I. A elevação do prazo máximo de prisão preventiva para metade da pena de prisão imposta por condenação proferida pela 1ª instância, prevista no nº 6 do art. 215º do C. Processo Penal, opera pela simples confirmação daquela condenação pelo tribunal de recurso.
II. Esta elevação do prazo máximo de prisão preventiva mantem-se, ainda que o acórdão confirmatório do tribunal de recurso que a determinou, venha a ser anulado, designadamente, por omissão de pronúncia.
I. Relatório
1. AA, detido preventivamente à ordem do processo nº 308/21.1... que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Central Criminal de ... – Juiz ..., através de Ilustre Mandatária, veio requerer ao Exmo. Juiz Conselheiro Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, a providência de habeas corpus, por prisão ilegal, nos termos que se transcrevem:
“(…).
1. O arguido AA encontra-se sujeito à medida de coação de prisão preventiva desde o dia 19-10-2021.
2. Por acórdão datado de 15-12-2022 o tribunal de 1.ª instância condenou o arguido pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelos artigos 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, com referência à tabela I-B anexa a tal diploma, na pena de dez anos de prisão e condenou o arguido pela prática de um crime de associação criminosa, p. e p. pelo artigo 28.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, independentemente de no acórdão recorrido ler-se artigo 21.º, n.º 1 e 2, do Decreto-Lei 15/93, de 22 de Janeiro, na pena de oito anos e seis meses de prisão, em cúmulo jurídico, condenou o arguido na pena única de catorze anos de prisão.
3. Inconformado o arguido apresentou recurso para o Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.
4. Por acórdão datado de 28-06-2023 a decisão recorrida foi confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
5. Nessa senda o arguido apresentou recurso para o Supremo Tribunal de Justiça.
6. A medida de coação tem vindo a ser sucessivamente reexaminada com o fundamento de que não foram excedidos os prazos máximos da prisão preventiva – artigo 215.º, n.º 6 do Código de Processo Penal.
7. Sucede que por acórdão datado de 29-01-2025 o Supremo Tribunal de Justiça declarou nulo o acórdão recorrido do Tribunal da Relação de Lisboa de 28-06-2023 e ordenou a remessa dos autos a esse tribunal, a fim de ser proferido acórdão no qual se conheçam das sobreditas questões.
8. A nulidade torna inválido o ato em que se verificar.
9. In casu, não estamos perante uma anulação do acórdão ou uma anulação parcial, mas sim perante a nulidade do acórdão, o que faz com que o acórdão não possa produzir nenhum efeito.
10. A nulidade torna inválido o ato em que se verificar, um acto nulo não produz nenhum efeito, nem o pode produzir.
11. Não se podendo confundir anulação com nulidade e com inexistência.
12. Motivos pelos quais não se pode considerar que o prazo máximo de duração da prisão preventiva seja elevado para metade da pena que tiver sido fixado.
13. Atendo a que a sentença condenatória proferida em 1.ª instância não foi confirmada em sede de recurso ordinário.
14. E como tal aplica-se o prazo máximo de duração de prisão preventiva de 2 anos – artigo 215.º, n.º 1, alínea d) e n.º 2 do Código de Processo Penal.
15. Desde a data em que o arguido foi sujeito à medida de coação de prisão preventiva até à presente data decorreram 3 anos e 5 meses.
16. Pelo que se encontra largamente ultrapassado o prazo máximo de duração da medida de coação de prisão preventiva.
17. Encontrando-se o arguido preso ilegalmente.
18. Pelo que deverá o arguido AA ser libertado de imediato em virtude de prisão ilegal por excesso de prisão preventiva.
Assim deverá o arguido AA ser liberado de imediato, assim se fazendo JUSTIÇA!
(…).
2. Foi prestada a informação referida na parte final do nº 1 do art. 223º do C. Processo Penal, nos termos que se transcrevem:
“(…).
Perante o requerimento de habeas corpus apresentado, nos termos do art.º 223º, n.º 1, do Código de Processo Penal, cumpre informar das condições em que o arguido foi preso.
O arguido AA foi sujeito à medida de prisão preventiva no dia 19.10.2021, nos termos e pelos motivos exarados na decisão de fls. 173 e ss. dos autos principais, que determinou a sua aplicação.
A medida foi sucessivamente reexaminada.
Por acórdão proferido a 15.12.2022 foi o arguido condenado na pena de 14 anos de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes e de associação criminosa, decisão confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão datado de 28.06.2023.
Por decisão proferida pelo Supremo Tribunal de Justiça de 29.01.2025, comunicado a estes autos a 30.01.2025, foi o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.06.2023 declarado nulo e ordenada a remessa dos autos a esse tribunal, a fim de ser proferido acórdão no qual se conhecessem as questões ali identificadas.
Neste seguimento, veio o arguido AA, por requerimento de 30.01.2025 (ref.ª ...04) apresentado junto deste tribunal, invocar, em síntese, que a nulidade torna inválido o acto em que se verifica, donde não ter a sentença proferida em 1.ª instância sido confirmada em sede de recurso ordinário, pelo que o prazo máximo de prisão preventiva a considerar é de 2 anos e não de 7 anos, por força do disposto no artigo 215.º, n.º6 do Código de Processo Penal.
Apreciado o requerimento em apreço, proferiu-se decisão a 30.01.2025 (ref.ª ...88), no sentido de se manterem válidos os efeitos produzidos pelo acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 28.06.2023 no alargamento do prazo máximos da prisão preventiva, nos termos do disposto no artigo 215.º, n.º 6 do Código de Processo Penal, pelo que se indeferiu a requerida libertação do arguido.
Ainda na mesma data, na sequência de pedido de informação solicitado ao Supremo Tribunal de Justiça (ref.ª ...88), por ofício com a ref.ª ...05, foi comunicado o seguinte:
“Relativamente ao solicitado no V/oficio acima indicado e por ordem verbal da Exma. Senhora Juíza Conselheira Relatora, tenho a honra de informar V. Exa. que na sequência do acórdão proferido não foi determinada a libertação dos arguidos recorrentes.”.
Neste seguimento, apresentou o arguido AA requerimento junto do Supremo Tribunal de Justiça, que por determinação daquele tribunal (ref.ª ...91 de 06.02.2025) foi pela signatária apreciado, por despacho proferido a 06.02.2025 (ref.ª ...29). Em tal despacho, considerou-se que o arguido AA reproduzia, em suma, o requerimento anteriormente apresentado junto deste tribunal a 30.01.2025 e na mesma data apreciado, pelo que quanto ao mesmo se mostrava esgotado o poder jurisdicional, nada mais cabendo acrescentar ao já decidido, que se manteve.
Por despacho proferido a 10.02.2025 foi feito o reexame da prisão preventiva do arguido AA, tendo a mesma sido mantida.
Por requerimento datado de 03.03.2025 (ref.ª ...77) veio o arguido AA interpor recurso do despacho proferido a 30.01.2025 (ref.ª ...88), que foi admitido.
Por comunicação remetida aos autos a 20.03.2025 (ref.ª ...27) foi comunicado a estes autos, acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, em obediência ao determinado pelo Supremo Tribunal de Justiça que confirmou a decisão proferida.
Face ao que antecede, nos termos e com os fundamentos das decisões supra aludidas, proferidas pela signatária, que se dão por reproduzidos, entende-se que a prisão deverá manter-se.
(…)”.
*
Convocada a Secção Criminal, notificado o Ministério Público e a Ilustre Mandatária do requerente, realizou-se a audiência com observância das formalidades legais, após o que o tribunal reuniu e deliberou (art. 223º, nº 3, segunda parte do C. Processo Penal), nos termos que seguem.
*
*
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II. Fundamentação
A. Dos factos
Com relevo para a decisão do pedido de habeas corpus, dos elementos que instruem o processo e da consulta ao processo electrónico extraem-se os seguintes factos:
1. Por despacho do Mmo. Juiz de instrução de 19 de Outubro de 2021, proferido no âmbito de primeiro interrogatório judicial de arguido detido, o requerente AA foi sujeito à medida de coacção de prisão preventiva;
2. A medida de coacção foi sucessivamente reexaminada e mantida, o que se verifica, ininterruptamente, até ao presente;
3. Por acórdão de 15 de Dezembro de 2022, proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Central Criminal de ... – Juiz ..., foi o requerente condenado, pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico e outras actividades ilícitas, p. e p. pelo art. 21º, nº 1 do Dec. Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro e Tabela Anexa I-B, na pena de 10 de prisão, pela prática de um crime de associações criminosas, p. e p. pelo art. 28º, nº 2 do mesmo diploma legal, na pena de 8 anos e 6 meses de prisão, e em cúmulo jurídico, na pena única de 14 anos de prisão;
4. Inconformado com o decidido, o requerente recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 28 de Junho de 2023, negou provimento ao recurso, mantendo a decisão da 1ª instância;
5. De novo inconformado, o requerente recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 29 de Janeiro de 2025, declarou a nulidade do acórdão recorrido, por omissão de pronúncia, e ordenou a baixa dos autos ao Tribunal da Relação de Lisboa a fim de aí, ser proferido novo acórdão suprindo a nulidade apontada;
6. Em 30 de Janeiro de 2025 o requerente apresentou junto do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Central Criminal de ... – Juiz ..., requerimento, pedindo a sua libertação imediata, por excesso de prisão preventiva por, em síntese, tendo o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça declarado nulo o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, o acórdão condenatório da 1ª instância não foi confirmado em sede de recurso ordinário pelo que, o prazo máximo de prisão preventiva a atender não é o resultante do nº 6 do art. 215º do C. Processo Penal, mas o prazo de 2 anos previsto nos nºs 1, d) e 2 do mesmo artigo, sendo que se encontra detido preventivamente há já 3 anos e 3 meses;
7. Por despacho de 30 de Janeiro de 2025, a Mma. Juíza titular do processo indeferiu o requerimento referido em 6., que antecede, por considerar válido o alargamento do prazo máximo de prisão preventiva previsto no nº 6 do art. 215º do C. Processo Penal operado pela prolação do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, não obstante a posterior declaração de nulidade do mesmo;
8. O requerente [e outro co-arguido] apresentou requerimento idêntico ao referido em 6., que antecede, no Supremo Tribunal de Justiça, e tendo aí sido ordenada a sua apreciação pela 1ª instância, a Mma. Juíza titular do processo, por despacho de 6 de Fevereiro de 2025, apreciando-o, no que ao requerente respeita, decidiu estar esgotado o poder jurisdicional, face ao decidido no despacho de 30 de Janeiro de 2025;
9. Por despacho de 10 de Fevereiro de 2025, a Mma. Juíza titular do processo, considerando não estar excedido o prazo máximo de prisão preventiva, previsto no art. 215º, nº 6 do C. Processo Penal, determinou que o requerente continuasse a aguardar os ulteriores termos do processo sujeito a tal medida de coacção;
10. O requerente interpôs recurso do despacho referido em 9., que antecede, em 3 de Março de 2025;
11. Em 19 de Março de 2025 o Tribunal da Relação de Lisboa, em obediência ao determinado pelo Supremo Tribunal de Justiça no acórdão referido em 5., que antecede, proferiu acórdão que negou provimento ao recurso do requerente, mantendo o acórdão da 1ª instância;
12. A presente providência de habeas corpus deu entrada [indevidamente] no Supremo Tribunal de Justiça, a 20 de Março de 2023, tendo na mesma data sido remetida ao Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa – Juízo Central Criminal de ... – Juiz ...;
13. Devidamente instruída na 1ª instância, foi a providência de habeas corpus remetida ao Supremo Tribunal de Justiça no mesmo dia 20 de Março de 2023.
B. A questão objecto do habeas corpus
Cumpre apreciar se o requerente da providência se encontra em situação de prisão ilegal, nos termos da alínea c) do nº 2 do art. 222º do C. Processo Penal, por se mostrar ultrapassado o prazo de duração máxima da prisão preventiva – 7 anos, correspondente a metade da pena única de prisão imposta pelo acórdão condenatório da 1ª instância – que decorre do disposto no nº 6 do art. 215º do C. Processo Penal.
C. Do direito
1. Nascida, na sua configuração moderna, no sistema judicial britânico no século XVII, a providência de habeas corpus foi pela primeira vez levada ao topo do sistema jurídico português na Constituição de 1911, foi mantida na Constituição de 1933, e está também presente na actual Constituição da República Portuguesa, como garantia expedita e extraordinária contra situações ilegais de privação da liberdade.
Dispõe o art. 31º da Constituição da República Portuguesa:
1. Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão ou detenção ilegal, a requerer perante o tribunal competente.
2. A providência de habeas corpus pode ser requerida pelo próprio ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos.
3. O juiz decidirá no prazo de oito dias o pedido de habeas corpus em audiência contraditória.
No desenho constitucional o habeas corpus, como garantia que é, tutela o direito fundamental liberdade, quando gravemente afectado por situações de abuso de poder, em consequência de prisão ou detenção ilegal. Pode ser requerido pelo interessado ou por qualquer cidadão, assim se aproximando da acção popular (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, Volume I, 4ª Edição Revista, 2007, Coimbra Editora, pág. 509), e deve ser decidido pelo juiz competente no prazo de oito dias.
Na lição dos Mestres citados, trata-se, essencialmente, de uma providência expedita contra a prisão ou detenção ilegal, portanto, de uma garantia privilegiada do direito à liberdade, por motivos penais ou outros que, como única garantia específica e extraordinária constitucionalmente prevista para a defesa de direitos fundamentais, afirma a especial importância do direito à liberdade (op. cit., pág. 508).
No mesmo sentido, Germano Marques da Silva, para quem o habeas corpus não é um recurso, é uma providência extraordinária com natureza de acção autónoma com fim cautelar, destinada a pôr termo em muito curto espaço de tempo a uma situação de ilegal privação de liberdade (Curso de Processo Penal, II, 3ª Edição, Revista e actualizada, 2002, Editorial Verbo, pág. 321).
A nível infraconstitucional o habeas corpus encontra-se regulado nos arts. 220º e 221º do C. Processo Penal, quando seja determinado por detenção ilegal, e nos arts. 222º e 223º do mesmo código, quando seja determinado por prisão ilegal.
No primeiro caso têm cabimento as privações da liberdade ainda não validadas pela autoridade judiciária portanto, quando o cidadão se encontra detido à ordem de uma autoridade administrativa ou militar. No segundo caso têm cabimento as privações de liberdade já validadas pela autoridade judiciária portanto, encontrando-se o cidadão detido à ordem desta autoridade.
No requerimento apresentado o requerente invoca expressamente, como fundamento do pedido, o disposto na alínea c) do nº 2 do art. 222º do C. Processo Penal e a ultrapassagem do prazo máximo de prisão preventiva, previsto no art. 215º, nºs 1, b) e 2 do mesmo código, sendo, pois, evidente haver lugar à convocação do regime do habeas corpus em virtude de prisão ilegal.
2. Dando exequibilidade ao regime constitucional do habeas corpus, estabelece o art. 222º do C. Processo Penal:
1. A qualquer pessoa que se encontrar ilegalmente presa o Supremo Tribunal de Justiça concede, sob petição, a providência de habeas corpus.
2. A petição é formulada pelo preso ou por qualquer cidadão no gozo dos seus direitos políticos, é dirigida, em duplicado, ao Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, apresentada à autoridade à ordem da qual aquele se mantenha preso e deve fundar-se em ilegalidade da prisão proveniente de:
a) Ter sido efectuada ou ordenada por entidade incompetente;
b) Ser motivada por facto pelo qual a lei a não permite; ou
c) Manter-se para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial.
Os fundamentos da ilegalidade da prisão para efeitos de pedido de habeas corpus são os taxativamente previstos nas alíneas a) a c) do nº 2 do art. 222º do C. Processo Penal.
In casu, a petição tem por fundamento a alínea c), cuja previsão é susceptível de ser preenchida em diversas situações, v.g., pela ultrapassagem do prazo máximo de prisão preventiva, mas a sua verificação terá sempre de resultar da matéria de facto processualmente adquirida, conjugada com a legislação aplicável ao caso concreto.
Sempre indispensável, é que se trate de uma ilegalidade evidente, de um erro diretamente verificável com base nos factos recolhidos no âmbito da providência confrontados com a lei, sem que haja necessidade de proceder à apreciação da pertinência ou correção de decisões judiciais, à análise de eventuais nulidades ou irregularidades do processo, matérias essas que não estão compreendidas no âmbito da providência de habeas corpus, e que só podem ser discutidas em recurso ordinário (Maia Costa, Código de Processo Penal Comentado, obra colectiva, 2014, Almedina, pág. 909).
Em jeito de conclusão, diremos que o habeas corpus é um remédio contra situações de imediata, patente e auto-referencial ilegitimidade (ilegalidade) da privação da liberdade, não podendo ser considerado nem utilizado como recurso sobre os recursos ou recurso acrescido aos recursos (acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Setembro de 2010, processo nº 139/10.4YFLSB.S1, in www.dgsi.pt).
D. O caso concreto
1. O requerente sustenta a providência de habeas corpus no seguinte travejamento argumentativo:
- Encontra-se detido preventivamente, no âmbito do processo nº 308/21.1... do Tribunal Judicial da Comarca do Lisboa, desde 19 de Outubro de 2021;
- Por acórdão de 15 de Dezembro de 2022, proferido pelo Tribunal Judicial da Comarca do Lisboa, foi condenado pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico e outras actividades ilícitas, na pena de 10 de prisão, pela prática de um crime de associações criminosas, na pena de 8 anos e 6 meses de prisão, e em cúmulo jurídico, na pena única de 14 anos de prisão;
- Recorreu para o Tribunal da Relação de Lisboa que, por acórdão de 28 de Junho de 2023, negou provimento ao recurso, mantendo a decisão da 1ª instância;
- Recorreu para o Supremo Tribunal de Justiça que, por acórdão de 29 de Janeiro de 2025, declarou a nulidade do acórdão da Relação, por omissão de pronúncia, e ordenou a baixa dos autos à 2ª instância para aí, ser proferido novo acórdão suprindo aquela nulidade;
- Uma vez que a decisão do Supremo Tribunal de Justiça, ao declarar a nulidade do acórdão da Relação, significou que o acórdão condenatório da 1ª instância não foi confirmado em sede de recurso ordinário, não pode valer o prazo máximo de prisão preventiva resultante do disposto no nº 6 do art. 215º do C. Processo Penal, estando antes em vigor o prazo de 2 anos, resultante do disposto nos nºs 1, b) e 2 do mesmo artigo, há muito ultrapassado, atenta a data do início da sua prisão preventiva;
- Encontra-se, assim, numa situação de prisão ilegal, pelo que deve ser ordenada a sua imediata libertação.
a. É fundamento da providência de habeas corpus requerida, conforme dito, a ilegalidade da prisão pela sua manutenção para além dos prazos fixados pela lei ou por decisão judicial (art. 222º, nº 2, c) do C. Processo Penal), concretamente, a persistência da prisão preventiva para além do prazo previsto no art. 215º do C. Processo Penal, que o requerente entende ser o prazo de 2 anos, assinalado nos nºs 1, b) e 2 do referido artigo.
Na parte em que agora interessa, estabelece o art. 215º do C. Processo Penal:
1 – A prisão preventiva extingue-se quando, desde o seu início, tiverem decorrido:
a) Quatro meses sem que tenha sido deduzida acusação;
b) Oito meses sem que, havendo lugar a instrução, tenha sido proferida decisão instrutória;
c) Um ano e dois meses sem que tenha havido condenação em 1ª instância;
d) Um ano e seis meses sem que tenha havido condenação com trânsito em julgado.
2 – Os prazos referidos no número anterior são elevados, respectivamente, para seis meses, dez meses, um ano e seis meses e dois anos, em casos de terrorismo, criminalidade violenta ou altamente organizada, ou quando se proceder por crime punível com pena de prisão de superior a 8 anos, ou por crime:
(…).
6 – No caso de o arguido ter sido condenado a pena de prisão em 1ª instância e a sentença condenatória ter sido confirmada em sede de recurso ordinário, o prazo máximo de prisão preventiva eleva-se para metade da pena que tiver sido fixada.
(…).
Não se questionando que os crimes por cuja prática foi o requerente condenado no processo nº 308/21.1... integram o conceito de criminalidade altamente organizada, previsto na alínea m) do art. 1º do C. Processo Penal, porque a condenação que lhe foi imposta no acórdão da 1ª instância ainda não transitou em julgado [note-se que o segundo acórdão da Relação, que a confirmou, foi proferido em 19 de Março de 2025], entende aquele encontrar-se excedido o prazo máximo de prisão preventiva de 2 anos, previsto no nº 2 do art. 215º do mesmo código, que considera aplicável ao caso.
Este entendimento tem como pressuposto que a declaração de nulidade por omissão de pronúncia do acórdão da Relação, confirmatório da condenação imposta pela 1ª instância, ‘anula’ a elevação do prazo máximo de prisão preventiva, prevista no nº 6 do art. 215º do C. Processo Penal, repondo em vigor o prazo máximo de 2 anos, previsto no nº 2 do mesmo artigo.
A questão suscitada pelo requerente não é nova, mas vem recebendo resposta uniforme do Supremo Tribunal de Justiça.
Vejamos.
O nº 6 do art. 215º do C. Processo Penal permite a elevação do prazo máximo de prisão preventiva para metade da pena de prisão imposta por condenação proferida em 1ª instância, quando esta tenha sido confirmada em sede de recurso ordinário portanto, em regra, em sede de recurso para a Relação.
A norma parece assentar numa visão gradualista do princípio da presunção de inocência, no sentido de que esta se vai erodindo à medida que o processo penal avança nas suas fases, sendo aplicável depois de uma audiência de julgamento em que foram asseguradas as garantias de defesa, e da posterior confirmação pelo tribunal superior, da condenação ali proferida. E se pode conduzir a prazos de prisão preventiva deveras longos, até porque não foi estabelecido um tempo máximo, a opção legal contem-se dentro dos limites permitidos pelo referido princípio, bem como, pelo princípio da liberdade (Maia Costa, Código de processo Penal Comentado, obra colectiva, 2014, Almedina, pág. 897). E assim o entendeu também o Tribunal Constitucional (acórdão nº 603/2009, de 2 de Dezembro, in www.tribunalconstitucional.pt).
Nos termos do preceito em análise, o marco processual que despoleta a elevação do prazo máximo da prisão preventiva para metade da pena de prisão imposta pela 1ª instância, é a confirmação desta condenação [e não, do seu trânsito em julgado] pelo tribunal de recurso.
Por isso, a anulação, total ou parcial, do acto processual determinante da elevação do prazo, na sequência de declaração da sua nulidade, v.g., por omissão de pronúncia, não destrói os efeitos produzidos relativamente a essa elevação. Com efeito, esta extensão do prazo depende apenas da prática do acto processual que a desencadeia, mantendo os seus efeitos independentemente da anulação deste, na medida em que o acto nulo/anulado existiu e por isso, passe a redundância, não é inexistente (neste sentido, Tiago caiado Milheiro, Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, obra colectiva, Tomo III, 2021, Almedina, págs. 563-564 e acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Novembro de 2024, processo nº 164/23.5JAFAR-D.S1, de 21 de Novembro de 2024, processo nº 789/23.9JAPRT-E.S1, de 4 de Junho de 2024, processo nº 41/20.1JAFAR-F.S1, de 14 de Dezembro de 2023, processo nº 2257/21.4JABRG-C.S1, de 18 de Janeiro de 2018, processo nº 234/15.3JACBR.S1 e de 12 de Dezembro de 2019, processo nº 47/18.0PALGS-C.S1).
Note-se, por último, que ainda que assim não fosse, a circunstância de, em obediência ao determinado pelo Supremo Tribunal de Justiça [no acórdão referido no ponto 5 dos factos relevados], o Tribunal da Relação de Lisboa ter proferido, em 19 de Março de 2025, novo acórdão que negou provimento ao recurso do requerente, mantendo o acórdão da 1ª instância, determinou o fim da actualidade da pretendida e pressuposta prisão ilegal, pelo que, também por esta via, sucumbiria a pretensão do requerente.
Em suma, o processo nº 308/21.1... encontra-se na fase de recurso, e porque o Tribunal da Relação de Lisboa, em 28 de Junho de 2023, confirmou integralmente a condenação da 1ª instância de 15 de Dezembro de 2022, a partir daquela data, o prazo máximo de prisão preventiva [até então, de 2 anos] foi elevado para 7 anos, nos termos do art. 215º, nº 6 do C. Processo Penal.
Como se pode ler no acórdão deste Supremo Tribunal de 4 de Junho de 2024, supra, identificado, este alongamento do prazo de prisão preventiva é independente da interposição de posteriores recursos e mesmo, do trânsito da decisão confirmatória da condenação da 1º instância.
Atente-se ainda na circunstância de, porque o acórdão da Relação de Lisboa foi anulado por omissão de pronúncia verificada quanto a algumas questões, o Supremo Tribunal de Justiça, na decisão proferida, não apreciou a bondade, ou falta dela, da confirmação da condenação da 1ª instância pela Relação, antes impôs o suprimento da nulidade em novo acórdão a proferir, o que significa que aquela confirmação, ainda que sem trânsito, se mantém.
Assim, tendo o requerente iniciado a prisão preventiva a 19 de Outubro de 2021, que se mantém ininterruptamente, e sendo o prazo máximo deste medida de coacção, pelas razões sobreditas, o de 7 anos, é evidente que tal prazo não se mostra excedido.
Não se verifica, pois, o fundamento de habeas corpus previsto na alínea c) do nº 2 do art. 222º do C. Processo Penal, como também não se verificam os fundamentos previstos nas alíneas a) e b) do mesmo número e artigo, posto que a prisão preventiva foi ordenada pelo juiz competente e motivada por facto permitido por lei.
Deve, pois, ser indeferido o pedido.
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III. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem este coletivo do Supremo Tribunal de Justiça em:
A) Indeferir o pedido de habeas corpus peticionado pelo requerente AA, por falta de fundamento bastante.
B) Condenar o requerente nas custas do processo, fixando em três UC a taxa de justiça (art.8.º, n.º 9, do R. Custas Processuais e Tabela III, anexa).
*
(O acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado pelos signatários, nos termos do art. 94.º, n.º 2 do C.P.P.).
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Lisboa, 27 de Março de 2025
Vasques Osório (Relator)
Ernesto Nascimento (1º Adjunto)
Jorge Jacob (2º Adjunto)
Helena Moniz (Presidente da secção)