinada consistiu na suspensão provisória do inquérito, por um período de 6 meses mediante a imposição ao arguido das seguintes injunções cumulativas:
- Pagamento do valor de 400,00 € ao Estado, em 4 prestações iguais e sucessivas, no valor unitário de 100,00 €, mediante a emissão de 4 DUC´s, vencendo-se a primeira, 10 dias após a notificação do despacho de suspensão provisória do processo e as restantes nos meses subsequentes;
- Entrega da carta de condução nos serviços do Ministério Público ou na força policial da área da residência, informando de tal facto os SMP, no prazo de 10 dias, após ser notificado para tal, ficando proibido de conduzir veículos motorizados na via pública pelo período de 3 meses e 15 dias.

Após ter sido obtida a concordância do arguido, esse despacho do Ministério Público mereceu a concordância do Juiz de Instrução Criminal, que a formalizou por despacho de 16/11/2021, com a ref: ...13.
Em 18/11/2021, ref: ...05, foi prolatado despacho pelo Ministério Público em que foi determinada a suspensão provisória do processo, nos termos referidos.
A suspensão provisória do processo teve início em 06/12/2021, tendo o arguido; em 09/12/2021 entregado a sua carta de condução na esquadra da PSP ...., e em 10/12/2021, 10/01/2022, 04/02/2022 e 03/03/2022, o arguido procedeu ao pagamento, em cada uma dessas datas, da quantia de 100,00 €, por DUC.
A carta de condução foi devolvida ao arguido em 25/03/2022. Ref: ...22.
Consta averbada no CRC do arguido uma condenação em Tribunal de Espanha, por crime de condução sob o efeito de álcool, em pena de multa substituída por vigilância judiciária e em pena de 8 meses de suspensão da carta de condução, aplicadas por decisão transitada em julgado em 20/04/2022, por factos praticados em 14/04/2022.- ref: ...25.

Com data de 23/05/2023, ref: ...76, o Ministério Público proferiu o seguinte despacho de acusação:
«O Ministério Público acusa para julgamento em Processo Comum e com intervenção do Tribunal Singular, nos termos do disposto nos artigos 16.º, n.º 2, alínea b), 282.º, n.º 4, todos do Código de Processo Penal:
AA, filho de EE e FF, natural de ..., ..., nascido a ../../1981, casado, residente na Rua ..., ..., ..., titular do Cartão de Cidadão n.º ....

Porquanto:
1. No dia ../../2021, pelas 2h25m, o arguido conduzia o veículo ligeiro de mercadorias com a matrícula ..-NJ-.. na Rua ..., em ..., quando foi mandado parar por agentes da PSP para fiscalização de trânsito.
2. Na sequência, os agentes da PSP, devidamente uniformizados, abordaram o arguido e solicitaram-lhe que o mesmo realizasse teste de despistagem de álcool de exame qualitativo, tendo o mesmo acedido, tendo registado uma taxa de álcool de 1,43g/l.
3. De seguida, os referidos agentes solicitaram ao arguido para o mesmo ser submetido ao teste de álcool através de ar expirado, foi, ainda, sido solicitado ao mesmo para que acompanhasse os referidos agentes à Esquadra ..., tendo este acedido.
4. Já no interior da referida Esquadra, o agente da PSP ordenou ao arguido para que efetuasse o exame de pesquisa de álcool no ar expirado.
5. O arguido, por sua vez, recusou submeter-se à realização do mencionado exame, persistindo nessa sua recusa, apesar de advertido pelo referido agente de que, caso não o efetuasse, incorria na prática de um crime de desobediência.
6. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, com o propósito concretizado de não se submeter à realização do exame de pesquisa de álcool no ar expirado, sabendo que o fazia em relação a uma ordem legítima emanada de um agente de autoridade em exercício de funções.
 7. Agiu, por fim, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.

Incorreu, assim, o arguido, em autoria material e na forma consumada, na prática, de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, al. a), e 69.º, n.º 1, al c), ambos do Código Penal, por referência ao artigo 152.º, n.º 1, al. a) e n.º 3, do Código da Estrada.
No dia 04/07/2023, ref: ...60, foi proferido despacho de recebimento dessa acusação, e notificado o arguido nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 311º-A, nºs 1 a 4 e 311º-B, do CPP.
No dia 15/09/2023, ref: ...93, o arguido apresentou articulado de contestação no qual, como questão prévia, suscitou a nulidade da acusação, e ofereceu o merecimento dos autos.
Após realização da audiência de discussão e julgamento, foi proferido a decisão impugnada.

Apreciando
As questões colocadas centram-se essencialmente na invocada falta de legitimidade do tribunal para conhecer da decisão de revogação da suspensão provisória do processo decretada pelo Ministério Público e da validade, ou regularidade, da acusação posterior.
As questões colocadas prendem-se, pois, e têm como génese, as iniciativas do Ministério Público, tomadas em sede de inquérito, respeitantes à aplicação do instituto da suspensão provisória do processo, com sujeição do arguido a injunções, ao cumprimento destas, e, não obstante esse cumprimento se mostrar verificado de acordo com o que ficou estipulado, e acordado, à revogação dessa suspensão, pelo facto de na pendência do período de duração da mesma o arguido ter incorrido na prática de um crime da mesma natureza. O que, à luz do disposto no art. 282º, nº 4 al. b), do CPP, justificaria essa revogação e consequente acusação.
Na decisão impugnada ficou manifestado o entendimento de que a opção tomada pelo Ministério Público em sede de inquérito, concretamente a revogação da decisão de suspender provisoriamente o processo que havia sido instaurado contra o arguido, e consequente acusação pela prática do crime que a este vinha sendo imputado nesse âmbito, não está isenta de apreciação pelo juiz que vai presidir ao julgamento não está vedado ao juiz do julgamento, como aí se fez constar; “a apreciação de tal matéria, impondo-se fazer prevalecer a substância sobre a forma, revelando-se-nos inequívoco, até por apelo aos princípios constitucionais estruturantes da defesa efetiva dos direitos liberdades e garantias e do princípio da necessidade, expressos no artigo 18.ºda CRP, que ao juiz de julgamento compete apreciar da verificação de patologias processuais suscetíveis de atingir as garantias de defesa e os direitos fundamentais. Ou seja, que não se verifica a alegada falta de legitimidade do tribunal para, em sede de julgamento, se pronunciar sobre essa posição processual tomada pelo Ministério Público no inquérito.
Para além disso, a sentença sob escrutínio acabou por considerar que essa questão, verificada a falta dos pressupostos que a lei prevê como consubstanciadores dessa revogação, concretamente o previsto no art. 282º, n.º 4 al. b), do CPP, “não ocorrendo violação de caso julgado, não se tratando de nulidade, como sustentado pelo arguido, nem havendo norma que expressamente regule a situação que nos ocupa, há que fazer uso das normas do processo civil, nos termos previstos no artigo 4.º do Código de Processo Penal. No uso dos argumentos expendidos, cremos que a solução que o caso reclama é a (,,,)” de considerar verificada uma exceção dilatória inominada, que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa penal, dando lugar à absolvição da instância penal (cfr. art.° 576.°, n° 2, CPC, aplicável subsidiariamente)”, como acabou por decidir.
E é contra esta tomada de posição que o recorrente se insurge, questionando, como se disse, a legitimidade do tribunal para se imiscuir numa questão que é da sua competência exclusiva, a tempestividade e legalidade da sua apreciação, bem como um invocado erro no enquadramento legal do motivo que levou à decisão de revogação dessa suspensão, e consequente dedução da acusação.
Vejamos então.
Nos termos do n.º 5 do art.º 32.º da nossa Constituição da República (CRP), o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de julgamento e os atos instrutórios que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
Num processo penal de estrutura acusatória, é a acusação que define o objeto do processo.
São os factos narrados na acusação, imputados a um concreto arguido e que constituem o crime, a fixar o campo no interior do qual se tem de mover a investigação do tribunal, a sua atividade cognitiva e a sua atividade decisória.
É, portanto, a acusação que fixa os limites da atividade cognitiva e decisória do tribunal, ou, noutros termos, o thema probandum e o thema decidendum.
Desde logo, a atividade do tribunal penal, consubstanciada na investigação e prova de determinados factos não pode sair fora dos limites traçados pela acusação, sob pena de nulidade, salvo em certas situações permitidas por lei em que, respeitadas certas condições, se pode proceder a uma alteração daqueles factos (arts. 303.º, 309.º, 358.º e 359.º, entre outros, do CPP).
Por seu turno, a atividade decisória do tribunal também tem de se confinar ao objeto da acusação (art.º 379.º, n.º 1, alínea b) do mesmo diploma legal).
Encontramo-nos perante a denominada vinculação temática do tribunal, da qual derivam os princípios da identidade (segundo o qual o objeto do processo, os factos devem manter-se os mesmos, da acusação ao trânsito em julgado da sentença), da unidade ou da indivisibilidade (os factos devem ser conhecidos e julgados na sua totalidade, unitária e indivisivelmente). É ainda dentro dos limites da acusação que se define a extensão do caso julgado, visto que o tribunal deve apurar tudo o que diga respeito a esse objeto (aos factos que dela constam e são imputados ao arguido) de uma forma esgotante, sendo certo que, se o não tiver apurado, tudo deve passar-se como se o tivesse sido, segundo o designado princípio da consunção - Cf. José de Figueiredo Dias , Direito Processual Penal, Coimbra Editora, 1974, pág. 145.
Portanto, tendencialmente, realizada a audiência de julgamento, a decisão final do tribunal pronuncia-se sobre se os concretos factos narrados na acusação devem ser tidos como provados ou não provados, quer na sua dimensão objetiva, quer subjetiva, subsumindo-os ou não ao tipo ou tipos legais de crime correspondentes (os indicados na acusação), extraindo as consequências jurídicas compatíveis, isto é, condenando ou absolvendo o arguido. Nisto reside a solução jurídica do caso sub judice, isto é, daquele concreto pedaço de vida que constitui o objeto do processo.
Contudo, embora o nosso processo penal seja de estrutura basicamente acusatória, ele vem integrado por um princípio de investigação (art.º 340º, n.º 1 do CPP), «de modo a proporcionar, nos limites do possível, a averiguação da verdade material e a boa decisão da causa» - Cf. Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães datado de 11.03.2019, no processo 3212/18.7T8BRG.G1 (rel. Des. Ausenda Gonçalves).
Ora, aqui chegados, cumpre realçar que, sobre o âmbito da matéria a conhecer em audiência, há que atender em primeiro lugar ao disposto no nº 1 do art. 124º do CPP, em cujos termos constituem objeto da prova todos os factos juridicamente relevantes para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da pena ou da medida de segurança aplicáveis, ponderando ainda o que estatui o art. 339º, nº 4 do mesmo diploma na parte em que estatui que «(…) a discussão da causa tem por objeto os factos alegados pela acusação e pela defesa e os que resultarem da prova produzida em audiência, bem como todas as soluções jurídicas pertinentes, independentemente da qualificação jurídica dos factos resultante da acusação ou da pronúncia, tendo em vista as finalidades a que se referem os artigos 368.º e 369.º»,
Para fundamentar a invocada “nulidade” da acusação suscitada na contestação do arguido, esta peça processual contém alegação de factos relacionados com o objeto da causa, factos esses tendentes a colocar em questão a posição assumida pelo Ministério Público em sede de inquérito, concretamente a revogar a suspensão provisória do processo que havia sido previamente tomada e a deduzir a acusação.
Na decisão impugnada o tribunal recorrido, para além de se pronunciar sobre os factos exarados na acusação pública deduzida, e dos que resultaram da audiência de discussão e julgamento e dos que constam dos autos, fazendo uso daquele princípio da investigação, também tomou posição quanto às questões colocadas na contestação.
Ou seja, tal como havia sido anteriormente determinado, o tribunal recorrido acabou por se pronunciar sobre a factualidade que lhe foi apresentada para julgamento, tomou posição relativamente à sua ocorrência, enumerando os factos que considerou provados e não provados, e retirou as consequências jurídicas que entendeu como ajustadas à situação concreta.

Como vimos, no tribunal recorrido, para além do acima transcrito relativo à legitimidade do tribunal, ficou decidido o seguinte:
“(…)
«Entendemos, pois, que assiste razão ao arguido quando sustenta tratarem-se de crimes de distinta natureza.
Dito isto, afigura-se-nos que as causas de revogação da suspensão provisória do processo são taxativas e que o legislador, ao prever a condenação por crime da mesma natureza como motivo justificativo da prossecução do inquérito, não disse mais do que pretendia dizer, como não o fez quando estabeleceu a ausência de antecedentes criminais, ou de suspensão anterior, por crime da mesma natureza, como requisito para a aplicação do instituto. Como efeito, se, em abstrato, um arguido pode beneficiar da suspensão provisória de processo com um antecedente por crime de distinta natureza (alteração que o legislador pretendeu introduzir com a Lei 48/2007 de 29/08), não se concebe que a distinta natureza de um crime cometido no período da suspensão conduza, inexoravelmente, à sua revogação.
A nosso ver, o que legitima a imposição da igual natureza do crime para justificar a revogação da suspensão é a constatação pelo Ministério Público de que deixou de exercer o jus puniendi na errada assunção de que o arguido havia interiorizado a ilicitude da conduta censurada pelo cumprimento das injunções e regras de conduta que lhe foram impostas e não mais a repetiria.
A falência dessa autocensura, espelhada pela prática de crime de igual natureza, ainda que cumpridas as sanções impostas ao arguido, justifica plenamente a revogação da suspensão.
Não foi, porém, o caso dos autos, em que o arguido desobedeceu a uma ordem emitida pelas autoridades policiais, atentando contra a autonomia intencional do Estado e, no decurso da suspensão, conduziu alcoolizado, atentando contra a segurança rodoviária.
Aqui chegados, concluímos pelo desacerto da decisão que revogou a suspensão provisória do processo, por inverificadas as hipóteses vertidas no artigo 282.º, n.º 4, do Código de Processo Penal.
No mais, o arguido cumpriu integralmente as injunções e regras de conduta que lhe foram impostas.
Tal cumprimento não pode ser ignorado, sob pena de se penalizar duplamente o arguido.
Não ocorrendo violação de caso julgado, não se tratando de nulidade, como sustentado pelo arguido, nem havendo norma que expressamente regule a situação que nos ocupa, há que fazer uso das normas do processo civil, nos termos previstos no artigo 4.º do Código de Processo Penal.
No uso dos argumentos expendidos, cremos que a solução que o caso reclama é a preconizada nos Acórdãos da Relação de Coimbra de 13/09/2017 (proc. 81/14.0GTCBR.C1, acessível em www.dgsi.pt), no Acórdão da Relação de Évora de 08/03/2018 (proc. 790/16.9PBSTB.E1) e no Acórdão da Relação de Lisboa de 16/10/2019 (proc. n° 506/15.7GBMFR.L1, acessível em www.pgdlisboa.pt), a que supra se aludiu, de considerar verificada uma exceção dilatória inominada, que obsta a que o tribunal conheça do mérito da causa penal, dando lugar à absolvição da instância penal (cfr. art.° 576.°, n° 2, CPC, aplicável subsidiariamente).
É também esta a nossa posição sobre as questões em apreciação.
Vejamos.
O art. 262º, nº 1, do Código de Processo Penal define a finalidade e âmbito do inquérito: investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação.
E se o objeto do inquérito é suscetível de modificações na sua materialidade e qualificação jurídica durante o seu decurso, há um momento em que ele tem de ser finalmente rígida e formalmente definido e esse momento é o das decisões sobre o respetivo encerramento.
Concluídas as diligências de investigação e recolha de provas sobre a notícia do crime – o inquérito -, o Ministério Público há de tomar necessariamente uma de entre cinco opções: o arquivamento, numa das suas três modalidades (arts. 277º, nºs 1 e nº 2 e 280º, do C.P.P), a suspensão provisória do processo (art. 281º, do C.P.P) ou a acusação (art. 283º, do C.P.P).
No caso vertente o Ministério Público optou pela suspensão provisória do processo que havia instaurado contra o arguido, com a concordância do juiz de instrução, e mediante a imposição ao dito arguido de determinadas injunções.
No entanto, tendo tido conhecimento que o mesmo havia cometido um crime durante a fase em que perdurava a suspensão provisória do processo decidida, nos termos já supra explanados, entendeu que se mostrava verificado um dos motivos que determinaria o prosseguimento do mesmo processo, o previsto na citada al. b, do  nº 4 do art. 282º, do CPP, com a consequente revogação daquela decisão e a prolação do requerimento acusatório em causa.

Nos termos do artigo 281.º, nº 1, do Código do Processo Penal “Se o crime for punível com pena de prisão não superior a 5 anos ou com sanção diferente da prisão, o Ministério Público, oficiosamente ou a requerimento do arguido ou do assistente, determina, com a concordância do juiz de instrução, a suspensão do processo, mediante a imposição ao arguido de injunções e regras de conduta, sempre que se verificarem os seguintes pressupostos:
a) Concordância do arguido e do assistente;
b) Ausência de condenação anterior por crime da mesma natureza;
c) Ausência de aplicação anterior de suspensão provisória de processo por crime da mesma natureza;
d) Não haver lugar a medida de segurança de internamento;
e) Ausência de um grau de culpa elevado; e
f) Ser de prever que o cumprimento das injunções e regras de conduta responda suficientemente às exigências de prevenção que no caso se façam sentir.

Prevê depois o nº2 as injunções ou regras de conduta que, cumulativa ou separadamente, são oponíveis ao arguido.
Por sua vez, prevê o artigo 282.º, nºs 3 e 4, do mesmo Código, sob o título “duração e efeitos da suspensão”, o seguinte:
“(…)
3- Se o arguido cumprir as injunções e regras de conduta, o Ministério Público arquiva o processo, não podendo ser reaberto.
4- O processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas:
a) Se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta; ou
b) Se, durante o prazo de suspensão do processo, o arguido cometer crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado.”
Ou seja, o processo prossegue e as prestações feitas não podem ser repetidas se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta que houverem sido fixadas, ou se, durante o prazo de suspensão do processo, o arguido cometer crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado.
Pelo que, logicamente, decorrido que seja o prazo de suspensão decretado, ou ainda no decurso deste, cabe ao Ministério Público apreciar se o arguido cumpriu ou não as injunções e as regras de comportamento estipuladas, ou se praticou algum crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado, devendo levantar a suspensão decretada e prosseguir os termos do processo, com a dedução da acusação caso conclua pelo incumprimento.
E, aqui chegados, “importa começar por compreender o regime legal da suspensão provisória do processo, à luz do disposto nos artigos 281.º e 282.º do Código de Processo Penal.
Trata-se de «(…) uma solução processual, imbuída do espírito dos sistemas de oportunidade, para crimes de reduzida gravidade, em que o Ministério Público, com o acordo do arguido e do assistente e com a homologação do juiz, suspende provisoriamente a tramitação do processo penal e determina a sujeição do arguido a regras de comportamento ou injunções durante um determinado período de tempo. Se tais injunções forem cumpridas pelo arguido, o processo é arquivado; se não forem cumpridas, o Ministério Público revoga a suspensão, isto é, deduz acusação e o processo penal prossegue os seus ulteriores termos.»[Cláudia Isabel Ferraz Dias Matias, “A suspensão provisória do processo: o regime legal presente e perspectivado“, Dissertação apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, em 2014, pág. 5, que pode ser acedido no seguinte endereço da rede digital global: https://estudogeral.sib.uc.pt/bitstream/10316/28570/1/A%20suspensao%20provisoria%20do%20processo.pdf]

Contrariamente ao que sucede com a decisão de suspensão provisória do processo, a decisão de revogação dessa suspensão compete em inquérito, exclusivamente, ao Ministério Público – sendo também pacífico o entendimento de que a revogação da suspensão do processo não decorre automaticamente de qualquer incumprimento – muito menos quando esse incumprimento é parcial –, envolvendo antes um juízo de culpa ou vontade de não cumprir por parte da arguida, tal como referido na sentença recorrida -:
a) Se o arguido cumpriu as injunções e as regras de conduta, o Ministério Público arquiva o processo, não podendo o mesmo ser reaberto (artigo 282.º, n.º 3 do CPP). “A ação penal extingue-se, formando-se caso julgado material e o objeto do processo não pode ser reapreciado por força do princípio ne bis in idem”[ Ibidem, pág. 25];
b) Se o arguido não cumprir as injunções e regras de conduta que lhe foram impostas ou cometer crime da mesma natureza pelo qual venha a ser condenado, o processo penal prossegue;

Assim, a opção pela dedução de acusação, ou de formular um requerimento de aplicação, em processo sumaríssimo, de uma pena de multa à arguida AA, por factos integrantes de um crime de furto simples (artigo 203º, 1, do Código Penal) cabe, exclusivamente, ao Ministério Público.
Isso não significa que que tal opção do Ministério Público não seja judicialmente sindicável.
Importa, pois, apurar as possibilidades legais de aferir a legalidade de tal posição do Ministério Público.
Em processo comum, não compete ao juiz de julgamento, quando recebe a acusação, avaliar as razões da opção do Ministério Público (artigo 311º, nº 2, do Código de Processo Penal), imperando, também nesta vertente, o princípio do acusatório.” (Cfr. Ac da RP, de 04/10/2022, in www.dgsi.pt).
Interessa-nos, então, analisar a forma de sindicar tal decisão.
Como vimos, ao juiz de julgamento, quando recebe a acusação, não compete avaliar as razões da opção do Ministério Público – cfr. artigo 311.º do Código de Processo Penal.
Por assim ser, só o arguido se pode opor à sobredita opção do Ministério Público, requerendo a instrução, depois de notificado da acusação, com o propósito de, nessa fase processual, demonstrar que não deixou de cumprir as obrigações ou injunções que lhe foram impostas, ou que, tendo havido incumprimento, ele não ocorreu por culpa sua.
O despacho de não pronúncia depende desta demonstração.
E se o arguido não reagir, perante a acusação contra si dirigido, não resta senão concluir que aceita o incumprimento culposo das obrigações que lhe foram impostas no âmbito da suspensão do processo, que aceita ser submetido a julgamento e que deve ser julgado.
Esta é a tramitação adequada na forma de processo comum.
Mas, os presentes autos iniciaram-se sob a forma de processo sumário.
A instrução é fase processual não consentida nas formas de processo especiais – processo sumário, processo abreviado e processo sumaríssimo –, conforme decorre do disposto no n.º 3 do artigo 286.º do Código de Processo Penal.
Quando foi notificado do despacho revogatório da suspensão provisória do processo e do requerimento acusatório, concretamente “De que foi deduzida ACUSAÇÃO no Inquérito acima referenciado, nos termos do art.º 283º do Código de Processo Penal, e que dispõe do prazo de VINTE DIAS, para requerer, caso queira, a abertura da INSTRUÇÃO - art.º 287º do mesmo diploma legal” – cfr: ref: ...31 – o processo mantinha a forma de processo sumário, como resulta do ofício aludido, e manteve a mesma forma quando foi remetido à distribuição – ref: ...98. Apenas assumindo a forma de processo comum a partir dessa fase, concretamente quando do despacho de saneamento e recebimento da acusação – ref: ...60 – despacho em que foi ordenada a notificação do arguido para  apresentação de contestação e rol de testemunhas, tudo ao abrigo do disposto nos artigos 311º, 311º-A e 311º-B, do CPP.
Na sua contestação o arguido suscitou a questão que ora se aprecia, ou seja, “O arguido não aceita que tenha incumprindo nas injunções que lhe foram impostas e constam nas fls. 30 e 30 verso, aplicadas nos termos do previsto nos números 2 e 4 do artigo 281º do CPP.
2º Foram aplicadas ao arguido as injunções e regras de conduta de entrega ao Estado da quantia de 400 €, paga em quatro prestações iguais e sucessivas, entrega da carta de condução, ficando proibido de conduzir veículos motorizados na via pública pelo período de três meses e quinze dias, ficando o presente processo sido suspenso provisoriamente pelo período de seis meses,
3º Sendo que todas injunções e regras de conduta foram integralmente cumpridas.
4º Acresce que, ao contrário do que figura na acusação, o arguido não cometeu crime da mesma natureza no período em que decorria a suspensão provisória do processo.»
É ainda opção legislativa expressa que no âmbito dos processos sumários, nos casos previstos no n.º 4 do artigo 282.º, o Ministério Público deduz acusação para julgamento em processo abreviado no prazo de 90 dias a contar da verificação do incumprimento ou da condenação, como deveria ter acontecido nos autos, o que resulta do art. 384º, nº 4, do CPP.
Assim sendo, a bondade da decisão do Ministério Público em deduzir acusação, pondo termo à suspensão provisória do processo, quando questionada, deve ser avaliada em julgamento.
A não se entender assim, impede-se a sindicância da opção do Ministério Púbico de deduzir acusação em vez arquivar o processo, violando grosseiramente o direito de defesa do arguido, sendo que, no limite, se aceita, em simultâneo, o cumprimento de todos os deveres impostos no processo suspenso e a condenação nesse mesmo processo, que se considerou – incorretamente – não dever ser arquivado.
De regresso ao processo, e como já salientamos, constata-se que o arguido apresentou contestação à decisão do Ministério Público de revogar a suspensão provisória do processo, após dela ter sido notificado.
Discordância que manteve no decurso da audiência de discussão e julgamento, e que não abandonou em sede recursória.
Ora, perante este conjunto de circunstâncias não poderia o arguido deixar de ver apreciada a sua posição relativamente ao despacho de Ministério Público em causa, sendo esta a única oportunidade que lhe foi conferida no processo para o efeito, sob pena de ver coartado o seu direito de defesa, ao contraditório.
Para além disso, sufragamos o entendimento, como acima já foi salientado, que essa legalidade pode, e deve, ser alvo de apreciação após o decurso da audiência de discussão e julgamento, da fixação dos respetivos factos, aderindo-se in totum ao que na sentença recorrida ficou exarado a este respeito:
“Inexistindo nulidades insanáveis, só restará ao juiz receber a acusação e designar data para julgamento.
É certo, também, que o arguido poderia (e deveria) ter reagido, requerendo a abertura da instrução e submetendo ao Juiz de Instrução Criminal a apreciação da decisão de acusar que o Ministério Público adotou.
Porém, tendo o arguido invocado, em sede de contestação, a nulidade da acusação, não pode esta deixar de ser objeto de apreciação por imperativo legal.
Pese embora ultrapassada a fase da instrução, entendemos, aderindo ao entendimento perfilhado nos Acórdãos da Relação de Coimbra de 13/09/2017 (proc. 81/14.0GTCBR.C1, acessível em www.dgsi.pt) e Acórdão da Relação de Lisboa de 16/10/2019 (proc. n° 506/15.7GBMFR.L1, acessível em www.pgdlisboa.pt), em mais recentemente no Acórdão da Relação de Coimbra de 11/10/2023 (proc. 403/21.7PBCLD.C1, in www.dgsi.pt) de que não está vedado ao Juiz do julgamento a apreciação de tal matéria, impondo-se fazer prevalecer a substância sobre a forma, revelando-se-nos inequívoco, até por apelo aos princípios constitucionais estruturantes da defesa efetiva dos direitos liberdades e garantias e do princípio da necessidade, expressos no artigo 18.ºda CRP, que ao juiz de julgamento compete apreciar da verificação de patologias processuais suscetíveis de atingir as garantias de defesa e os direitos fundamentais.”
Ultrapassando-se, pois, face a tudo o exposto, a invocada ilegitimidade do tribunal para aferir a legalidade da posição do Ministério Público em causa nos autos.
*
Resolvida esta primeira questão, concentremos a nossa atenção sobre o motivo determinante  da revogação da suspensão provisória do processo e consequente elaboração de requerimento acusatório, averiguar se no caso vertente estaremos perante a situação prevista no art. 282º, nº 4 al. b), do CPP
Como vimos, nos presentes autos o Ministério Público entendeu que o arguido infringiu o disposto naquele preceito legal, quando ainda dentro do período da suspensão, cometeu crime da mesma natureza, pelo qual foi condenado. E é esta questão respeitante à natureza do crime entretanto praticado, cuja comissão por parte do arguido, e consequente condenação, não se discutem, a que se coloca no caso concreto, ou seja, se esse pressuposto se mostra verificado.
Efetivamente, resultou provado que:
Por requerimento de 11/11/2021, com a ref: ...15, a magistrada do Ministério Público propôs a suspensão provisória do processo respeitante ao arguido AA, em que está indiciado da prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, por, no dia ../../2021, cerca das 02h65m, na Rua ..., ..., o arguido conduzir a viatura automóvel ligeiros de mercadorias, de matrícula ..-NJ-.., quando foi instado por militar da GNR para proceder ao teste de alcoolemia que, dolosamente, recusou;

A proposta de injunção então determinada consistiu na suspensão provisória do inquérito, por um período de 6 meses mediante a imposição ao arguido das seguintes injunções cumulativas:
- Pagamento do valor de 400,00 € ao Estado, em 4 prestações iguais e sucessivas, no valor unitário de 100,00 €, mediante a emissão de 4 DUC´s, vencendo-se a primeira, 10 dias após a notificação do despacho de suspensão provisória do processo e as restantes nos meses subsequentes;
- Entrega da carta de condução nos serviços do Ministério Público ou na força policial da área da residência, informando de tal facto os SMP, no prazo de 10 dias, após ser notificado para tal, ficando proibido de conduzir veículos motorizados na via pública pelo período de 3 meses e 15 dias.

Após ter sido obtida a concordância do arguido, esse despacho do Ministério Público mereceu a concordância do Juiz de Instrução Criminal, que a formalizou por despacho de 16/11/2021, com a ref: ...13.
Consta averbada no CRC do arguido uma condenação em Tribunal de Espanha, por crime de condução sob o efeito de álcool, em pena de multa substituída por vigilância judiciária e em pena de 8 meses de suspensão da carta de condução, aplicadas por decisão transitada em julgado em 20/04/2022, por factos praticados em 14/04/2022.- ref: ...25.
A prática deste ilícito criminal e a condenação do arguido, que se verificaram durante o período de suspensão, levou o Ministério Público a revogar a aplicada suspensão provisória do processo, e a proferir o despacho de acusação que acabou por determinar a realização da audiência de discussão e julgamento, por entender que o crime indiciado no âmbito do inquérito, e posteriormente imputado ao arguido no requerimento acusatório, de desobediência, p. e p. pelo art. 348.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, tem natureza idêntica ao ilícito penal praticado no Reino de Espanha, um crime de condução sob o efeito de álcool, correspondente ao previsto no art. 292º, do nosso CP, condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas.
Estamos, pois, a tratar de um crime de desobediência e de um crime de condução em estado de embriaguez.
A desobediência em questão nestes autos é a que está prevista nas disposições conjugadas dos arts. 152.º, n.º 1, al. a) e 153º, nºs 3 al. a) e 4, ambos do C. da Estrada, 69º e 348º, ambos do C. Penal.
Vejamos
Comete o crime de desobediência, atento o disposto no artigo 348º n.º 1 alínea a) do C. Penal, «quem faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente e uma disposição legal qualificar essa conduta como desobediência simples, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias».
O bem jurídico protegido em causa neste tipo de crime é, ainda, a autonomia intencional do Estado na vertente da não colocação de quaisquer obstáculos ao desenvolvimento da actividade administrativa das autoridades. Ou seja, trata-se de garantir que todos aqueles que executam funções públicas e, por isso, detêm um específico poder, sejam inequivocamente respeitados.
Como refere Cristina Líbano Monteiro em Nótula antes do artigo 347º do CP, em relação aos crimes previstos no capítulo “Dos Crimes Contra a Autoridade Pública” in Comentário Conimbricense, III Volume, pág. 337, «Estamos em presença de um bem-jurídico-meio digno de tutela penal na medida em que o fim que se protege antecipadamente – o bom funcionamento da vida social, indispensável à livre expansão da personalidade dos que a comparticipam – requer, como condição necessária uma autoridade obedecida.(…). O Estado de direito democrático é lugar de uma autoridade entendida como serviço público, garantia de bom funcionamento (coerente e ordenado) de todos e de cada um dos serviços públicos».
Em apreciação no caso como decorre da alínea a) do n.º1 do artigo 348º do CP, está um crime de desobediência por cominação legal [em oposição à cominação funcional] remetendo-nos a disposição directamente para um “preceito de direito penal extravagante que incrimina um determinado comportamento desobediente” vide Cristina Líbano Monteiro Ob. Cit. Pág. 353
No caso, tal preceito vem a identificar-se com disposto no artigo 152º n. 1 alínea a) e nº 3 do Código da Estrada: «devem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas: os condutores(…)»; «as pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência».
Assim, comete o crime de desobediência, previsto no artigo 348º nº 1 alínea a) o condutor que, tendo-lhe sido transmitida uma ordem de autoridade de fiscalização rodoviária para se submeter às provas de detecção de álcool, se recusar a tal. É o que decorre da lei, sem necessidade de qualquer cominação da autoridade relativa ao não cumprimento da ordem.
Assim, no caso em apreço, face à matéria de facto provada, que aqui se dá por reproduzida, e não está questionado no presente recurso, mostram-se perfectibilizados todos os elementos constitutivos do crime de desobediência, a conduta do arguido que daí resulta preenche todos os elementos objetivos e subjetivos desse crime.
Aqui chegados, adiantamos, desde  já, que se nos afigura, salvo o devido respeito por opinião diversa, que o crime de desobediência em causa nestes autos, face à sua especificidade e enquadramento circunstancial, à génese da sua valoração penal e à ligação umbilical entre esse comportamento inicial e a conduta desobediente  posterior, que tem por desiderato intencional do condutor imiscuir-se à realização de um exame ou teste de alcoolemia em relação ao qual é fortemente previsível que se aferirá a taxa de álcool no sangue (TAS) com que estava a conduzir, deverá ser considerado, para os efeitos pretendidos, como tendo natureza idêntica ao crime de condução de veículo automóvel em estado de embriaguez.
Embora à partida sejamos tentados a concluir que estamos perante crimes diferentes, e assim será no rigor dos conceitos, e do bem jurídico principal que cada um protege, a verdade é que na situação concreta ambos os ilícitos estão relacionados com a circulação rodoviária, têm como origem a mesma conduta, o comportamento na condução de veículo na via pública. E estão de tal forma entrelaçados que um deles só é assumido como meio para evitar a provável deteção do outro e as consequências jurídicas resultantes da sua prática.
Para além disso, no que concerne ao crime de desobediência, não obstante estarmos em presença de um bem jurídico com finalidades de proteção da «autonomia intencional do Estado», traduzida nos poderes de autoridade que lhe são constitucional e legalmente atribuídos para a prossecução dos interesses públicos que tem o dever de assegurar, e «de uma forma particular a não colocação de entraves à actividade administrativa por parte dos destinatários dos seus actos» (cfr. Cristina Líbano Monteiro, loc. cit., p. 350), o que requer a necessária obediência à autoridade, não podemos olvidar que no caso vertente deparamo-nos com um caso cuja cominação resulta da alínea a) do n.º1 do artigo 348º do CP, ou seja, de um crime de desobediência por cominação legal [em oposição à cominação funcional] mas que advém diretamente de um “preceito de direito penal extravagante que incrimina um determinado comportamento desobediente” (ibidem Cristina Líbano Monteiro acima citada)
Ou seja, no caso, não está em causa a desobediência a qualquer ordem legítima emanada de um órgão da autoridade, mas sim perante o não acatamento de uma imposição legal, concretamente a uma norma do direito estradal, citado artigo 152º n. 1 alínea a) e nº 3 do Código da Estrada, que consagra: «devem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas: os condutores(…)»; «as pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência»

Muito embora sufragamos o que exarado ficou na sentença recorrida, concretamente:
“(…)
«Porém, a discussão persiste no que tange à natureza do crime.
O crime de desobediência integra, no nosso Código Penal, o elenco dos crimes contra o Estado. Inclui-se na categoria dos denominados «crimes de violação de dever» [ cfr. Teresa Beleza, Direito Penal, 2.º vol. AAFDL, reimp. 2010, p. 110], protege a função de autoridade pública, constitui um caso que a doutrina costuma indicar de lei penal aberta ou de lei penal em branco [cfr. Cristina Líbano Monteiro, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo 3, Coimbra Editora, 2001, anotação ao artigo 348.º, e J.L. Lopes da Mota, «Crimes contra a autoridade pública», in Jornadas de Direito Criminal – Revisão do Código Penal, vol. II, Centro de Estudos Judiciários, 1998, p. 433ss.]. Dado o carácter subsidiário do tipo, a qualificação de um comportamento como crime de desobediência pode resultar da subsunção a uma disposição legal que concretamente comine a sua punição como desobediência, nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 348.º; ou à alínea b) do n.º 1 do mesmo preceito, na ausência disposição legal, que requer a cominação de desobediência pelo agente de autoridade.
O caso da desobediência prevista no artigo 152.º, n.º 3, do Código da Estrada enquadra-se, assim, na previsão do n.º 1, al. a) do artigo 348.º do Código Penal. A conduta proibida reconduz-se, em substância, à violação do dever de submissão às provas estabelecidas para a deteção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas.
O bem jurídico protegido pelo crime de desobediência, como vimos, e como vem sendo unanimemente entendido na doutrina e na jurisprudência, é a «autonomia intencional do Estado», traduzida nos poderes de autoridade que lhe são constitucional e legalmente atribuídos para a prossecução dos interesses públicos que tem o dever de assegurar, e «de uma forma particular a não colocação de entraves à actividade administrativa por parte dos destinatários dos seus actos» [cfr. Cristina Líbano Monteiro, loc. cit., p. 350, e Francisco Borges, O Crime de desobediência à luz da Constituição, Almedina, 2011, p. 89.].
Em contraponto, o crime de condução de veículo em estado de embriaguez está previsto no artigo 292.º, n.º 1, inscrito no Capítulo IV (Dos crimes contra a segurança das comunicações) do Título IV (Dos crimes contra a vida em sociedade) do Código Penal.
O bem jurídico protegido pela norma penal é a segurança da circulação rodoviária, embora, indiretamente, se protejam outros bens jurídicos que se prendem com a segurança das pessoas face ao trânsito dos veículos, já que a segurança no tráfego evita riscos e lesões para a vida ou integridade física [cfr. Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, Coimbra Editora, 1999, p. 1093 e também Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal à luz da Constituição da Republica Portuguesa e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2015, p. 1025].
Trata-se de um crime de mera atividade, de perigo abstrato, pois que o perigo não é elemento do tipo legal, mas simplesmente motivo da proibição; o comportamento é tipificado em nome da perigosidade da atividade para o bem jurídico, sem que seja necessária a sua comprovação no caso concreto, sendo o agente punido independentemente de ter criado um perigo efetivo para o bem jurídico [cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, Coimbra Editora, 2.ª ed., 2007, p. 309, e José de Faria Costa, Comentário Conimbricense, cit., p. 868].»

Já não nos revemos na conclusão a que se chegou após essa dissertação:
«Feito o sobredito enquadramento, e pese embora o contexto da prática do crime de desobediência por violação da obrigação de dever de submissão às provas estabelecidas para a deteção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas esteja comummente associado à ocultação desse mesmo estado, o certo é que, os bens jurídicos tutelados pelos tipos incriminadores são substancialmente distintos.
Entendemos, pois, que assiste razão ao arguido quando sustenta tratarem-se de crimes de distinta natureza.»
Como se viu o crime de desobediência imputado ao arguido resulta da sua recusa  em sujeitar-se ao exame de pesquisa de álcool no sangue.
Estão em causa as necessidades de prevenção decorrentes do interesse público em que a condução rodoviária, fazendo-se com respeito dos direitos individuais, se processe em condições mínimas de segurança para toda a comunidade.
Nessa ponderação o regime legal vigente confere ao cidadão a liberdade de não se submeter ao exame de pesquisa de álcool – tal como sucedeu no caso dos autos. No entanto – como tudo na vida – essa liberdade individual tem o seu custo. Implicando a recusa a submeter-se a exame a punição por crime de desobediência, nos termos do artigo 152º nº 3 do C.E.
Tudo resulta das razões de prevenção que estão na origem da fixação do regime da proibição de condução sob influência de álcool, de as estradas servirem toda a comunidade, obrigando a que a atividade da condução no espaço de utilização comunitária, esteja sujeita a regras que permitam a fruição/utilização comunitária, em padrões mínimos de segurança.
É esta obrigação de aqueles que utilizam a via pública respeitarem as regras respeitantes à segurança de todos os utilizadores desse espaço comunitário destinado à deslocação das pessoas, utilização em segurança para todo os utentes, que subjaz à fixação do regime da proibição de condução sob influência de álcool, e que dá sustentação, está por detrás, da sanção penal por desobediência a todos aqueles que se recusem a submeter-se ao teste destinado à pesquisa de álcool no sangue.
No caso, o que está verdadeiramente em causa é a desobediência a essa regra do código que rege a circulação estradal, que comina a sanção a que estão sujeitos os «que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a deteção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência», e não a desobediência estabelecida como tipo fundamento. Embora reporte a este tipo criminal, previsto no art. 348º, nº 1 al. a), do CP, a norma legal que incrimina aquele comportamento concreto, que o qualifica como desobediente, e suscetível de integrar aquele ilícito penal, é a dita norma extravagante constante do art. 152º, nº 3, do CE.
A reforçar esta constatação, e manifesta ligação identitária nos bens jurídicos subjacentes aos dois preceitos em apreciação, também não podemos deixar de salientar que este crime de desobediência ao direito rodoviário é igualmente sempre punido com uma pena acessória de proibição de conduzir, conforme previsto no art. 69º, nº 1 al. c), do CP, e os condutores que se recusam realizar o teste do álcool são proibidos por lei de retomarem a condução, conforme se extrai do disposto no nº 4 do art. 152º do Código da Estrada.

Por estas razões, revemo-nos no que bem se alegou no recurso interposto, e que aqui transcrevemos:
“(…)
19. Não podemos de forma alguma esquecer que o crime de desobediência nestes autos imputado ao arguido não é um crime de desobediência comum pois traduz, na verdade, um crime de desobediência que está previsto e punido pelo art. 348º, nº 1, alínea a), e 69º, nº 1, alínea c), ambos do Código Penal, por referência ao art. 152º, nrs. 1, alínea a) e 3, do Código da Estrada.
20. Ou seja, estamos perante um crime de desobediência especial na medida em que está previsto em legislação rodoviária o que significa que é, também por isso, um crime de natureza rodoviária.
21. Este crime especial de desobediência diz respeito, precisamente, à situações em que um indivíduo é fiscalizado quando conduz um veículo na via-pública e recusa realizar o teste de pesquisa de álcool no sangue violando ordem proferida nessa sentido pela autoridade policial fiscalizadora que, por sua vez, tinha como finalidade aferir se aquele condutor estava a conduzir embriagado em ordem a acautelar e preservar a segurança rodoviária.
22. Ademais, este crime também é sempre punido com uma pena acessória de proibição de conduzir e os condutores que se recusam realizar o teste do álcool são proibidos por lei de retomarem a condução, conforme se extrai do disposto no nº 4 do art. 152º do Código da Estrada.
23. Ora, perante este denso conjunto de dados convergentes entre estes dois crimes, julgamos ser imperativo reconhecer que estas incriminações visam ambas proteger a segurança rodoviária, ainda que no tocante ao crime de desobediência haja igualmente a vontade legal de proteger a autonomia intencional do Estado e, por isso, estejamos neste caso perante um caso de uma incriminação com um bem jurídico misto - protecção da autonomia intencional do Estado e da segurança rodoviária – mas em que a protecção da segurança rodoviária assume, ainda assim, um papel decisivo, nuclear e mesmo caracterizador do tipo de ilícito»
Também a evolução do regime legislativo, e aturada ponderação de interesses prevalecentes, nos conduz uma sedimentação dos argumentos esgrimidos em favor da posição que subscrevemos.
Com efeito já o DL 124/90, de 14.04, precedido da necessária autorização legislativa, concedida pela Lei 31/89, de 23.08, previa o sancionamento da recusa da submissão aos testes legais para deteção de alcoolemia no exercício da condução rodoviária com o crime de desobediência.
Tal como demonstrou, de forma incontornável, o Acórdão do TC n.º 479/2010, de 09.12, acessível nos Acórdãos do Tribunal Constitucional, em http://www.dgsi.pt.
E desde o citado DL 124/90 o crime de desobediência tem-se mantido no ordenamento jurídico.
Com o teste de pesquisa de álcool visa-se, para além da recolha de prova perecível, prevenir a eventual violação de bens jurídicos valiosos (entre outros, a vida e a integridade física), que uma condução sob a influência do álcool pode causar – e, ao longo dos tempos, o legislador manteve o entendimento que a recusa à realização daquele teste tem relevo bastante para justificar a punição dessa conduta desobediente.
Na verdade, a recolha daquele meio de prova, bem como a recusa à obtenção do mesmo, visam prevenir e punir comportamentos que põem em perigo a segurança rodoviária e os valores pessoais e patrimoniais inerentes. Sendo este segmento dos bens jurídicos protegidos comum aos dois ilícitos criminais em apreço que os torna idênticos, ou da mesma natureza, designadamente para efeitos da revogação da suspensão provisória em apreço, tal como previsto na al. b) do nº 4, do art. 282º,do CPP.  
Em reforço do que vimos de exarar, citamos o que ficou vertido no acórdão do TRP, de 31/01/2024, proc. 474/22.9GDVFR-A.P1, com o relator desembargador Jorge Langweg, como apontado no parecer emitido pelo Digníssimo Procurador Geral Adjunto neste Tribunal:
«“I - O termo “mesma natureza” utilizado no artigo 13.º, nº 1, da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio, como é evidente – e pacífico - não diz respeito à natureza pública, semipública ou particular dos crimes, mas à sua essência ontológica e estrutura axiológica. II - Tendo um arguido sido condenado em pena de multa e numa pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo art. 348.º, n.º1, al. a), do CP, e pelo art. 152.º, n.º3, do Código da Estrada e constando no seu certificado de registo criminal uma condenação pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez previsto e punido pelo artigo 292º nº1, do Código Penal, não há qualquer dúvida em reconhecer que os crimes têm a mesma natureza: são crimes rodoviários. III - Essa identidade da natureza dos crimes justifica, ainda, que se conclua existir algum perigo de prática de novos crimes rodoviários por parte do arguido, afastando a possibilidade de não transcrição da nova condenação dos certificados de registo criminal a que se referem os art. 10.º n.º5 e 6 da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio, tendo em conta o estatuído no artigo 13.º, nº 1, da Lei n.º 37/2015, de 5 de Maio.”.
Ou seja, e ao contrário do que assevera a decisão recorrida, em causa estão crimes da mesma natureza, afinal ambos são crime rodoviários, tanto mais que a desobediência imputada ao arguido não decorre tão só do tipo legal do art.º 348, n.º1, al. a) do CPenal, mas sim, e em conjugação, do tipo previsto no art.º 152, n.º3 do Código da Estrada.
O mesmo é dizer que entre ambos os crimes há uma comum estrutura axiológico.»
É este também o nosso entendimento.
Sendo esta solução legal encontrada a que satisfaz a eficácia preventiva das medidas de combate à condução sob o efeito do álcool (para além de pôr em causa os valores inerentes ao dever de respeito pela autoridade), os bens que a norma visa proteger assim como a perigosidade das condutas a prevenir justificam e legitimam a medida normativa em questão.
Face a tudo o exposto, afigura-se-nos, salvo o devido respeito por opinião diversa, que a solução acolhida na sentença sob escrutínio não tem sustentação legal, o que acarreta um erro na qualificação jurídica encontrada, um erro de julgamento, que urge corrigir.
Não se mostrando inválidas as decisões tomadas pelo Ministério Público em sede de inquérito respeitantes à revogação da S.P.P. aplicada ao arguido, bem como a consequente dedução da acusação pública, tal como havia já sido aquilatado quando proferido o despacho previsto no art. 311º, do CPP
*
Não estando em causa a matéria de facto provada, que se mostra definitivamente fixada, cumpre agora proceder ao seu enquadramento jurídico penal.
Do crime de desobediência
O arguido está acusado pela prática de um crime de desobediência, previsto e punido pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, conjugado com o artigo 152.º, nº1, alínea a) e n.º 3, do Código da Estrada, incorrendo ainda na pena acessória de inibição de conduzir prevista no artigo 69.º, n.º 1, alínea c) do Código Penal.
Apurados e assentes que estão os factos cumpre agora fazer o seu enquadramento jurídico-legal.
Estatui o artigo 348.º do Código Penal, no seu n.º 1, que “quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:
a) uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples”.
Por seu turno, prescreve o artigo 152.º, n.º 3, do Código da Estrada que “as pessoas referidas nas alíneas a) e b) do n.º 1 que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas são punidas por crime de desobediência”, acrescentado a alínea a), do n.º 1, do aludido preceito que “devem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção dos estados de influenciado pelo álcool ou por substâncias psicotrópicas: a) Os condutores”.

São, assim, elementos do tipo objetivo do crime de desobediência:
a) a ordem ou mandado legítimo, formal e substancialmente;
b) emanar a ordem de autoridade competente para a dar;
c) a regular comunicação ao seu destinatário;
d) o não acatamento da mesma ordem.

“Substancialmente, pratica um acto de desobediência quem faltar à obediência devida. No adjectivo «devida» estão implícitos os requisitos que a lei seguidamente aponta. Só é devida obediência a ordem ou mandado legítimos.
Condição necessária de legitimidade é a competência em concreto da entidade donde emana a ordem ou o mandado. Para que o destinatário saiba se está ou não perante uma ordem ou um mandado desse tipo, torna-se indispensável que este chegue ao seu conhecimento e pelas vias normalmente utilizadas – que lhe seja regularmente comunicado. Faltar à obediência devida não constitui, porém, por si só, facto criminalmente ilícito. A dignidade penal da conduta exige, para além do que fica dito, que o dever de obediência que se incumpriu tenha uma de duas fontes: ou uma disposição legal que comine, no caso, a sua punição; ou, na ausência desta, a correspondente cominação feita pela autoridade ou pelo funcionário competentes para ditar a ordem ou o mandado.” (Monteiro, Cristina Líbano, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo III, Coimbra Editora, pág. 351.)
Concretizando, desde logo, a ordem ou mandado (que encerra uma norma que se consubstancia numa imposição da obrigação de praticar ou abster-se de praticar determinado ato, o que configura, afinal, uma obrigação de “facere” ou “non facere” - Por conseguinte, “(…) o crime de desobediência tanto pode ser cometido por acção como por omissão. No primeiro caso, dado que nenhum resultado faz parte da factualidade típica – pune-se a actividade que contrarie uma ordem ou mandado legítimos e tão-só isso – estaremos perante um crime formal. No segundo, sanciona-se o simples deixar de fazer aquilo que foi legitimamente ordenado ou mandado, independentemente das consequências ou do resultado: omissão pura. A classificação tem, desde logo, relevo a nível da determinação do momento da consumação do delito. Em termos gerais e simples, a desobediência consuma-se com a prática do acto proibido ou com a omissão do acto determinado (…)” (Monteiro, Cristina Líbano, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo III, Coimbra Editora, pág. 352). tem que ser legítima, aferindo-se tal legitimidade pela sua legalidade substancial ou formal, o que equivale a dizer que é necessário, por um lado, que aquela ordem tenha expressão ou cobertura numa disposição legal, e, por outro, que a mesma observe as formalidades estabelecidas pela lei para a sua validade.
Em segundo lugar, a ordem deve emanar de autoridade ou funcionário competente, de alguém que tenha o poder legal de a emitir, ou seja, “deve caber dentro das atribuições funcionais próprias ou delegadas de quem a profere: naquele momento, para aquela matéria e para aquele lugar” (Monteiro, Cristina Líbano, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, tomo III, Coimbra Editora, pág. 356).
Por fim, a ordem tem que ser regularmente comunicada, o que significa que o seu destinatário deve recebê-la e, sobretudo, entendê-la; isto é, exige-se que este tenha conhecimento do que lhe é efetivamente imposto, que entenda “o conteúdo e o sentido da intimação”. Compreende-se, por isso, que a transmissão da ordem deva ser feita em consonância com os termos fixados na lei ou, nada dispondo esta para o efeito, por um qualquer meio, contanto que idóneo, pelo qual o destinatário obtenha, de facto, o conhecimento da mesma.
Temos, pois, que existe uma disposição legal a consagrar o dever de obediência e que comina, no caso, a sua punição e, para além disso, embora desnecessária, existiu uma ordem dada (consubstanciada na imposição que lhe foi dada pelos elementos da patrulha da G.N.R.), ordem essa que é legítima (porque proferida ao abrigo do artigo 152.º, n.º 1, do Código da Estrada), emitida pela autoridade competente (autoridade ou agente da autoridade, em conformidade com o artigo 153.º, n.º 1, do Código da Estrada), que foi regularmente comunicada ao arguido e de cujo teor o arguido ficou ciente.
Por outro lado, o tipo legal de crime de desobediência é um crime punível apenas a título doloso, surpreendendo-se o mesmo sempre que alguém incumpre, consciente e voluntariamente, norma legal ou uma ordem ou mandado, legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente.
No caso, também os elementos subjetivos do crime se mostram preenchidos, na medida em que, ao proceder como descrito, agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, com a intenção de desobedecer a uma norma legal a que devia obediência e à ordem que sabia legítima, por resultar diretamente dessa norma legal, e que lhe foi regularmente comunicada, tendo sido advertido para o facto de que a recusa de se submeter a teste de pesquisa de álcool no sangue o faria incorrer na prática de um crime de desobediência, mais sabendo o arguido que a sua conduta era proibida e punida por lei e o fazia incorrer em responsabilidade criminal.
Ademais, estando, como estava, ao seu alcance evitar a prática dessa conduta, é o mesmo merecedor de um juízo de censura, razão pela qual deve o arguido ser considerado culpado.
Assim, inexistindo qualquer causa de exclusão da culpa ou da ilicitude que deva ser considerada, deve, então, o arguido ser condenado pela prática do crime de que vem acusado.
*
Como vemos, dúvidas não restam ter o arguido, com a sua conduta, preenchido o tipo objetivo e subjetivo do crime de desobediência, p. e p. pelos artigos 348.º, n.º 1, alínea a) e 69.º, n.º 1, alínea c), ambos do Código Penal e 152.º, n.º 1, alínea a) e n.º 3 do Código da Estrada, com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
Impõe-se, agora, proceder à escolha e determinação da medida concreta da pena.
A escolha da pena e a fixação da sua medida têm de ser feitas de harmonia com o disposto nos art.s 40º, 70º e 71º do CP, ou seja, em função, da culpa do agente sem nunca a poder ultrapassar, e das exigências de prevenção, tendo em vista a proteção dos bens jurídicos e a reintegração daquele, mas dando-se prevalência às penas não detentivas da liberdade sempre que estas assegurem de forma adequada e suficiente os fins das penas.

O artigo 70.º, do CP consagra o critério de escolha da pena:
“Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.”

Em sede de determinação da pena concreta importa ter presente o disposto nos artigos:
- 40.º do CP, Com a epígrafe de "finalidades das penas (...)", aquele preceito legal dispõe que:
"1. A aplicação de penas (...) visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade.
2. Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa".
- 71.º do CP, O qual preceitua que:
“1. A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção.
2. Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou contra ele, considerando, nomeadamente:
a) o grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;
b) a intensidade do dolo ou da negligência;
c) os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;
d) as condições pessoais do agente e a sua situação económica;
e) a conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;
f) a falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta de ser censurada através da aplicação da pena”.

Tais disposições legais conferem ao intérprete e ao aplicador do direito critérios gerais, mais ou menos seguros e normativamente estabilizados, para efeito de medida da reação criminal, sendo que o preceituado sob o número 2 do indicado artigo 40.º constitui inegavelmente um afloramento do princípio geral e fundamental de que o direito penal é estruturado com base na culpa do agente, constituindo a medida da culpa uma condicionante da medida da pena de forma a que esta não deve ultrapassar aquela.
A pena serve finalidades de prevenção geral e especial, sendo delimitada no seu máximo inultrapassável pela medida em que se dimensione a culpa.
«Só finalidades relativas de prevenção, geral e especial, não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reações específicas.
A prevenção geral assume, com isto, o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação de delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida; em suma, na expressão de Jakobs, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma infringida».
Mas «em caso algum pode haver pena sem culpa ou a medida da pena ultrapassar a medida da culpa», o que «não vai buscar o seu fundamento axiológico, (...), a uma qualquer conceção retributiva da pena, antes sim ao princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal. (…) A culpa é condição necessária, mas não suficiente, da aplicação da pena; e é precisamente esta circunstância que permite uma correta incidência da ideia de prevenção especial positiva ou de socialização» Cf. Figueiredo Dias in As Consequências Jurídicas do Crime, Edição Notícias Editorial, 1993, páginas 72 e 73.
“(...) 1) toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial.
2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa.
3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto ótimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico.
4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excecionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais” Cf. Figueiredo Dias, in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, edição de 2011, página 84.

Fernanda Palma, in “As Alterações Reformadoras da Parte Geral do Código Penal na Revisão de 1995: Desmantelamento, Reforço e Paralisia da Sociedade Punitiva”, nas “Jornadas sobre a Revisão do Código Penal”, edição de 1998, da Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa – AAFDL –, pág. 25, escreve que «a proteção de bens jurídicos implica a utilização da pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos (prevenção geral negativa), incentivar a convicção de que as normas penais são válidas e eficazes e aprofundar a consciência dos valores jurídicos por parte dos cidadãos (prevenção geral positiva). A proteção de bens jurídicos significa ainda prevenção especial como dissuasão do próprio delinquente potencial».
 “A medida da pena é fornecida pela medida da necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente (...). Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas. É este o único entendimento consentâneo com as finalidades da aplicação da pena: tutela dos bens jurídicos e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade, e não compensar ou retribuir a culpa. Esta é, todavia, pressuposto e limite daquela aplicação, diretamente imposto pelo respeito devido à eminente dignidade da pessoa do delinquente” Anabela Miranda Rodrigues, O Modelo de Prevenção na Determinação da Medida Concreta da Penas, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano XII, n.º 2 (abril/junho de 2002).
Na mesma obra, esta autora apresenta três proposições em jeito de conclusões e da seguinte forma sintética:
“Em primeiro lugar, a medida da pena é fornecida pela medida de necessidade de tutela de bens jurídicos, isto é, pelas exigências de prevenção geral positiva (moldura de prevenção). Depois, no âmbito desta moldura, a medida concreta da pena é encontrada em função das necessidades de prevenção especial de socialização do agente ou, sendo estas inexistentes, das necessidades de intimidação e de segurança individuais.
Finalmente, a culpa não fornece a medida da pena, mas indica o limite máximo da pena que em caso algum pode ser ultrapassado em nome de exigências preventivas”.
E finaliza, afirmando: “É este o único entendimento consentâneo com as finalidades da aplicação da pena: tutela de bens jurídicos e, na medida do possível, a reinserção do agente na comunidade, e não compensar ou retribuir a culpa. Esta é, todavia, pressuposto e limite daquela aplicação, diretamente imposta pelo respeito devido à eminente dignidade da pessoa do delinquente”.
Dito de outro modo, as penas são fixadas em função da culpa e da prevenção geral e especial.
Toda a pena tem, como suporte axiológico-normativo uma culpa concreta, não havendo pena sem culpa – nulla poena sine culpa - e constituindo esta limite máximo da pena.
Através da prevenção geral busca-se dar satisfação aos anseios comunitários da punição do caso concreto, tendo em atenção de igual modo a necessidade premente da tutela dos bens e valores jurídicos.
Com o apelo à prevenção especial aspira-se em conceder resposta às exigências da socialização (ou ressocialização) do agente em ordem a uma sua integração digna no meio social Cf. neste sentido, entre muitos outros, vejam-se os Acórdãos do Venerando Supremo Tribunal de Justiça de 25.06.2009, Processo n.º 726/00.9SPLSB.S1 – 5.ª, relatado pelo Senhor Conselheiro Arménio Sottomayor, 10.02.2010, Processo n.º 217/09.2JELSB.S1 - 3.ª Secção, relatado pelo Senhor Conselheiro Henriques Gaspar, 28.04.2010, Processo n.º 1103/05.0PBOER.S1 - 3.ª Secção, relatado pelo Senhor Conselheiro Fernando Fróis, ambos in www.stj.pt/jurisprudência/sumáriosdeacórdãos /secção criminal, 30.11.2011, Processo n.º 238/10.2JACBR.S1, relatado pelo Senhor Conselheiro Raul Borges, 20.06.2012, Processo n.º 443/10.1GBLLE.E2.S1, relatado pelo Senhor Conselheiro Pires da Graça, e 06.02.2013, Processo n.º 593/09.7TBBGC.P1.S1, relatado pelo Senhor Conselheiro Sousa Fonte, in www.dgsi.pt/jstj.
No caso vertente, e como já se assinalou:
O crime de desobediência, previsto p. e p. pelo art.º 348.º n.º 1 al. a) do C. Penal, com referência ao Art.º 152.º n.º 3 do C. Estrada, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
Ou seja, o crime imputado ao arguido, é punível com pena de prisão ou multa, o que implica previamente a escolha da pena.
Vejamos, então, a questão da escolha da pena relativa a este ilícito.
No presente caso, quanto ao crime de desobediência, as exigências de prevenção geral são acentuadas, porquanto se verifica na nossa sociedade uma atuação recorrente e persistente na prática deste crime, mas também porque se vem criando um sentimento de impunidade, estando os cidadãos convencidos que podem ignorar as normas a que devem obediência e as ordens legítimas que lhes são transmitidas sempre que as mesmas não lhes convêm.
Quanto às finalidades de prevenção especial, há a atender o facto do arguido se encontrar social e familiarmente inserido, e não ter antecedentes criminais à data dos factos.
«Ora, sendo a escolha das penas “…determinada apenas por considerações de natureza preventiva” (obra supra citada, em anotação ao art.º 70º), as de prevenção geral e as de prevenção especial, que em muitos casos são “finalidades aditivas … já casos existirão em que as duas espécies de finalidades poderão em certa medida conflituar. E, mais importante ainda, há em todos os casos que ganhar clareza sobre a questão de saber como devem comportar-se mutuamente as duas espécies de finalidades no momento decisivo de o juiz determinar o quantum exacto de pena com que concretamente vai punir um certo crime … ” (Prof. Figueiredo Dias, in Direito Penal – Parte Geral, Tomo I, 2ª Edição, pág. 79).
Que continua: “Primordialmente, a finalidade visada pela pena há-de ser a da tutela necessária dos bens jurídico-penais no caso concreto; e esta há-de ser também por conseguinte a ideia mestra do modelo da medida da pena … sendo por isso uma razoável forma de expressão afirmar como finalidade primária da pena o restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime.”, a também chamada prevenção geral positiva ou de integração.
 No caso sub judice, este antagonismo ou conflitualidade entre a prevenção geral positiva e as razões de prevenção especial mostram-se verificadas. Sendo certo que o arguido está social, laboral e familiarmente integrado, e não apresenta antecedentes criminais. Ou seja, no caso vertente as exigências apresentam-se com diferentes graus de intensidade, elevado, nas de caráter geral, e médio quanto às especiais.
Assim sendo, a questão da escolha da pena terá que ser decidida por recurso a um juízo de culpa, porque, como vimos, em caso algum a medida da pena pode ultrapassar a medida da culpa.
Ora, nesse âmbito, e face a todo o conjunto de circunstâncias ponderadas, afigura-se-nos que ajustado optar pela aplicação da pena de multa, tendo até em atenção o disposto no artigo 70.º do Código Penal. Segundo o qual «Se ao crime forem aplicáveis, em alternativa, pena privativa e pena não privativa da liberdade, o tribunal dá preferência à segunda sempre que esta realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição». Considerando o desvalor global da conduta do arguido aqui em causa, as exigências de prevenção geral e especial que as circunstâncias concretas exigem e a forma como os factos foram praticados.
O facto de beneficiar de inserção social, familiar e estar laboralmente integrado, não é superado pela ilicitude que se retira da sua conduta, a que acresce a ausência de antecedentes criminais à data da prática dos factos. Pelo que, se nos afigura que, no caso, as aludidas finalidades da punição se mostram salvaguardadas com a opção de aplicar pena de multa.
A necessária tutela dos bens jurídicos protegidos pela incriminação do crime em causa e a estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias, assim como considerações de prevenção especial de socialização, fundamentam tal escolha.

Passemos à determinação da medida concreta da pena de multa.
Já sabemos que ela é feita em função das necessidades de prevenção e da culpa do agente. Para tanto, o tribunal deve atender a todas as circunstâncias que, não sendo típicas, depuserem a favor e contra o agente do crime (artigo 71.º do Código Penal). Entre outras, haverá então que ponderar o grau de ilicitude do facto, o seu modo de execução, a gravidade das suas consequências, a grau de violação dos deveres impostos ao agente, a intensidade do dolo ou da negligência, os sentimentos manifestados no cometimento do crime, a motivação do agente, as condições pessoais e económicas do agente, a conduta anterior e posterior ao facto, e a falta de preparação do agente para manter uma conduta lícita (n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal).
Posto isto.

Em face da factualidade apurada temos:
- O grau de ilicitude dos factos é mediano e não são de desprezar as suas consequências;
- O dolo com que o arguido atuou atingiu intensidade elevada na forma de dolo direto;
- São relevantes as exigências de prevenção geral dada a frequência com que este tipo de crime é cometido;
- Não são significativas as exigências de prevenção especial já que o arguido não tem antecedentes criminais, encontra-se social e familiarmente inserido.

Assim, atenta a moldura abstrata prevista – multa de 10 a 120 dias (arts. 47.º, n.º 1 e 348º, n.º 1, do Código Penal) – e o que fica dito, consideramos a pena de 60 dias de multa, porque situada no meio da moldura penal, adequada aos fins visados e perfeitamente suportada pela culpa do arguido.
O critério legal para a fixação do quantitativo diário da multa encontra-se fixado no artigo 47.º, n.º 2 do Código Penal, havendo, para tanto, que atender, à situação económica e financeira do condenado e aos seus encargos pessoais, sem esquecer que, se por um lado, enquanto pena criminal, para alcançar os fins para que é decretada em cada caso, ela tem que constituir sempre um sacrifício para o condenado, por outro, a própria lei consagra determinados mecanismos que atenuam aquele sacrifício, v.g., o pagamento em prestações.
Assim, considerando que o arguido é gerente de uma empresa de engenharia e estruturas metálicas, da qual é sócio, vive com a mulher, empresária na área da gestão de condomínios, e 3 filhas, com 9, 6 e 3 anos de idade, habita em casa própria, tem um apartamento no ..., que se encontra arrendado e lhe confere um rendimento mensal de € 800,00, não sendo considerar o informado vencimento de € 863,00 mensais, que não se coaduna com o nível de vida evidenciado, lembre-se que tem veículo automóvel e motociclo próprios, afigura-se-nos razoável fixar aquele quantitativo diário em € 12,00.
Em conclusão, deve o arguido ser condenado na pena de 60 dias de multa à taxa diária de € 12,00, perfazendo a multa global de € 720,00.

Da sanção acessória
As penas acessórias dependem, necessariamente, da aplicação de uma pena principal, não constituindo, porém, efeito automático destas.
Como salienta Paulo Pinto de Albuquerque, (in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3.ª ed., Universidade Católica Editora, pág. 340), «[a] pena acessória é a consequência jurídica do crime aplicável ao agente imputável em cumulação com uma pena principal, mas cuja autonomia se manifesta porque (1) a sua aplicação depende da alegação e prova de pressupostos autónomos, relacionados com a prática do crime (2) a sua aplicação depende da valoração dos critérios gerais de determinação das penas, incluindo a culpa, e (3) a pena é graduada no âmbito da moldura autónoma fixada na lei. Daí a pena acessória nada ter a ver com o efeito da pena, isto é, a consequência automática e necessária do crime aplicável em cumulação com a pena principal».
A pena acessória de proibição de conduzir veículos a motor traduz-se, pois, numa censura adicional pelo crime de desobediência resultante de recusa à sujeição a exame de pesquisa de álcool no sangue.

Ora, prescreve o artigo 348º, n.º 1 al. a), do Código Penal:

“1 - Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se:
a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples;”
Por sua vez, dispõe o artigo 69º, n.º 1, al. c), do mesmo diploma:
“1 - É condenado na proibição de conduzir veículos com motor ou na proibição de pilotar aeronaves com ou sem motor, consoante os casos, por um período fixado entre 3 meses e 3 anos quem for punido:
a)…”
b)…”
c) Por crime de desobediência cometido mediante recusa de submissão às provas legalmente estabelecidas para deteção de condução de veículo ou de pilotagem de aeronave com ou sem motor sob efeito de álcool, estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo.”

A prática do crime de desobediência, pelo qual o recorrente vai condenado, para além da pena principal é ainda sancionada com proibição de conduzir veículos com motor por um período entre 3 meses e 3 anos (art. 69º, n.º 1, al. a), do Código Penal).
Quanto à pena acessória impõe realçar-se o saber do Prof. Figueiredo Dias que discorre pela seguinte forma: “Se, como se acentuou, o pressuposto material de aplicação desta pena deve ser que o exercício da condução se tenha revelado, no caso, especialmente censurável, então essa circunstância vai elevar o limite da culpa do (ou pelo) facto. Por isso, à proibição de conduzir deve também assinalar-se e (pedir-se) um efeito geral de intimidação, que não terá em si nada de ilegítimo, porque só pode funcionar dentro dos limites da culpa. Por fim, mas não por último, deve esperar-se desta pena acessória que contribua, em medida significativa, para a emenda cívica do condutor imprudente e leviano" - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas, 1993, pags. 164 e 165.
Mais refere o mesmo autor, “A pena tem, sempre, o fim de servir para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força de vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal. É o instrumento, por excelência destinado a revelar perante a comunidade que a ordem jurídica é inquebrantável, apesar de todas as violações que tenham lugar”. Temas Básicos da Doutrina Penal, pags. 74 e ss.
A sanção agora em causa tem, pois, a natureza de pena acessória, traduzindo-se numa censura adicional pelo crime praticado.
Quanto às suas finalidades, deve assinalar-se um efeito de prevenção geral de intimidação, e deve esperar-se desta pena acessória que contribua para a emenda cívica do condutor.
Esta pena acessória tem, assim, uma função preventiva adjuvante da pena principal, sendo a sua finalidade a intimidação da generalidade e dirigindo-se ainda à perigosidade do agente.
Não obstante, muito embora assentem em pressupostos distintos, quer a pena principal, quer a acessória, alicerçam-se num juízo de censura global pelo crime praticado. E pese embora a pena acessória tenha uma função preventiva adjuvante da pena principal, cuja finalidade não se esgota na intimidação da generalidade das pessoas, mas dirige-se, também, ao menos em alguma medida, à perigosidade do agente, reforçando e diversificando o conteúdo penal sancionatório da condenação, a determinação da sua medida é ainda feita por recurso aos critérios gerais constantes dos artigos 40º e 71º do Código Penal.
Ponderando todos os fatores já acima expendidos relativamente à escolha e determinação da medida da pena, às exigências de prevenção geral e de prevenção especial que a situação concreta acarreta, que não são relevantes, uma vez que o arguido beneficia de boa situação social, familiar e laboral e não tem antecedentes criminais, afigura-se que aquelas exigências de prevenção se mostrarão satisfeitas com a fixação da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 (cinco) meses, medida essa que se afigura adequada e proporcional, respeitando os artigos 18.º da Constituição da Republica Portuguesa e os artigos 40.º e 71.º, do Código Penal.
*
III – DISPOSITIVO

Nos termos apontados, os Juízes que integram esta Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar parcialmente procedente o recurso interposto e, consequentemente:

A) Revogar a sentença proferida no Tribunal recorrido, na qual se decidiu pela absolvição do arguido e declarou extinto o procedimento criminal;
B) Condenar o arguido AA, pela prática de um crime de desobediência, p. e p. pelas disposições conjugadas dos artigos artigo 348.º, n.º 1, alínea a) do Código Penal, com o artigo 152.º, nº1, alínea a) e n.º 3, do Código da Estrada, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 12,00 (doze euros), perfazendo a multa global de € 720,00 (setecentos e vinte euros).
c) Condenar, ainda, o mesmo arguido na pena acessória de inibição de conduzir prevista no artigo 69.º, n.º 1, alínea c) do Código Penal, por um período de 5 (cinco) meses.
*
Sem tributação, por não ser devida.
*
Notifique.
*
(A presente decisão foi elaborada e integralmente revista pelo seu signatário – artigo 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal).
Guimarães, 25 de março de 2025

Os Juízes Desembargadores

Relator - Júlio Pinto
1ª Adjunta – Paula Albuquerque
2º Adjunto – Pedro Freitas Pinto