I - O critério de aferição da dupla conformidade de decisões, obstativa da admissibilidade da revista normal ou comum, não assenta na coincidência formal das duas decisões, antes radica na conformidade racional ou ponderada, i.e., na favorabilidade, para o recorrente, da última decisão das instâncias.
II - O fundamento específico da recorribilidade assente na contradição de acórdãos decompõe-se em três requisitos: que o acórdão recorrido esteja em contradição com algum acórdão de uniformização de jurisprudência anteriormente proferido, denominado acórdão fundamento; que os dois acórdãos tenham sido proferidos no domínio da mesma legislação; que os dois acórdãos tenham sido proferidos sobre a mesma questão fundamental de direito.
III - A contradição ou oposição de julgados há-de determinar-se atendendo a dois elementos: a semelhança entre as situações de facto e a dissemelhança ou divergência entre os resultados da interpretação e/ou integração das normas legais relevantes em face das situações de facto consideradas.
Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:
1. Relatório.
A Sra. Juíza de Direito do Juízo Central Cível ..., do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, por sentença proferido no dia 15 de Dezembro de 2023, julgou parcialmente procedente a acção declarativa de condenação, com processo comum, proposta por AA contra Metaloadães – Montagem de Estruturas Metálicas, Lda., e Companhia de Seguros Allianz, SA e, com fundamento em que a primeira ré agiu de forma imprevidente e que a sua actuação não poderia deixar de considerar-se culposa por força do presunção de culpa a que se refere art.º 493.º n.º 2 do Código Civil, condenou-a, por força do art.º 493.º, n.º 1, e 800.º do Código Civil, a pagar à autora, por danos não patrimoniais, a quantia de € 80 000, 00, acrescida de juros de mora à taxa legal de 4%, desde a data da sentença até pagamento.
A demandada Metaloadães, Lda., interpôs desta sentença recurso ordinário de apelação para o Tribunal de Relação do Porto, no qual impugnou, por erro na apreciação das provas, a decisão da matéria de facto, e alegou a inexistência de nexo causal entre a sua conduta e o acidente. Todavia, aquela Relação, por acórdão proferido no dia 8 de Outubro de 2024, sem nunca se referir sequer ao problema da causalidade, com fundamento em que se impõe a responsabilização da ré Metaloadães, por via de não ilisão da presunção de culpa previsto no referido art.º 493.º, n.º 2, julgou o recurso de apelação parcialmente procedente e condenou a recorrente a pagar à autora a quantia de € 70 000,00, acrescida de juros de mora à taxa de 4%, desde a data da sentença até pagamento.
É este acórdão que a recorrente impugna na revista, normal ou comum – na qual pede a sua revogação e substituição por outro que a absolva dos pedidos – tendo encerrado a sua alegação com as conclusões seguintes:
1. As instâncias não apontaram à ora Recorrente a violação de regras de segurança e pode-se concluir que não estamos perante uma situação de violação das regras de segurança por parte da Ré empregadora, tal como esta vem prevista no artigo 18.º da LAT
2.Entendeu-se no acórdão recorrido que a Ré incorreu em responsabilidade civil por violação do dever de vigilância que se lhe impunha, diariamente, quanto ao cumprimento das normas de segurança por parte dos trabalhadores e que a 1ª ré descurou o dever de vigilância que se lhe impunha, diariamente, quanto ao cumprimento das normas de segurança por parte dos trabalhadores.”
3. O argumento expendido não é razoável pois não é aceitável que se imponha à entidade patronal que, diariamente, se fiscalize cada trabalhador e durante todo o período de trabalho, no cumprimento das normas de segurança impostas pela entidade patronal, o que levaria a que se detivesse um trabalhador a fiscalizar permanentemente outro, e outro esse e outro e assim sucessivamente numa cadeia interminável…
4. O referido entendimento em que assenta a condenação da Ré na Relação – ausência de fiscalização do não cumprimento das regras de segurança impostas aos seus trabalhadores - não era tema de prova nem nela assentava a causa de pedir.
5. Pois a A. não imputou, nem imputa, responsabilidades à Ré por essa via– ausência de fiscalização do cumprimento das normas de segurança impostas pela entidade patronal ao trabalhador BB.
6. Ao fazê-lo, violou o direito do contraditório da Ré e constitui uma decisão surpresa ( Ac. STJ de 19 de maio de 2016, Proc. 6473/03.2TVPRT.P1.S1,www.dgsi.pt).
7. Por outro lado o acórdão recorrido não se pronunciou sobre as questões suscitadas no recurso, nomeadamente do nexo causal, enfermando de nulidade por omissão de pronúncia.
8. E violou jurisprudência uniformizada - Acórdão de uniformização de jurisprudência DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA N.º 6/2024. D.R. I SÉRIE 92 (2024-05-13) P. 1-10 - em que para que se possa imputar o acidente e suas consequências danosas à violação culposa das regras de segurança pelo empregador, ou por uma qualquer das pessoas mencionadas no artigo 18º, n.º 1 da LAT, é necessário apurar se nas circunstâncias do caso concreto tal violação se traduziu em um aumento da probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efetivamente veio a verificar-se, embora não seja exigível a demonstração de que o acidente não teria ocorrido sem a referida violação.
9. Com efeito, o sinistrado tinha conhecimento que a utilização do arnês e da linha de vida era obrigatória e essencial para evitar a queda em altura (ponto 52)
10.A utilização do arnês e da linha de vida não dificultava a colocação das chapas metálicas nas laterais no chapéu do telhado.
11. A 1.ª R. havia dado instruções aos seus trabalhadores, incluindo o sinistrado, para que sempre que realizassem trabalhos em altura utilizasse o arnês e a linha de vida que haviam sido facultados.
12.Para os trabalhos em causa foi elaborado pela 1.ª R. um plano de trabalhos com riscos especiais, datado de 21/11/2018 e divulgado aos seguintes trabalhadores: CC, DD, EE, FF; GG; HH, BB; II e EE.
13.O BB sabia que tinha de utilizar o arnês e a linha de vida para a tarefa que estava a realizar.
14.BB sabiaque o arnês e alinhade vida eraadequadoa evitar a sua queda no solo.
15. A utilização do arnês e da linha de vida teria evitado a queda do BB no solo. (sublinhado nosso)
16.Assim, não existe nexo de causalidade entre o acidente e a conduta da Ré nos termos fixados no Acórdão de uniformização de jurisprudência;
17. Pois resulta de forma clara e evidente que o evento ocorreu devido à conduta incauta e negligente do sinistrado e por violado as normas de segurança impostas pela entidade empregadora.
Na resposta, a autora, recorrida – depois de observar que a revista não é admissível por se verificar a dupla conforme e não haver qualquer contradição entre o acórdão recorrido e o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência invocado – concluiu pela improcedência do recurso.
O Sr. Juiz Desembargador Relator – sem que tivesse levado o processo à conferência para se apreciar a nulidade do acórdão invocada, na alegação do recurso de revista, pela recorrente, com fundamento na omissão de pronúncia sobre a questão do nexo de causalidade – admitiu o recurso.
Ouvida, na sequência de despacho do relator de 5 de Fevereiro de 2025, sobre a eventualidade de a revista ser julgada inadmissível, a recorrente depois de declarar, por um lado, que a Relação do Porto alterou o enquadramento legal que subjaz ao caso concreto, o que implicou a aplicação de normas jurídicas diferentes das aplicadas pela 1.ª instância, o que impede que opere a dupla conforme entre decisões e, por outro, que o acórdão impugnado está em contradição com o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, n.º 6/2024, concluiu pela admissibilidade da revista.
O relator, por despacho de 24 de Fevereiro de 2025, julgou o recurso inadmissível e declarou-o findo por não haver que conhecer do seu objecto, decisão que justificou com os fundamentos seguintes:
2. Fundamentos.
2.1. Fundamentos de facto.
2.1.1. Fundamentos de facto da revista.
As instâncias estabilizaram os factos materiais da causa nos termos seguintes:
2.1.1.2. Factos provados.
1. A Autora era mãe de BB, solteiro, sem descendentes, nascido a ... de Janeiro 1997.
2. BB faleceu a ... de Maio de 2019, pelas 11H30m, na sequência de acidente durante a realização da sua prestação laboral na Zona Industrial de ..., ..., Rua ..., ..., União de freguesias de ... e ..., no município de ....
3. Correu termos processo sob o número 1184/19.0... no âmbito do qual foi proferido despacho a reconhecer que nem a mãe nem o irmão são beneficiários legais do sinistrado BB para efeitos da LAT.
4. A 7 de Janeiro de 2016, BB celebrou contrato de trabalho por tempo incerto com a 1.º Ré para desempenhar, sob a sua orientação, fiscalização e autoridade, as funções de ... de 3.ª.
5. Funções que até ao momento do seu falecimento desempenhou em horário e local que lhe era pré-estabelecido pela 1.ª Ré e de acordo com as suas orientações.
6. Categoria profissional que mantinha à data do evento em causa.
7. Pelas quais auferiu de salário base a quantia de 680,00€.
8. A 1.º Ré é uma sociedade por quotas de responsabilidade limitada e com capital social de 2.000,00€.
9. Tem como escopo social a montagem de estruturas e sede social na Estrada ..., freguesia de ..., no concelho de ....
10. Tem 2 sócios, o 2.º Réu, JJ, com quota de €1.000,00 (mil euros) e a 3.º Ré KK, com a quota de 1.000,00€.
11. Ambos assumem a qualidade de sócios-gerentes, com funções de gestão da 1.ª Ré.
12. A 1.ª Ré obriga-se com assinatura de apenas um gerente.
13. A 1. Ré obriga-se com a assinatura de apenas um gerente e desde que assumiram essa qualidade, registada a 16/09/2014, que são o 2.º R. e 3.ª R. quem diretamente decidem os destinos desta sociedade, nomeadamente, contratando com fornecedores e clientes; determinando os preços a praticar; as dívidas a pagar; os créditos a cobrar; intervindo nos processos de venda, compra, prestação de serviços, aprovisionamento, produção, laboração, negociação de contratos ou direção da sociedade; contratação de pessoal e conferência da sua contabilidade.
14. Desde então os 2.º R. e 3.ª Ré tomam diretamente todas as decisões sobre o modo como as obras eram contratadas e executadas e, bem assim, sobre as condições em que todas as prestações de serviços e contratos de empreitadas eram assumidas e executadas pelos seus trabalhadores.
15. A R. é uma organização de pessoas e bens que tem como escopo o lucro, com organização própria e, à data dos factos, tinha 10 trabalhadores dependentes das suas orientações, expressas e veiculadas pelos seus sócios-gerentes e representantes legais, à data dos factos, JJ e KK.
16. A 1.º Ré foi contratada, em regime de subempreitada, para a execução de estruturas metálicas, designadamente a da cobertura da nave/pavilhão industrial de um edifício destinado à instalação de uma indústria de “Biomassa”, sito na freguesia de ..., na Zona Industrial do ..., pertencente à Fábrica ..., ....
17. Esta cobertura, além dos chapéus (zonas mais elevadas da cobertura), é composta em parte por chapas metálicas e, aproximadamente de 12 em 12 metros, por placas de plástico translúcidas.
18. No dia 16/05/2019, estas chapas metálicas e placas translúcidas já haviam sido colocadas, faltando executar o revestimento da referida zona mais elevada da cobertura.
19. Para tanto, a 1.ª Ré tinha, naquela obra, ao seu serviço e no seu interesse sob sua orientação, autoridade e fiscalização, quatro colaboradores, o falecido BB, LL, EE e HH, este último também com as funções de chefe de equipa.
20. Todos serralheiros que desempenham de forma habitual, o trabalho de serralharia, montagem de estruturas metálicas e a quem a 1.ª R. tinha instruído para proceder à fixação das chapas de revestimento nas “madres” colocadas na lateral direita do “chapéu” da cobertura do edifício referido em 17).
21. A zona do chamado chapéu da cobertura fica a aproximadamente 16 metros de altura do solo.
22. Para se deslocarem para a cobertura BB e os seus colegas de trabalho ascenderam numa plataforma elevatória existente na obra para o efeito e operada pelos próprios.
23. O trabalho em altura executado naquele momento por BB e pelos restantes colaboradores da 1.º Ré exigia, tal como estava previsto no plano de trabalhos apresentado pela 1.ª R. para a execução da obra em causa, a utilização de equipamento de protecção colectiva, como redes de segurança 1 m abaixo da estrutura do telhado, e linha de vida com elementos todos devidamente certificados e em bom estado de conservação, e equipamento de protecção individual como o arnês anti-queda com ligação à linha de vida fixa a elementos sólidos da estrutura do “chapéu” do telhado.
24. No dia 16/05/2019 a cobertura em causa não dispunha da referida rede de segurança que tinha estado colocada durante a colocação das chapas metálicas e das placas plásticas translúcidas da cobertura.
25. A 1.ª R. no dia 10/04/2018 havia entregue um arnês anti-queda ao BB que o recebeu.
26. No dia 29/05/2018 BB recebeu formação/informação em contexto de trabalho sobre o tema segurança trabalhos em altura, tendo sido abordados os seguintes aspectos: protecções colectivas - guarda-corpos redes e nos andaimes; acessibilidade; regras da utilização da escada de mão; riscos associados à realização de trabalhos com risco de queda em altura e utilização de arnês de protecção, linhas de vida, pontos de ancoragem.
27. No dia 19/10/2018 BB recebeu formação/informação em contexto de trabalho sobre o tema trabalhos com risco de queda em altura, tendo sido abordados os seguintes aspectos: protecções colectivas a implementar (guarda-corpos de protecção, redes de segurança); equipamentos de protecção individual (arnês de segurança, linha de vida e restantes acessórios); verificação de segurança do arnês e acessórios (costuras, linha de vida farpada, com cortes, mosquetões); montagem adequada dos andaimes (bases em madeira sólida, ancoragens aos edifícios, guarda corpos de protecção em todos os lados abertos das plataformas de trabalho, guarda-cabeças, etc.); utilização segura das escadas de mão (1 m acima local de encosto, preensão da escada ao local de encosto, e regra dos 3 apoios – 2 mãos 1 pé ou 2 pés e uma mão); proteger sempre com guarda-corpos as bordaduras das lajes, extremidade de telhados, varandas, aberturas nas paredes (portas e janelas com peitoril baixo) caixas de escadas e aberturas para o poço do elevador; sobradar sempre as aberturas existentes ao nível dos pavimentos.
28. Às 11.30 h do referido dia 16/05/2019, BB e os outros trabalhadores da 1.ª Ré, LL, HH e EE, encontravam-se naquela cobertura a proceder à colocação de chapas laterais que compunham o “chapéu” da mesma cobertura.
29. A 1.ª R. sabia que o local já não estava dotado de rede de segurança/contenção.
30. A 1.ª R. instruiu os seus supra ids. trabalhadores, designadamente a vítima BB, para continuar com os trabalhos no chapéu da cobertura.
31. Os trabalhadores da 1.ª Ré, LL, HH, EE e o falecido BB, aquando do acidente, não dispunham de guarda-corpos e não estavam a utilizar o arnês individual e a linha de vida.
32. Quando BB executava o seu trabalho junto ao “chapéu” da cobertura calcou uma placa translúcida que, com o peso, abriu.
33. Deixando o corpo de BB sem qualquer suporte e com espaço livre por onde o mesmo caiu, sem qualquer equipamento de protecção que evitasse a queda no solo do interior do pavilhão.
34. BB caiu de uma altura de cerca de 16 metros.
35. Da queda adveio a morte ao BB.
36. A 1.ª R. instruiu aqueles seus trabalhadores para que executassem o trabalho de fixação das chapas de revestimento nas “madres” colocadas na lateral direita do “chapéu” da cobertura do edifício.
37. Nesta altura, já não se encontrava colocado qualquer equipamento de protecção colectiva.
38. A 1.ª R. conhecia o risco de queda que a execução do trabalho supra descrito envolvia.
39. A utilização de material de protecção colectiva, como a rede de contenção, e de protecção individual, como o arnês, em conjunto com a linha de vida, era adequada a impedir a queda do BB no solo e consequentemente a morte deste.
40. HH, como chefe de equipa, não impôs ao BB que utilizasse o arnês na execução dos trabalhos em cima da cobertura no referido dia 16/05/2019.
41. A 1.ª R., através do 2.º R. e da 3.ª R., agiu de forma livre, voluntária e consciente.
42. Na sequência da queda, o BB sofreu lesões traumáticas crânio-meningo-encefálicas, toraco-abdomino-pélvicas e vertebrais cervicais, e outras lesões traumáticas, que, no conjunto, lhe provocaram a morte.
43. Ao constatar a passagem do seu corpo pela placa da cobertura, o BB anteviu a sua iminente morte e sentiu sofrimento e terror inimaginável que o acompanharam nos instantes finais da sua vida.
44. A Autora, já viúva à data dos factos, tinha apenas como familiares directos os seus dois descendentes: o falecido BB e MM.
45. O BB vivia com a mãe com quem mantinha uma relação muito próxima e presente, ainda mais vincada pelo pré-falecimento do progenitor daquele.
46. A Autora viveu meses num sofrimento atroz agravada pela memória do funeral do seu filho.
47. Ainda veste preto, visita religiosamente a campa do filho todos os fins de semana.
48. É diariamente acompanhada pela saudade do filho.
49. Tem episódios depressivos em que não quer sair de casa.
50. Com o funeral do seu filho a A. despendeu a quantia de 2.221,00€.
51. À data do acidente existia entre a 1.ª R. e a Companhia de Seguros Allianz, S.A. um contrato de seguro titulado pela apólice de acidentes de trabalho nº ...73.
Da Contestação da R. Companhia de Seguros
52. O sinistrado tinha conhecimento que a utilização do arnês e da linha de vida era obrigatória e essencial para evitar a queda em altura.
53. A utilização do arnês e da linha de vida não dificultava a colocação das chapas metálicas nas laterais no chapéu do telhado.
54. A 1.ª R. havia dado instruções aos seus trabalhadores, incluindo o sinistrado, para que sempre que realizassem trabalhos em altura utilizassem o arnês e a linha de vida que haviam sido facultados.
Da Contestação da 1.ª R., do 2.º R. e da 3.ª R.
55. A 1.ª R. tem organizados os serviços de segurança e saúde no trabalho na modalidade de serviços externos.
56. A entidade empregadora dispunha de uma ficha de procedimentos de segurança previstos para a montagem de estruturas metálicas.
57. Para os trabalhos em causa foi elaborado pela 1.ª R. um plano de trabalhos com riscos especiais, datado de 21/11/2018 e divulgado aos seguintes trabalhadores: CC, DD, EE, FF; GG; HH, BB; II e EE.
58. BB foi submetido a exame de saúde periódico em 14/04/2018, não evidenciando a ficha de aptidão qualquer restrição para o trabalho, tendo sido considerado apto.
59. A 1.ª R. participou acidente de trabalho à Companhia de Seguros.
60. A entidade patronal procedeu à análise do acidente.
61. BB sabia que tinha de utilizar o arnês e a linha de vida para a tarefa que estava a realizar.
62. BB sabia que o arnês e a linha de vida era adequado a evitar a sua queda no solo.
63. A utilização do arnês e da linha de vida teria evitado a queda do BB no solo.
64. A obra em causa tinha como coordenadora de segurança em obra NN nomeada pela dona da obra.
65. Os representantes em obra da entidade executante, J..., Unipessoal, Lda., eram OO, Técnica Superior de Segurança e Saúde no Trabalho e PP, Director de Obra.
2.1.1.3. Factos não provados.
Todos os que se mostram em contradição com os que acima se deram como provados, designadamente e ainda que:
Da PI
• O 2.º R. e 3.ª R. tenham instruído por si os seus colaboradores, designadamente a vítima BB.
• O falecido estivesse a trabalhar em altura sem que lhe tivesse sido fornecido pela 1.ª R. qualquer arnês.
• Não tivesse sido criada a linha de vida.
• O BB tivesse colocado ambos os pés na placa translúcida.
• As chapas colocadas no telhado e as placas de plástico translúcidas não estivessem todas devidamente fixadas.
• Tenha sido por não estar devidamente fixada que a placa translúcida que o BB calcou caiu.
• Essa placa translúcida estivesse deficientemente colocada na cobertura.
• A R. não tenha fornecido a BB um arnês individual.
• O 2.º R. e a 3.ª R. se tenham conformado com criação do perigo para a vida do BB.
• O 2.º R. e a 3.ª R. por si conhecessem o risco elevado de queda.
• A 1.ª R. e os seus representantes legais tenham agido com dolo.
• Tenham sido a 1.ª R. e os seus legais representantes quem retirou a rede de segurança para que o trabalho fosse executado mais rapidamente e/ou para diminuir custos de produção.
Da Contestação da R. Companhia de Seguros
• O arnês e a linha de vida estivessem disponíveis no local onde o sinistrado se encontrava a desempenhar a sua actividade profissional.
Da Contestação da 1.ª R., do 2.º R. e da 3.ª R.
• A 1.ª R. sempre tenha exigido aos trabalhadores o cumprimento rigoroso das medidas de prevenção e protecção de acidentes de trabalho, designadamente das medidas de segurança relativas a trabalhos em altura, como o uso de arnês e linha de vida.
• A obra tenha sido sempre acompanhada pela coordenadora de segurança em obra e pela técnica superior de segurança e saúde no trabalho.
• Quem colocou e retirou a rede de segurança tenha sido a empresa J..., Unipessoal, Lda.
2.1.2. Fundamentos de facto do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência 6/2024, de 13 de Maio.
O Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 6/2024, de 13 de Maio – que uniformizou jurisprudência no sentido de que para que se possa imputar o acidente e suas consequências danosas à violação culposa das regras de segurança pelo empregador, ou por uma qualquer das pessoas mencionadas no artigo 18.º, n.º 1 da LAT, é necessário apurar se nas circunstâncias do caso concreto tal violação se traduziu em um aumento da probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efetivamente veio a verificar-se, embora não seja exigível a demonstração de que o acidente não teria ocorrido sem a referida violação - assentou nos seguintes fundamentos de facto:
1 - No relatório pericial de clínica médico-legal, efetuado pelo perito médico neste Juízo de Trabalho, foi arbitrada, a partir de 31 de janeiro de 2019, dia seguinte à alta, uma incapacidade permanente parcial de 44,7967 % (artigo 1.º factos assentes).
2 - O sinistrado foi vítima de um acidente de trabalho no dia 19 de julho de 2018, pelas 11h:30m, em..., quando executava o seu trabalho de operador de máquinas por conta, sob a autoridade, direção e fiscalização da entidade patronal G..., Lda., com sede em... (artigo 2.º factos assentes).
3 - O acidente consistiu em ter entalado a mão direita, quando manuseava um tubo, resultando-lhe as lesões descritas no auto de exame médico de fls. 64 a 66 (artigo 3.º factos assentes).
4 - À data do acidente o sinistrado auferia a remuneração anual de 20.169,97 euros [(760,00 euros x 12 meses) + (1.337,26 euros x 1 de subsídio de férias) + 1.337,26 euros x 1 de subsídio de Natal) + (5,81 euros x 22 x 12) de subsídio de alimentação) + (472,00 euros x 12 de prémio de assiduidade) + (1.177,61 euros de pagamento de trabalho suplementar nos 12 meses anteriores ao do acidente] (artigo 4.º factos assentes).
5 - A 1.ª Ré já pagou a título de pensão mensal, desde 31 de janeiro de 2020 a outubro de 2020, a quantia de 18 318,90 euros (artigo 6.º factos assentes).
6 - O Autor deslocou-se uma vez ao Gabinete Médico-Legal..., para ser submetido a perícia de avaliação do dano corporal em Direito do Trabalho e deslocou-se três vezes a este Tribunal para diligências agendadas (artigo 7.º factos assentes).
7 - Deslocações que fez em veículo próprio por não haver transporte público compatível quer com o horário de tais diligências, quer com o horário da perícia de avaliação (artigo 8.º factos assentes).
8 - A residência do Autor dista da cidade da... cerca de 65 km, nas referidas quatro deslocações, o Autor percorreu cerca de 520 km (artigo 9.º factos assentes).
9 - O Autor é beneficiário da Segurança Social Portuguesa com o n.º ...54 e nasceu a... de... de 1965 (artigo 10.º factos assentes).
10 - A Companhia de Seguros declinou responsabilidades (artigo 11.º factos assentes).
11 - O Autor trabalha como operador de máquinas, com idêntica categoria profissional, por conta, sob a autoridade e direção da 2.ª Ré, que exerce a atividade de construção civil e obras públicas. (artigo 1.º da petição inicial).
12 - O Autor encontrou-se afetado de Incapacidade Temporária Absoluta entre os dias 20 de julho de 2018 e 31 de janeiro de 2019. (artigo 5.º da petição inicial)
13 - A 2.ª Ré tinha a sua responsabilidade emergente do acidente de trabalho transferida para a 1.ª Ré, pela apólice n.º ...75. (artigo 6.º da petição inicial)
14 - Realizada Tentativa de Conciliação no dia 11 de novembro de 2020, não foi obtido acordo porquanto:
- A 1.ª Ré reconheceu a caracterização do acidente dos autos como de trabalho, o nexo de causalidade entre este e as lesões, bem como a incapacidade indicada e a existência de um contrato de seguro válido e eficaz pela retribuição transferida de pelo montante anual de € 16.859,35 [€ 760,00 x 14 meses) + (€82,78 x 12 meses de trabalho suplementar) + (€ 393,33 x 12 meses de outras remunerações) + € 126,50€ x 4 meses de subsídio de alimentação); aceitou a data da alta fixada pelo GML e os períodos de incapacidade temporária também pelo mesmo fixados; aceitou pagar ao sinistrado as despesas de transporte com as deslocações obrigatórias ao Tribunal (3) e ao GML (1), no montante de € 106,08; não aceitou conciliar-se por entender que o acidente ocorreu devido a atuação culposa da aqui 2.ª Ré, nos termos previstos no artigo 18.º n.º 1 da LAT, em consequência do que considera existir responsabilidade agravada da mesma;
- A 2.ª Ré reconheceu a caracterização do acidente dos autos como de trabalho, o nexo de causalidade entre este e as lesões, bem como a incapacidade indicada; aceitou a data da alta fixada pelo GML e os períodos de incapacidade temporária também pelo mesmo fixados. Porém, não aceitou conciliar-se por se encontrar transferido para a 1.ª Ré o salário anual de € 20.169,97 [(€760,00 x 12 meses) + (€ 1.337,26 x 1 de subsídio de férias) + (€ 1.337,26 x 1 de subsídio de Natal) + (€5,81 x 22 x 11) de subsídio de alimentação) + (€472,00 x 12 meses de prémio de assiduidade) + (€ 1.177,61 de pagamento de trabalho suplementar nos 12 meses anteriores ao do acidente], entendendo que a responsabilidade pela reparação dos danos emergentes do acidente se encontra integralmente transferida para a 1.ª Ré (artigo 7.º da petição inicial).
15 - A 1.ª Ré pagou ao Autor a título de indemnizações pelas incapacidades temporárias de que foi portador (ITA entre o período de 20 de julho de 2018 e 31 de janeiro de 2019), a quantia de 6181,50 euros, calculada em função da remuneração anual que a 1.ª Ré considera encontrar-se para si transferida (artigo 9.º da petição inicial).
16 - Contudo, e uma vez que à data do acidente o Autor auferia a remuneração anual de 20.169,97 euros, era devida ao Autor, a título de indemnização por incapacidades temporárias a quantia global de 7.543,01 euros (20.169,97 euros/ 365 x 70 % x 195) (artigo 10.º da petição inicial).
17 - Permanecendo assim por liquidar a quantia de 1361,51 euros. (artigo 11.º da petição inicial)
18 - A 1.ª Ré, presentemente continua a proceder ao pagamento de pensão mensal provisória. (artigo 4.º da contestação)
19 - No dia 19 de julho de 2018 pelas 11.00 horas/11.30 horas, o Autor procedia à colocação de um tubo de PVC no interior de um poço manilhado, na Serra do..., em..., sob as ordens e direção da 2.ª Ré. (artigo 9.º da contestação).
20 - Ao mesmo tempo, o representante legal da sua 2.ª Ré, encontrava-se no interior de tal poço a colaborar nos trabalhos. (artigo 10.º da contestação)
21 - Tal serviço tinha sido contratado pela Câmara Municipal... e pressupunha a execução de 5 poços, com 7 metros de profundidade cada um para a captação de água. (artigo 11.º da contestação)
22 - No exercício das suas funções, e em colaboração com o representante legal da 2.ª Ré, o Senhor BB, procederam à colocação de um tubo de PVC, de aproximadamente 21 kg, no interior das manilhas que já se encontravam instaladas na escavação. (artigo 12.º da contestação)
23 - Para tal, o representante legal da 2.ª Ré colocou-se no interior das manilhas, ou seja, na base do poço, mantendo-se o Autor no exterior, mais concretamente na zona superior do talude da escavação. (artigo 13.º da contestação)
24 - O Autor segurava com a sua mão direita uma cinta que se encontrava presa ao topo superior do tubo, permitindo-lhe controlar a descida e movimentação do mesmo. (artigo 14.º da contestação)
25 - Por sua vez, o representante legal da 2.ª Ré ia fornecendo orientações ao Autor sobre o posicionamento do tubo a fim de ser aparafusado à manilha do poço com recurso a braçadeiras. (artigo 15.º da contestação)
26 - A determinado momento da tarefa que executavam, o Autor acabou por cair na vala existente entre o exterior das manilhas e a parede em terra da escavação, com uma profundidade de 7 metros. (artigo 16.º da contestação)
27 - Ato contínuo, como o tubo se encontrava já no interior da manilha, a cinta que estava acoplada ao mesmo e segura pela mão do Autor, acabou por permitir a sua suspensão. (artigo 17.º da contestação)
28 - Sucede que, a cinta encontrava-se enrolada na mão direita do Autor, e a queda com suspensão, provocou o aperto e esmagamento da mão pela cinta, por força do peso do corpo do Autor. (artigo 18.º da contestação)
29 - Facto de que resultaram para o Autor lesões. (artigo 20.º da contestação)
30 - (Suprimido por este Supremo Tribunal de Justiça por se tratar de facto conclusivo1).
31 - O legal representante do empregador ordenou ao autor que se colocasse na zona do talude, segurando uma cinta amarrada ao tubo que fazia descer segundo as instruções dadas, sabendo da existência do fosso entre a manilha e a escavação (alterado pela Relação)
32 - O poço estava manilhado e era circundado por uma vala de 7 metros, resultado da escavação. (artigo 24.º da contestação)
33 - O Autor se manter na zona do talude da escavação enquanto segurava a cinta, com uma vala imediatamente à frente, sem para tal estar munido de qualquer equipamento de segurança que o impedisse de se aproximar da abertura da escavação, conduziu inevitavelmente ao acidente dos autos. (artigo 25.º da contestação)
34 - Para evitar tal acidente, bastaria que a colocação do tubo de PVC ocorresse em momento posterior ao aterro da zona envolvente às manilhas, eliminando-se o fosso, e, por conseguinte, o risco de queda em altura. (artigo 26.º da contestação)
35 - Ou, ainda, que fossem utilizados dispositivos de segurança coletiva, como por exemplo, uma corda de amarração, ancorada a ponto fixo na retaguarda do Autor, com o comprimento apto a permitir a execução dos trabalhos e a evitar a aproximação da abertura do poço. (artigo 27.º da contestação)
36 - (suprimido pela Relação)
37 - (suprimido pela Relação)
\ 38 - Para tal [para evitar o acidente] bastaria que tivesse sido feito o aterro da vala, ou (artigo 30.º da contestação)
39 - (suprimido pela Relação)
40 - (suprimido pela Relação)
41 - (suprimido pela Relação)
42 - A 2.ª Ré era a responsável pela orientação e planificação dos trabalhos. (artigo 35.º da contestação)
43 - (suprimido pela Relação)
44 - (suprimido pela Relação)
45 - (suprimido pela Relação)
46 - (suprimido pela Relação)
47 - Encontra-se totalmente transferido para a 1.ª Ré o salário anual de 20 169,97 euros [(760,00 euros x 12 meses) + (1337,26 euros x 1 de subsídio de férias) + (1337,26 euros x 1 de subsídio de natal) + (5,75 euros até Setembro de 2018 e 5,81 euros após Setembro de 2018 x 22 dias de trabalho efectivo x 11 meses) de subsídio de alimentação) + (472,00 euros x 12 meses de prémio de assiduidade) + (1177,61 euros de pagamento de trabalho suplementar nos 12 meses anteriores ao do acidente]. (artigo 2.º da contestação)
48 - A responsabilidade pela reparação dos danos emergentes do acidente se encontra integralmente transferida para a 1.ª Ré. (artigo 4.º da contestação)
49 - A 2.ª Ré celebrou e mantinha com a 1.ª Ré um contrato de seguro para cobertura de acidentes de trabalho ocorridos com os seus trabalhadores, na modalidade de prémio variável, com efeitos a partir de 1 de Julho de 2018, com periodicidade de pagamento mensal. (artigo 5.º da contestação)
50 - A 2.ª Ré remetia, mensalmente e em suporte electrónico, a folha de remunerações à 1.ª Ré, em ficheiro com as caraterísticas técnicas definidas por esta, sendo considerados, para efeitos do presente contrato, as pessoas e retribuições aí identificadas, em especial o Autor. (artigo 6.º da contestação).
51 - Em cumprimento das suas obrigações contratuais, a 2.ª Ré sempre procedeu ao pagamento dos prémios de seguro vencidos, inclusive o referente ao período do acidente. (artigo 7.º da contestação)
52 - No final de cada semestre também pagou os valores que lhe eram apresentados pela 1.ª Ré, inclusive os referentes ao subsídio de refeição. (artigo 8.º da contestação)
53 - Sempre a 2.ª Ré procedeu à elaboração das folhas de férias do seu pessoal, em ficheiro PDF, delas constando todos os trabalhadores e todas as remunerações, seja retribuição base, subsídios de férias e de Natal, prémios, horas extraordinárias e subsídios de alimentação. (artigo 9.º da contestação)
54 - E sempre procedeu à remessa destas folhas de férias à 1.ª Ré, em ficheiro e segundo os procedimentos definidos por esta, convencida e sem razões para duvidar de que este ficheiro assumia na íntegra o conteúdo integral do ficheiro PDF elaborado pela 2.ª Ré. (artigo 10.º da contestação)
55 - Todos os valores auferidos pelos trabalhadores são os que constam do recibo de vencimento e são estes valores, todos, que igual e precisamente são comunicados quer à Segurança Social quer à 1.ª Ré. (artigo 11.º da contestação)
56 - Na sequência do acidente de trabalho, a 2.ª Ré naturalmente remeteu à 1.ª Ré a competente participação de acidente de trabalho. (artigo 12.º da contestação)
57 - Logo após a indicação da 1.ª Ré de que não se encontravam transferidos valores a 2.ª Ré, incrédula, procurou esclarecer o sucedido. (artigo 13.º da contestação)
58 - Remeteu também ao processo, cópia dos recibos e folhas de férias, o que fez por comunicação de 20 de fevereiro de 2019, conforme solicitado pelo Tribunal. (artigo 14.º da contestação)
59 - A 2.ª Ré tinha não apenas um contrato de seguro válido para garantia de responsabilidade emergente de acidentes de trabalho, como inclusive transferido o valor de toda e qualquer massa salarial. (artigo 15.º da contestação)
60 - A 2.ª Ré remetia, mensalmente e em suporte eletrónico, a folha de remunerações à Co-Ré Liberty, em ficheiro com as caraterísticas técnicas definidas por esta, sendo consideradas, para efeitos do presente contrato, as pessoas aí identificadas - todos e quaisquer um dos trabalhadores, Autor incluído -, e todas e quaisquer retribuições por estes auferidas - não apenas o subsídio de alimentação, mas também salário base, subsídios de férias e de Natal, prémios e horas extraordinárias -, tudo à semelhança e nos exatos termos em que era feito relativamente à Segurança Social. (artigo 2.º da resposta)
61 - No final de cada semestre também sempre pagou os valores que lhe eram apresentados pela 1.ª Ré, inclusive os referentes ao subsídio de refeição. (artigo 3.º da resposta)
62 - A 2.ª Ré distribui equipamentos de proteção individual anualmente a todo e qualquer um dos trabalhadores, Autor incluído. (artigo 7.º da resposta)
63 - Na sequência do acidente ocorrido, o ISS.IP, pagou a título de prestações de doença, no período de 18 de agosto de 2018 a 11 de outubro de 2018, a importância de 1.423,80 euros. (artigo 1.º do pedido de reembolso)
2.2. Fundamentos de direito.
A questão, estritamente procedimental que, nesta sede liminar, importa resolver, suscitada pela recorrida, é a da admissibilidade da revista.
No caso, não oferece dúvida a espécie do recurso de revista a sua admissibilidade pelo valor da causa e da sucumbência, a tempestividade da sua interposição e a legitimidade ad recursum da recorrente, dado que sucumbiu, ainda que só parcialmente, mas em valor excedente a metade da alçada da Relação, no seu recurso de apelação (art.ºs 138.º, n.ºs 1 e 2, 139.º, n.ºs 1 e 3, 247.º, n.º 1, 248.º 1, 629.º, n.º 1, 631.º, n.º 1, 637.º, n.º 1, 638.º, n.º 1 e 671.º, n.º 1 do CPC).
Importa, porém, proceder, desde logo, ao controlo dessa admissibilidade no tocante do recurso de revista comum ou normal, em vista da causa de exclusão da recorribilidade dos acórdãos da Relação, de largo espectro, representada pela chamada dupla conforme, de harmonia com a qual não é admitida revista daqueles acórdãos, sempre que confirmem, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância (art.º 671.º, n.º 3, do CPC).
Com este causa de irrecorribilidade visa-se racionalizar o acesso ao Supremo e acentuar a função que é característica dos tribunais supremos: a uniformização de jurisprudência. A restrição pode também justificar-se quer pela suficiência e a adequação da actividade do tribunal, que – numa perspectiva abstracta e formal - parte do princípio de que é suficiente a decisão acorde de dois tribunais e abstrai da importância da decisão para as partes, em especial, para o eventual recorrente, e da relevância dos fundamentos da sua impugnação – diversos daqueles que justificam que o recurso de revista seja sempre admissível – quer pela falta de interesse processual do recorrente: a parte que viu a sua pretensão ser julgada de modo idêntico pelas duas instâncias, não carece mais de interesse processual1. No entanto, em certos casos excepcionais, a revista é admissível (art.ºs 671.º, n.º 3, in fine, e 672.º. n.º 1, do CPC)
Como a conformidade das decisões das instâncias exclui o recurso de revista que, doutro modo, seria admissível, o que importa determinar é se essas decisões são conformes – duae conformes sententiae - não se são desconformes, pelo que se aquelas decisões não forem inteiramente coincidentes, o que interessa determinar é se essa não coincidência equivale a uma não-conformidade. As decisões das instâncias podem ser conformes, mesmo que entre elas se registe alguma desconformidade, o que é confirmado pela regra de que as decisões das instâncias são conformes se as respectivas fundamentações, apesar de distintas, não forem essencialmente diferentes (art.º 671.º, n.º 3, do CPC). Para verificar se o acórdão da Relação é conforme ou desconforme perante a decisão da 1.ª instância há que considerar os elementos das duas decisões. E entre os elementos das duas decisões, interessantes para a avaliação ou aferição daquela conformidade releva, desde logo, a fundamentação: se a fundamentação das decisões das instâncias for homótropa ou não for essencialmente diferente, a revista é inadmissível; se, porém, a motivação do acórdão da Relação for essencialmente distinta, aquele recurso ordinário é admissível. De outro aspecto, como decorre, por exemplo, do Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 7/2022, de 18 de Outubro – DR n.º 201/2022, Série I, de 2022.10.18 – a delimitação da dupla conformidade de decisões reclama o confronto com a autonomia e cindibilidade do objecto do processo, mesmo no caso de objecto único, e na viabilidade da apreciação de segmentos da decisão entre si independentes, autonomia que é aferida um função da respectiva fundamentação.
Para que se verifique a dupla decisão conforme, a conformidade entre duas decisões não tem de ser total; se a decisão da Relação for mais favorável ao apelante do que a decisão recorrida, é suficiente que seja parcial. A duae conformes sententiae não deixa, por isso, de se verificar se o apelante tiver obtido uma procedência parcial da apelação, ou seja, se a Relação tiver proferido uma decisão que é mais favorável que a da 1.ª instância: mesmo neste caso, estar-se-á perante duas decisões conformes, que torna inadmissível a interposição do recurso de revista para este Supremo Tribunal2. Dito doutro modo: o critério de aferição da dupla conformidade não assenta na coincidência formal das duas decisões – antes radica na conformidade racional ou ponderada, i.e., na favorabilidade, para o recorrente, da última decisão das instâncias. Trata-se da jurisprudência constante, praticamente uniforme, deste Tribunal3.
E é exactamente o que ocorre no tocante ao recurso de revista da autora. A sentença da 1.ª instância condenou a recorrente no pagamento à autora da quantia de € 80 000,00; o acórdão da Relação condenou essa mesma demandada mas apenas na quantia de € 70 000,00; a reformatio in mellius da posição jurídica da recorrente, por força da duae conformes sententiae, aferida segundo o critério racional, torna, em princípio, a revista inadmissível.
Há casos porém, em que é sempre admissível recurso para o Supremo, pelo que se deve entender que, ainda que se verifique a dupla conforme, a revista é admissível (art.ºs 629.º, n.º 2, e 671.º, n.º 3, do CPC). Um desses casos em que a revista é sempre admissível é o de a decisão impugnada, proferida no domínio da mesma legislação e sobre a mesma questão fundamental de direito, se mostrar contrária a jurisprudência uniformizada pelo Supremo Tribunal de Justiça (art.º 629.º, n.º 2, c), do CPC).
Sempre, como é o caso, a admissibilidade do recurso depende uma fundamentação específica o recorrente deve proceder, no requerimento de interposição do recurso, á indicação desse fundamento e, na alegação, à sua exposição e demonstração (art.º 637.º, n.º 2, 1.ª parte, do CPC).
Como é claro, para que o recurso seja admissível não basta que se diga que se recorre com fundamento de a decisão impugnada no recurso é contrária a jurisprudência uniformizada, porque se assim fosse as portas do recurso, designadamente, do recurso de revista, estariam sempre abertas e ao alcance de qualquer recorrente; quem quisesse recorrer dentro da alçada ou no caso de conformidade de decisões das instâncias invocaria sempre a contrariedade da decisão recorrida com jurisprudência uniformizada pelo Supremo, ainda que realmente no caso concreto fosse evidente a inexistência daquela contrariedade. É, pois, necessário que se indiquem elementos pelos quais se mostre ser verosímil e séria a afirmação de ter sido proferida uma decisão contrária a um acórdão de uniformização de jurisprudência proferido pelo Supremo. Dito doutro modo: interposto recurso fundado na contrariedade da decisão recorrida com jurisprudência uniformizada, não deve o recurso ser admitido quando seja manifesto, evidente ou patente, que uma tal contradição não se verifica, i.e., não tem condições de viabilidade. Neste caso, o recurso deve ser julgado inadmissível; sendo a alegação da contrariedade da decisão recorrida com jurisprudência uniformizada, séria ou, ao menos, verosímil, o recurso deve ser admitido e julgado procedente ou improcedente, conforme o caso.
Para além da exigência de que se trate de uma decisão da 1.ª instância ou de um acórdão da Relação, são requisitos, materiais e formais, deste caso especial de admissibilidade da revista:
- A contradição entre a decisão impugnada e o núcleo essencial do acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo, contradição que deve consistir numa oposição frontal e não apenas pressuposta ou meramente implícita com aquele acórdão; a oposição de decisões devem ser expressas;
- A divergência relativamente à mesma questão de direito, sendo irrelevantes as eventuais divergências quanto à questão de facto;
- A essencialidade da questão de direito para o resultado numa e noutra das decisões;
- A identidade da questão de direito que foi objecto de uniformização jurisprudencial e a que foi objecto da decisão recorrida: a questão que é decidida pelos duas decisões deve ser idêntica e não apenas análoga, o que pressupõe uma verdadeira identidade substancial do núcleo essencial da matéria de facto litigiosa subjacente a cada uma das decisões, que devem conter interpretações divergentes de um mesmo regime normativo, situando-se ou movendo-se no âmbito do mesmo instituto ou figura jurídica fundamental;
- A diversidade da resposta encontrada pela decisão recorrida e da dada pelo acórdão uniformizador: as duas decisões devem conter decisões opostas, embora não necessariamente contraditórias.
- A identidade substancial do quadro normativo em que se regista a divergência: a contrariedade entre as decisões deve verificar-se no domínio da mesma legislação;
- A alegação, fundamentada e concludente, do recorrente, da divergência essencial da decisão impugnada relativamente à jurisprudência uniformizada.
Para que a revista, com fundamento na contrariedade do acórdão recorrido com um acórdão de uniformização de jurisprudência do Supremo, seja admissível exige-se, pois, que os dois acórdãos alegadamente em contradição se pronunciem sobre a mesma questão fundamental de direito. Há-de, realmente, haver uma contradição de decisões, contradição que deve ser explícita. E exigindo-se uma contradição entre decisões, exclui-se a relevância da contradição entre fundamentos das decisões; e reclamando-se uma contradição explícita, excluiu-se a relevância de uma contradição implícita ou pressuposta.
Em resumo: a admissibilidade do recurso depende da existência de uma contradição entre o acórdão ora recorrido e o acórdão de uniformização, deduzido como acórdão fundamento; o fundamento específico da recorribilidade assente na contradição de acórdãos decompõe-se em três requisitos: que o acórdão recorrido esteja em contradição com algum acórdão de uniformização de jurisprudência anteriormente proferido, denominado acórdão fundamento; que os dois acórdãos tenham sido proferidos no domínio da mesma legislação; que os dois acórdãos tenham sido proferidos sobre a mesma questão fundamental de direito (art.º 629.º, n.º 2, c), do CPC); a contradição ou oposição de julgados há-de determinar-se atendendo a dois elementos: a semelhança entre as situações de facto e a dissemelhança ou divergência entre os resultados da interpretação e/ou integração das normas legais relevantes em face das situações de facto consideradas.
Até por uma pura razão de lógica, não há qualquer colisão ou contradição de decisões se apenas uma delas se pronunciou ou decidiu a questão fundamental de direito que, segundo o recorrente, foi resolvida de modo divergente: a contradição jurisprudencial pressupõe duas decisões opostas, pelo que não há, evidentemente, qualquer colisão entre uma decisão e uma não-decisão.
O acórdão impugnado fundamentou-se, no plano do direito, no art.º 493.º, n.º 2 do Código Civil, de harmonia como qual, quem causar danos a outrem no exercício de uma actividade, perigosa por sua natureza ou pela natureza dos meios utilizados, é obrigado a repará-los, excepto se mostrar que empregou todas as providências exigidas pela circunstâncias com o fim de os prevenir. Trata-se de um responsabilidade, extracontratual ou aquiliana, mas seguramente de uma responsabilidade subjectiva, relativamente á qual se estabelece, para facilitar a imputação – por a indagação da culpa do responsável se revelar muitas vezes difícil - uma presunção de culpa do lesante, embora se discuta se a presunção abrange apenas o pressuposto da culpa ou, diferentemente, se compreende também o pressuposto da ilicitude (art.ºs 483.º, n.º 2, e 487.º, n.º 2, do Código Civil).
Todavia, para que o lesante se constitua no dever de reparar o dano, ocorrido no contexto do exercício de uma atividade perigosa, não é suficiente a violação dos deveres de prevenção ou de cuidado, presentes no caso concreto – ou falta de prova, pelo lesante, do efectivo cumprimento desses deveres: é ainda necessário que aquele resultado possa imputar-se objectivamente à conduta. De harmonia com o princípio que a responsabilidade civil só intervém relativamente a comportamentos humanos e se exige, para a constituição do dever de indemnizar, um resultado, há sempre que verificar não apenas se esse resultado se produziu, como também se ele pode ser atribuído – imputado - à conduta. É a exigência de um relacionamento ou de uma conexão dessa conduta com o evento danoso que se procura dar resposta com a causalidade.
Uma orientação que tem merecido um apoio generalizado, mas não indiscutível, é a da causalidade adequada ou da causalidade jurídica sob a forma de adequação, que, simplificadamente, pode formular-se assim: um facto é causa de um resultado, sempre que, em termos de normalidade social, seja adequado a produzir esse resultado (art.º 563.º do Código Civil)4. A finalidade evidente da teoria da causalidade adequada é a de limitar a imputação do resultado às condutas das quais deriva um perigo idóneo de produção do resultado. Há, porém, domínios em que as soluções que resultam da aplicação da teoria da causa adequada não são inteiramente satisfatórias, o que sucede, sobretudo, em actividades que, comportando, em si mesmas, riscos consideráveis são, todavia, legalmente permitidas.
A teoria da adequação depara-se, pois, com várias dificuldades. Uma delas resulta do facto de o critério de adequação dever ser geral e abstracto, enquanto, depois de o resultado verificado, dificilmente se poder negar a sua previsibilidade e normalidade. O que conduz à conclusão de que o nexo de adequação se tem de aferir segundo um juízo ex ante e não ex post, portanto segundo um juízo de prognose póstuma: com este oximoro quer-se significar que o juiz deve deslocar-se mentalmente para o passado, para o momento em que a conduta foi praticada e ponderar, enquanto observador objectivo, se, dadas as regras gerais de experiência e o normal acontecer dos factos – o id quod plerumque accidit – a acção praticada teria como consequência a produção do evento. Caso conclua que a produção do evento era imprevisível ou que, sendo previsível, era improvável ou de verificação rara, a imputação objectiva não deverá ter lugar. Em face das dificuldades do critério da adequação não são de estranhar as propostas da sua correcção, por recurso, por exemplo, aos conceitos de risco permitido, do fim de protecção da norma, das esferas de risco e de causalidade fundamentadora – respeitante ao nexo dentre a conduta do responsável e o resultado que a norma exige que se verifique para se considerar violada – contraposta à causalidade preenchedora – referida ao nexo que se estabelece entre o evento que obriga à reparação e os danos5.
A tutela acidentária laboral mostrou-se, desde os seus primórdios, ligada ao instituto da responsabilidade civil. E culminando uma evolução, complexa e longa, o modelo actual de enquadramento da tutela por acidente de trabalho é o da responsabilidade extracontratual pelo risco: a responsabilidade do empregador pelos danos decorrentes de acidente de trabalho não pressupõe a culpa, antes é justificada pela ideia de risco da actividade laboral de que o empregador beneficia, enquanto credor da prestação. A responsabilidade por acidente de trabalho é, pois, uma responsabilidade objectiva pelo risco, que recai sobre o empregador, embora a lei não deixe de atender ao elemento subjectivo da culpa para efeitos de conformação concreta da reparação devida pelo facto do acidente. Assim, a culpa do trabalhador ou de terceiro pode actuar como causa de exclusão ou de redução da responsabilidade do empregador; a culpa deste último justifica um agravamento da sua responsabilidade (art.ºs 14.º, 17.º e 18.º, n.º 1, da LAT, aprovada pela Lei n.º 98/2009, de 4 de Setembro, na sua redacção actual).
O conflito de jurisprudência subjacente ao Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 6/2024 respeitava, precisamente, à imputação objectiva – à causalidade ou ao nexo causal – entre a violação culposa, pelo empregador, representante seu ou pessoa por ele contratada, das regras de segurança, como pressuposto de agravamento da sua responsabilidade – que passa a compreender todos os danos sofridos pelo sinistrado e já não apenas os danos resultantes da perda da capacidade de trabalho ou de ganho. Acórdão que estabeleceu a unidade da jurisprudência através da seguinte proposição uniformizadora: para que se possa imputar o acidente e suas consequências danosas à violação culposa das regras de segurança pelo empregador, ou por uma qualquer das pessoas mencionadas no artigo 18.º, n.º 1 da LAT, é necessário apurar se nas circunstâncias do caso concreto tal violação se traduziu em um aumento da probabilidade de ocorrência do acidente, tal como ele efetivamente veio a verificar-se, embora não seja exigível a demonstração de que o acidente não teria ocorrido sem a referida violação
Simplesmente, o prolema da imputação objectiva ou do nexo causal entre a violação ou não cumprimento, pela recorrente, das regras de segurança presentes no caso concreto, não obteve, no acórdão recorrido, qualquer referência ou tratamento, tendo-se centrado, exclusivamente, na questão da culpa e no funcionamento da presunção dessa culpa, resultante do carácter perigoso da actividade no contexto da qual se verificou o dano compensável, que vulnera a recorrente. Tanto assim é, que a recorrente assaca ao acórdão recorrido o desvalor da nulidade com base na omissão de pronúncia, justamente por uma abstenção injustificada de apreciação – e de decisão – do fundamento do recurso de apelação relativo à inexistência de nexo causal entre a violação culposa dos deveres de segurança e os danos reparáveis.
Não se verifica, assim, um conflito de jurisprudência entre o acórdão recorrido e o apontado Acórdão de Uniformização de Jurisprudência, dado que entre eles não há uma oposição consistente em assentarem em soluções opostas, no domínio da mesma legislação, relativamente à mesma questão fundamental de direito. E não há essa oposição desde logo porque o acórdão recorrido nem sequer se pronunciou sobre a questão de direito – o critério da imputação objectiva ou do nexo de causalidade – relativamente à qual aquele Acórdão estabeleceu a unidade da jurisprudência.
Portanto, a recorrente não só não produziu uma alegação concludente sobre a verificação do pressuposto específico de admissibilidade, no caso, da revista – que o acórdão impugnado tenha proferido uma decisão contrária a um acórdão de uniformização de jurisprudência proferido pelo Supremo, designadamente o invocado pela impugnante – como, inversamente, a sua alegação, mostra, concludentemente, a não verificação daquele mesmo pressuposto. Nestas condições, é clara a inadmissibilidade da revista.
De resto, ainda que ex-adverso, o contrário se devesse entender sempre se imporia concluir pela inexistência da oposição de acórdãos. É que o acórdão impugnado e o Acórdão Uniformizador – ou acórdão fundamento – não decidiram a mesma questão fundamental de direito nem a decidiram no âmbito da mesma legislação.
A questão de direito resolvida pelo acórdão recorrido consistiu em averiguar se a recorrente se encontrava constituída, com fundamento numa responsabilidade civil extracontratual subjectiva, num dever de indemnizar, problema que resolveu por aplicação da presunção, iuris tantum, de culpa contida no art.º 493.º, n.º 2, do Código Civil; a questão decidida pelo Acórdão de Uniformização consistiu em saber se a indemnização, derivada originariamente de uma responsabilidade objectiva, devida pelo empregador, em consequência do sinistro laboral, devia ser agravada, questão para resolução da qual aquele Acórdão não utilizou qualquer presunção de culpa, designadamente a que foi aplicada pelo acórdão recorrido (art.º 18.º, n.º 1, da LAT). Portanto, os dois acórdãos não contêm interpretações divergentes de um mesmo regime normativo: a existência de soluções práticas diferentes, quando estas tenham sido obtidas através da subsunção a regimes normativos materialmente diferenciados, não constitui contradição ou oposição de acórdãos
O requisito da identidade da questão decidida pelos dois acórdãos – o recorrido e o de uniformização – exige que essa questão seja idêntica ou homótropa, e não apenas análoga, o que, com se fez notar, pressupõe, para que se verifique o conflito jurisprudencial, uma verdadeira identidade substancial do núcleo fundamental da matéria litigiosa subjacente a cada uma das decisões supostamente opostas. Só pode recorrer-se com fundamento na contrariedade da decisão impugnada com jurisprudência uniformizada por oposição ou colisão entre soluções de direito, não entre questões de facto, o que é conforme com a função do Supremo como tribunal de revista (art.ºs 46.º da LOSJ e 682.º, n.º 1, do CPC). No caso, para que houvesse uma identidade substancial do núcleo essencial da matéria litigiosa subjacente aos dois acórdãos seria necessária que, num e noutro, os deveres de prevenção e de cuidado, a cargo do lesante, adequados a evitar a ocorrência de danos, pessoais ou materiais, fossem, em concreto, os mesmos, ou tivessem um conteúdo substancialmente igual o que – como concludentemente decorre do teor dos dois acórdãos – comprovadamente se não se verifica. Reitera-se, pois, a conclusão acima tirada: a revista não é admissível.
É certo que a revista assenta num outro fundamento, ainda que meramente procedimental e acessório: a nulidade substancial do acórdão impugnado, com fundamento, designadamente, numa abstenção injustificada de pronúncia. Todavia, o Supremo tem considerado, constantemente, que a arguição de nulidades do acórdão não é admitida como fundamento exclusivo do recurso de revista, ou seja, as eventuais nulidades só são arguíveis por via do recurso de revista, quando da decisão caiba recurso ordinário6. Não há, pois, lugar a recurso de revista, normal ou comum, para apreciação exclusiva da nulidade substancial assacada ao acórdão impugnada; aquele valor negativo só é arguível por via daquele recurso, enquanto fundamento acessório ou complementar, quando a decisão impugnada o admita o que, pelas razões indicados, não é o caso.
Importa, assim, concluir que, realmente, o acórdão impugnado é irrecorrível e, portanto, que o recurso de revista deve ser julgado findo por não haver que conhecer do seu objecto (art.º 652.º, n.º 1, c) e h) do CPC).
A recorrente, notificada deste despacho, atravessou, por via electrónica no dia 10 de Março de 2025, requerimento homótropo àquele que produziu quando, no exercício do seu direito de audição prévia, foi ouvida sobre a questão da inadmissibilidade do recurso.
A recorrida não respondeu.
O relator, depois de observar que aquele requerimento deve ser interpretado com o sentido de reclamação contra o despacho que julgou inadmissível a revista, determinou que o processso fosse levado à conferência para a julgar.
2. Delimitação do âmbito objectivo da reclamação e individualização da questão que importa solucionar.
A única questão concreta controversa colocada à atenção da conferência é a de saber se o despacho do relator que concluiu pela inadmissibilidade da revista deve ou não ser revogado e logo substituído por outra que admita o recurso rejeitado. A resolução deste problema vincula, naturalmente, ao exame da correcção daquele despacho.
3. Fundamentos.
3.1 Fundamentos de facto.
Os factos, puramente procedimentais, relativos ao conteúdo do acórdão recorrido, da alegação da recorrente e do despacho do relator, são os documentados, em síntese estreita, no relatório.
3.2. Fundamentos de direito.
Sempre que considere que a decisão singular do relator que julgou a reclamação é correcta, que as razões que aduziu para justificar a sua decisão são convincentes e sensatas e que não se justifica dizer mais nem melhor, nem o esforço, inglório e deprimente, de repisar e repetir aquilo que o relator escreveu, à conferência é lícito limitar-se, simplesmente, a manifestar a sua adesão ao que foi escrito pelo relator. Realmente, quando a considere exacta, não se vê vantagem alguma em forçar a conferência a repetir a motivação adiantada pelo relator para justificar a sua decisão, em vez de, simplesmente, dar a sua adesão ou exprimir a sua concordância.
As proposições em que o relator fez assentar a decisão de rejeição da revista são, em resumo apertado, as seguintes:
- Dado que o critério de aferição da dupla conformidade, de harmonia com jurisprudência praticamente uniforme deste Tribunal, não assenta na coincidência formal das duas decisões – antes radica na conformidade racional ou ponderada, i.e., na favorabilidade, para o recorrente, da última decisão das instâncias e que, no caso, a posição jurídica da reclamante foi melhorada pelo acórdão recorrido, a revista, por força da duae conformes sententiae, aferida segundo o critério racional, é inadmissível.
- Uma vez que o fundamento específico da recorribilidade assente na contradição de acórdãos se decompõe em três requisitos - que o acórdão recorrido esteja em contradição com algum acórdão de uniformização de jurisprudência anteriormente proferido, denominado acórdão fundamento; que os dois acórdãos tenham sido proferidos no domínio da mesma legislação; que os dois acórdãos tenham sido proferidos sobre a mesma questão fundamental de direito - e que a contradição ou oposição de julgados há-de determinar-se atendendo a dois elementos: a semelhança entre as situações de facto e a dissemelhança ou divergência entre os resultados da interpretação e/ou integração das normas legais relevantes em face das situações de facto consideradas, no caso não se verifica o conflito de jurisprudência entre o acórdão impugnado e o Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/2022, de 18 de Outubro, por três motivos:
- O problema da imputação objectiva ou do nexo causal entre a violação ou não cumprimento, pela recorrente, das regras de segurança presentes no caso concreto, não obteve, no acórdão recorrido, qualquer referência ou tratamento, tendo-se centrado, exclusivamente, na questão da culpa e no funcionamento da presunção dessa culpa, resultante do carácter perigoso da actividade no contexto da qual se verificou o dano compensável, que vulnera a recorrente, razão pela qual esta assaca ao acórdão recorrido o desvalor da nulidade com base na omissão de pronúncia, justamente por uma abstenção injustificada de apreciação – e de decisão – do fundamento do recurso de apelação relativo à inexistência de nexo causal entre a violação culposa dos deveres de segurança e os danos reparáveis;
- A questão de direito resolvida pelo acórdão recorrido consistiu em averiguar se a recorrente se encontrava constituída, com fundamento numa responsabilidade civil extracontratual subjectiva, num dever de indemnizar, problema que resolveu por aplicação da presunção, meramente relativa, de culpa contida no art.º 493.º, n.º 2, do Código Civil, ao passo que a questão decidida pelo Acórdão de Uniformização consistiu em saber se a indemnização, derivada originariamente de uma responsabilidade objectiva, devida pelo empregador, em consequência do sinistro laboral, devia ser agravada, questão para resolução da qual aquele Acórdão não utilizou qualquer presunção de culpa, designadamente a que foi aplicada pelo acórdão recorrido;
- Não se verifica uma identidade substancial do núcleo fundamental da matéria litigiosa subjacente às duas decisões relativamente às quais se alega a colisão, visto que numa e noutra, os deveres de prevenção e de cuidado, a cargo do lesante, adequados a evitar a ocorrência de danos, pessoais ou materiais, não são, em concreto, os mesmos nem têm um conteúdo substancialmente igual.
Estes fundamentos da decisão do relator – aos quais a reclamante não opõe uma argumentação concludente e convincente – consideram-se correctos. Ergo, a decisão do relator de, por esses fundamentos, julgar a revista inadmissível é também correcta. E face a essa correcção, a improcedência da reclamação é meramente consequencial.
Da argumentação exposta extraem-se, como proposições conclusivas mais salientes as seguintes:
- 0 critério de aferição da dupla conformidade de decisões, obstativa da admissibilidade da revista normal ou comum, não assenta na coincidência formal das duas decisões, antes radica na conformidade racional ou ponderada, i.e., na favorabilidade, para o recorrente, da última decisão das instâncias;
- O fundamento específico da recorribilidade assente na contradição de acórdãos decompõe-se em três requisitos: que o acórdão recorrido esteja em contradição com algum acórdão de uniformização de jurisprudência anteriormente proferido, denominado acórdão fundamento; que os dois acórdãos tenham sido proferidos no domínio da mesma legislação; que os dois acórdãos tenham sido proferidos sobre a mesma questão fundamental de direito:
- A contradição ou oposição de julgados há-de determinar-se atendendo a dois elementos: a semelhança entre as situações de facto e a dissemelhança ou divergência entre os resultados da interpretação e/ou integração das normas legais relevantes em face das situações de facto consideradas.
A reclamante sucumbe na reclamação. Essa sucumbência torna-a objectivamente responsável pela satisfação das respectivas custas (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC). Considerando a simplicidade do objecto da reclamação, julga-se adequado e proporcional fixar a taxa de justiça devida pela reclamação em 1 UC (art.º 7.º, n.º 1, 2.ª parte, do RC Processuais, e Tabela II Anexa).
4. Decisão.
Pelos fundamentos expostos, julga-se improcedente a reclamação deduzida pela recorrente, Metaloadães – Montagem de Estruturas Metálicas, Lda., contra o despacho do relator que declarou inadmissível o seu recurso de revista e o declarou findo por não haver que conhecer do seu objecto.
Custas pela reclamante, com 1 UC de taxa de justiça.
2025.04.08
Henrique Antunes (Relator)
António Domingos Pires Robalo
António Magalhães
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1. Rui Pinto, Repensando os requisitos da dupla conforme (art.º 671.º, n.º 3, do CPC), Julgar, Online, Novembro de 2019, pág. 4.↩︎
2. Miguel Teixeira de Sousa, “Dupla conforme, critério e âmbito da conformidade”, CDP, 21 (2008), págs. 21 e ss., Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 7.ª edição, Coimbra, 2022, pág. 437, João de Castro Mendes/Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. II, AAFDL, 2022, pág. 196; diferentemente, José Lebre de Freitas/Armindo Ribeiro Mendes/Isabel Alexandre, CPC Anotado, Vol. 3º Almedina, pág. 209, e Rui Pinto, “Repensado os requisitos da dupla conforme” (artigo 671.º, n.º 3, do CPC), cit., pág. 17.↩︎
3. V.g., Acs. do STJ de 09.12.2021 (939/18), 05.05.2020 (1514/16), 12.03.2019 (43168/15), 22.02.2017 (811/10) e 10.05.2012 (645/08).↩︎
4. Cfr., v.g., Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, 5ª ed. Almedina, Coimbra, 1986, pág. 743 e ss., Pereira Coelho, o Nexo de Causalidade na Responsabilidade Civil, BGD, Suplemento nº IX, Coimbra, 1976, pág. 201 e ss. e Miguel Teixeira de Sousa, Da Responsabilidade Civil por Factos Lícitos, Lisboa, 1977, pág. 124 e ss. Menezes Cordeiro - Direito das Obrigações, AAFDL, 1980, págs.. 338 e 338 – sugeria a integração da causalidade na própria conduta e, consequentemente a sua sujeição ao juízo de ilicitude: nesta perspectiva, a averiguação da causalidade adequada limitar-se-ia à indagação da licitude de certo comportamento face a um concreto dano e à identificação da adequação com a verificação do fim visado pelo agente.↩︎
5. Maria de Lurdes Pereira, Direito da Responsabilidade Civil, AAFDL, 2022, págs. 280 a 321.↩︎
6. Acs. do STJ de 04.04.2024 (5223/19), 20.12.2017 (22388/13), 10.05.2021 (1641/19), 18.01.2022 (6798/16), 11.10.2022 (10555/19), 02.02.2023 (2485/19) e 06.07.2023 (929/21); António Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, cit., pág. 437.↩︎