I - Mesmo nas providências antecipatórias, o que está em causa é a salvaguarda provisória de uma situação que é de molde a fazer perigar a tutela efectiva do direito a acautelar, à qual apenas serve uma medida ou providência que se reconduz, de algum modo, ao objecto do pedido da acção respectiva.
II - A providência deve ser decretada sempre que se esteja ante uma lesão grave, atenta a importância patrimonial ou extrapatrimonial do direito ou do bem que aquele incide (objecto mediato) e que está em risco de ser sacrificado e não seja razoável exigir que tal risco seja suportado pelo titular do direito ameaçado, na medida em que a reparação de tal dano seja avultada ou mesmo impossível.
III - Os factos carreados para justificar o dano a salvaguardar não são de molde a inferir que se evidencia um risco de lesão grave e dificilmente reparável do direito à indemnização dos danos emergentes do sinistro/acidente descrito, aqui incluídos os que se reconduzem ao “tempo” de indisponibilidade do veículo acidentado.
Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este
Juízo Local Cível de Paredes – Juiz 1
Relatora: Isabel Peixoto Pereira
1º Adjunto: José Manuel Monteiro Correia
2º Adjunto: Francisca Micaela da Mota Vieira
I.
AA veio propor contra A... Companhia de Seguros, S.A. e B..., S.A procedimento cautelar comum, concluindo a final pedindo o pagamento (cautelar) pelas requeridas do valor da reparação já realizada de um veículo automóvel interveniente num acidente de viação que caracteriza na petição[1].
Reconduz-se à necessidade urgente de ver o pagamento da reparação do veículo Mercedes-Benz, com a matrícula ..-PL-.., segurado pela Apólice n.º ..., liquidado junto da oficina C..., Lda., no valor total de € 9.125,10, na medida em que o atraso no pagamento pelas Recorridas do valor necessário para fazer o levantamento da viatura têm feito com que o agregado familiar da Recorrente tenha despendido custos com deslocações para o trabalho. Estando, aliás, a viatura pronta para levantamento desde 25/10/2024, o cônjuge da Recorrente, que usava habitualmente o veículo tem utilizado serviços pagos de transporte – uber- para se deslocar para o trabalho, sendo certo também que a oficina se prepara para cobrar uma taxa de ocupação pelo não levantamento do veículo, sendo que não dispõe a A. de meios financeiros para pagar a reparação.
Em sede de oposição, a Requerida A... Companhia de Seguros, S.A. alegou que o direito que a Requerente pretende assegurar é o eventual direito ao pagamento da reparação do veículo, sendo que o meio próprio para exercer tal direito é uma ação com processo comum e não uma providência cautelar. A Requerida B..., S.A. também invocou erro na forma do processo, alegando que uma providência cautelar se destina a conservar ou antecipar o necessário à defesa de um direito ameaçado, o que não é o caso.
O tribunal concluiu que, mesmo que se verificasse a probabilidade séria da existência do direito da Requerente (direito a ser indemnizada no valor correspondente à reparação do seu veículo), não se verificava na situação posta à sua consideração o preenchimento do requisito de fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito. Assim é que a demora na resolução do litígio não potencia sério e eminente perigo de lesão grave e irreparável ao direito da Requerente, sendo que, estando em causa, como está, uma tutela antecipatória, a oncessão indiscriminada da proteção provisória poderia servir para alcançar efeitos inacessíveis ou dificilmente atingíveis num processo judicial comum.
Com base nesses fundamentos, o tribunal decidiu indeferir o procedimento cautelar.
É desta decisão que vem interposto o presente recurso, concluindo a recorrente mediante as seguintes conclusões:
A) Vem AA, Requerente nos autos de procedimento cautelar, notificada do despacho que decidiu o seu indeferimento pelo Tribunal a quo, interpor Recurso para o Venerando Tribunal da Relação do Porto.
B) A Recorrente propôs contra B..., S.A. e A..., COMPANHIA DE SEGUROS, S.A. um procedimento cautelar comum de natureza antecipatória, nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 362º do CPC.
C) A Recorrente pretendeu com a providência intentada que as Recorridas assumissem o pagamento da reparação de uma viatura, para poder efetuar o seu levantamento da oficina na qual foi reparada sob as ordens das Requeridas.
D) O veículo em causa é habitualmente conduzido pelo marido da Recorrente, o Sr. BB, que o utiliza diariamente para se deslocar para o seu emprego no Aeroporto ..., em ..., local que dista da sua habitação mais de 9 km.
E) A falta de pagamento da reparação do veículo automóvel à oficina C..., Lda. implica que a Recorrente não possa proceder ao levantamento do automóvel da oficina!
F) Como consequência, o seu marido necessita de continuar a arranjar alternativas diárias para se conseguir deslocar para o seu emprego porque se vê privado do veículo aqui em causa.
G) Um dos argumentos utilizados pela Recorrente para justificar o Periculum in Mora foi o facto de a oficina lhe ter transmitido que lhe iria começar a cobrar um valor diário para manter o veículo estacionado nas suas instalações, se o veículo não fosse rapidamente levantado das instalações, de valor ainda não definido.
H) O direito à solvabilidade financeira da Recorrente encontra-se seriamente ameaçado, pelo que a Recorrente tem a necessidade urgente de ver o pagamento da reparação do veículo Mercedes-Benz, com a matrícula ..-PL-.., segurado pela Apólice n.º ..., liquidado junto da oficina C..., Lda., no valor total de € 9.125,10.
I) O atraso no pagamento pelas Recorridas do valor necessário para fazer o levantamento da viatura têm feito com que o agregado familiar da Recorrente tenha despendido custos com deslocações para o trabalho.
J) A viatura está pronta para levantamento desde 25/10/2024, e desde essa data o cônjuge da Recorrente tem utilizado serviços pagos de transporte – uber.
K) O Tribunal a quo decidiu que não se mostrava demonstrado o requisito do Periculum in mora, através da seguinte fundamentação: Volvendo ao caso sob apreciação, compulsado o teor do requerimento inicial, ainda que se verificasse a demonstração sumária do primeiro dos mencionados requisitos, isto é, a probabilidade séria da existência do direito da Requerente (“fumus boni juris”) tido por ameaçado (direito a ser indemnizada no valor correspondente à reparação do seu veículo); por sua vez, nunca se teria por verificado o preenchimento do requisito que contende com a existência de fundado receio de que outrem, antes de proferida decisão de mérito, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito. Não se alcança que a demora na resolução do litígio possa potenciar sério e eminente perigo de, entretanto, tal direito ser gravemente lesado e de tal lesão ser dificilmente reparável em termos de tornar necessária e adequada a providência requerida. Por outras palavras, o eventual direito da Requerente a ser indemnizada no valor correspondente à reparação do seu veículo, não se afigura susceptível de sofrer lesão grave e dificilmente reparável. Pois, não deixará de poder ser exercido, em virtude do decurso do tempo, pelo qual perdurará uma eventual acção comum destinada a satisfazer tal pretensão.
L) Decidiu mal o Tribunal a quo ao não atender aos argumentos de índole económica apresentados pela Recorrente para decidir favoravelmente pelo decretamento da providência cautelar intentada.
M) Vem o Tribunal a quo referir que “o eventual direito da Requerente a ser indemnizada no valor correspondente à reparação do seu veículo, não se afigura susceptível de sofrer lesão grave e dificilmente reparável. Pois, não deixará de poder ser exercido, em virtude do decurso do tempo, pelo qual perdurará uma eventual acção comum destinada a satisfazer tal pretensão.”
N) O direito da Recorrente não deixará de poder ser exercido, mas é preciso analisar ao esforço financeiro da Recorrente, do agregado familiar da Recorrente, até que seja proferida uma decisão final no processo principal.
O) Importa ter em atenção de que a ameaça da oficina em cobrar uma taxa diária de estada da viatura, no caso de a decisão do processo principal vir a ser desfavorável à Recorrente – que é uma hipótese – poderá causar na Recorrente um grande abalo financeiro.
P) Em bom rigor, na grande parte das providências cautelares, há uma índole económica subjacente.
Q) No embargo de obra, por exemplo, há um requisito do prejuízo que a obra possa causar (Cfr. art.º 397.º nº 1 do CPC). Nesta providência cautelar especificada, o legislador quis acautelar um prejuízo.
R) O prejuízo em si pode ser económico ou outro, mas pode realmente ser um prejuízo económico.
S) No arresto (Cfr. art.º 391º do CPC), houve uma preocupação do legislador em criar uma providência que acautele os interesses económicos do credor que vislumbra a possibilidade do devedor perder o património suficiente para saldar a dívida.
T) Os motivos invocados supra deverão ser bastastes para que os Venerandos Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação do Porto alterem a decisão de indeferimento do procedimento cautelar não especificado, correndo os autos os seus ulteriores termos, até decisão final.
Conclui pedindo a revogação da decisão proferida pelo Tribunal a quo, com a prossecução dos ulteriores trâmites do procedimento cautelar intentado pela ora Recorrente.
Responderam as recorridas, pronunciando-se no sentido da improcedência do recurso.
Mais aduzindo a recorrida B... que sempre os pedidos formulados não visam conservar ou antecipar nada, mas antes obter uma decisão própria de uma acção de condenação, sendo que a que a apelante nem sequer alegou qualquer receio de lesão grave e irreparável de qualquer direito. Verifica-se, como tal, erro na forma do processo, o qual gera a nulidade, insanável, da providência requerida, com imediata rejeição da mesma (cf. artº 193º/1 e 2 do CPC). Ademais que a apelante não legitimidade activa para requerer a presente providência cautelar, que, como tal, também por este motivo, deverá ser liminarmente rejeitada.
E a D... a sua própria ilegitimidade.
II.
Visto o princípio decisório subjacente ao disposto no artigo 278º, n.º 3 do CPC (e ainda quando não assista razão às recorridas no que tange à ilegitimidade activa e passiva arguidas[2], como quanto ao erro na forma de processo), é uma única a questão a decidir no presente recurso, a de saber se os factos alegados pela recorrente caracterizam uma situação de necessidade de tutela cautelar que possa justificar a providência requerida.
Caberá, pois, considerar a matéria sob os artigos seguintes da petição/requerimento inicial:
22.º O veículo aqui em causa é habitualmente conduzido pelo marido da Requerente, o Sr. BB, que o utiliza diariamente para se deslocar para o seu emprego no Aeroporto ..., em ..., local que dista da sua habitação mais de 9 km.
23.º O não pagamento da reparação do veículo automóvel à oficina C..., Lda. implica que a Requerente não possa proceder ao levantamento do automóvel da oficina!
24.º Como consequência, o seu marido, necessita de continuar a arranjar alternativas diárias para se conseguir deslocar para o seu emprego porque se vê privado do veículo aqui em causa porque a 2ª Requerida, inesperadamente e sem justificação, não assume o pagamento da reparação, quando no dia 30/09/2024, deu ordem de reparação!!
25.º A acrescentar a tudo quanto se expôs, a oficina irá começar a cobrar um valor diário à Requerente para manter o carro estacionado nas suas instalações, se o veículo não for rapidamente levantado das instalações, de valor ainda não definido.
26.º Dado o exposto, o direito da Requerente, encontra-se seriamente ameaçado, pelo que a Requerente, tem a necessidade urgente de ver o pagamento da reparação do veículo Mercedes-Benz, com a matrícula ..-PL-.., segurado pela Apólice n.º ..., liquidado junto da oficina C..., Lda., no valor total de € 9.125,10.
27.º A presente providência constitui o meio adequado para assegurar a efetividade do referido direito e, por isso, requer que seja decretada, requerendo, ainda, a inversão do contencioso, nos termos do artigo 369º, n.º 1, do CPC.
Ora,
Procedimentos cautelares são instrumentos processuais destinados à obtenção de uma providência ou medida para acautelar a eficácia de uma decisão judicial. São a vertente adjetiva das medidas cautelares, conjunto de actos processuais tendentes à obtenção da pretensão de direito material deduzida, sendo esta a providência (pedido) que é solicitada para acautelar o direito material a definir na ação principal.
Destinam-se a garantir a utilidade prática da acção principal. São garantia do direito à efectiva tutela jurisdicional, que se visa obter com o processo principal, evitando danos, que possam advir da demora, para o efeito útil da acção. São, pois, instrumentos de eficácia do processo principal. Recorre-se às providências cautelares quando a regulação dos interesses não pode aguardar pela decisão definitiva, sendo necessária, para assegurar a utilidade da decisão final e a efectividade da tutela jurisdicional, uma composição provisória do litígio, que vai acautelar a situação até à decisão definitiva.
Conforme refere Alberto dos Reis, Código de Processo Civil, Anotado, vol. I, 3ª ed., págs.623 e segs., que seguiremos muito de perto, para a reconstituição exacta da figura da providência cautelar, não basta conhecer os requisitos de que depende o seu sucesso, sendo necessário, também, definir a sua função jurisdicional. Ora, sob este aspecto, o traço fundamental a assinalar é o de que a providência cautelar não se propõe dar realização directa e imediata ao direito substantivo, mas tomar medidas que assegurem a eficácia duma providência subsequente, esta destinada à actuação do direito material. O que significa que a 1ª é posta ao serviço da 2ª, sendo que, esta é que há-de definir, em termos definitivos, a relação jurídica litigiosa. Daí que aquela tenha carácter provisório e esta tenha carácter definitivo (cfr. o art.383º, do C.P.C.).
O processo cautelar é o instrumento de preservação do fim do processo – tutela jurisdicional do caso concreto. É “…na expressiva síntese de CALAMANDREI, “garantia da garantia”, caracterizando-se a sua natureza por uma dupla instrumentalidade”, tendo por fim a proteção da garantia, isto é, através da sua garantia, do seu fruto (a providência cautelar), garantir a produção do efeito útil final – a decisão da ação principal”[3].
Permite assegurar a validade e eficácia da decisão através da adopção de medidas (providências) que actuam ao nível da realidade prática por forma a preservar, acautelar, o efeito útil a produzir pela acção principal. A decisão cautelar não traduz, em regra[4], uma antecipação da decisão principal, embora possa conduzir à produção de alguns dos efeitos próprios desta. Antes tem uma natureza preventiva, pois visa acautelar e prevenir que, no período que decorre entre o momento em que a providência é proposta e aquele em que a decisão da acção principal produz efeitos, não ocorra situação que inviabilize a utilidade da mesma.
Ou, se quisermos dizer de outro modo, segundo a jurisprudência, toda a providência cautelar tem como objetivo a garantia do efeito útil da acção, prevenindo a ocorrência ou a continuação de danos ou antecipando os efeitos que as medidas definitivas buscam, por forma a evitar o periculum in mora, traduzido no fundado receio de ocorrência de lesão grave e dificilmente reparável do direito que se pretende acautelar com a delonga da acção. No fundo, procura a imediata tutela do direito afetado em moldes tais que, se a mesma não ocorrer, o requerente suportará uma lesão grave e irreparável ou cuja reparação se mostre difícil [artigo 362º do CPC].
Também Rita Lynce de Faria reconhece a inadmissibilidade na nossa ordem jurídica de uma “tutela cautelar não instrumental”, em que esta espécie de tutela passasse a ser um fim em si mesma, configurando independência e definitividade, comprometendo o fim para a qual foi concebida. Cfr. A Função Instrumental da Tutela Cautelar Não Especificada, 2003, p. 221-230.
No plano da sua função, distinguem-se dois tipos diferenciados de providências: as conservatórias e as antecipatórias [artigo 362º, 1, do CPC]. As primeiras visam acautelar o efeito útil da ação principal, assegurando a permanência do quadro existente quando se despoletou o litígio, e as segundas garantem a antecipação da realização do direito que previsivelmente será reconhecido na ação principal. Por providência conservatória entende-se aquela que visa manter inalterada a situação, de facto ou de direito, existente, evitando alterações prejudiciais[5]. Por providência antecipatória entende-se aquela que antecipa a decisão ou uma providência executiva futura, sem prejuízo de, no primeiro caso, poder também antecipar, de outro modo, a realização do direito acautelado[6].
Deste modo, constituindo a providência cautelar, sem prejuízo do regime da inversão do contencioso (art. 369), a antecipação duma providência definitiva, de natureza declarativa ou executiva (…), o procedimento que visa a sua obtenção está sempre na dependência duma acção em que o autor faz valer o direito – ou o interesse tutelado – que através dele visa acautelar[7]. É, pois, de atentar na relação de dependência existente entre o procedimento cautelar e a acção principal (instrumentalidade do procedimento em relação à acção principal), pois ambos os processos estão intimamente relacionados, sendo que a produção do efeito útil da acção principal depende da eficácia da decisão do procedimento cautelar.
A causa de pedir do procedimento e a da acção coincidem, ao menos em parte, sendo que, por definição, não coincide o pedido formulado.
As providências antecipatórias visam e atenta a urgência da situação carecida de tutela a antecipação da realização do direito que previsivelmente será reconhecido na acção principal e será objecto de execução. «As medidas deste tipo excedem a natureza simplesmente cautelar ou de garantia que caracteriza a generalidade das providências ficando a um passo das que são inseridas em processo de execução para pagamento de quantia certa, entrega de coisa certa ou prestação de facto positivo ou negativo. Dentro deste núcleo de medidas cautelares integram-se a restituição provisória da posse; os alimentos provisórios e o novo procedimento cautelar de reparação provisória. Em qualquer destes casos se constata que as providências decretadas não se limitam a assegurar o direito que se discute na acção principal nem tão pouco a suspender determinada actuação, garantindo-se, desde logo e independentemente do resultado a alcançar na acção principal, um determinado efeito que acaba sempre por ter carácter definitivo […] não está afastada a possibilidade de através de providências cautelares não especificadas se poder alcançar também uma medida com efeitos antecipatórios da decisão definitiva, uma vez que o artº 381º prevê expressamente tal possibilidade" Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, vol III, 2ª ed - pg 92-93.
Ponto é que o direito que se visa acautelar no âmbito do procedimento cautelar seja o fundamento da causa principal e, salvo casos excepcionais, não pode o primeiro substituir a segunda, característica que a doutrina designa por instrumentalidade entre aquele e esta.
Os efeitos produzidos por este género de providências cautelares não deixam de surpreender e de, eventualmente, provocar em quem tem de decidir, algum temor quanto aos riscos derivados de uma injusta decisão cautelar. […]esse risco aumenta exponencialmente quando se está perante medidas cautelares de carácter antecipatório […] apesar disso as consequências foram assumidas pelo legislador […] há que assumi-lo sem rodeios - o sistema convive com a possibilidade de ser adoptada uma medida cautelar causadora de prejuízos ao requerido que, a final, se revela inadequada[…] tem o juiz a possibilidade de condicionar, em determinadas circunstâncias, a concessão de providência antecipada à prestação de caução, que sendo adequada, permitirá compensar o requerido pelos prejuízos derivados da providência[…] é bom que fique claro que, com caução ou sem ela, a assunção de uma providência insere-se no "risco social" intermediado pelos tribunais, permitindo que o sistema adopte medidas que apesar de, a posteriori, se verificar serem infundadas, nem por isso deixam de se considerar legítimas, por decorrerem do exercício do direito de acção cautelar. Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do processo civil, Almedina, III vol 2ª ed-94 a 97 e, de forma ainda mais veemente, a mais completa obra em Portugal sobre o assunto, A Tutela Cautelar Antecipatória no Processo Civil Português: um difícil equilíbrio entre a urgência e a irreversibilidade, Rita Lynce de Faria, UCP Editora.
De todo o modo, ainda nas providências antecipatórias, o que está em causa é a salvaguarda provisória de uma situação que é de molde a fazer perigar a tutela efectiva do direito a acautelar, à qual apenas serve uma medida ou providência que se reconduz, de algum modo, ao objecto do pedido da acção respectiva.
É que, repete-se, o que justifica a emissão duma providência provisória é o chamado periculum in mora, já que há casos em que a formação lenta e demorada da decisão definitiva expõe o presumido titular do direito a riscos sérios de dano jurídico. E é para afastar estes riscos que se admite a emanação duma providência provisória ou interina, destinada a durar somente enquanto não se profere o julgamento definitivo.
Por conseguinte, a função das providências cautelares consiste, justamente, em eliminar o periculum in mora, submetendo a relação jurídica litigiosa a um exame sumário, e por isso rápido, tendente a verificar se a pretensão do requerente tem probabilidades de êxito e se, além disso, da demora do julgamento final pode resultar, para o interessado, lesão grave e dificilmente reparável. E se o tribunal decreta a providência, quer dizer que autoriza os actos ou meios necessários e aptos para por o requerente a coberto do perigo iminente de insatisfação do direito.
Como é sabido, os requisitos de procedência de uma ação cautelar analisam-se na reunião de três condições: fumus boni iuris, periculum in mora e princípio da proporcionalidade, sendo que os dois primeiros requisitos permitem aferir da necessidade de decretamento da medida cautelar e o último da adequação ao fim que se propõe alcançar.
O requisito do fumus boni iuris “torna a concessão de uma providência cautelar dependente da possibilidade de se discernir a aparência de titularidade de bom direito por parte do requerente. Visando o processo cautelar salvaguardar o efeito útil de um processo principal, importa indagar se este efeito útil se revela susceptível de vir a ser produzido, sob pena de, vindo a concluir-se em sentido negativo, passar a carecer de justificação a concessão da providência cautelar requerida.
O pressuposto em causa constitui, nesta medida, reflexo da natureza duplamente instrumental do processo cautelar (aqui se revelando a segunda dimensão da instrumentalidade), da natureza hipotética dessa instrumentalidade e da recíproca relação de dependência entre processo principal e processo cautelar. (…) Incumbe ao requerente demonstrar a probabilidade de procedência da ação principal (…) a perfunctoriedade da análise e do grau de convencimento respeita aos factos correspondentes à titularidade do direito, considerando-se suficiente que se gere no tribunal a convicção, não de que o requerente é titular do direito que invoca, mas de que é verosímil ou altamente provável que assim venha a ser declarado, pelo que importará que, quanto a este requisito, assim atenuado (por respeitar à aparência de titularidade do direito e não à efetiva titularidade do direito), se forme no espírito do julgador o grau de certeza especial, que permite a pronúncia no sentido de que os factos que lhe estão associados se consideram provados”[8].
O requisito do periculum in mora “corresponde ao pressuposto característico dos processos cautelares, dado nele se sintetizar a fonte primária da probabilidade de dano que preside à concepção da tutela cautelar (…). O perigo em causa assume, porém, uma tripla particularidade, na medida em que a sua caracterização impõe que cumulativamente, se considerem a sua fonte, o seu grau e o seu objecto.
Tratar-se-á, respectivamente, de perigo decorrente do decurso do tempo processual da acção principal (fonte), que se reflicta negativamente, de forma grave e dificilmente reparável (grau) no efeito útil de tal acção (objecto). (…) Importa que o julgador se convença de que existe perigo, isto é, que considere provados factos que permitam concluir existir um conjunto de circunstâncias que torna altamente possível a ocorrência de um dano futuro.
Dir-se-ia que no espírito do julgador não deve remanescer qualquer dúvida razoável relativamente à verosimilhança do futuro dano. O mesmo é dizer que o decretamento da providência cautelar deverá pressupor que o juiz fique especialmente convencido da existência de perigo formulando, embora, um juízo de mera verosimilhança quanto à ocorrência futura de dano”[9].
O requisito do princípio da proporcionalidade demanda “avaliar se a medida requerida é adequada à prossecução do fim cujo alcance se visa e, na hipótese afirmativa, se é a mais adequada.
Concluindo-se em sentido negativo, poderá, ainda assim, o decisor conceder uma outra providência que não a requerida.
Tudo por forma a (atenta a natureza puramente hipotética – e, portanto, incerta do direito invocado) assegurar a tutela dos alegados interesses do requerente, mediante a mínima ingerência possível na esfera jurídica do requerido.
Na hipótese de se concluir estarem verificados todos os mencionados pressupostos, cumprirá indagar se a medida a decretar se revela proporcional, o que se aferirá sopesando os prejuízos que resultariam, para o requerente, da não concessão da providência cautelar e as desvantagens que decorreriam, para o requerido, da concessão da providência cautelar, sendo que a medida não será decretada se este último prejuízo for consideravelmente superior ao primeiro”[10].
Quanto às consequências negativas que se visam evitar deve “o justo receio resultar objetivamente da matéria de facto apurada, em conjugação com as regras da experiência. Mas tanto podem valer os efeitos negativos de ordem patrimonial como não patrimonial, desde que a sua gravidade, projetada pelo que já ocorreu ou possa vir a ocorrer o justifique”[11].
Aceite-se já a aparência da existência do direito, ou seja, em face dos factos alegados pela requerente, a indiciação da obrigação de indemnizar, não se exigindo mais do que a prova mínima de que a situação jurídica alegada é provável ou verosímil.
Quanto agora ao fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável.
Esse fundado receio exige, em regra, que na altura da instauração do procedimento cautelar ocorra uma situação de lesão iminente, isto é, que ainda não tenha ocorrido, ou que esteja em curso, ou seja, ainda não integralmente consumada, ou, no caso contrário, que indicie a ocorrência de novas lesões ao mesmo direito.
«Assim, neste ponto, não exige a lei que se verifique, ao tempo da apresentação do requerimento do procedimento em juízo, um prejuízo concreto e actual, certo ser suficiente o fundado receio que outrem cause ao requerente, antes da instauração da acção principal ou durante a sua pendência, lesão grave ou de difícil reparação.
Mas não é qualquer consequência danosa de ocorrência previsível antes da decisão definitiva que justifica o deferimento de uma medida provisória com reflexo imediato na esfera jurídica do requerido, certo que só lesões graves e dificilmente reparáveis podem justificar uma decisão judicial que salvaguarde o requerente da previsível lesão de um direito da sua titularidade.
Assim, ainda que se revelem irreparáveis ou de difícil reparação, não podem ter acolhimento em sede de procedimento cautelar comum as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida, bem como aquelas que, sendo graves, sejam facilmente reparáveis.
A gravidade da previsível lesão deve aferir-se à luz da sua repercussão na esfera jurídica do requerente, tendo em conta que «Quanto aos prejuízos materiais o critério deve ser bem mais restrito do que o utilizado quanto à aferição dos danos de natureza física ou moral, uma vez que, em regra, aqueles são passíveis de ressarcimento através de um processo de reconstituição natural ou de indemnização substitutiva.» cfr. Ac do STJ de 26.01.06, acessível na base de dados da dgsi.
O correcto entendimento será, pois, o de que a providência deve ser decretada, sempre que se esteja ante uma lesão grave, atenta a importância patrimonial ou extrapatrimonial do direito ou do bem que aquele incide (objecto mediato) e que está em risco de ser sacrificado e não seja razoável exigir que tal risco seja suportado pelo titular do direito ameaçado, na medida em que a reparação de tal dano seja avultada ou mesmo impossível.
Ora, quando se considere a alegação da Autora constante do requerimento inicial e acima reproduzida[12], não se vê que o seu direito à reparação do dano, atento outrossim o seu valor, esteja ameaçado de lesão grave e de difícil reparação. Sequer que esteja em risco a mobilidade ou a deslocação para o trabalho do condutor habitual do veículo, atenta a alegação do recurso a meios alternativos, e sempre discutível então que o pagamento da reparação mesma do veículo fosse a providência cautelar adequada a salvaguardar um tal dano. Não se antevê também que a circunstância de a requerente se encontrar privada do seu veículo cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito. De resto, sequer a “ameaça” de cobrança de um valor de “ocupação” pela oficina.
Isto é, a alegação mesma pela requerente, os factos que ela carreou para justificar o dano a salvaguardar, não são, como o entendeu o tribunal recorrido, de molde a inferir que se evidencia um risco de lesão grave e dificilmente reparável do seu direito à indemnização dos danos emergentes do sinistro convocado, aqui incluídos os que se reconduzem ao “tempo” de indisponibilidade do veículo.
De resto, tivesse a A. proposto a acção respectiva e, previsivelmente, estaria a mesma em fase de julgamento e decisão a brevíssimo trecho.
Haverá, pois, que concluir que, face aos factos alegados e pela requerente mesma, não concorrem, no caso, todos os requisitos para que possa ser decretada a requerida providência cautelar, pelo que, não podia deixar de ser, como foi, indeferida.
Improcedem, deste modo, as conclusões da alegação da recorrente.
III.
Nega-se provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente.
Notifique.
Porto, 10 de Abril de 2025
Isabel Peixoto Pereira
José Manuel Correia
Francisca Mota Vieira
______________
[1] Mais reclama, mas já a título de antecipação do juízo de mérito da acção principal, que bem assim requer, a condenação na satisfação das despesas com as deslocações do condutor habitual do veículo para o trabalho, que liquida e bem assim nas futuras.
[2] Estando-se no domínio de apreciação da providência cautelar, a legitimidade da Ré que é a companhia de seguros do veículo da Autora mesma vem reconduzida à sua “autorização” para a reparação do veículo. As despesas peticionadas não o são no quadro agora do procedimento, mas, como anotado, no âmbito da pretensão de antecipação do juízo de mérito da acção principal e sempre caracterizadas como despesas do agregado familiar, que não exclusivas do habitual condutor, com o que não colhe o argumento da ilegitimidade activa. Finalmente, legalmente admissíveis as providências cautelares antecipatórias, como se verá, a questão que se coloca quanto ao pedido exclusivo em sede de antecipação do juízo da causa não o é já a do erro na forma de processo. Sempre excluída do âmbito de conhecimento deste recurso.
[3] Lucinda D. Dias da Silva, Processo Cautelar Comum, Princípio do Contraditório e dispensa de audição prévia do requerido, Coimbra, Coimbra Editora, 2009, p. 113
[4] Sem prejuízo do art. 369º, do Código de Processo Civil, com a epígrafe “Inversão do contencioso”.
[5] José Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª Edição, 2017, Almedina, pag. 10.
[6] Idem.
[7] Ibidem, pag. 19.
[8] Lucinda D. Dias da Silva, Idem, pág. 141 e segs.
[9] Ibidem, pág. 146.
[10] Ibidem, pág. 146.
[11] Abrantes Geraldes, Temas da Reforma do Processo Civil, vol.III, 4ª ed., pp. 237 e ss.
[12] Que não já qualquer concretização em sede de alegações de recurso, sendo que absolutamente ausente do requerimento a alegação de uma dificuldade, mormente económica, no recurso a transporte alternativo e sempre reconduzido este ao juízo de antecipação agora do conhecimento do mérito.