I. A arguida foi condenada, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21.°, n.° 1 do Decreto-Lei 15/93, de 22/01, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão e expulsão do território nacional português, pelo período de 5 (cinco) anos e (seis) meses.
II. A análise que terá de ser feita, no caso do vício de erro notório (previsto no artº 410 nº2 al. c), do C.P. Penal), resume-se ao texto da decisão recorrida – isto é, a perspectiva de análise é realizada sem que possa ser feito qualquer apelo ao que concretamente foi dito em termos de depoimentos em audiência, com excepção do resumo probatório realizado pelo tribunal “a quo”.
III. Assim, tal vício terá de resultar – como a lei claramente menciona – única e exclusivamente (ou seja, apenas), do que consta do texto da decisão proferida pelo juiz do julgamento e é da sua mera leitura que terá de decorrer, de uma forma flagrante e patente que esse erro se verifica. Tudo se passa, no fundo, como se inexistisse documentação dos actos da audiência.
IV. E para que se verifique, temos de estar perante um erro calamitoso, algo de inquestionavelmente errado.
*
I – relatório
1. Por acórdão de 25 de Outubro de 2024, foi a arguida AA condenada, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de tráfico de estupefacientes p. e p. pelo artigo 21.°, n.° 1 do Decreto-Lei 15/93, de 22/01, na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão e expulsão do território nacional português, pelo período de 5 (cinco) anos e (seis) meses.
2. Inconformada, veio a arguida apresentar recurso, considerando que a pena imposta deve ser reduzida, devendo ainda ser suspensa na sua execução.
3. O recurso foi admitido.
4. O Ministério Público respondeu à motivação apresentada, defendendo a improcedência do recurso.
5. Neste tribunal, o Sr. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em idêntico sentido.
6. O recurso, embora inicialmente admitido para o Tribunal da Relação, foi remetido a este Tribunal, por despacho proferido pela Exª Srª Juíza-Desembargadora relatora, sendo o STJ, efectivamente, o competente para a a sua apreciação, nos termos do artigo 432.º, n.ºs 1, alínea c), e 2, do C.P.Penal.
II – questões a decidir.
Do vício de erro notório.
Da redução e suspensão da pena imposta.
iii – fundamentação.
1. O tribunal “a quo” deu como assente a seguinte matéria fáctica:
1) Em 30/6/2024, pelas 7:10 horas, a Arguida desembarcou no Aeroporto Humberto Delgado, em Lisboa, proveniente do voo ...46, com origem em Guarulhos, São Paulo - Brasil.
2) Nesse momento, a Arguida foi selecionada pela polícia de fronteiras para ser presente à segunda linha de controlo documental junto da fronteira.
3) Submetida a revista, a Arguida detinha consigo, junto ao seu corpo, 2 embalagens de cocaína (cloridrato) com o peso líquido de 3.005,500 gramas.
4) Nas mesmas circunstâncias, foram, ainda, apreendidos à Arguida:
⎯ 700,00 euros;
⎯ 224,00 reais;
⎯ 1 telemóvel Apple, iPhone 14, com os IMEI ...68 e ...59, este último associado ao contacto telefónico ...36, da operadora TIM;
⎯ 1 documento relativo à reserva aérea, em nome de AA, da companhia aérea Latam Airlines, datado de 20/06/2024, às 12:32, referente às seguintes viagens:
O GRU. SÃO PAULO – LIS. LISBOA, com partida no dia 29/06/2024, às 17h30, e chegada no dia 30/06/2024, às 06h55, no voo ...46;
O LIS, LISBOA – GRU, SÃO PAULO, com partida no dia 08/07/2024, às 09h40, e chegada no dia 08/07/2024, às 15:45, no voo ...47;
- 1 documento relativo ao cartão de embarque, em nome de AA, com o número de compra ...UG;
- 1 documento relativo a uma confirmação de reserva no Lisbon Lounge Hostel, com entrada no dia 30/06/2024 e saída no dia 03/07/2024.
5) A arguida conhecia a natureza e caraterísticas da cocaína acima referida, que aceitou transportar em troca da oferta de uma casa, de valor não inferior a 20.000 reais.
6) Os objetos apreendidos à arguida, acima referidos, incluindo o dinheiro, destinavam-se a ser utilizados na atividade de transporte da cocaína acima referida.
7) A Arguida atuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
8) A Arguida é natural do Brasil e não possui emprego, residência ou qualquer outra ligação profissional ou familiar com Portugal,
9) Tendo-se deslocado para território nacional com o exclusivo propósito de praticar os factos acima referidos.
10) A Arguida confessou os factos, de forma integral e sem reservas.
11) A Arguida não tem antecedentes criminais conhecidos.
12) Do teor do relatório social efetuado em relação à Arguida, resulta, com interesse para os autos, o seguinte:
- A Arguida vive com o namorado e dois sobrinhos, de 18 e 12 anos de idade, em casa da mãe da Arguida, inserida na favela de ..., local marcado pela marginalidade e criminalidade.
- A Arguida assegura o sustento dos sobrinhos.
- No Brasil, a arguida trabalhava como empregada doméstica, auferindo o rendimento de 1.100,00 reais.
- No Estabelecimento Prisional de ..., a Arguida vem mantendo uma conduta cumpridora das regras institucionais, não lhe sendo conhecido registo disciplinar.
- A Arguida vem contactando, por videoconferência, com o namorado e os sobrinhos. - A Arguida pretende regressar ao convívio com o seu agregado familiar e voltar a trabalhar na sua área de atividade.
2. E deu como não provados os seguintes factos:
13) O dinheiro apreendido à Arguida correspondia a parte do lucro que iria obter com o transporte da cocaína.
14) A Arguida está arrependida de ter praticado os factos acima aludidos.
3. O tribunal “a quo” fundamentou a dosimetria e a tipologia da pena que aplicou, nos seguintes termos:
B) Escolha e determinação da medida concreta da pena
Ao crime de tráfico e outras atividades ilícitas corresponde uma moldura penal abstrata de 4 a 12 anos de prisão (n.º 1 do artigo 21.º do acima referido Regime Jurídico).
Na eleição do tipo de pena, e na determinação concreta do seu quantum, deve proceder-se da seguinte forma (artigos 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal)2:
- Ponderação das finalidades da punição (prevenção geral e especial, maxime positiva) e preferência pelas penas não privativas da liberdade (desde que estas realizem aquelas finalidades de forma adequada e suficiente);
- Determinação da pena concreta em resultado de uma operação de construção de uma moldura que, limitada pela culpa, se concretiza na determinação das exigências de prevenção geral (que variam entre uma medida ótima de tutela dos bens jurídicos e um limiar mínimo abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação de uma pena sem colocar em causa a sua função de tutela de tais bens);
- Determinação das exigências de prevenção especial, que se circunscrevem na moldura definida pela prevenção geral.
2 Supremo Tribunal de Justiça-PROC92/23.4JELSB de 2024-02-29. Disponível na internet:.
Ao crime em apreço apenas é aplicável pena de prisão, pelo que há que considerar:
- Culpa: circunscreve-se no dolo direto, sendo de grau elevado, tendo em consideração, por um lado, a (grande) quantidade de droga aqui em causa e a elevada carga intencional colocada pela Arguida na prática dos factos (a qual está bem espelhada no facto de a mesma ter decidido empreender uma viajem intercontinental no sentido de levar a cabo tais factos).
- Prevenção geral positiva: as exigências são elevadas, considerando:
- O facto de serem elevadas as atuais exigências sociais de repressão deste crime, que é muitíssimo frequente;
- A circunstância de ser elevada a ilicitude presente na prática dos factos, tendo em consideração a elevada quantidade de droga aqui em apreço – considerando os valores constantes do Mapa a que se reporta o n.º 9 da Portaria n.º 94/96, de 26 de março, relativos ao limite quantitativo máximo para cada dose média individual diária de um consumidor desta “droga dura”.
- Prevenção especial positiva: as exigências são baixas, tendo em consideração:
- Em favor da Arguida:
§ A ausência de antecedentes criminais;
§ A confissão, integral e sem reservas, dos factos – pese embora o escasso relevo da confissão, na medida em que a Arguida foi detida em flagrante delito;
§ O facto de a Arguida se mostrar minimamente integrada a nível social, designadamente em termos familiares, e ter mantido um bom comportamento prisional.
Considerando a culpa e as exigências de prevenção geral e especial, julga-se ser adequado condenar a Arguida na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão.
4. Alega a recorrente, em sede de conclusões, o seguinte:
I. O Tribunal a quo condenou a Recorrente na pena de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses de prisão, pela prática em autoria material de um crime de tráfico e outras atividades ilícitas, previsto e punido no nº 1 do artigo 21º, com referência à Tabela I-B, e no nº 1 do artigo 34º do Regime Jurídico aplicável ao Tráfico e Consumo de Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro; e na pena de Expulsão do território nacional português, pelo período de 5 (cinco) anos e 6 (seis) meses, nos termos do nº 1 do artigo 151º do Regime Jurídico de Entrada, Permanência, Saída e Afastamento de Estrangeiros do Território Nacional, aprovado pela Lei nº 23/2007, de 4 de julho.
II. Ficou provado que:
10) A Arguida confessou os factos, de forma integral e sem reservas.
11) A Arguida não tem antecedentes criminais conhecidos.
12) Do teor do relatório social efetuado em relação à Arguida, resulta (...):
- A Arguida vive com o namorado e dois sobrinhos, de 18 e 12 anos de idade, em casa da mãe da Arguida, inserida na favela de ..., local marcado pela marginalidade e criminalidade. - A Arguida assegura o sustento dos sobrinhos.
- No Brasil, a Arguida trabalhava como empregada doméstica auferindo o rendimento de 1.110,00 reais.
- No Estabelecimento Prisional de ... vem mantendo uma conduta cumpridora das regras institucionais, não lhe sendo conhecido registo disciplinar.
- A Arguida vem contactando, por videoconferência, com o namorado e os sobrinhos.
- A Arguida pretende regressar ao convívio com o seu agregado familiar e voltar a trabalhar na sua área de atividade.
III. Considerou o Tribunal a quo, como Facto não provado que “A Arguida está arrependida de ter praticado os factos acima aludidos”.
IV. Porém, o Tribunal a quo considerou que “a Arguida, de forma credível, por segura e espontânea, confessou estes factos, de forma integral e sem reservas”.
V. Considerou o Tribunal a quo que o seu arrependimento é incompatível com o facto de os traficantes terem ficado de dar uma casa à Arguida.
VI. Na punição deverá ter-se em consideração os factos e a personalidade do agente.
VII. Para determinar a medida concreta da pena, o juiz serve-se do critério global contido no artigo 71º do Código Penal.
VIII. A determinação da medida concreta da pena deve ser feita em função da culpa do arguido e das exigências da prevenção geral e especial das penas.
IX. Sendo que, a medida da pena, não pode ultrapassar a medida da culpa.
X. Refere a Decisão Recorrida que as exigências de prevenção especial são baixas, tendo em consideração: a ausência de antecedentes criminais, a confissão e o facto da Arguida se mostrar minimamente integrada a nível social, designadamente em termos familiares, e ter mantido um bom comportamento prisional.
XI. Ora daqui se contempla que a pena aplicada à arguida é desajustada em relação às suas circunstâncias pessoais, económicas e sociais, justificando a aplicação de uma pena inferior à aplicada, porquanto se considera assim ter o Douto Tribunal a quo violado o preceituado nos artigos 40º e 71º do Código Penal.
XII. Deverá esse Venerando Tribunal da Relação, aplicar à ora recorrente, uma pena inferior a 5 anos de prisão, determinada pelos normativos supra referenciados.
5. Do vício de erro notório.
a. Pese embora pela leitura apenas das suas conclusões, se não mostre tal circunstância aparente (o que aí consta, a esse respeito, é tão somente III. Considerou o Tribunal a quo, como Facto não provado que “A Arguida está arrependida de ter praticado os factos acima aludidos”. IV. Porém, o Tribunal a quo considerou que “a Arguida, de forma credível, por segura e espontânea, confessou estes factos, de forma integral e sem reservas”. V. Considerou o Tribunal a quo que o seu arrependimento é incompatível com o facto de os traficantes terem ficado de dar uma casa à Arguida.), a verdade é que, em sede de motivação, se consegue compreender que a recorrente considera que o facto de o tribunal “a quo” não ter dado como provado o seu arrependimento, constitui o vício de erro notório na apreciação da prova, como aliás, e correctamente, refere o Exº PGA no seu parecer.
Assim, quer pela circunstância de tal vício ser correctamente invocado, em sede de motivação, embora deficientemente o seja em sede conclusiva, quer porque o mesmo é de conhecimento oficioso, abordemos previamente tal ponto.
Vejamos então.
b. A análise que terá de ser feita, quer pelo recorrente quer pelo tribunal “ad quem”, no caso do vício de erro notório (previsto no artº 410 nº2 al. c), do C.P. Penal), resume-se ao texto da decisão recorrida – isto é, a perspectiva de análise é realizada sem que possa ser feito qualquer apelo ao que concretamente foi dito em termos de depoimentos em audiência, com excepção do resumo probatório realizado pelo tribunal “a quo”. Não há lugar a qualquer referência a excertos probatórios concretos, em termos de gravação, nem é permitido ao tribunal “ad quem” servir-se dos mesmos para resolver a questão. Assim, tal vício terá de resultar – como a lei claramente menciona – única e exclusivamente (ou seja, apenas), do que consta do texto da decisão proferida pelo juiz do julgamento e é da sua mera leitura que terá de decorrer, de uma forma flagrante e patente que esse erro se verifica. Tudo se passa, no fundo, como se inexistisse documentação dos actos da audiência.
Mais – temos de estar perante um erro calamitoso, algo de inquestionavelmente errado. Tal sucederá, por exemplo, nos casos em que se afirme na fundamentação que as testemunhas disseram que estava a chover e, não obstante, se dê como assente que o piso estava seco; quando o juiz retira uma ilação ilógica e contrária às regras de experiência comum.
E a consequência da existência deste tipo de erro é a ocorrência de um vício, que acarreta a nulidade da sentença (parcial ou total), passível ou não de suprimento, consoante o caso em apreço.
c. O vício invocado pela recorrente ocorre assim, concretizando, quando se constata que o julgador retirou de um facto provado uma conclusão logicamente inaceitável, ilógica, arbitrária, contraditória ou notoriamente violadora das regras de experiência comum; deu como assente algo patentemente errado; ou violou as regras da prova vinculada, as regras da experiência; as legis artis ou quando o tribunal se afastou, sem fundamento, dos juízos dos peritos.
d. Constata-se, perante a leitura quer do texto decisório, quer do recurso, que a recorrente se mostra incapaz de demonstrar a ocorrência de tal vício.
De facto, é patente que a arguida não está de acordo com a convicção alcançada pelo tribunal “a quo”, no que respeita ao facto de ter dado o seu arrependimento como não provado.
Sucede, todavia, que não é fundamento de recurso a mera circunstância de algum dos intervenientes discordar da convicção alcançada pelo julgador, por a sua própria ser diversa. Pese embora seja direito que lhe assiste (ter a sua pessoal convicção a propósito dos factos), a verdade é que só existirá o vício referido se for flagrante, manifesto, que a convicção do julgador se mostra erroneamente alcançada. A circunstância de outra poder ser essa convicção não determina a existência de erro, pois o mesmo só ocorrerá, se for óbvio, patente e inquestionável que se mostra erroneamente fundada, isto é, se não se mostrar cumprido o disposto no artº 127 do C.P. Penal.
e. No caso dos autos, tal não sucede.
De facto, o tribunal “a quo” entendeu que, da conjugação das declarações da própria arguida, aliada a inferências decorrentes do normal correr das coisas, não podia dar como assente que esta, de facto, demonstrasse arrependimento.
E explicou porquê.
Efectivamente, no que toca ao facto não provado 14 (14) A Arguida está arrependida de ter praticado os factos acima aludidos.), deixou expresso na motivação da sua convicção o seguinte:
Ponto 14): a Arguida verbalizou o seu arrependimento e motivou a prática dos factos com a circunstância de os traficantes de droga que a obrigaram a praticá-los terem ameaçado a sua família, dizendo que, caso a Arguida não transportasse a droga, «arrancariam as pernas» aos seus sobrinhos, pessoas por quem a Arguida demonstrou ter um elevado afeto. Não obstante, o seu arrependimento é incompatível com o facto de tais traficantes terem ficado de dar uma casa à Arguida (situada fora da favela onde esta vive), pelo que, nesta parte, as declarações da Arguida não são credíveis.
f. Em primeiro lugar caberá referir que não é uniforme a posição jurisprudencial quanto à circunstância de dever ou não constar como matéria fáctica assente, a existência ou inexistência de arrependimento e a sua natureza ou grau.
Diga-se, aliás, que no nosso caso, pendemos a entender que se trata de conclusão a retirar da análise global da matéria fáctica dada como assente, logo consideramos que nem sequer deve forçosamente constar de tal rol.
De facto, sendo o arrependimento um sentimento do foro interno, para que possa ocorrer uma percepção externa da sua efectiva ocorrência, necessário se mostra que a análise a realizar à totalidade da conduta do arguido demonstre, por actos por si praticados que, de facto, tal circunstância se verifica. Não basta, portanto, a mera verbalização de arrependimento, para que se possa considerar que o mesmo ocorre.
Não obstante, como já dissemos, alguma jurisprudência entende que tal circunstância tem cabimento em sede de determinação da matéria fáctica assente e, por tal razão, entendemos ser admissível tal inclusão.
g. Em segundo lugar, convém frisar que o raciocínio expendido pelo tribunal “a quo” não se mostra absurdo ou insuportado pela prova produzida, nem pelas regras de senso comum. O que se retira dos autos é que, efectivamente, por nenhum acto demonstrou a arguida arrependimento quanto à sua actuação, designadamente através de uma análise autocrítica do seu comportamento criminoso.
A arguida confessou os factos que lhe vinham imputados, não há dúvida, mas, tendo em atenção que foi detida em flagrante delito, dir-se-á que dessa circunstância se não retira qualquer efectivo arrependimento.
Para além do mais, das suas próprias declarações resulta uma manifesta contradição, pois quando faz referência à coacção que terá determinado a sua actuação (ameaça à saúde dos sobrinhos), tal justificação comportamental entra em rota de colisão com a promessa de recompensa que admite esperar auferir, em consequência do transporte que realizou.
Assiste pois plena razão ao tribunal “a quo”, ao entender que tal matéria não podia ser dada como assente.
h. Do que se deixa exposto constata-se que não existe, na fundamentação da convicção do tribunal “a quo” nada de flagrante ou patentemente errado, na perspectiva do homem médio, pelo que haverá que concluir que se não verifica, em concreto, um erro notório na apreciação da prova, previsto no artº 410 nº2 al. c) do C.P.Penal. O decidido, a nível de facto, mantém-se nos termos definidos pelo julgador “a quo”.
Resta, pois, concluir que, nesta parte, deve o recurso improceder.
6. Da redução e suspensão da pena imposta.
Comecemos pela primeira questão proposta, que se reporta ao pedido de alteração da dosimetria da pena imposta, pugnando a arguida pela imposição de pena não superior a 5 anos de prisão.
Pela prática do crime de tráfico de estupefacientes, foi a arguida condenada na pena de 5 anos e 6 meses de prisão.
A moldura penal prevista para este ilícito é a de 4 a 12 anos de prisão.
7. Em primeira sede cabe realçar que, a respeito da determinação da pena, rege o princípio da pessoalidade. Tal princípio impõe que a pena seja aplicada de um modo individualizado, tendo em conta a situação pessoal, económica, social específica da pessoa visada, bem como a apreciação crítica de todo o seu circunstancialismo actuativo. A pessoalidade e individualização da pena são uma consequência do princípio da culpa e valem para qualquer sanção penal.
8. No que concerne à dosimetria da pena imposta, como afirma o Prof. Cavaleiro de Ferreira (in Direito Penal Português, II, Lisboa, 1982, pgs. 309 e 310), procurando conciliar a natureza repressiva da pena e a sua justiça, com a reintegração social do agente do crime, a pena não constitui intrinsecamente um mal. Enquanto restringe a esfera jurídica dos condenados, é castigo e como tal deve ser sentida. O castigo, porém, na sua essência, está na reprovação do crime pela condenação.
A pena, na sua aplicação e execução, deve ao invés apontar para a redenção da culpa (repressão), através da readaptação social. A pena não será, portanto, um mal ou sofrimento equivalente ao mal cometido ou sofrimento causado; mas o meio adequado a suscitar a restituição à sociedade pelo delinquente do bem equivalente ao mal cometido, presuntivamente correspondente à extinção da culpa, a qual reage à pena.
9. Importa pois, desde logo, para além dos fins de repressão e de reintegração, atender ainda às exigências de prevenção geral e especial, que regem igualmente os fins das penas.
Na prevenção geral utiliza-se a pena para dissuadir a prática de crimes pelos cidadãos - prevenção geral negativa – e para incentivar a convicção na sociedade, de que as normas penais são válidas, eficazes e devem ser cumpridas, – prevenção geral positiva. Na prevenção especial, a pena é utilizada no intuito de dissuadir o próprio delinquente de praticar novos crimes e com o fim de auxiliar a sua reintegração na sociedade.
10. Apreciemos, então, o caso presente.
Cabe começar por dizer que se subscreve o que se mostra referido pelo tribunal “a quo”, no que se refere ao modo como procedeu à apreciação dos elementos relativos à dosimetria da pena, designadamente:
Na eleição do tipo de pena, e na determinação concreta do seu quantum, deve proceder-se da seguinte forma (artigos 40.º, 70.º e 71.º do Código Penal)2:
- Ponderação das finalidades da punição (prevenção geral e especial, maxime positiva) e preferência pelas penas não privativas da liberdade (desde que estas realizem aquelas finalidades de forma adequada e suficiente);
- Determinação da pena concreta em resultado de uma operação de construção de uma moldura que, limitada pela culpa, se concretiza na determinação das exigências de prevenção geral (que variam entre uma medida ótima de tutela dos bens jurídicos e um limiar mínimo abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação de uma pena sem colocar em causa a sua função de tutela de tais bens);
- Determinação das exigências de prevenção especial, que se circunscrevem na moldura definida pela prevenção geral.
Prosseguindo.
Neste tipo de crime as exigências de prevenção geral são fortíssimas, pois o tráfico de estupefacientes é das actividades que mais profundamente corrói e corrompe a sociedade em que vivemos, potenciando o cometimento de numerosos outros tipos de crimes – roubos, furtos, receptações –, tornando um verdadeiro flagelo a vida dos consumidores, das suas famílias, gerando instabilidade social, problemas de saúde pública e de desenquadramento laboral e familiar, que acabam por ser suportados por todos os restantes cidadãos.
Assim, na fixação da pena a impor, em casos como o presente, haverá que sopesar as necessidades de estratégica nacional e internacional de combate a este tipo de crime, que reforçam ainda mais os imperativos de prevenção geral e especial, no sentido de a dosimetria penal não frustrar, não desacreditar, as expectativas comunitárias na validade da norma jurídica violada. Lembremo-nos que Portugal, através dos seus aeroportos ou linha costeira é, infelizmente, um local de entrada de estupefacientes, vindos dos países produtores, quer para o mercado nacional, quer para a Europa.
11. Alega a recorrente encontrar-se social e familiarmente inserida, ter confessado a prática dos factos e ter revelado arrependimento.
No que toca a esta última circunstância, como supra se deixou exposto, não pode a mesma ser atendida, uma vez que se não provou.
Assim, tendo em atenção as restantes considerações acabadas de enunciar, será que, no caso desta arguida se poderá concluir que as circunstâncias que a mesma invoca serão de molde a determinarem imposição de pena mais próxima do limite mínimo do que a fixada pelo tribunal “a quo”?
12. A resposta é claramente negativa, desde logo atentas as fortíssimas exigências em sede de prevenção geral, que supra deixámos expostas. Para além destas, a verdade é que da matéria fáctica apurada não resulta qualquer circunstância de assinalável relevo que determine, que imponha, que induza, ocorrer uma assinalável diminuição da sua culpa ou da ilicitude dos seus actos.
13. Efectivamente, a ausência de antecedentes criminais e o seu entorno familiar, foram elementos já tidos em ponderação no momento da determinação da dosimetria da pena.
Para além do mais, o restante circunstancialismo relativo à sua situação pessoal, familiar e profissional, já ocorria no momento em que a arguida praticou os factos, tendo o mesmo sido absolutamente insuficiente para a impedir de os realizar.
14. Assim, não só se verificam fortes exigências de prevenção geral como, igualmente, graves necessidades de prevenção especial, pois a arguida agiu movida pela exclusiva procura de obtenção de benefícios económicos rápidos e muito significativos, como resulta inequívoco do facto provado nº5 - 5) A arguida conhecia a natureza e características da cocaína acima referida, que aceitou transportar em troca da oferta de uma casa, de valor não inferior a 20.000 reais.
Diga-se, aliás, que uma das razões que justificam e exigem o cumprimento de uma pena de prisão efectiva e com algum grau de consistência radicam, precisamente, na imperiosa necessidade de se desmotivar o tipo de actuação que a arguida protagonizou, isto é, é absolutamente essencial que seja entendido que o exercício de uma actividade com tão nefastas consequências societárias e que permite obter, com muito pouco esforço, significativas quantias monetárias, não é tolerada.
15. Não fossem as circunstâncias atenuantes que, quer a recorrente, quer o tribunal “a quo” referem, seguramente não lhe teria sido imposta uma pena que foi fixada muito abaixo do meio da moldura penal (que rondaria os 8 anos de prisão), já que a ilicitude e a culpa se mostram na mediania, como bem realça o tribunal “a quo”.
Na verdade, a quantidade de produto estupefaciente que a arguida detinha e transportava – cerca de 3 quilos - , bem como a natureza do mesmo – cocaína - são elementos em si mais do que suficientes para se ter de entender revelar o facto um grau de ilicitude média, sendo certo que o dolo com que actuou se situa igualmente nesse grau.
16. Finalmente, e no que concerne à sua admissão da prática dos factos, embora circunstância de carácter atenuante, a verdade é que a mesma se não mostra de particular relevo atenuante, uma vez que a arguida foi detida em flagrante delito, trazendo a substância estupefaciente no seu próprio corpo.
17. Face a tudo o que se deixa dito, conclui-se que na fixação da pena foram atendidas e sopesadas todas as circunstâncias legalmente previstas, incluindo as de natureza atenuante, mostrando-se a mesma adequada e proporcional, pelo que não nos merece censura quer a sua natureza quer o seu quantum, razão pela qual deve ser mantida. Não ocorreu, pois, violação dos dispositivos legais que a recorrente invoca.
9. Tendo em atenção o disposto no artº 50 do C. Penal, é manifesto que o pedido de suspensão da pena se mostra prejudicado.
iv – decisão.
Pelo exposto, acorda-se em considerar improcedente o recurso interposto pela arguida AA e, em consequência, confirma-se a decisão recorrida.
Condena-se a recorrente no pagamento da taxa de justiça de 5 UC. .
Dê imediato conhecimento ao tribunal “a quo” do teor deste acórdão, advertindo que a decisão ainda se não mostra transitada em julgado.
Lisboa, 2 de Abril de 2025
Maria Margarida Almeida (Relatora)
Lopes da Mota
Jorge Raposo