RECURSO PER SALTUM
FALSIFICAÇÃO OU CONTRAFAÇÃO DE DOCUMENTO
ABUSO DE CONFIANÇA
BURLA QUALIFICADA
CÚMULO JURÍDICO
PENA ÚNICA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
RELATÓRIO SOCIAL
INSUFICIÊNCIA DA MATÉRIA DE FACTO
IMAGEM GLOBAL DO FACTO
FINS DAS PENAS
PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA
PRINCÍPIO DA CONFIANÇA
PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE
PROCEDÊNCIA
Sumário


I - A reprodução pura e simples de partes do relatório social, as quais se transcrevem na íntegra, onde para além de factos se fazem referências valorativas, opinativas e meramente descritivas, não se apresenta como a melhor forma de tratar dos aspetos atinentes às condições pessoais e situação económica do agente, traço importante para escolha e determinação da medida da pena.
II - Por esta via, e no bom rigor, o que se dá como provado é que o relatório social apresenta um determinado conteúdo, elenca referências várias, e já não os eventuais factos concretos que o mesmo possa abrigar.
III - Este retrato, ao que se entende, permite conjeturar a nulidade expressa no art. 379.º, n.º 1, al. a), por referência ao art. 374.º, n.º 2, ambos do CPP, na medida em que se poderia desenhar a ausência de enumeração de factos provados necessários e suficientes para a determinação da medida da pena e, sequentemente, para a escolha da pena em concreto.
IV - O recurso em matéria de pena não é uma oportunidade para o tribunal ad quem fazer um novo juízo sobre a decisão em revista, sendo antes um meio de corrigir o que de menos próprio foi decidido pelo tribunal recorrido e que sobreleve de toda a mancha decisória.
V - Em sede de medida da pena, o recurso não deixa de reter o paradigma de remédio jurídico, apontando para que a intervenção do tribunal de recurso se deve ater somente à reparação de qualquer desrespeito, pelo tribunal recorrido, dos princípios e regularidade que definem e demarcam as operações de concretização da pena na moldura abstrata determinada na lei.
VI - Ao que se vem entendendo, numa nova pena conjunta a encontrar, esta não deve assemelhar-se à mera soma/equiparação das penas finais aplicadas nas condenações cujas penas parcelares vão ser englobadas no novo cúmulo jurídico a efetuar por conhecimento superveniente de outros crimes integrantes do mesmo concurso.
VII - Na formação de uma pena única, quanto maior é o somatório das penas parcelares, maior é, também, o fator de compressão que incide sobre as penas que se vão somar à mais elevada, pois, se assim não fosse, para além de se atingir facilmente a pena máxima em casos em que a mesma não se justifica ante a gravidade dos factos, estar-se-ia, de certa forma, a aniquilar todos os básicos princípios que norteiam o processo de alcance da pena única.
VIII - Numa baliza, em termos de pena única, situada entre 2 anos e 6 meses de prisão e 15 anos e 5 meses de prisão, onde se integram novas penas de patamares oscilantes entre 15 meses e 2 anos e 4 meses de prisão, atentando a que anteriormente existia uma pena única de 5 anos e 6 meses de prisão, contendo diversas penas parcelares de quantum de variação entre 2 anos e 2 anos e 6 meses de prisão, estando em causa factos ocorridos há muitos anos – 05-2005 e 02-2006 –, aplicar uma pena única de 9 anos de prisão, acima da mediania possível, é solução de manifesta/ostensiva/visível desproporcionalidade que põe em causa os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança.

Texto Integral


Comarca de Faro – Juízo Central Criminal de ... – Juiz ...

Recurso Penal (per saltum)

Acordam em Conferência na 3ª Secção Criminal

I – Relatório

1.No processo nº 54/06.6GCPTM.1 da Comarca de Faro – Juízo Central Criminal de ... – Juiz ..., figurando como arguido AA, nascido a ... de ... de 1972, em Moçambique, filho de BB e de CC, residente na Rua ..., atualmente recluso no Estabelecimento Prisional ..., verificada uma situação de conhecimento superveniente de concurso de penas, nos termos do disposto nos artigos 77º nºs 1 e 2 e 78º nºs 1 e 2 do CPenal, e a competência daquele Tribunal, para proferir a decisão, nos termos dos artigos 14º, nº 2, al. b) e 471º, nº 1, ambos do CPPenal, após realização de audiência, foi proferido acórdão cumulatório, onde se decidiu:

- Operar o cúmulo jurídico das penas aplicadas ao arguido AA nos processos n.ºs 1150/09.3... e 54/06.6...;

- Condenar o arguido AA na pena única de 9 (nove) anos de prisão.

2.Inconformado com o decidido, o arguido AA (doravante AA) interpôs recurso per saltum para este Alto Tribunal e na sequência da motivação que enuncia, apresenta as seguintes conclusões: (transcrição)

I – O Recorrente encontra-se a cumprir uma pena única de 5 anos e 6 meses à ordem do processo 1150/09.3...;

II – O presente cúmulo veio a agravar a pena em quatro anos;

III – Os crimes pelos quais o recorrente foi condenado foram praticados há mais de 18 anos, em 2005 e 2006;

IV – Entre a prática dos factos e a reclusão, em 2022 não há noticia de outros crime praticados pelo recorrente;

V – Os ilícitos praticados pelo recorrente ficaram a dever-se a situação pontual e localizada num espaço temporal curto;

VI – Tendo em conta o artigo 71.º do Código Penal, a personalidade do recorrente bem como a gravidade dos factos a pena única de nove anos de prisão é manifestamente excessiva e completamente desproporcionada ultrapassando a medida da culpa;

VII – As penas parcelares não excedem os dois anos e seis meses e o facto de serem várias não eleva a culpa;

VIII – O novo cúmulo pode não vir a agravar a pena anteriormente fixada podendo até reduzi-la, quando a reavaliação da personalidade do agente e dos factos à luz das novas condenações, impuser uma nova imagem global do facto mais favorável ao condenado;

IX – É este o caso dos autos,, considerando as penas parcelares, o tempo da prática dos factos, e o tempo que mediou a prática dos factos e a reclusão;

X – Afigura-se justa a aplicação de uma pena única nunca superior a sete anos;

XI – Assim não o fazendo violou o Tribunal a quo o artigo 71.º do Código Penal na medida em que face aos critério da norma uma pena não superior a sete anos é a pena justa e proporcional à gravidade dos factos.

3.O Digno Ministério Público, junto do Tribunal de 1ª Instância, respondendo, e pugnando pela procedência do recurso, vem apresentar as seguintes conclusões: (transcrição1)

1. O condenado AA insurge-se contra o acórdão que procedeu à realização do cúmulo jurídico de penas, alegando, em síntese, que a pena única aplicada é manifestamente excessiva e desproporcionada.

2. In casu, foi realizado o cúmulo jurídico das penas que o recorrente AA sofreu nos processos n.ºs 1150/09.3... e 54/06.6..., sendo que, aplicando os critérios previstos no artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal, a moldura penal do concurso, in casu, tem como limite mínimo: 2 anos e 6 meses de prisão (= a mais elevada das penas aplicadas) e como limite máximo: 15 anos e 5 meses de prisão (=somatório das penas concretas aplicadas).

(…)

4. In casu, não se ignora serem elevadas as exigências de prevenção geral, atendendo aos bens jurídicos protegidos – património de terceiros e a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório dos documentos – e a elevada frequência com que tal criminalidade vem sendo praticada, assim como, a forte censura que a comunidade tem relativamente à mesma.

5. Sucede que, relativamente ao recorrente AA, as exigências de prevenção especial são médias, porquanto, o mesmo antes de estar preso tinha hábitos de trabalho e encontrava-se familiarmente inserido (cfr. ponto 3 da matéria de facto provada), sendo certo também que, em ambiente de reclusão, no E.P. ..., trabalha ininterruptamente desde 07/12/2023 na lavandaria, com bom desempenho, caracterizado pela assiduidade, pontualidade e realização das tarefas sem incidentes (cfr. ponto 5 da matéria de facto provada).

6. Pelo exposto, se relativamente à pena única que deve ser aplicada ao recorrente AA, não se pode esquecer, por um lado, as fortes exigências de prevenção geral e as prementes exigências de prevenção geral que se verificam no caso em apreço, assim como, que a pena aplicada deve ser suficiente para admoestar fortemente aquele sobre o seu comportamento futuro, por outro lado e, ao mesmo tempo, deve deixar-lhe «escancarada a porta da reintegração na comunidade dos homens fieis ao direito.»

7. Ora, apreciando o circunstancialismo concreto, verifica-se que os crimes foram praticados há mais de 18 anos e, bem assim que, deve-se conter o perigo de estigmatização do condenado e ou de na prática a total inviabilidade da sua futura reinserção social, sendo que, deve-se fazer operar o princípio da proporcionalidade, sobretudo em situações, como a dos presentes autos, em que «na formação da pena única, quanto maior é o somatório das penas parcelares, maior é o factor de compressão que incide sobre as penas que se vão somar à mais elevada, pois, se assim não fosse, muito facilmente se atingiria a pena máxima em casos em que a mesma não se justifica perante a gravidade dos factos» .

8. Em síntese conclusiva: considerando o disposto nos artigos 40.º e 77.º, n.º 1, ambos do Código Penal e, sopesando, a gravidade dos factos integrantes dos ilícitos perpetrados pelo recorrente AA, a personalidade deste e as exigências de prevenção geral e especial, cremos, ser justa e adequada a pena única de 7 anos de prisão (conforme, aliás, pugnado pelo Ministério Público em sede de alegações orais).

9. Termos em que, deverá ser julgado procedente o recurso interposto pelo condenado AA e, em consequência, ser-lhe aplicada a pena única de 7 anos de prisão.

4. Subidos os autos a este Supremo Tribunal de Justiça, o Ex.mo Senhor Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416º do CPPenal, emitiu parecer aderindo ao posicionamento tomado pelo Digno Ministério Público em 1ª instância, e alinhando na procedência do recurso interposto pelo arguido, opina: (transcrição)2

(…)

Subescrevemos inteiramente a posição do Senhor Procurador da República.

Com efeito, atenta a natureza dos crimes aqui em apreço, as circunstâncias e o estreito lapso de tempo em que os mesmos foram cometidos, bem como o comportamento que o recorrente manteve durante o longo período que mediou entre o último desses crimes e a presente data, afigura-se-nos excessiva, por desproporcionada e desadequada. a pena única aqui aplicada em resultado do concurso.

Apesar de a pena única do concurso de crimes resultar necessariamente de uma moldura abstrata construída a partir das penas cumuladas, deve ser independente destas, constituindo uma pena nova, autónoma, que obedece a critérios próprios de ponderação e que não se confunde nem depende (exceto na sua moldura abstrata) das penas singulares que a originaram. E tal como acontece na fixação da medida das penas singulares, a pena única é determinada exclusivamente pela culpa do agente e pela ponderação conjunta de critérios de prevenção geral e especial, tal como dispõem os artigos 71º e 77º do Código Penal.

(…)

Cremos poder afirmar, sem receio de errar, ser totalmente consensual, quer na doutrina quer na jurisprudência, o entendimento que vê a determinação da pena única como uma operação jurídica complexa, resultante da apreciação motivada do caso submetido a concurso, que tem de ser fundamentada de facto e de direito por forma a tornar compreensível para o cidadão comum o processo lógico e racional que o tribunal seguiu para chegar a tal resultado.

(…)

Estando em causa a determinação da medida concreta da pena conjunta do concurso, aos critérios gerais contidos no artigo 71.º, n.º1, acresce um critério especial fixado no artigo 77.º, n.º1, 2.ª parte, do Código Penal: «serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente».

Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, como se o conjunto de crimes em concurso se ficcionasse como um todo único, globalizado, que deve ter em conta a existência ou não de ligações ou conexões e o tipo de ligação ou conexão que se verifique entre os factos em concurso.

(…)

A reavaliação dos factos em conjunto com a personalidade do arguido não pode, assim, deixar de ser aquela que resulta de uma realidade contemporânea, que leve em conta a erosão das necessidades de prevenção especial motivada pelo passar do tempo, compaginada com uma personalidade que há muito deixou de delinquir e que logrou alcançar com êxito (ainda que moderado) a sua integração social.

(…)

De uma leitura ponderada da matéria de facto provada resulta, a nosso ver, que a circunstância de todos os crimes cumulados terem sido praticados num espaço temporal restrito, sempre dirigidos à obtenção ilícita de um enriquecimento patrimonial, aliada à ausência de comportamentos criminosos posteriores, aponta muito mais no sentido de que as condutas ilícitas aqui em causa tenham sido resultado de uma crise pessoal dissonante com os valores do direito e da vida em sociedade, mas ainda assim limitada, do que no sentido de terem sido o resultado de uma personalidade desviante e criminógena que imponha, ainda agora, especiais necessidades de correção.

Por isso, não sendo as penas reações penais estritamente retributivas e tendo, como não podia deixar de ser num direito penal democrático e humanista, uma finalidade socializadora e pacificadora da relação entre o criminoso e a sociedade (posta em causa pelo cometimento do crime) não podemos deixar de considerar desadequada, porque excessiva, a pena única aqui aplicada ao arguido, que excede também a necessidade de tutela dos bens jurídicos violados, indo para além do que imporiam as expectativas da comunidade no que respeita à manutenção e reforço das normas violadas.

(…) emite-se parecer no sentido de que o recurso deve ser julgado procedente anulando-se a decisão recorrida decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que fixe a pena única resultante do concurso em montante não superior a 7 anos de prisão.

Não foi apresentada qualquer resposta.

5. Efetuado o exame preliminar e colhidos que foram os vistos legais, cumpre agora, em conferência, apreciar e decidir.

II – Fundamentação

1.Questões a decidir

Face ao disposto no artigo 412º do CPPenal, considerando a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça nº 7/95, de 19 de outubro de 19953, bem como a doutrina dominante4, o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo da ponderação de questões de conhecimento oficioso que possam emergir5.

Posto isto, e vistas as conclusões do instrumento recursivo trazido pelo arguido recorrente, apresenta-se como tema de decisão a adequação, proporcionalidade e justeza da pena única imposta.

2. Apreciação

2.1. O Tribunal recorrido considerou provados os seguintes factos: (transcrição)

(Proc. 880/05.3...)

«Antes de 2.3.2005 o arguido deitou mão a fotocópias dos documentos de identificação e do cartão de pagamento de DD, sem consentimento deste.

Em 9.3.2005 o arguido adquiriu carros telecomandados, no valor de 100 euros, que encomendou no sítio da Internet da empresa vendedora, tendo aí indicado o nome de DD e fornecendo os respectivos elementos bancários para o correspondente pagamento, que veio a ocorrer, bem como a entrega dos carros.

Em 4.4.2005, o arguido desenhou o nome de EE num cheque desta e no local destina à sua assinatura, tendo preenchido o resto do cheque por forma a pagar 99 euros equivalentes ao valor do relógio que então adquiriu a M....

Agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo a sua conduta proibida, mas querendo obter aqueles bens».

(Proc. 1150/09.3...)

«O arguido, em 22.12.2005, convenceu os funcionários da A... a fazerem-lhe a entrega de um cheque, no valor de 6.337,09 euros, fazendo-lhes crer que estava para tanto autorizado pelo destinatário daquele cheque, FF, o que não correspondia à verdade.

Na posse do cheque e nesse dia, o arguido convenceu GG a deslocar-se à agência de ... do BCP para levantar o cheque (que era cruzado).

O arguido desenhou no verso do cheque a assinatura de FF e GG fez a sua própria assinatura, procedendo ao levantamento imediato do dinheiro, que entregou ao arguido.

O arguido agiu de forma livre deliberada e consciente, apoderando-se daquela quantia, embora soubesse que o cheque se destinava a FF, sabendo ainda a sua conduta proibida.

O arguido, em 12.7.2005, no balcão de ... do BBVA, depois de o endossar a si mesmo, assinando-o no verso, procedeu ao levantamento da quantia de 5.000 euros, titulada por um cheque passado ao portador pelo titular da respetiva conta, FF, que o tinha confiado ao arguido para que este o entregasse a outra pessoa.

O arguido agiu de forma livre deliberada e consciente, apoderando-se daquela quantia, embora soubesse que o cheque se destinava a outra pessoa, sabendo ainda a sua conduta proibida.

O arguido, no início do ano de 2006, convenceu HH a constar como sacador de uma letra de câmbio no valor de 19.000 euros que mais tarde levantaria mais tarde na Caixa de Crédito Agrícola, como forma de lhe pagar o que lhe devia e ainda os 1.200 euros que logo então lhe pediu e obteve.

Nessa letra de câmbio figurava como sacado FF, tendo sido desenhada uma assinatura semelhante à deste no local destinado ao aceite.

FF nunca assinou a letra ou deu qualquer autorização a que na mesma figurasse como sacado, o que era do conhecimento do arguido, que agiu de forma livre deliberada e consciente, sabendo a sua conduta proibida, mas pretendendo haver de GG os 1.200 euros, bem como que este, depois de 2.5.2006, procedesse ao levantamento dos 19.000 euros da conta de FF na Caixa de Crédito Agrícola, o que não sucedeu porque, entretanto, GG soube que a letra era falsa».

(Proc. 54/06.6...)

«O arguido travou conhecimento com II no decurso do ano de 2005 e, em data indeterminada do final desse ano, II emprestou-lhe o seu veículo automóvel de matrícula ..-..-ZG (uma “Audi A4 Station”), na condição de o arguido o devolver assim que II o solicitasse.

No dia 09.02.2006, II deslocou-se à morada do arguido, no ..., a fim de ir buscar a sua viatura e percebeu que, nem o arguido, nem a sua viatura se encontravam lá.

Apesar das diligências efectuadas, não mais II conseguiu contactar o arguido, pois este mudou-se da residência sem dar qualquer notícia.

II veio a saber, mais tarde, que o arguido já tinha vendido a viatura.

O veículo possuía, à data, o valor de 12.000,00 euros.

Em Abril de 2005, o arguido, encontrando-se a trabalhar na sociedade de Mediação de Imóveis “F...”, conheceu JJ e logo elaborou um plano para enriquecer à custa dele.

Teve conhecimento que JJ estava interessado na compra de um apartamento e, por essa via, solicitou-lhe os documentos pessoais, tendo ficado com fotocópias do bilhete de identidade, n.º de contribuinte e n.º da conta bancária por aquele titulada na “Caixa de Crédito Agrícola”, de modo a mais tarde poder utilizá-los.

O negócio do imóvel não foi concretizado, mas o arguido acabou por ganhar a confiança de JJ.

Assim, entre o final de Abril de 2005 e início de Maio do mesmo ano, o arguido, aproveitando-se da boa fé de JJ, pediu-lhe que o ajudasse na compra de um carro (de matrícula ..-..-PD, um “Fiat Punto”) e, para isso, que assinasse uns documentos.

Todavia, não lhe esclareceu que se tratava de um contrato de empréstimo referente à viatura, em que JJ se assumia como o próprio subscritor desse empréstimo e onde figurava a conta bancária na “Caixa de Crédito Agrícola” titulada por JJ para débito directo, a fim de o empréstimo ser cobrado.

JJ acabou por assinar o contrato e a autorização de débito em conta, sem saber a que título o fazia.

O contrato teve por montante de financiamento o valor de 7.418,74 euros e foi assinado no dia 31 de Maio de 2005.

JJ apenas tomou conhecimento dos verdadeiros factos quando, bastante mais tarde, viu cobrada da sua conta bancária quantia referente a prestações do contrato.

Também a determinada altura, combinaram proceder à troca de veículos automóveis, e,

Em data concretamente indeterminada, mas entre Agosto de 2005 e o início de Setembro de 2006, o arguido entregou a JJ um veículo de matrícula ..-..-HI (um “Lancia K”) e o ofendido entregou ao arguido o veículo de matrícula ..-..-FA (um “Ford Escort”).

Todavia, mais tarde, JJ recebeu uma notificação da PSP de ..., dando conta que, em 15 de Julho de 2005, JJ havia cometido uma infracção rodoviária ao volante do veículo de matrícula ..-..-HI – ainda antes, portanto, da data em que ocorrera a “troca”.

O arguido, na posse da cópia dos documentos de JJ e por modo não concretamente apurado, logo em 11 de Maio de 2005, havia celebrado com a instituição bancária “Finicrédito”, um contrato de empréstimo em nome de JJ para compra da viatura de matrícula ..-..-HI, a qual pertencia ao próprio arguido.

E registou-a em nome de JJ, tendo fornecido como morada deste a Av ... em ..., quando aquele sempre residiu na ....

Já no final de Novembro de 2005 e porque o veículo ..-..-HI entretanto parou JJ entregou-o ao arguido para que o reparasse.

Todavia, o arguido não devolveu a viatura a JJ, até hoje.

Também em data não concretamente apurada do ano de 2005, mas anterior a Outubro desse ano, o arguido convenceu JJ para assinar uns documentos, explicando-lhe que seria fiador de um veículo que o arguido queria comprar para a esposa.

Assim, no dia 16 de Maio de 2005, deslocaram-se ambos ao stand “J...”, em ..., onde JJ assinou o contrato de compra e venda da viatura de matrícula ..-..-UV, não como fiador, como pensava, mas como comprador.

E para financiamento dessa aquisição, JJ subscreveu uma livrança e um contrato de empréstimo bancário com o “Banco Mais S.A.” no valor de 10.575,00€, onde se assumia como principal devedor, sem que também disso tivesse consciência.

Por virtude desse contrato, foram-lhe cobradas da conta bancária acima referida várias prestações no montante de 241,27 euros.

JJ deixou de fazer os pagamentos e o “Banco Mais” impulsionou uma acção judicial que deu origem ao processo 5414/06.0... da ....ª Secção, ....ª Vara Cível de Lisboa.

O arguido previu e quis agir da forma descrita, sempre com o propósito de alcançar benefícios ilegítimos.

Fê-lo com manobras engenhosas e mediante astúcia, aproveitando-se da ingenuidade de JJ e induzindo-o em erro e engano.

Com isso, levou a que JJ acreditasse no arguido e praticasse actos que prejudicavam o próprio JJ.

Agiu com o propósito de se apropriar dos veículos de matrícula ..-..-ZG e ..-..-HI, respectivamente da propriedade de II e de JJ, não obstante saber que não lhe pertenciam e que estava obrigado a restituí-los quando tal lhe fosse solicitado.

Agiu sempre livre e conscientemente e sabia que tais acções são punidas por lei».

3. Do relatório social extrai-se que:

À data dos factos «(…) o arguido mantinha relacionamento afetivo com a ex-companheira – EE, que estabeleceu em 2004, dando lugar a uma relação de compromisso e uma vida em comum, momento que coincidiu com a sua deslocação para o Algarve, na zona de .... Viviam num apartamento arrendado e ambos mantinham atividade laboral, o arguido no ramo imobiliário e posteriormente no Hotel ... e a companheira ligada à atividade de formação profissional, tendo sido diagnosticada com uma doença crónica bastante debilitante, facto que condicionou a vida do casal.

O facto de residirem numa cidade nova, foi facilitador para o arguido acentuar um estilo de vida aberto ao convívio social, desenvolvendo relações alargadas e diversificadas, sendo frequente a troca de favores e a interdependência de interesses, aparentemente por necessidade de integração e aceitação social. Essa realidade social, pela qual refere ter-se deixado influenciar, acabou por prejudica-lo a si e à companheira, havendo referência a um estilo de vida do casal, não compatível com os rendimentos auferidos.

Desde o início de 2009 e após um período de dificuldades de inserção laboral em Lisboa, o arguido iniciou funções comerciais, numa empresa de alarmes, em Málaga - Espanha, onde conseguiu estabilizar a sua vida, não obstante a companheira não trabalhar.

Após o seu regresso a Portugal em 2010 e até ao momento da prisão, AA a viveu em ... com a companheira. Trabalhava no setor da construção civil, movimentando-se o casal num quadro económico fragilizado, correlacionado também com a situação de saúde da companheira, situação com implicação também ao nível do relacionamento conjugal, com progressivo afastamento.

Na sequência da prisão, verificou-se um corte definitivo dos laços com a ex-companheira, pretendendo agora o mesmo e quando lhe for concedida a liberdade, integrar o agregado da atual companheira – KK, com a qual iniciou relacionamento já quando se encontrava recluso, não obstante conhecer a mesma há largos anos. Conta, adicionalmente, com o apoio da mãe e tias, ainda que se tenha verificado algum afastamento relacional nos últimos anos com a família de origem, desconhecendo a progenitora a sua situação atual de cumprimento de pena de prisão.

A companheira, reside com os dois filhos de 31 e 23 anos de idade, em casa arrendada, uma vivenda de tipologia T5, com adequadas condições de habitabilidade e conforto e localizada em ..., em zona residencial tranquila, sem conotações sociais negativas. AA mantém contactos regulares quer com a companheira, quer com a família de origem, telefónicos e recebendo também visitas pontuais por parte das tias. Caberá referir que o arguido nunca residiu antes nesta zona (…)».

A companheira do arguido «KK, trabalha como cuidadora de idosos, auferindo um vencimento mensal de cerca de 1300€, constituindo este o seu único rendimento mensal, beneficiando ainda do contributo económico que a filha mais velha lhe reserva mensalmente, sendo que o filho mais novo é estudante. O agregado vive num registo de contenção de despesas face aos gastos mensais, das quais se destaca a renda de casa (550€), a que acrescem os gastos com água, luz e gás no montante aproximado de 180€ mensais. A situação financeira é descrita como suficiente para garantir o auxílio ao arguido, até este conseguir reorganizar-se ao nível laboral. (…)».

«No seu processo interativo com a família de origem, o arguido parece ter estado sujeito a um ambiente que privilegiou excessivamente as suas necessidades, exposto a práticas permissivas, onde as regras e os limites não integraram a sua educação de forma consistente e onde teve a oportunidade de substituir a figura paterna pelo seu avô materno. Com 20 anos foi viver para Lisboa, juntamente com a mãe, passando a integrar o agregado de uma tia,

Viria a completar o 11º ano em ..., num registo de desempenho escolar e interação com professores e colegas regular, iniciando a sua vida ativa na central termoelétrica de ..., tendo o restante percurso profissional sido desenvolvido na área da restauração, como empregado de mesa, em restaurantes e receções de hotéis, como estafeta numa empresa de publicidade, agente imobiliário, comercial e na construção civil, em diversos locais, nomeadamente em Lisboa, na região do Algarve e em Málaga - Espanha.

Presentemente, AA, tem a possibilidade de ficar a trabalhar na empresa V..., Lda., com sede no Porto, da qual é sócio gerente um primo da companheira – LL, tendo-nos este confirmado a possibilidade de integração do arguido, em funções relacionadas com administração/contacto com clientes. Dado a empresa ter trabalhos em várias zonas do país, o arguido poderá ficar afeto a obras que tenham lugar na zona da grande Lisboa». (…)

Ao nível das características e competências pessoais e tendo em conta o seu historial de vida e criminal, revela uma personalidade impulsiva, com desvalorização da importância na reflexão dos seus comportamentos criminais anteriores, bem como dificuldade em antever os problemas daí supervenientes.

Apresenta-se como um indivíduo educado, humilde e assertivo, com facilidade comunicacional, bem como com total disponibilidade para colaborar com os diversos intervenientes judiciais. Considera ter hoje uma situação e perspetiva de vida completamente distinta daquela que viveu à data da prática dos crimes, bem como um suporte para a sua reinserção social muito mais efetivo, considerando ainda o forte impacto e efeito dissuasor que teve sobre si, o momento privação da liberdade a que está presentemente sujeito.

A prisão tem sido vivida com pesar e vergonha, nomeadamente perante a família de origem, percebendo que o atual momento constituiu um retrocesso ao nível da construção dos seus projetos de vida e reorganização pessoal/familiar, uma vez que no momento da prisão encontrava-se já numa situação pessoal e profissional mais estável, devendo agora retomar de início o seu processo de reabilitação, nas vertentes familiar/social/laboral. (…)».

4. Do registo disciplinar do condenado consta a medida de 20 dias de permanência obrigatória no alojamento.

5. AA deu entrada no Estabelecimento Prisional de ... no dia 28/07/2002, trabalha ininterruptamente desde 07/12/2023 na lavandaria, com bom desempenho, sendo assíduo, pontual e realiza as suas tarefas sem incidentes.

6. No certificado do registo criminal estão averbadas apenas as decisões relativas aos processos 880/05.3..., 1150/09.3... e 54/06.6... já discriminadas supra pontos 1 e 2.

2.2. Thema Decidendum

Em primeiro momento, como questão prévia, e por se poder revelar, eventualmente, a existência de vício de conhecimento oficioso, um debruce sobre o caminho seguido pelo tribunal recorrido, quanto à vertente relativa às condições pessoais e situação económica do aqui agente, traço importante para escolha e determinação da medida da pena – artigo 71º, nº 1, alínea c) do CPenal -, tanto mais que se exibe como o único segmento aqui em dissídio.

Na esteira do que vem sendo uma linha seguida nos mais diversos arestos, que se entende pouco rigorosa e muitas vezes reveladora de ausência de qualquer valoração crítica, também aqui se enfileira na fórmula (…) Do relatório social extrai-se (…), resultando numa reprodução pura e simples de partes do relatório social, as quais se transcrevem na íntegra, onde para além de factos se fazem referências valorativas, opinativas e meramente descritivas.

Ou seja, no bom rigor, o que se dá como provado é que o relatório social apresenta um determinado conteúdo, elenca referências várias, e já não os factos concretos que o mesmo possa abrigar.

Este retrato, ao que se entende, é passível de conduzir à nulidade expressa no artigo 379º, nº 1, alínea a), por referência ao artigo 374º, nº 2, ambos do CPPenal, na medida em que se poderia desenhar a ausência de enumeração de factos provados necessários e suficientes para a determinação da medida da pena e, sequentemente, para a escolha da pena em concreto6, entendendo outros, poder configurar-se a mácula constante da alínea a) do nº2 do artigo 410º do CPPenal – insuficiência da matéria de facto para a decisão7.

Contudo, tendo em atenção o modo como o tribunal a quo discorreu sobre este conspecto na decisão - Os factos provados foram assim considerados por meio do exame (…) do relatório social, isto é, em documentos cuja autenticidade e genuinidade não foi posta em causa -, ou seja, perante este explicativo parece haver um sinal / dado, minimamente consistente, de que o tribunal considerou como provados os factos (reitera-se apenas os factos) que constam das partes que transcreveu e reproduziu, e assim sendo, fez todo o excurso bastamente e necessário para firmar a materialidade provada.

Mostra-se patente, por todo o expendido, não ter sido o melhor dos rumos tomado pelo tribunal a quo nesta dimensão, sendo recomendável um outro ensaio inequívoco e de pendor mais cristalino. Conquanto, ainda assim, parece não emergir uma falha tal que elucide a supra adiantada mácula.

Ultrapassada esta vicissitude recursória, há que prosseguir na demanda suscitada pelo arguido recorrente, ou seja, ponderar sobre a bondade da pena única imposta.

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No presente intento recursivo pretende reagir-se contra a pena única arbitrada, sendo que o arguido AA vem pugnar no sentido de que considera (…) justa a aplicação de uma pena única nunca superior a sete anos (…) e não a que lhe foi aplicada.

Fundamentando a sua pretensão adianta (…) Os crimes pelos quais (…) foi condenado foram praticados há mais de 18 anos, em 2005 e 2006 (…) entre a prática dos factos e a reclusão, em 2022 não há noticia de outros crime praticados pelo recorrente (…) Os ilícitos praticados (…) ficaram a dever-se a situação pontual e localizada num espaço temporal curto (…) As penas parcelares não excedem os dois anos e seis meses e o facto de serem várias não eleva a culpa (…) O novo cúmulo pode não vir a agravar a pena anteriormente fixada podendo até reduzi-la, quando a reavaliação da personalidade do agente e dos factos à luz das novas condenações, impuser uma nova imagem global do facto mais favorável ao condenado(…).

Por seu turno, a decisão em questionamento, nesta matéria aponta (…) O modo de actuação que revela um grau de ilicitude médio-alto (…) acções foram plurais e atingiram bens jurídicos distintos, como o património lato senso (assim quanto aos crimes de burla e de abuso de confiança) e a segurança e credibilidade no tráfico jurídico-probatório dos documentos (assim quanto aos crimes de falsificação) (…) agiu em todas as ocasiões com dolo directo e intenso (…) A linha temporal/cronológica dos factos: entre Maio de 2005 e Fevereiro de 2006 (…) a obtenção de dinheiro e coisas móveis à custa de terceiros (…) O valor global dos prejuízos: superior a 20.400,00€ (…) culpa global do arguido, que resulta da intensa e prolongada vontade de praticar os factos em concurso, é acentuada (…) tendo em atenção, em conjunto, os factos apurados nas decisões, a personalidade do arguido evidenciada na prática daqueles, onde não pode deixar de se acentuar a circunstância de se desnudar a sobreposição dos seus interesses em prejuízo dos interesses dos outros, podemos concluir que o seu comportamento revelou, na prática daqueles factos, uma antijuridicidade que se caracterizou pela violação plural de bens jurídicos distintos (…) levar em linha de conta o período de tempo decorrido entre a prática dos factos e a actualidade, bem como, a situação sociofamiliar e de apoio de que o arguido desfruta hoje em dia (…) valorando o ilícito global perpetrado, a culpa, a personalidade do arguido, as exigências de prevenção geral e especial na presente data (…) entende ser justa a aplicação de uma pena única de 9 (nove) anos de prisão.

Em pronto passo, registe-se que vem sendo entendimento pacífico e sedimentado que o recurso em matéria de pena, não é uma oportunidade para o tribunal ad quem fazer um novo juízo sobre a decisão em revista, sendo antes um meio de corrigir o que de menos próprio foi decidido pelo Tribunal recorrido e que sobreleve de todo espetro decisório.

Também, e ao que se pensa, exige-se ao recorrente o ónus de demonstrar perante o tribunal de recurso o que de errado ocorreu nesta vertente.

Verdadeiramente, tanto quanto se crê, há muito que a doutrina e jurisprudência se mostram pacificamente assentes, no sentido de que em sede de medida da pena, o recurso não deixa de reter o paradigma de remédio jurídico, apontando para que a intervenção do tribunal de recurso, se deve cingir à reparação de qualquer desrespeito, pelo tribunal recorrido, dos princípios e regularidade que definem e demarcam as operações de concretização da pena na moldura abstrata determinada na lei, sendo que observados os critérios globais insertos no artigo 71º do CPenal, a margem do julgador dificilmente pode ser sindicável8.

Vale por dizer que o exame da concreta medida da pena estabelecida, suscitado pela via recursiva, não deve afastar-se desta, senão, quando haja de prevenir-se e emendar-se a fixação de um determinado quantum em derrogação dos princípios e regras pertinentes, cumprindo precaver (desde logo à míngua da imediação e da oralidade de que beneficiou o Tribunal a quo) qualquer abusiva fixação de uma concreta pena que ainda se revele congruente, proporcional, justa e acertada9.

Estando em causa a discordância quanto à pena única, há que apelar às regras / padrão de punição do concurso de crimes emergente do artigo 77º do CPenal.

Aqui encara-se o sistema da pena conjunta, rejeitando-se uma visão atomística da pluralidade de crimes, e nessa medida, obriga a que se olhe para o conjunto – para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente.

Nesse trajeto, encontradas as penas parcelares correspondentes a cada um dos singulares factos, cabe ao tribunal, depois de estabelecida a moldura do concurso, encontrar e justificar a pena conjunta, cujos critérios legais de determinação são diferentes dos propostos para a primeira etapa.

Quanto ao segundo momento, importa essencialmente atender à unicidade / visão de conjunto, abandonando a ideia de compartimentação em que se fundou a construção de cada uma das molduras singulares que, não apagando a pluralidade de ilícitos perpetrados, antes a converte numa nova conexão de sentido, entendendo-se que a este novo ilícito corresponderá uma nova culpa (que continuará a ser culpa pelo facto) mas, agora, culpa pelos factos em relação.

Ou seja, a pena única deve formar-se mediante uma valoração completa da personalidade do agente e das diversas penas parcelares, sendo por isso necessário que se obtenha uma visão integrada dos factos, a relação dos diversos factos entre si em especial o seu contexto, a maior ou menor autonomia, a frequência da comissão dos delitos, a diversidade ou igualdade dos bens jurídicos protegidos violados e a forma de comissão, bem como o peso conjunto das circunstâncias de facto sujeitas a julgamento10.

Impõe-se o equacionar, em conjunto, a pessoa do autor e os delitos individuais, de modo que a formação da pena global não é uma elevação esquemática ou arbitrária da pena disponível mas deve sempre refletir a personalidade do autor e os factos individuais num plano de conexão e frequência, sendo que na valoração da personalidade do agente deve atender-se antes de tudo a saber se os factos são expressão de uma inclinação criminosa ou só constituem delitos ocasionais sem relação entre si11.

Há a reter, também, que não emergindo do ordenamento penal português o sistema de acumulação material (soma das penas com mera limitação do limite máximo) nem o da exasperação ou agravação da pena mais grave (elevação da pena mais grave, através da avaliação conjunta da pessoa do agente e dos singulares factos puníveis, elevação que não pode atingir a soma das penas singulares nem o limite absoluto legalmente fixado), é forçoso concluir que com a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também, e especialmente, pelo seu conjunto, este visto não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente, visto que a lei manda se considere e pondere, em conjunto os factos e a personalidade do agente12.

Releva, ainda, a ponderação do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização)13.

Toda esta métrica, reclama, por isso, que se fundamente a opção a tomar, por forma a que a medida da pena do concurso não surja como fruto de um ato intuitivo – da «arte» do juiz – ou puramente mecânico e, portanto, arbitrário, pese embora aqui, o dever de fundamentação não assuma nem o rigor nem a extensão dimanados do artigo 71º, podendo, contudo, os fatores enumerados no nº 2 deste inciso servir de mote enformador.

Debruçando um olhar no caso sub judice, em termos de pena única, tem-se como dosimetria a pena de 2 (dois) anos e 6 (seis) meses de prisão a 15 (quinze) anos e 5 (cinco) meses de prisão.

Urge, ainda, reter, que esta decisão cumulatória abrange a pena única de 5 anos e 6 meses de prisão, imposta nestes autos, pelo cometimento de crimes de abuso de confiança agravado e de burla qualificada com penas parcelares oscilando entra 2 anos e 2 anos e 6 meses de prisão, e as impostas no processo nº 1150/09.3..., por crimes de falsificação agravado, burla qualificada, abuso de confiança agravado e uso de documento falso, onde lhe foram fixadas penas entre 15 meses de prisão e 2 anos e 4 meses de prisão.

E, nesse desiderato, aditando agora penas parcelares que na sua maioria são inferiores, faz-se acrescer mais 3 anos e 6 meses de prisão, sendo que, como se disse, em sede de cúmulo jurídico há que ter uma visão / debruce de conjunto, olhar à globalidade de todo o retrato em concreto.

Posto isto, um olhar, sobre o caminho punitivo seguido pelo Tribunal recorrido e sua bondade.

O quadro em presença revelando preocupações em termos de prevenção geral, considerando os bens jurídicos em causa, quando comparáveis com outros – v. g. vida, autodeterminação e liberdade sexual, integridade física -, não assume contornos de carga e intensidade de significativo e elevado relevo.

Sendo certo que o arguido recorrente incorreu em diversas práticas do mesmo tipo – 9 crimes no total -, não é menos verdade, tal como o acentuado pelo Digno Mº Pº, (…) os crimes foram praticados há mais de 18 anos (…) num espaço temporal restrito (…), matizes estes que, ao que se pensa, mitigam as exigências em matéria de prevenção geral.

Assola, igualmente, que o arguido AA, antes de preso, exibia consistentes hábitos de trabalho e inserção familiar, sendo que em reclusão vem trabalhando ininterruptamente desde 07/12/2023 na lavandaria, com bom desempenho, caracterizado pela assiduidade, pontualidade e realização das tarefas, e sem quaisquer incidentes de nota.

Sopesando todos estes considerandos, tende-se a seguir e a aceitar a tese defendida pelo arguido recorrente e sufragada pelo Digno Mº Pº, quer na 1ª Instância, quer junto deste Alto Tribunal.

Na verdade, mostrando-se despiciendo chamar aqui à colação a discussão sobre a relevância ou irrelevância de anterior cúmulo jurídico a propósito da possibilidade de baixar ou manter a pena única apesar do acréscimo de penas parcelares, a verdade é que por todo o atrás narrado, o que exulta é a evidente / clamorosa desproporcionalidade entre a anterior pena única, que se toma apenas como referencial, e a nova pena única.

Há sempre que atentar / considerar as máximas da proporcionalidade, da proibição do excesso, da confiança, da segurança jurídica em matéria como esta – a punição.

E, nessa senda, cumpre salientar que, ao que se vem entendendo, a nova pena conjunta não deve assemelhar-se à mera soma / equiparação das penas finais aplicadas nas condenações cujas penas parcelares vão ser englobadas no novo cúmulo jurídico a efetuar por conhecimento superveniente de outros crimes integrantes do mesmo concurso14, sendo que na formação da pena única, quanto maior é o somatório das penas parcelares, maior é, também, o fator de compressão que incide sobre as penas que se vão somar à mais elevada, pois, se assim não fosse, para além de se atingir facilmente a pena máxima em casos em que a mesma não se justifica ante a gravidade dos factos, estar-se-ia, de certa forma, a aniquilar todos os básicos princípios que norteiam o processo de alcance da pena única15.

Por último, faça-se notar que o Acórdão recorrido, ao que se cogita, é parco em explicar o porquê de numa moldura oscilante entre 2 anos e 6 meses de prisão e 15 anos e 5 meses de prisão, em que a mediania se situa, por isso, em 8 anos, 11 meses e 15 dias de prisão, se aplica a pena de 9 anos de prisão, ante a imagem global do facto e da personalidade unitária do arguido que acima se enunciou.

Há, na realidade, na solução preconizada, uma manifesta / ostensiva / visível desproporcionalidade que põe em causa os princípios da segurança jurídica e da proteção da confiança.

E, assim sendo, a pena única de 7 anos de prisão preconizada pelo arguido recorrente e defendida pelo Digno Mº Pº, revela-se na justa medida, proporcional e adequada.

III - Dispositivo

Nestes termos, acordam os Juízes da 3ª Secção Criminal deste Supremo Tribunal de Justiça em julgar procedente o recurso interposto pelo arguido AA e, consequentemente, revogando a decisão recorrida, em cúmulo jurídico das penas aplicadas nos processos nºs 1150/09.3... e 54/06.6..., fixam a pena única em 7 (sete) anos de prisão.

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Sem Custas - artigo 513º, a contrario, do CPPenal.

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O Acórdão foi processado em computador e elaborado e revisto integralmente pelo Relator (artigo 94º, nº 2, do CPPenal), sendo assinado pelo próprio e pelos Senhores Juízes Conselheiros Adjuntos.

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Supremo Tribunal de Justiça, 02 de abril de 2025

Carlos de Campos Lobo (Relator)

Maria Margarida Ramos de Almeida (1ª Adjunta)

António Augusto Manso (2º Adjunto)

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1. Expurgada de reproduções do Acórdão revidendo que, caso necessário, em momento oportuno se citarão.

2. Consigna-se que apenas se transcrevem as partes do texto que não constituem a reprodução dos diversos articulados existentes e já referidos no Relatório e, bem assim, excertos do Acórdão propalado em 1ª instância e transcrição de jurisprudência que, em momento oportuno, e se necessário, se referirão.

3. Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A.

4. SILVA, Germano Marques da, Direito Processual Penal Português, vol. 3, 2015, Universidade Católica Editora, p. 335; SIMAS SANTOS, Manuel e LEAL-HENRIQUES, Manuel, Recursos Penais, 8ª edição, 2011, Rei dos Livros, p. 113.

5. Neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do STJ, de 12/09/2007, proferido no Processo nº 07P2583, que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria, disponível em www.dgsi.pt.

6. Neste sentido o Acórdão do STJ de 8/07/2022, proferido no Processo nº 469/21.0GACSC.S1 – (…) Os factos provados com origem no Relatório devem ser elencados de modo claro e inequívoco. Mas só os factos relevantes (…) Não devem ser levados aos factos provados trechos do relatório, mas os concretos factos. Consignar nos factos provados que “do relatório social consta”, seguindo-se uma transcrição (…) não tem valor probatório como facto provado, apenas se prova que no relatório consta essa afirmação (…) Essa desconformidade nem sempre representará nulidade (arts. 374.º/2 e 379.º/1/a), nomeadamente quando da motivação se apreende que o tribunal considerou como provados todos os factos constantes do relatório social que transcreveu (…) – disponível em www.dgsi.pt.

7. Neste sentido, o Acórdão do Tribunal da Relação de Évora, de 5/04/2022, proferido no Processo nº 381/20.PCSTB.E1, disponível em www.dgsi.pt.

8. Neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ de 11/04/2024, proferido no Processo nº 2/23.9GBTMR.S1 (…) em conformidade com a jurisprudência uniforme do STJ no sentido da abstenção de princípio do tribunal de recurso na definição do quantum concreto das penas fixadas em tais circunstâncias, por não se verificar qualquer desvio daqueles critérios e parâmetros de que resulte uma situação de injustiça das penas, por desproporcionalidade ou desnecessidade -, de 18/05/2022, proferido no Processo nº 1537/20.0GLSNT.L1.S1 – (…) A sindicabilidade da medida concreta da pena em recurso abrange a determinação da pena que desrespeite os princípios gerais respectivos, as operações de determinação impostas por lei, a indicação e consideração dos factores de medida da pena, mas “não abrangerá a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto de pena, excepto se tiverem sido violadas regras da experiência ou se a quantificação se revelar de todo desproporcionada” -, de 19/06/2019, proferido no Processo nº 763/17.4JALRA.C1.S1- (…) justifica-se uma intervenção correctiva quanto à pena aplicada ao arguido, reduzindo-se a pena de (…) para (…) que entendemos adequada e justa e proporcional e que satisfaz as exigências de prevenção, respeitando a medida da culpa - , disponíveis em www.dgsi.pt.

9. Neste sentido, o Acórdão do STJ de 27/05/2009, proferido no Processo nº 09P0484, disponível em www.dgsi.pt, onde se pode ler (…) no recurso de revista pode sindicar-se a decisão de determinação da medida da pena, quer quanto à correcção das operações de determinação ou do procedimento, à indicação dos factores que devam considerar-se irrelevantes ou inadmissíveis, à falta de indicação de factores relevantes, ao desconhecimento pelo tribunal ou à errada aplicação dos princípios gerais de determinação, quer quanto à questão do limite da moldura da culpa, bem como a forma de actuação dos fins das penas no quadro da prevenção, mas já não a determinação, dentro daqueles parâmetros, do quantum exacto da pena, salvo perante a violação das regras da experiência, ou a desproporção da quantificação efectuada.

10. Neste sentido, entre outros, o Acórdão do STJ de 28/4/2010, proferido no Processo 4/06.0GACCH.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt. - I - Fundamental na formação da pena conjunta é a visão de conjunto, a eventual conexão dos factos entre si e a relação «desse bocado de vida criminosa com a personalidade». A pena conjunta deve formar-se mediante uma valoração completa da pessoa do autor e das diversas penas parcelares. Para a determinação da dimensão da pena conjunta o decisivo é que, antes do mais, se obtenha uma visão conjunta dos factos, ou seja, a relação dos diversos factos entre si em especial o seu contexto; a maior ou menor autonomia; a frequência da comissão dos delitos; a diversidade ou igualdade dos bens jurídicos protegidos violados e a forma de comissão bem como o peso conjunto das circunstâncias de facto sujeitas a julgamento mas também a receptividade à pena pelo agente deve ser objecto de nova discussão perante o concurso ou seja a sua culpa com referência ao acontecer conjunto da mesma forma que circunstâncias pessoais, como por exemplo uma eventual possível tendência criminosa.

II - Será, assim, o conjunto dos factos que fornece a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão-só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).

III - A substituição daquela operação valorativa por um processo de índole essencialmente aritmética de fracções e somas torna-se incompatível com a natureza própria da segunda fase do processo. Com efeito, fazer contas indica voltar às penas já medidas, ao passo que o sistema parece exigir um regresso aos próprios factos. Dito de outro modo, e como refere Cláudia Santos (RPDC, Ano 16.º, pg. 154 e ss.), as operações aritméticas podem fazer-se com números, não com valorações autónomas.

IV - Por outro lado, importa determinar os motivos e objectivos do agente no denominador comum dos actos ilícitos praticados e, eventualmente, dos estados de dependência. Igualmente deve ser expressa a determinação da tendência para a actividade criminosa revelada pelo número de infracções, pela sua perduração no tempo, pela dependência de vida em relação àquela actividade.

V - Na avaliação da personalidade expressa nos factos é todo um processo de socialização e de inserção, ou de repúdio, pelas normas de identificação social e de vivência em comunidade que deve ser ponderado.

11. Neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ, de 27/05/2015, proferido no Processo nº 173/08.4PFSNT-C.S1, de 14/07/2022, proferido no Processo nº 36/15.7PDCSC-A.S1 - para a determinação da medida da pena única, como já acima se disse, há que ponderar o conjunto dos factos que integram os crimes em concurso, procedendo-se a uma avaliação da gravidade da ilicitude global dos mesmos (tendo em conta o tipo de conexão entre os factos em concurso), e a uma avaliação da personalidade do agente (aferindo-se em que termos é que a mesma se projecta nos factos por si praticados), de forma a apurar se a sua conduta traduz já uma tendência para a prática de crimes, ou se a sua conduta se reconduz apenas a uma situação de pluriocasionalidade (…) -, de 24/03/2021, proferido no Processo nº 536/16.1GAFAF.S1 - (…) na determinação da pena única devem considerar-se todos os factos, crimes e penas aplicados, para a obtenção da imagem do “comportamento global” e da personalidade do agente (…), disponíveis em www.dgsi.pt.

12. Neste sentido, DIAS, Jorge de Figueiredo, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 1993, Aequitas – Editorial Notícias, pp. 290-292.

13. Neste sentido, DIAS, Jorge de Figueiredo, ibidem, p. 292.

14. Neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ, de 11/09/2019, proferido no Processo nº 8329/18.5T8CBR.C1.S1- (…) pena conjunta não deve ultrapassar a soma das penas finais - parcelares ou únicas -, aplicadas nas condenações englobadas no cúmulo jurídico por conhecimento superveniente de outros crimes integrantes do mesmo concurso (…) -, disponível em www.dgsi.pt.

15. Neste sentido, entre outros, os Acórdãos do STJ, de 06/01/2021, proferido no Processo nº 634/15.9PAOLH.S2 – (…) o denominado «fator de compressão», deve funcionar como critério aferidor do rigor e da justeza do cúmulo jurídico de penas, adotando frações ou logaritmos diferenciados em função da fenomenologia dos crimes do concurso (…) - de 16/05/2019, proferido no Processo nº 765/15.5T9LAG.E1.S1 – (…) na formação da pena única, quanto maior é o somatório das penas parcelares, maior é o factor de compressão que incide sobre as penas que se vão somar à mais elevada, pois, se assim não fosse, muito facilmente se atingiria a pena máxima em casos em que a mesma não se justifica perante a gravidade dos factos (…)