RECURSO PER SALTUM
CÚMULO JURÍDICO
CONHECIMENTO SUPERVENIENTE
PENA ÚNICA
MEDIDA CONCRETA DA PENA
IMAGEM GLOBAL DO FACTO
HOMICÍDIO QUALIFICADO
TENTATIVA
DETENÇÃO DE ARMA PROIBIDA
ROUBO
ROUBO AGRAVADO
PENA PARCELAR
FINS DAS PENAS
IMPROCEDÊNCIA
Sumário


I – A pena única referida no artigo 77.º, n.º1, do Código Penal, corresponde a uma pena conjunta que tem por base as correspondentes aos crimes em concurso, segundo um princípio de cúmulo jurídico, seguindo-se o procedimento normal de determinação e escolha das penas parcelares, a partir das quais se obtém a moldura penal do concurso.
II - Quando se verifique um concurso efetivo de crimes há lugar à realização do cúmulo jurídico, independentemente de estarmos perante um concurso de conhecimento contemporâneo ou perante um concurso de conhecimento superveniente, sendo o momento temporal a ter em conta para a verificação dos pressupostos do concurso de crimes, com conhecimento superveniente, o do trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer dos crimes em concurso.
III - Estando em causa a determinação da medida concreta da pena conjunta do concurso, aos critérios gerais contidos no artigo 71.º, n.º1, acresce um critério especial fixado no artigo 77.º, n.º1, 2.ª parte, do Código Penal: “serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.
IV - Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, como se o conjunto de crimes em concurso se ficcionasse como um todo único, globalizado, que deve ter em conta a existência ou não de ligações ou conexões e o tipo de ligação ou conexão que se verifique entre os factos em concurso, e a relação com a personalidade de quem os cometeu.

Texto Integral


Acordam no Supremo Tribunal de Justiça

I – RELATÓRIO

1. AA, com os restantes sinais dos autos, foi, por acórdão de 8 de julho de 2024, proferido pelo Juízo Central Criminal – J..., do Tribunal Judicial da Comarca de Leiria, condenado, de acordo com o dispositivo, nos seguintes termos que se transcrevem:

« III- DISPOSITIVO:

1- Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares supra elencadas, relativas aos Processos:

- 422/21.3... (4 anos, 4 anos, 4 anos, 3 anos e 3 anos) deste Juízo Central Criminal, Juiz ...,

- e 30/22.1... (11 anos e 2 anos), deste Juízo Central Criminal, Juiz ...,

os Juízes que compõem este Tribunal Colectivo decidem condenar o arguido AA

a) na pena única de 15 (quinze) anos de prisão.

2- Na pena única de prisão agora aplicada será descontado todo o tempo de prisão (preventiva e/ou efectiva) e detenção sofridos pelo arguido à ordem dos processos que integram o presente cúmulo jurídico- cfr. artigo 80.º do Código Penal.»

2. O referido arguido interpôs recurso do referido acórdão para a Relação de Coimbra, formulando as seguintes conclusões (transcrição parcial):

(…)

2.ª

Ora, salvo o devido respeito, o Tribunal a quo decidiu mal, ao condenar o arguido nos moldes supra.

Senão vejamos.

3.ª

Conclui este Tribunal:

“Assim, o cúmulo tem como limite mínimo da prisão 11 (onze) anos e limite máximo de 25 (vinte e cinco) anos, atento o limite legal, pois se o mesmo não existisse, o limite máximo seria de 31 anos.

Tendo em conta o que acima se expôs e ponderando todos os elementos supra explanados, resulta que a pena conjunta deve situar-se bem acima do limite mínimo da moldura penal e em medida acima do limite médio dessa moldura, pelo que, tudo visto e ponderado, este tribunal colectivo reputa adequado fixar a seguinte pena única:

- que abrange as penas de prisão impostas nos Processos 422/21.3... (4 anos, 4 anos, 4 anos, 3 anos e 3 anos) e 30/22.1... (11 anos e 2 anos): pena única de 15 (quinze) anos de prisão.”

4.ª

O Recorrente não se conforma com a pena que lhe foi aplicada no cúmulo referido, considerando que a pena única de 15 (quinze) anos, não é adequada, proporcional e justa in casu.

5.ª

Veja-se que refere o Tribunal a Quo:

“Considerando a factualidade relativa aos crimes praticados pelo arguido, em concurso, verificamos que este praticou (muitos) crimes contra o património, mas também de homicídio (o crime mais grave), tendo sido condenado em penas de prisão efectiva, estando actualmente em cumprimento de pena.

Há ainda que atender à sua personalidade revelada nos crimes que integram o cúmulo.

Assim, o ilícito global apresenta uma gravidade elevada, em especial no Proc. 30/22.1...”

6.ª

Ou seja, refere que o crime mais grave (e que nós naturalmente concordamos, ainda que mal aludido) é crime de homicídio (todavia na forma tentada!), contudo justifica como de “maior gravidade” o processo 30/22.1..., tratando-se este de um mero crime contra o património!

7.ª

Dito de outra forma, assumindo a gravidade dos actos do arguido, o ilícito mais grave reveste uma punição de 11 anos.

8.ª

Pelo que, os demais, em cúmulo, acrescerem mais 4 anos, é claramente um exagero, com o devido respeito!!

9.ª

Não só atendendo ao efetivamente ocorrido, a ausência de consequências graves para a comunidade e para os envolvidos a médio e longo prazo, bem como a ainda curta idade do arguido e futuro que se avizinha para o mesmo…

Acresce que,

10.ª

O recorrente é um jovem com 34 anos na presente data.

11.ª

Tem companheira e um filho do casal.

12.ª

Conforme consta na matéria dada como provada pelo Tribunal a Quo:

“6- Factos pessoais do arguido:

a- À data dos factos em apreço nos autos, o arguido residia com a companheira e o filho de ambos, de 3 anos de idade.

b- O casal mantém relacionamento há cerca de 7 anos.

c- O arguido tem ainda 4 filhos de um relacionamento anterior, que iniciou com 14 anos de idade, encontrando-se os 3 filhos mais novos (de 16, 14 e 8 anos de idade) à guarda dos avós paternos, enquanto a filha mais velha (de 19 anos de idade) já é autónoma.

d- O processo de desenvolvimento do arguido decorreu junto da família de origem, de frágil condição socioeconómica e cultural.

e- O pai do arguido era negociante de cavalos, sendo a família sempre dependente de apoios sociais para assegurar a sua subsistência.

f- A família reside em acampamento, sito em terreno adquirido pelo pai do arguido, nas imediações da ....

g- O acampamento integra apenas elementos da sua família de origem (pais e irmãos).

h- As casas dispõem de energia elétrica regularizada, mas não dispõem de condições sanitárias, nem de abastecimento de água.

i- O arguido desistiu da Escola aos 12 anos de idade, por falta de motivação, encontrando-se habilitado com o 4º ano de escolaridade.

j- Aos 26 anos, aquando da sua 1ª experiência prisional, frequentou um curso profissional, que lhe deu equivalência ao 6º ano de escolaridade.

l- O arguido frequentou cursos de formação profissional, enquanto beneficiário de RSI, na área informática e de ‘ervas aromáticas, condimentares e medicinais’.

m- O agregado familiar do arguido beneficia de RSI, no valor de € 313,00 mensais, acrescido de abono de família do filho menor, no valor de € 100,00 mensais.

n- Em liberdade, o arguido trabalhava como sucateiro, auferindo entre € 20 e € 50 diários. o- Nos tempos livres, convivia com família e amigos, alguns deles coarguidos nos autos.”

13.ª

Ou seja, estando o recorrente preso há mais de 3 anos, com bom comportamento e tentativas de obtenção de trabalho naquele EP;

14.ª

Tendo visitas frequentes da companheira e filho;

15.ª

Estando a lutar para efetivamente mudar de vida, dando um novo rumo à mesma, bem como à dos seus filhos e agregado familiar;

16.ª

Entende-se que o Tribunal a Quo aplicou, por excesso, pena de prisão no cúmulo operado.

17.ª

Sempre deveria ter sido aplicada uma pena nunca superior a 12 anos de prisão.

18.ª

Ao não aplicar tal pena, tem-se que a mesma é manifestamente excessiva, particularmente, no tempo da mesma / duração.

19.ª

A pena referida é manifestamente excessiva e desproporcional, tendo em conta, as concretas condições de vida do recorrente, bem como não só o sucedido/atos criminosos, mas também a sua posterior recuperação (reitera-se que o recorrente era um consumidor de estupefacientes frequente, o que também impediu a equidistância e análise às boas regras do convivência comum).

20.ª

Nunca nos esqueçamos que a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade – art.º 40º nº 1 do Código Penal.

21.ª

Mas, como ensinava EDUARDO CORREIA, Para Uma Nova Justiça Penal, Ciclo de Conferências no Conselho Distrital do Porto da Ordem dos Advogados, Livraria Almedina, Coimbra, p. 16, “Ao contrário do que pretendia Beccaria, uma violação ou perigo de violação de bens jurídicos não pode desprender-se das duas formas de imputação subjectiva, da responsabilidade, culpa ou censura, que lhe correspondem. E neste domínio tem-se verificado uma evolução que seguramente não nos cabe aqui, nem é possível, desenvolver. Essa solução está, de resto, ligada ao quadro que se vem tendo do homem, às necessidades da sociedade que o integra, aos fins das penas a que se adira e à solidariedade que se deve a todos, ainda que criminosos.”

22.ª

Na lição de Figueiredo Dias (Direito Penal – Questões fundamentais – A doutrina geral do crime - Universidade de Coimbra – Faculdade de Direito, 1996, p. 121):

“1) Toda a pena serve finalidades exclusivas de prevenção, geral e especial.

2) A pena concreta é limitada, no seu máximo inultrapassável, pela medida da culpa.

3) Dentro deste limite máximo ela é determinada no interior de uma moldura de prevenção geral de integração, cujo limite superior é oferecido pelo ponto óptimo de tutela dos bens jurídicos e cujo limite inferior é constituído pelas exigências mínimas de defesa do ordenamento jurídico.

4) Dentro desta moldura de prevenção geral de integração a medida da pena é encontrada em função de exigências de prevenção especial, em regra positiva ou de socialização, excepcionalmente negativa ou de intimidação ou segurança individuais.”

23.ª

Tal desiderato sobre as penas integra o programa político-criminal legitimado pelo art.º 18º nº 2 da Constituição da República Portuguesa e que o legislador penal acolheu no artigo 40º do Código Penal, estabelecendo o nº 1 que a aplicação das penas visa a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. E determinando o nº 2 que em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

24.ª

O ponto de partida das finalidades das penas com referência à tutela necessária dos bens jurídicos reclamada pelo caso concreto e com significado prospectivo, encontra-se nas exigências da prevenção geral positiva ou de integração, em que a finalidade primária da pena é o restabelecimento da paz jurídica comunitária posta em causa pelo comportamento criminal.

25.ª

As penas como instrumentos de prevenção geral são “instrumentos político-criminais destinados a actuar (psiquicamente) sobre a globalidade dos membros da comunidade, afastando-os da prática de crimes através das ameaças penais estatuídas pela lei, da realidade da aplicação judicial das penas e da efectividade da sua execução”, surgindo então a prevenção geral positiva ou de integração “como forma de que o Estado se serve para manter e reforçar a confiança da comunidade na validade e na força da vigência das suas normas de tutela de bens jurídicos e, assim, no ordenamento jurídico-penal; como instrumento por excelência destinado a revelar perante a comunidade a inquebrantabilidade da ordem jurídica, pese todas as suas violações que tenham tido lugar (idem, ibidem, p. 84).

26.ª

Por outro lado, como salienta o mesmo Distinto Professor a pena também tem uma função de prevenção geral negativa ou de intimidação, como forma estadualmente acolhida de intimidação das outras pessoas pelo mal que com ela se faz sofrer ao delinquente e que, ao fim, as conduzirá a não cometerem factos criminais. Porém, “não constitui todavia por si mesma uma finalidade autónoma de pena apenas podendo” surgir como um efeito lateral (porventura desejável) da necessidade da tutela dos bens jurídicos.” (ibidem, p. 118).

27.ª

Mas, em termos jurídico-constitucionais, é a ideia de prevenção geral positiva ou de integração que dá corpo ao princípio da necessidade de pena.

28.ª

A moldura de prevenção, comporta ainda abaixo do ponto óptimo ideal outros em que a pressuposta tutela dos bens jurídicos “é ainda efectiva e consistente e onde portanto a pena pode ainda situar-se sem que perca a sua função primordial de tutela de bens jurídicos. Até se alcançar um limiar mínimo – chamado de defesa do ordenamento jurídico – abaixo do qual já não é comunitariamente suportável a fixação da pena sem se pôr irremediavelmente em causa a sua função tutelar de bens jurídicos.” (idem, ibidem, p. 117).

29.ª

O ponto de chegada está nas exigências de prevenção especial, nomeadamente da prevenção especial positiva ou de socialização, ou, porventura a prevenção negativa relevando de advertência individual ou de segurança ou inocuização, sendo que a função negativa da prevenção especial, se assume por excelência no âmbito das medidas de segurança.

30.ª

Ensina o mesmo Ilustre Professor, As Consequências Jurídicas do Crime, §55, que “Só finalidades relativas de prevenção geral e especial, e não finalidades absolutas de retribuição e expiação, podem justificar a intervenção do sistema penal e conferir fundamento e sentido às suas reacções específicas. A prevenção geral assume, com isto, o primeiro lugar como finalidade da pena. Prevenção geral, porém, não como prevenção geral negativa, de intimidação do delinquente e de outros potenciais criminosos, mas como prevenção positiva ou de integração, isto é, de reforço da consciência jurídica comunitária e do seu sentimento de segurança face à violação da norma ocorrida: em suma, como estabilização contrafáctica das expectativas comunitárias na validade e vigência da norma “infringida”.

31.ª

Todavia em caso algum pode haver pena sem culpa ou acima da culpa (ultrapassar a medida da culpa), pois que o princípio da culpa, como salienta o mesmo Insigne Professor – ob. cit. § 56 -“não vai buscar o seu fundamento axiológico a uma qualquer concepção retributiva da pena, antes sim ao princípio da inviolabilidade da dignidade pessoal. A culpa é condição necessária, mas não suficiente, da aplicação da pena; e é precisamente esta circunstância que permite uma correcta incidência da ideia de prevenção especial positiva ou de socialização.”

32.ª

Ou, em síntese: A verdadeira função da culpa no sistema punitivo reside efetivamente numa incondicional proibição de excesso; a culpa não é fundamento de pena, mas constitui o seu limite inultrapassável: o limite inultrapassável de todas e quaisquer considerações ou exigências preventivas – sejam de prevenção geral positiva de integração ou antes negativa de intimidação, sejam de prevenção especial positiva de socialização ou antes negativa de segurança ou de neutralização.

33.ª

A função da culpa, deste modo inscrita na vertente liberal do Estado de Direito, é por outras palavras, a de estabelecer o máximo de pena ainda compatível com as exigências de preservação da dignidade da pessoa e de garantia do livre desenvolvimento da sua personalidade nos quadros próprios de um Estado de Direito democrático.

34.ª

E a de, por esta via, constituir uma barreira intransponível ao intervencionismo punitivo estatal e um veto incondicional aos apetites abusivos que ele possa suscitar.”- v. FIGUEIREDO DIAS, Temas Básicos da Doutrina Penal, Coimbra Editora, 2001, p. 109 e ss.

35.ª

O artigo 71° do Código Penal estabelece o critério da determinação da medida concreta da pena, dispondo que a determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção, o que se aplica in casu, ainda que atentando às particularidades do conceito “cumulatório”.

36.ª

Por sua vez, o n ° 2 do mesmo artigo do Código Penal, estabelece, que: Na determinação concreta da pena o tribunal atende a todas as circunstâncias que não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do agente ou, contra ele, considerando nomeadamente:

a) O grau de ilicitude do facto, o modo de execução deste e a gravidade das suas consequências, bem como o grau de violação dos deveres impostos ao agente;

b) A intensidade do dolo ou da negligência:

c) Os sentimentos manifestados no cometimento do crime e os fins ou motivos que o determinaram;

d) As condições pessoais do agente e a sua situação

e) A conduta anterior ao facto e a posterior a este, especialmente quando esta seja destinada a reparar as consequências do crime;

f) A falta de preparação para manter uma conduta lícita, manifestada no facto, quando essa falta deva ser censurada através da aplicação da pena.

37.ª

No caso concreto, abona a favor do Arguido a quase inexistência de antecedentes criminais graves, o comportamento adequado em meio prisional, a tentativa séria de ressocialização, bem como pelo interesse que demonstrou não só em trabalhar, como em estudar e progredir nos estudos, tendo ainda tido a vontade de ultrapassar positivamente o meio criminal.

38.ª

Abona ainda o facto de ter crescido num meio desfavorecido e marginalizado.

39.ª

Bem como, o facto de se encontrar abstinente do consumo de produtos estupefacientes desde que foi detido (há mais de 3 anos!), com sucesso.

40.ª

As circunstâncias e critérios do art.º 71.º do CP devem contribuir tanto para co-determinar a medida adequada à finalidade de prevenção geral (a natureza e o grau de ilicitude do facto impõe maior ou menor conteúdo de prevenção geral, conforme tenham provocado maior ou menor sentimento comunitário de afectação dos valores), como para definir o nível e a premência das exigências de prevenção especial (as circunstâncias pessoais do agente, a idade, a confissão, o arrependimento), ao mesmo tempo que também transmitem indicações externas e objectivas para apreciar e avaliar a culpa do agente.

41.ª

As imposições de prevenção geral devem, pois, ser determinantes na fixação da medida das penas, em função de reafirmação da validade das normas e dos valores que protegem, para fortalecer as bases da coesão comunitária e para aquietação dos sentimentos afectados na perturbação difusa dos pressupostos em que assenta a normalidade da vivência do quotidiano.

42.ª

Porém tais valores determinantes têm de ser coordenados, em concordância prática, com outras exigências, quer de prevenção especial de reincidência, quer para confrontar alguma responsabilidade comunitária no reencaminhamento para o direito do agente do facto, reintroduzindo o sentimento de pertença na vivência social e no respeito pela essencialidade dos valores afetados.

43.ª

O princípio da proibição da dupla valoração no sentido de que as circunstâncias já consideradas pelo legislador no tipo legal não devem revalorar-se na determinação da medida da pena, “não obsta em nada, porém, que a medida da pena seja elevada ou baixada em função da intensidade ou dos efeitos do preenchimento de elemento típico e, portanto, da concretização deste, segundo as especiais circunstâncias do caso", traduzidas factualmente nos efeitos ou consequências da acção desvaliosa do agente.

44.ª

O que está aqui em causa é unicamente como se exprime BRUNS, com propriedade [Strafzumessungsrecht, 369),a legítima consideração das “modalidades da realização do tipo ”e não uma ilegítima violação do princípio da dupla valoração.”

45.ª

Apenas “ a pena não deve ser de novo valorada para quantificação da culpa e da prevenção relevantes para a medida da pena.” -Figueiredo Dias, Direito Penal Português, As consequência jurídicas do crime, Aequitas, Editorial Notícias,1993 p.235-237.

46.ª

Na verdade, podendo a reiteração criminosa resultar de causas meramente fortuitas ou exclusivamente exógenas – caso em que inexiste fundamento para a especial agravação da pena por não se poder afirmar uma maior culpa referida ao facto –, e não operando a qualificativa por mero efeito das condenações anteriores, a comprovação da íntima conexão entre os crimes não se basta com a simples história criminosa do agente, antes exige uma «específica comprovação factual, de enunciação dos factos concretos dos quais se possa retirar a ilação que a recidiva se explica por o arguido não ter sentido e interiorizado a admonição contra o crime veiculada pela anterior condenação transitada em julgado e que conduz à falência desta no que respeita ao desiderato dissuasor» (cf., entre outros, os Acs. do STJ de 28-02-2007, Proc. n.º 9/07 - 3.ª, de 16-01-2008, Proc. n.º 4638/07 - 3.ª, de 26-03-2008, Procs. n.ºs 306/08 - 3.ª e 4833/07 - 3.ª, de 04-06-2008, Proc. n.º 1668/08 - 3.ª, e de 04-12-2008, Proc. n.º 3774/08 - 3.ª.

47.ª

“Tem sido sufragada, sem dissidências, pelo STJ a doutrina segundo a qual «o critério essencial da censura ao agente por não ter atendido a admonição contra o crime resultante da condenação ou condenações anteriores, se não implica um regresso à ideia de que verdadeira reincidência é só a homótropa [homogénea ou específica], exige de todo o modo, atentas as circunstâncias do caso, uma íntima conexão entre os crimes reiterados que deva considerar-se relevante do ponto de vista daquela censura e da consequente culpa.

48.ª

Uma tal conexão poderá, em princípio, afirmar-se relativamente a factos de natureza análoga segundo os bens jurídicos violados, os motivos, a espécie e a forma de execução; se bem que ainda aqui possam intervir circunstâncias (…) que sirvam para excluir a conexão, por terem impedido de actuar a advertência resultante da condenação ou condenações anteriores.

49.ª

Mas já relativamente a factos de diferente natureza [reincidência polítropa, genérica ou heterogénea] será muito mais difícil (se bem que de nenhum modo impossível) afirmar a conexão exigível.

50.ª

A medida da pena, não pode em caso algum ultrapassar a medida da culpa.

51.ª

A verdadeira função desta última, na doutrina da medida da pena, reside, efetivamente, numa incondicional proibição de excesso.

52.ª

A culpa constitui um limite inultrapassável, de todas e quaisquer considerações preventivas, sejam elas de prevenção geral positiva ou antes negativa, de integração ou antes de intimidação, sejam de prevenção especial positiva ou negativa, de socialização, de segurança ou de neutralização.

Com o que se torna indiferente saber se a medida da culpa é dada num ponto fixo da escala penal ou antes como uma moldura de culpa.

53.ª

De qualquer modo, e qualquer que seja a solução encontrada, de uma ou de outra forma, a culpa é o limite máximo da pena adequado à culpa que não pode ser ultrapassado.

54.ª

Uma tal ultrapassagem, mesmo em nome das mais instantes exigências preventivas, poria em causa a dignitas humana do delinquente e seria assim, como é nos presentes autos, por razões Jurídico constitucionais, inadmissível.

55.ª

Face ao supra exposto, o Arguido ora Recorrente, entende que para que lhe sejam aplicadas penas justas, adequadas e proporcionais, as quais não excedam o seu grau de culpa e participação nos factos ora em apreço, estas não poderão ser em caso algum:

•superior a 12 anos.

56.ª

Esta medida concreta da pena única do cúmulo que o ora Recorrente pretende que agora lhe seja aplicada por este Alto Tribunal é aquela que lhe parece mais adequada, justa e proporcional tendo em conta os factos provados e as suas concretas condições de vida.

57.ª

Pelo que se entende que a Douta Decisão recorrida deve ser revogada, devendo ser substituída por outra que condene o ora Recorrente na pena de 12 anos, a qual irá realizar de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.

58.ª

Assim, e por todo o exposto, e independentemente da pena de prisão que for concretamente aplicada por vós, Venerandos Juízes, a verdade é que a mesma deverá ser, sempre, inferior à pena aplicada.

59.ª

Nestes termos e nos melhores de Direito, deverá ser, sempre, APLICADA PENA INFERIOR à pena única de 15 (quinze) anos de prisão, não ultrapassando assim a medida da culpa do Recorrente.

(…)

3. O Ministério Público, junto da 1.ª instância, respondeu ao recurso e concluiu:

I. A pena única de 15 anos de prisão mostra-se, dentro da moldura penal abstrata, justa e criteriosa, dando expressão acertada às exigências de prevenção, especial e geral, que no caso em apreço se faziam sentir.

II. Não se mostram violados, por qualquer forma, quaisquer princípios ou preceitos legais, mormente os invocados pelo recorrente.

4. O recurso foi admitido a subir ao Supremo Tribunal de Justiça.

5. Neste Supremo Tribunal de Justiça (doravante STJ), o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se reporta o artigo 416.º do Código de Processo Penal (diploma que passaremos a designar de CPP), emitiu parecer no sentido de que o recurso não merece provimento, devendo, em consequência, ser confirmado o acórdão recorrido.

6. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º2, do CPP, não foi apresentada resposta ao parecer. Procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, os autos foram à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no artigo 419.º, n.º3, do mesmo diploma.

II – FUNDAMENTAÇÃO

1. Dispõe o artigo 412.º, n.º 1, do CPP, que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido, constituindo entendimento constante e pacífico que o âmbito do recurso é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que sejam de conhecimento oficioso.

Atentas as conclusões apresentadas – que merecem reparo, pela sua injustificada extensão -, a questão colocada é a da determinação da pena conjunta, que o recorrente considerada excessiva.

2. Do acórdão recorrido

2.1. O tribunal a quo considerou provados os seguintes factos:

- Das penas em concurso:

O arguido foi condenado:

1- No Proc. 422/21.3..., do Juízo Central Criminal de ..., Juiz ...:

-Data da prática dos factos: 20/05/2021;

-Data do acórdão: 23/11/2022, transitado em julgado em 1/06/2023;

- Crimes e penas:

a) um crime de homicídio qualificado tentado, previsto e punido pelos artigos 22º, nºs 1 e 2, alínea b), 23º, nºs 1 e 2, 73º, 131º e 132º, nºs 1 e 2, alínea e), todos do Código Penal, agravado pelo artigo 86º, nº3, da Lei n.º5/2006, de 23/02, na pena de 11 anos de prisão;

b) um crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86º, nº1, alíneas c) e e), por referência ao artigo 2º, nºs 1, alínea az) e 3, alínea p), e 3º, nºs 1 e 5, alínea e), todos da Lei 5/2006, de 23/02, na pena de 2 anos de prisão;

b) em cúmulo jurídico, na pena única de 12 anos de prisão

2- No Proc. 30/22.1..., do Juízo Central Criminal da Comarca de Leiria, Juiz ...:

-Data da prática dos factos: 30/09/22;

-Data do acórdão: 8/01/2024, transitado em julgado em 7/02/2024;

- Crimes e penas:

a) de três crimes de roubo agravado, p. e p. pelo artigo 210º, nº 1 e nº 2, alínea b), por referência ao artigo 204º, nº 1, alínea d) do Código Penal, na pena de 4 (quatro) anos de prisão, cada um (ofendidos BB, CC e DD);

b) dois crimes de roubo, p. e p. pelo artigo 210º, nº 1 do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, cada um (ofendidos EE e FF);

c) em cúmulo jurídico das penas aplicadas, na pena única de 6 (seis) anos de prisão.

- Outras condenações sofridas pelo arguido:

3- O arguido foi condenado nos seguintes processos:

a- Por decisão proferida em 28.09.2009 e transitada em julgado em 19.10.2009, no Processo Comum Singular nº 1226/08.4..., do ...º Juízo Criminal deste Tribunal, pela prática, em 25.09.2008, de um crime de roubo (p. e p. pelos artigos 210º, nº 1 do Código Penal), na pena de 1 ano e 6 meses de prisão, suspensa por igual período (declarada extinta, pelo cumprimento);

b- Por decisão proferida em 22.11.2012 e transitada em julgado em 12.12.2012, no Processo Comum Singular nº 73/10.8..., do Tribunal Judicial da ..., pela prática, em 25.04.2010, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário (p. e p. pelo artigo 291º, nº 1, alínea b) e nº 3 do Código Penal) e de um crime de resistência e coação sobre funcionário (p. e p. pelo artigo 347º, nº 1 do Código Penal), na pena de 3 meses de prisão, substituída por 90 horas de trabalho a favor da comunidade, e na pena de 60 dias de multa, à razão diária de € 5,00, num total de € 300,00 (declarada extinta, pelo cumprimento e pagamento);

c- Por decisão proferida em 15.09.2014 e transitada em julgado em 15.10.2014, no Processo Sumário nº 515/14.3..., do Juiz ... do Juízo Local Criminal de ..., pela prática, em Setembro de 2014, de um crime de furto qualificado (p. e p. pelos artigos 203º, nº 1 e 204º, nº 1, alínea f) do Código Penal), na pena de 8 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano, sujeita a regime de prova (declarada extinta, pelo cumprimento);

d- Por decisão proferida em 30.10.2015 e transitada em julgado em 30.11.2015, no Processo Comum Singular nº 299/13.2..., do Juiz ... do Juízo Local Criminal de ..., pela prática, em 19.05.2013, de um crime de furto qualificado, na forma tentada (p. e p. pelos artigos 22º, 23º, 203º, nº 1 e 204º, nº 2, alínea a) do Código Penal), na pena de 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano (declarada extinta, pelo cumprimento);

e- Por decisão proferida e transitada em julgado em 25.02.2013, no Processo Sumaríssimo nº 19/12.9..., ...º Juízo do Tribunal Judicial da ..., pela prática, em 09.08.2012, de um crime de cultivo para consumo de estupefacientes (p. e p. pelo artigo 40º, nºs 1 e 2 do DL 15/93, de 22.01, por referência à Tabela I-C anexa ao referido diploma legal), na pena de 90 dias de multa, à razão diária de € 6,00, num total de € 540,00 (declarada extinta, pelo pagamento);

f- Por decisão proferida em 18.11.2013 e transitada em julgado em 18.12.2013, no Processo Comum Singular nº 81/12.4..., do ...º Juízo Criminal de ..., pela prática, em 24.03.2012, de um crime de condução perigosa de veículo rodoviário (p. e p. pelos artigos 291º, nº 1, alínea b) e 69º, nº 1, alínea a) do Código Penal), na pena de 10 meses de prisão, substituída por 300 horas de trabalho, e na pena acessória de proibição de conduzir por 5 meses (declaradas extintas, pelo cumprimento);

g- Por decisão proferida em 23.02.2017 e transitada em julgado em 27.03.2017, no Processo Comum Singular nº 114/14.0..., do Juiz ... do Juízo de Competência Genérica da ..., pela prática, em 27.02.2014, de um crime de ameaça agravada (p. e p. pelos artigos 153º, nº 1 e 155º, nº 1, alínea c), por referência ao artigo 132º, nº 2, alínea l), todos do Código Penal), na pena de 4 meses de prisão, suspensa na sua execução por 1 ano (declarada extinta, pelo cumprimento);

h- Por decisão proferida em 04.04.2017 e transitada em julgado em 06.12.2017, no Processo Comum Singular nº 456/15.7..., do Juiz ... do Juízo Local Criminal de ..., pela prática, em 09.08.2015, de um crime de roubo (p. e p. pelo artigo 210º, nº 1 do Código Penal), na pena de 2 anos de prisão (declarada extinta, pelo cumprimento, tendo sido concedida liberdade definitiva ao arguido em 23.02.2020).

- Outros factos provados relevantes para a decisão:

4- (Proc. 422/21.3...)- - No dia 20 de Maio de 2021, o arguido AA, retirou do bolso das calças uma pistola de características não concretamente apuradas, mas de cor cromada e calibre .22, apontou-a na direção de GG, e, a cerca de dois metros ou dois metros e meio deste, premiu o gatilho e efetuou três disparos seguidos, atingindo-o no abdómen do lado direito com um tiro; em seguida, ao passar, na viatura, junto do local onde se encontrava GG (que permanecia de pé junto ao corrimão da rampa de acesso ao bloco 1), o arguido AA, abrandou a marcha e imobilizou a viatura e, do lugar do condutor, e com o vidro do pendura aberto, ordenou ao seu pai que se baixasse, o que este fez, após o que efetuou mais três disparos na direção de GG, com intenção de o matar; com um dos disparos efetuados, o arguido AA atingiu GG no membro inferior direito, só não tendo conseguido acertar-lhe com os outros disparo por motivos alheios à sua vontade; em consequência da actuação do arguido AA, GG sofreu no abdómen um orifício de entrada de projéctil, com ferimento com crosta cicatricial, de formato oval (com o seu maior eixo horizontal), no hipocôndrio direito, medindo 0,5x0,3cm – dista do bordo inferior do mamilo direito 17,3cm e do apêndice xifóide 13cm, incisão cirúrgica xifo-púbica, linear e longitudinal, medindo 35,5cm, suturada com oito pontos de contenção, em provável relação com a laparotomia exploradora a que foi sujeito no dia 22 de Maio de 2021, incisão cirúrgica linear e transversal, no flanco esquerdo, medindo 1cm de comprimento, suturada com um ponto de sutura de linha preta, rodeado por equimose avermelhada-esverdeada; GG ficou com saco de colostomia no flanco direito, imediatamente abaixo do orifício de entrada referido, bem como com dois drenos, um em cada uma das fossas ilíacas para drenagem de conteúdo sero-hemático; aquele sofreu, ainda, no membro inferior direito, um orifício de entrada de projéctil, com ferimento com crosta cicatricial, de formato oval, na transição do terço proximal para o médio da face lateral da perna, medindo 0,4x0,5cm – dista do bordo inferior da linha média da patela homolateral 18,9cm e do bordo inferior do maléolo lateral 33cm e um orifício de saída de projéctil com ferimento de formato irregular coberto por escoriação sanguínea, na transicção do terço proximal para o médio da face póstero-medial da perna, medindo, de maiores eixos, 0,7x1cm – dista do bordo inferior da linha média da patela 20cm e do bordo inferior do maléolo medial 29,5cm, rodeada de equimose arroxeada esverdeada, medindo 8x6cm; o arguido AA agiu da forma descrita apenas por GG ter olhado na sua direção, sem que contendesse com os mesmos ou tivesse qualquer conduta contra si. O arguido AA actuou de forma livre, com o propósito de provocar a morte de GG, atendendo ao instrumento utilizado e à curta distância a que foram efetuados os disparos contra o corpo deste, o que não logrou por motivos alheios à sua vontade, mormente pelo facto de o ofendido ter sido prontamente socorrido e de os tiros disparados não terem atingido órgãos vitais. O arguido AA agiu revelando desprezo e total desrespeito pela vida de GG, querendo matá-lo unicamente por este ter olhado na sua direção, sabendo que tal não lhe era permitido e, ainda assim, quis praticar os factos descritos. O arguido AA tinha conhecimento das características da referida arma de fogo e sabia que a mesma ao ser utilizada era capaz de ferir ou matar alguém, querendo usá-la nos termos indicados. O arguido AA agiu sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que tais comportamentos eram proibidos e punidos pela lei penal, querendo agir conforme o descrito.

5- (Proc. 30/22.1...)- No dia 23 de Setembro de 2022, pela hora de almoço, deslocando-se no veículo automóvel, marca Volkswagen, modelo Golf, de cor ..., com matrícula ....-DD, seguindo ao volante o arguido HH, os arguidos deslocaram-se em direção à localidade de .... Chegados àquela localidade, quando se encontravam na Rua do ..., junto ao n.º ..., cerca das 13h10m, os arguidos avistaram, à porta de casa, BB, com 75 anos, a qual tinha no pescoço um fio de ouro com uma medalha com a letra “I”, no valor de pelo menos € 102,00. Assim que verificaram a existência de tal objeto, os arguidos inverteram a marcha do veículo onde seguiam e estacionaram o mesmo em frente da porta de BB. Ato contínuo e na senda do planeado, o arguido II, que seguia no banco traseiro, saiu do veículo, aproximou-se de BB e perguntou-lhe “se sabia onde estava o Sr. JJ”. De imediato, e sem que nada o fizesse prever, o arguido II aproximou a sua mão do pescoço de BB e puxou com força o mencionado fio de ouro. Na posse do mencionado objeto, o arguido II introduziu-se no interior do veículo, onde os outros quatro arguidos o aguardavam, e de imediato abandonaram o local. Após, os arguidos deslocaram-se para a localidade de ..., em ..., onde pelas 14h30m, na Rua ..., junto ao n.º ..., avistaram CC, de 80 anos, que envergava um fio de ouro ao pescoço. No propósito previamente delineado entre todos, os arguidos aproximaram o veículo junto da porta de entrada da residência de CC, onde esta se encontrava. De imediato, o arguido HH saiu do veículo, dirigiu-se a CC e perguntou-lhe onde se situava a localidade de .... Aproveitando a proximidade de CC, o arguido HH agarrou na cabeça daquela, puxou-a para baixo e com força puxou-lhe o fio que a mesma trazia ao pescoço, no valor de pelo menos € 102,00. Na posse do mencionado objeto, os arguidos abandonaram de imediato o local, indo em direção à localidade de .... Já naquela localidade, cerca das 14h50m, os arguidos avistaram EE, junto ao seu local de trabalho, que envergava dois colares banhados a ouro ao pescoço, sendo um com um pendente em forma de olho e outro com um pendente circular com uma estrela no seu interior, pelo que aproximaram o veículo. Quando se encontravam próximos de EE e na prossecução do plano delineado, os arguidos II e KK saíram do veículo e dirigiram-se à mesma a quem perguntaram “se tinha pão”, ao que aquela respondeu negativamente. Ato contínuo, um daqueles arguidos lançou a mão na direção do pescoço de EE, puxando com força os dois colares que aquela trazia ao pescoço, no valor de € 200,00. Na posse dos mencionados objetos, os dois arguidos introduziram-se no interior do veículo, onde eram esperados pelos demais, abandonando imediatamente o local, em direção à localidade do .... Pelas 16h30m, os arguidos, seguindo na Estrada Principal da localidade de ... – ..., sentido ... – ..., avistaram à sua frente FF, de 62 anos, conduzindo o ciclomotor de marca Famel, modelo XF-17 Super, com matrícula ..-CO-... De imediato, os arguidos, na prossecução do plano delineado, iniciaram manobra de ultrapassagem do veículo conduzido por FF e após atravessaram o seu veículo em frente ao daquele, obrigando-o a parar. Ato contínuo, um dos arguidos saiu da viatura, onde todos se deslocavam, aproximou-se de FF e puxou com força a mala que aquele trazia a tiracolo e na qual se encontrava a sua carteira, com uma nota de € 100,00 (cem euros) e os seus documentos de identificação pessoal e os do ciclomotor. Com a força do puxão infligido, FF desequilibrou-se e caiu no chão. Aproveitando tal facto, o arguido que havia saído da viatura aproximou-se do ciclomotor, com o valor de € 1.000,00, e ao seu volante abandonou o local, tendo sido seguido pelos restantes quatro arguidos no interior do veículo. Por fim, cerca das 17h40m, quando se encontravam na localidade de ..., os arguidos avistaram DD, de 80 anos, apeado na Rua ..., em direção a sua casa, que envergava um fio de ouro ao pescoço. Mais uma vez, na prossecução do delineado, os arguidos pararam o veículo e o ciclomotor (que haviam retirado a FF) junto ao cruzamento com a Rua ..., daquela localidade, aguardando que DD passasse junto aos mesmos. Quando DD passou junto do veículo onde se deslocavam os arguidos, dois deles saíram da viatura e aproximaram-se de DD pelas costas. De seguida, um dos arguidos agarrou os braços de DD, pelas costas, tendo nesse momento outro dos arguidos puxado com força o fio que aquele envergava ao pescoço. O fio em causa tem o valor de € 400,00. Na posse do mencionado fio, os arguidos abandonaram de imediato o local, seguindo em direção à Marinha Grande. Para tanto, e de modo a seguirem todos juntos no carro, decidiram abandonar o ciclomotor junto ao posto de abastecimento de combustível “Prio”, sito em .... Por força da conduta descrita, CC sofreu uma escoriação na face anterior do tórax, sensivelmente na linha média, em região paraesternal, com 1,5cm por 0,5cm, que lhe determinaram três dias para a cura sem afetação da capacidade de trabalho geral. Em virtude da conduta dos arguidos supra descrita, EE sofreu diversos ferimentos na zona frontal do pescoço, nomeadamente uma escoriação com 1cm por 0,5cm, na região superior direita da face anterior do tórax, as quais lhe determinaram um período de 3 (três) dias para a cura, sem afetação da capacidade de trabalho geral e sem afetação da capacidade de trabalho profissional. Em virtude do descrito, FF sofreu traumatismos dos membros superiores e face e ferimentos no braço esquerdo. Em virtude do descrito, DD sofreu ferimentos na zona do nariz e no braço esquerdo, designadamente no membro superior esquerdo uma extensa equimose fortemente arroxeada com 26cm por 21cm que acomete toda a face anterior do braço e o terço proximal do antebraço, as quais lhe determinaram 10 (dez) dias para a cura sem afetação da capacidade de trabalho geral. Em consequência da conduta dos arguidos, DD teve dor e sofrimento. Em consequência da conduta dos arguidos, DD sente receio, ao sair à rua, de ser assaltado, o que não sentia antes dos factos. Os arguidos agiram, na senda de um plano acordado entre todos, no qual cada um desempenhava o seu papel de forma organizada, em execuções conjuntas, sendo que as atuações concertadas facilitavam a concretização dos seus propósitos, circunstância que quiseram aproveitar, com o propósito concretizado de mediante a violência e intimidação descritas, se apropriarem dos referidos bens de LL, BB, CC, EE, FF e DD, bem sabendo que não lhes pertenciam e que atuavam contra a vontade dos ofendidos, causando-lhes prejuízo patrimonial. Sabiam também que os ofendidos BB, CC e DD tinham mais de setenta anos de idade, padecendo das limitações e fragilidades próprias da idade, e que por isso eram incapazes de se defender convenientemente. Os arguidos agiram em todos os momentos e ocasiões de modo consciente e voluntário, bem sabendo serem as suas condutas proibidas e punidas por lei e tinham a liberdade necessária para se determinar de acordo com essa avaliação.

6-Pessoais do arguido

a- À data dos factos em apreço nos autos, o arguido residia com a companheira e o filho de ambos, de 3 anos de idade.

b- O casal mantém relacionamento há cerca de 7 anos.

c- O arguido tem ainda 4 filhos de um relacionamento anterior, que iniciou com 14 anos de idade, encontrando-se os 3 filhos mais novos (de 16, 14 e 8 anos de idade) à guarda dos avós paternos, enquanto a filha mais velha (de 19 anos de idade) já é autónoma.

d- O processo de desenvolvimento do arguido decorreu junto da família de origem, de frágil condição socioeconómica e cultural.

e- O pai do arguido era negociante de cavalos, sendo a família sempre dependente de apoios sociais para assegurar a sua subsistência.

f- A família reside em acampamento, sito em terreno adquirido pelo pai do arguido, nas imediações da ....

g- O acampamento integra apenas elementos da sua família de origem (pais e irmãos).

h- As casas dispõem de energia elétrica regularizada, mas não dispõem de condições sanitárias, nem de abastecimento de água.

i- O arguido desistiu da Escola aos 12 anos de idade, por falta de motivação, encontrando-se habilitado com o 4º ano de escolaridade.

j- Aos 26 anos, aquando da sua 1ª experiência prisional, frequentou um curso profissional, que lhe deu equivalência ao 6º ano de escolaridade.

l- O arguido frequentou cursos de formação profissional, enquanto beneficiário de RSI, na área informática e de ‘ervas aromáticas, condimentares e medicinais’.

m- O agregado familiar do arguido beneficia de RSI, no valor de € 313,00 mensais, acrescido de abono de família do filho menor, no valor de € 100,00 mensais.

n- Em liberdade, o arguido trabalhava como sucateiro, auferindo entre € 20 e € 50 diários.

o- Nos tempos livres, convivia com família e amigos, alguns deles coarguidos nos autos.

p- Em meio livre, o arguido mantinha consumos esporádicos de haxixe, encontrando-se abstinente há mais de um ano e não reconhecendo necessidade de qualquer tratamento ou acompanhamento para esta problemática.

r- Em meio prisional, o arguido tem apresentado um comportamento consentâneo com as normas institucionais.

s- Não se encontra inserido em atividades estruturadas de caráter formativo ou laboral.

t- Em meio prisional, o arguido recebe visitas semanais da companheira, dos filhos e dos pais.

u- A família demonstra disponibilidade para o apoiar.

B- Factos não provados:

Não se provaram quaisquer outros factos com relevo para a decisão da causa.

2.2. O tribunal recorrido fundamentou a sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

« C- Fundamentação da matéria de facto:

O Tribunal fundou a sua convicção sobre a matéria de facto dada como provada, nas certidões relativas aos processos em causa, juntas aos autos, no relatório social junto, complementando-se este com as declarações do arguido e da informação do EP, bem como o CRC junto.»

*

3. Apreciando

3.1. O presente recurso, admitido como direto para o STJ, tem por objeto o acórdão proferido pelo tribunal coletivo que procedeu ao cúmulo jurídico de diversas penas e condenou o recorrente, em conhecimento superveniente do concurso, na pena de 15 (quinze) anos de prisão, limitando-se ao reexame de matéria de direito, da competência do STJ [artigos 432.º, n.ºs 1, al. c), e 2, e 434.º do CPP], sem prejuízo do disposto na parte final da alínea c) do n.º 1 do artigo 432.º, na redação introduzida pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro, segundo o qual se pode recorrer com os fundamentos previstos nos n.ºs 2 e 3 do artigo 410.º, que não vêm invocados.

3.2. Tendo em vista o objeto do recurso, importa considerar, nos seus traços gerais, o regime legal previsto para as situações de conhecimento superveniente do concurso.

Estabelece o artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal:

«Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa única pena. Na medida da pena são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.»

O direito português afastou o sistema da acumulação material de penas, optando por acolher um sistema de pena conjunta, obtida mediante um princípio de cúmulo jurídico (Figueiredo Dias, Direito Penal Português - As Consequências Jurídicas do Crime, Aequitas/Editorial Notícias, 1993, pp. 283 e seguintes e Maria João Antunes, Penas e Medidas de Segurança, Almedina, 2024, pp. 72-73).

A pena única referida no artigo 77.º, n.º1, corresponde, assim, a uma pena conjunta que tem por base as correspondentes aos crimes em concurso, segundo um princípio de cúmulo jurídico, seguindo-se o procedimento normal de determinação e escolha das penas parcelares, a partir das quais se obtém a moldura penal do concurso.

A pena aplicável aos crimes em concurso tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 25 anos tratando-se de pena de prisão e 900 dias tratando-se de pena de multa, e, como limite mínimo, a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes (artigo 77.º, n.º 2, do Código Penal). Sendo as penas aplicadas umas de prisão e outras de multa, a diferente natureza destas mantém-se na pena única resultante da aplicação deste critério (artigo 77.º, n.º 3), entendendo-se que penas de “diferente natureza”, para efeitos deste preceito, são somente as penas principais, de prisão e de multa.

Quando se verifique um concurso efetivo de crimes há lugar à realização do cúmulo jurídico, independentemente de estarmos perante um concurso contemporâneo ou perante um concurso de conhecimento superveniente, sendo aplicáveis a ambos as mesmas regra de determinação da pena conjunta.

O artigo 78.º, n.º1, regulando o conhecimento superveniente do concurso, consagra:

«Se, depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes, são aplicáveis as regras do artigo anterior, sendo a pena que já tiver sido cumprida descontada no cumprimento da pena única aplicada ao concurso de crimes.»

Acrescenta o n.º2 do artigo 78.º que o disposto no número anterior “só é aplicável relativamente aos crimes cuja condenação transitou em julgado”.

Relativamente ao conhecimento superveniente do concurso, após debate na doutrina e na jurisprudência sobre o momento a que se deve atender para resolver a questão de saber se os crimes se encontram numa relação de concurso ou de sucessão - para uns, o momento temporal decisivo era o da condenação, enquanto para outros esse momento era o do trânsito em julgado da condenação -, o STJ fixou jurisprudência no sentido de que “o momento temporal a ter em conta para a verificação dos pressupostos do concurso de crimes, com conhecimento superveniente, é o do trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer dos crimes em concurso” (acórdão de fixação de jurisprudência n.º 9/2016, DR n.º 111, Série I, de 09.06.2016).

3.2.1. No recurso em análise, estão em causa as seguintes condenações do arguido :

1.º - Por acórdão de 23.11.2022, transitado em julgado em 1.06.2023, no Proc. n.º 422/21.3..., do Juízo Central Criminal de ..., Juiz ..., relativo a factos praticados em 20/05/2021, pela prática de:

a) um crime de homicídio qualificado tentado, p. e p. pelos artigos 22.º, n.ºs 1 e 2, alínea b), 23.º, n.ºs 1 e 2, 73.º, 131.º e 132.º, n.ºs 1 e 2, alínea e), todos do Código Penal, agravado pelo artigo 86.º, n.º3, da Lei n.º 5/2006, de 23/02, na pena de 11 anos de prisão;

b) um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º1, alíneas c) e e), por referência ao artigo 2.º, n.ºs 1, alínea az) e 3, alínea p), e 3.º, n.ºs 1 e 5, alínea e), todos da Lei 5/2006, de 23/02, na pena de 2 anos de prisão;

c) em cúmulo jurídico, o arguido foi condenado na pena única de 12 anos de prisão;

2.º - Por acórdão proferido em 8.01.2024, transitado em julgado em 7.02.2024, no Proc. n.º 30/22.1..., do Juízo Central Criminal da Comarca de Leiria, Juiz ..., por factos de 23.09.22 (no acórdão recorrido diz-se 30/09/2022) pela prática de:

a) três crimes de roubo agravado, p. e p. pelo artigo 210.º, n.º 1 e 2, alínea b), por referência ao artigo 204.º, n.º 1, alínea d), do Código Penal, na pena de 4 anos de prisão, para cada um (ofendidos BB, CC e DD);

b) dois crimes de roubo, p. e p. pelo artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 3 anos de prisão, para cada um (ofendidos EE e FF);

c) em cúmulo jurídico das penas aplicadas, na pena única de 6 anos de prisão.

O que se pode sintetizar no seguinte quadro:

Processodecisãotrânsitodata factosCrimespenas (prisão)cúmulo
422/21.3...23/11/221/06/2320/05/2021Arma proibida

Homicídio qualif. Tentado

2 anos

11 anos

12 anos
30/22.1...8/01/247/02/2423/09/223x Roubo agravado

2x Roubo

3x 4 anos

2x 3 anos

6 anos

A data do trânsito em julgado da primeira condenação por qualquer dos crimes em concurso é a de 1.06.2023, constituindo, por isso, o marco decisivo para a determinação dos crimes a integrar no concurso superveniente.

No caso, a moldura penal do concurso, como já se disse, tem como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes – no caso, 11 anos de prisão - e, como limite máximo, a soma das penas parcelares concretamente aplicadas, sem, todavia, exceder os 25 anos de pena de prisão – no caso, a soma material seria de 31 anos, reduzida ao indicado limite de 25 anos.

A determinação da pena envolve diversos tipos de operações, resultando do preceituado no artigo 40.º do Código Penal que as finalidades das penas se reconduzem à proteção de bens jurídicos (prevenção geral) e à reintegração do agente na sociedade (prevenção especial).

Hoje não se aceita que o procedimento de determinação da pena seja atribuído à discricionariedade não vinculada do juiz ou à sua “arte de julgar”. No âmbito das molduras legais predeterminadas pelo legislador, cabe ao juiz encontrar a medida da pena de acordo com critérios legais, ou seja, de forma juridicamente vinculada, o que se traduz numa autêntica aplicação do direito (cf., com interesse, Figueiredo Dias, ob. cit., pp. 194 e seguintes).

Tal não significa que, dentro dos parâmetros definidos pela culpa e pela forma de atuação dos fins das penas no quadro da prevenção, se chegue com precisão matemática à determinação de um quantum exato de pena.

Estabelece o artigo 71.º, n.º1, do Código Penal, que a determinação da medida da pena, dentro da moldura legal, é feita «em função da culpa do agente e das exigências de prevenção». O n.º2 elenca, a título exemplificativo, algumas das circunstâncias, agravantes e atenuantes, relevantes para a medida concreta da pena, pela via da culpa e/ou pela da prevenção, dispondo o n.º3 que na sentença são expressamente referidos os fundamentos da medida da pena, o que encontra concretização adjetiva no artigo 375.º, n.º1, do C.P.P., ao prescrever que a sentença condenatória especifica os fundamentos que presidiram à escolha e à medida da sanção aplicada.

Estando em causa a determinação da medida concreta da pena conjunta do concurso, aos critérios gerais contidos no artigo 71.º, n.º1, acresce um critério especial fixado no artigo 77.º, n.º1, 2.ª parte, do Código Penal: “serão considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente”.

Na consideração dos factos (do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso) está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, como se o conjunto de crimes em concurso se ficcionasse como um todo único, globalizado, que deve ter em conta a existência ou não de ligações ou conexões e o tipo de ligação ou conexão que se verifique entre os factos em concurso.

Refere Cristina Líbano Monteiro (A Pena «Unitária» do Concurso de Crimes, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, ano 16, n.º 1, pp. 151-166) que o Código rejeita uma visão atomística da pluralidade de crimes e obriga a olhar para o conjunto – para a possível conexão dos factos entre si e para a necessária relação de todo esse bocado de vida criminosa com a personalidade do seu agente, estando em causa a avaliação de uma «unidade relacional de ilícito», portadora de um significado global próprio, a censurar de uma vez só a um mesmo agente.

Como se diz no acórdão do STJ, de 31.03.2011, proferido no Processo 169/09.9SYLSB.S1 (em www.dgsi.pt), a pena conjunta tenderá a ser uma pena voltada para ajustar a sanção - dentro da moldura formada a partir de concretas penas singulares – à unidade relacional de ilícito e de culpa, fundada na conexão auctoris causa própria do concurso de crimes.

Lê-se no referido acórdão:

«Por outro lado, na confeção da pena conjunta, há que ter presentes os princípios da proporcionalidade, da adequação e proibição do excesso.

Cremos que nesta abordagem, há que ter em conta os critérios gerais da medida da pena contidos no artigo 71.º do Código Penal – exigências gerais de culpa e prevenção – em conjugação, a partir de 1-10-1995, com a proclamação de princípios ínsita no artigo 40.º, atenta a necessidade de tutela dos bens jurídicos ofendidos e das finalidades das penas, incluída a conjunta, aqui acrescendo o critério especial fornecido pelo artigo 77.º, n.º 1, do Código Penal - o que significa que o específico dever de fundamentação de aplicação de uma pena conjunta, não pode estar dissociado da questão da adequação da pena à culpa concreta global, tendo em consideração por outra via, pontos de vista preventivos, passando pelo efectivo respeito pelo princípio da proporcionalidade e da proibição do excesso, que deve presidir à fixação da pena conjunta, tornando-se fundamental a necessidade de ponderação entre a gravidade do facto global e a gravidade da pena conjunta.

Neste sentido, podem ver-se aplicações concretas nos acórdãos de 21-11-2006, processo n.º 3126/06-3.ª, CJSTJ 2006, tomo 3, pág. 228 (a decisão que efetue o cúmulo jurídico tem de demonstrar a relação de proporcionalidade entre a pena conjunta a aplicar e a avaliação dos factos e a personalidade do arguido); de 14-05-2009, no processo n.º 170/04.9PBVCT.S1-3.ª; de 10-09-2009, no processo n.º 26/05. 8SOLSB-A.S1-5.ª, seguido de perto pelo acórdão de 09-06-2010, no processo n.º 493/07.5PRLSB.S1-3.ª, ali se referindo que “Importa também referir que a preocupação de proporcionalidade a que importa atender, resulta ainda do limite intransponível absoluto, dos 25 anos de prisão, estabelecido no n.º 2 do art. 77.º do CP. É aqui que deve continuar a aflorar uma abordagem diferente da pequena e média criminalidade, para efeitos de determinação da pena conjunta, e que se traduzirá, na prática, no acrescentamento à parcelar mais grave de uma fracção menor das outras”; de 18-03-2010, no processo n.º 160/06. 7GBBCL.G2.S1- 5.ª, onde se afirma, para além da necessidade de uma especial fundamentação, que “no sistema de pena conjunta, a fundamentação deve passar pela avaliação da conexão e do tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifica e pela avaliação da personalidade unitária do agente. Particularizando este segundo juízo - e apara além dos aspectos habitualmente sublinhados, como a deteção de uma eventual tendência criminosa do agente ou de uma mera pluriocasionalidade que não radica em qualidades desvaliosas da personalidade - o tribunal deve atender a considerações de exigibilidade relativa e à análise da concreta necessidade de pena resultante da inter-relação dos vários ilícitos típicos”; de 15-04-2010, no processo n.º 134/05.5PBVLG.S1-3.ª; de 21-04-2010, no processo n.º 223/09.7TCLSB.L1.S1-3.ª; e do mesmo relator, de 28-04-2010, no processo n.º 4/06.0GACCH.E1.S1-3.ª.»

Explicita Figueiredo Dias (ob. cit., pp. 291-292):

«Tudo deve passar-se como se o conjunto dos factos fornecesse a gravidade do ilícito global perpetrado, sendo decisiva para a sua avaliação a conexão e o tipo de conexão que entre os factos concorrentes se verifique. Na avaliação da personalidade – unitária – do agente relevará, sobretudo, a questão de saber se o conjunto dos factos é reconduzível a uma tendência (ou eventualmente mesmo a uma «carreira») criminosa, ou tão só a uma pluriocasionalidade que não radica na personalidade: só no primeiro caso, já não no segundo, será cabido atribuir à pluralidade de crimes um efeito agravante dentro da moldura penal conjunta. De grande relevo será também a análise do efeito previsível da pena sobre o comportamento futuro do agente (exigências de prevenção especial de socialização).»

Em suma, para a determinação da medida concreta da pena conjunta é decisivo que se obtenha uma visão de conjunto dos factos que tenha em vista a eventual conexão dos mesmos entre si e a relação com a personalidade de quem os cometeu.

As conexões ou ligações fundamentais, na avaliação da gravidade do ilícito global, são as que emergem do tipo e número de crimes; da maior ou menor autonomia e frequência da comissão dos delitos; da igualdade ou diversidade de bens jurídicos protegidos violados; da motivação subjacente; do modo de execução, homogéneo ou diferenciado; das suas consequências e da distância temporal entre os factos – tudo analisado na perspetiva da interconexão entre todos os factos praticados e a personalidade global de quem os cometeu, de modo a destrinçar se o mesmo tem propensão para o crime, ou se, na realidade, estamos perante um conjunto de eventos criminosos episódicos, devendo a pena conjunta refletir essas singularidades da personalidade do agente

A revelação da personalidade global emerge essencialmente dos factos praticados, mas também importa ponderar as condições pessoais e económicas do agente e a sua recetividade à pena e suscetibilidade de ser por ela influenciado, elementos particularmente relevantes no apuramento das exigências de prevenção.

Para a determinação da pena única, seja no âmbito do mesmo processo, seja no conhecimento superveniente do concurso, a lei não estabelece quaisquer critérios aritméticos.

Não se ignora, porém, a existência de jurisprudência do STJ que, perante a amplitude da moldura penal do concurso, advoga que se adicione à parcelar mais elevada uma fração variável das restantes penas parcelares (sendo frequente ver somada, à pena mais grave, frações das demais penas que variam desde ½ até 1/5), tendo como referência diversos critérios jurisprudenciais e convocando um denominado «fator de compressão» que deve atuar entre o mínimo e o máximo da moldura penal prevista no artigo 77.º, n.º2, do Código Penal. Fala-se, a este propósito, da existência, por um lado, de um efeito “expansivo” das outras penas sobre a parcelar mais grave, e, por outro, de um efeito “repulsivo” a partir do limite da soma aritmética de todas as penas, que resulta de uma preocupação de proporcionalidade entre o peso relativo de cada parcelar, em relação ao conjunto de todas elas.

A determinação da pena única, a nosso ver, quer pela sua sujeição aos critérios gerais da prevenção e da culpa, quer pela necessidade de proceder à avaliação global dos factos na sua ligação com a personalidade, não é compatível com a utilização de critérios matemáticos de fixação da sua medida. A convocação desses critérios apenas poderá ser entendida, porventura, como coadjuvante, e não mais do que isso, quando existe uma grande margem de amplitude na pena a aplicar, tendo em vista as exigências dos princípios da proporcionalidade e proibição do excesso, mas sempre procurando a solução justa de cada caso concreto, apreciado na sua particular singularidade.

Revertendo ao caso, verificamos:

São sete os crimes em causa, praticados em 20.05.2021 (homicídio qualificado na forma tentada e detenção de arma proibida) e 23.09.2022 (cinco roubos).

Os crimes de roubo, concentrados numa única data, visaram, na sua maioria, pessoas idosas, com as limitações e fragilidades próprias da idade e, por isso, incapazes de se defenderem convenientemente.

A culpa, enquanto limite da pena reportada ao facto, é bastante acentuada, no quadro global da ação desvaliosa do concurso de crimes, empreendida com grande energia (veja-se o crime de homicídio qualificado na forma tentada), persistência e reiteração (crimes de roubo), cuja ressonância ética e social implica um juízo de censurabilidade reforçado.

As necessidades de prevenção geral - como prevenção positiva ou de integração, tendo em vista a estabilização das expectativas comunitárias na validade das normas violadas - são elevadas, considerando o forte sentimento de insegurança que a criminalidade em causa gera nos membros da comunidade, potenciando a perda de confiança dos cidadãos no próprio Estado como principal regulador da paz social.

O modo de execução e a gravidade dos factos pelos quais o ora recorrente foi condenado postulam elevadas exigências preventivas de socialização, sendo certo que o mesmo apresenta passado criminal por crimes de diversas naturezas e, mais recentemente, havia sido condenado em pena de prisão, por crime de roubo, tendo-lhe sido concedida a liberdade definitiva em 23.02.2020 (pouco mais de um ano antes da prática do crime de homicídio qualificado tentado).

O processo de desenvolvimento do recorrente decorreu junto da família de origem, de frágil condição socioeconómica e cultural, dependente de apoios sociais para assegurar a sua subsistência.

À data dos factos em apreço nos autos, o recorrente residia com a companheira e o filho de ambos, de 3 anos de idade. O recorrente tem ainda 4 filhos de um relacionamento anterior, que iniciou com 14 anos de idade, encontrando-se os 3 filhos mais novos (de 16, 14 e 8 anos de idade) à guarda dos avós paternos, enquanto a filha mais velha (de 19 anos de idade) já é autónoma.

Com limitada formação (desistiu da escola aos 12 anos de idade, por falta de motivação, encontrando-se habilitado com o 4.º ano de escolaridade; aos 26 anos, aquando da sua 1.ª experiência prisional, frequentou um curso profissional, que lhe deu equivalência ao 6.º ano de escolaridade; frequentou cursos de formação profissional, enquanto beneficiário de RSI, na área informática e de ‘ervas aromáticas, condimentares e medicinais’), o recorrente trabalhava como sucateiro, auferindo entre 20,00€ e 50,00€ diários.

Neste contexto, valorando o ilícito global perpetrado, ponderando em conjunto todos os factos em presença, a sua relacionação com a personalidade do recorrente que neles se documenta e os fins das penas, e face à ausência de circunstâncias com especial significado atenuante, entendemos não ser excessiva a pena única conjunta de 15 (quinze) anos de prisão que foi imposta pelo tribunal recorrido, bem mais perto do limite mínimo da moldura abstrata do concurso (11 anos de prisão, a que fez acrescer 1/5 das demais penas – ou pouco mais de ¼, considerando o limite de 25 anos) do que do seu limite máximo, pelo que não se justifica a pretendida redução dessa pena.

Conclui-se que o recurso não merece provimento.

*

III - DECISÃO

Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes do Supremo Tribunal de Justiça em negar provimento ao recurso interposto por AA.

Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 5 UCs (artigo 513.º, n.º 1 e 3, do CPP, e artigo 8.º, n.º 9, do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa).

Supremo Tribunal de Justiça, 3 de abril de 2025

(certifica-se que o acórdão foi processado em computador pelo relator e integralmente revisto e assinado eletronicamente pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.ºs 2 e 3 do CPP)

Jorge Gonçalves (Relator)

Jorge Jacob (1.º Adjunto)

Ernesto Nascimento (2.º Adjunto)