ARGUIÇÃO DE NULIDADES
NULIDADE DE ACÓRDÃO
OMISSÃO DE PRONÚNCIA
REFORMA DE ACÓRDÃO
ERRO DE JULGAMENTO
LAPSO MANIFESTO
TRÂNSITO EM JULGADO
RECLAMAÇÃO
TEMPESTIVIDADE
MATÉRIA DE FACTO
PODERES DO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA
Sumário


I - Dado que o valor jurídico negativo da nulidade do acórdão por omissão de pronúncia resulta da abstenção, injustificada, de conhecimento de questões suscitadas pelas partes ou de pedidos por elas formulados, não se encontra ferido com aquele desvalor, o acórdão que resolveu a única questão que, por força da sua vinculação temática à impugnação do recorrente, tinha que decidir.
II - O pedido de reforma do acórdão visa assegurar a conformidade da decisão ferida com um error in iudicando manifesto com a verdade jurídica e não obter, por via oblíqua, a modificação da decisão, ou dar corpo ao propósito de protelar o trânsito em julgado dessa mesma decisão ou de manifestar a irresignação inconsequente da parte com o seu sentido.

Texto Integral


Proc. 3292/20.5T8LRA.C1.S1

Acordam, em conferência, no Supremo Tribunal de Justiça:

1. Relatório.

Os demandados AA e cônjuge, BB, notificados, eletronicamente no dia 12 de Março de 2025, do acórdão, proferido no dia 11 de Fevereiro de 2025, que não admitiu o seu recurso de revista e julgou procedente o recurso de revista interposto pelos autores, CC, e cônjuge, e DD, arguiram - através de requerimento apresentado por via electrónica no dia 4 de Março de 2023, com o qual juntaram o comprovativo do pagamento, na mesma data, da multa de € 10,20 - a sua nulidade, por ausência de pronúncia e pediram, cumulativamente, a sua reforma, por erro manifesto de julgamento.

Fundamentaram a reclamação no facto de o tribunal recorrido ter simplesmente desvalorizado a questão de extrema importância e que foi sempre alegada e posta em causa pelos RR., no sentido de que todos estes trabalhos – os dispendiosos que terão sido custeados pelos AA ao transformar o desvão sanitário, como se disse, numa área habitável, matéria que ficou sem qualquer explicação por parte do douto Tribunal recorrido, melhor dizendo, o mesmo não se pronunciou, como se lhe impunha sobre tais questões, o que acarreta a nulidade da sentença, sendo verdade que os Colendos Juízes Conselheiros do Supremo Tribunal de Justiça deixaram de se pronunciar sobre tais questões, o que deveria, como se lhe impunha conhecer, e de constar dos autos o e-mail que o Autor enviou no dia 26 de Outubro de 2019, através do qual propôs, para a aquisição da moradia o custo que mesmo sabia ter de gastar para reparar os defeitos/patologias vícios de construção e anomalias que ele e o arquitecto alegadamente detectaram na moradia, que constitui prova plena que, por si só, implica uma decisão diversa da proferida.

Os autores - depois de observarem que o requerimento de reforma é extemporâneo, por o prazo de 10 dias para a sua apresentação, ainda que se considerem os três dias úteis para a prática do acto, já se mostrar terminado a 4 de Março de 2025 – concluíram pela improcedência da reclamação.

2. Individualização do objecto da reclamação e das questões concretas controversas que importa solucionar.

As questões concretas controversas colocadas à atenção da conferência são as de saber se o acórdão que, designadamente, julgou o recurso de revista dos autores se encontra ferido, por uma omissão de pronúncia, com o desvalor da nulidade e, do mesmo passo, com um manifesto ou patente erro de julgamento, por desconsiderar um facto que deve considerar-se plenamente provado.

A resolução destes problemas vincula, por um lado, ao exame da causa de nulidade do acórdão assente numa abstenção injustificada de pronúncia e, por outro, à análise dos pressupostos do conserto ou reforma do acórdão reclamado com fundamento no erro manifesto de julgamento.

Previamente, porém, importa resolver a questão de saber se o direito dos reclamantes de reclamar contra o acórdão, com fundamento na sua nulidade substancial ou no erro manifesto de julgamento, por não ter sido exercido no prazo peremptório de 10 dias assinado na lei se deve considerar extinto por caducidade.

3. Fundamentos.

3.1. Fundamentos de facto.

Para além dos factos, puramente procedimentais, documentados no relatório, para o conhecimento do objecto da reclamação relevam ainda, os factos, da mesma índole, seguintes:

3.1.1. O acórdão reclamado, depois de julgar inadmissível o recurso dos reclamantes, ao delimitar, como âmbito objectivo da revista dos autores, a que os reclamantes não responderam, indicou como única questão concreta controversa que importava resolver a de saber qual era o quantum da prestação de indemnização a que os réus devem ser adstritos em consequência do não cumprimento da sua obrigação de reparação dos defeitos da coisa imóvel vendida a que estavam vinculados, problema cuja resolução exigia, desde logo, o exame da correcção do critério de decisão utilizado pelo acórdão impugnado: a equidade.

3.1.2. O acórdão impugnado observou, nos fundamentos, por um lado, que para se decidir pela utilização do critério não normativo da equidade para a fixação da indemnização de que os autores são credores, a Relação assentou em que parte dos defeitos reparados pelos autores foram considerados pelos compradores e pelos vendedores na redução do preço de € 395 000,00 – preço publicitado ao público – para € 355 000,00 – preço final convencionado e pago e, por outro, que saber se a despesa com a reparação de um defeito da coisa vendida foi considerado pelo comprador e pelo vendedor na fixação do preço final ou definitivo da coisa vendida constitui um puro problema de facto.

3.1.3. O mesmo acórdão salientou, de seguida, que em nenhum lado da matéria de facto apurada pelas instâncias consta, porém, que a redução do preço publicitado tenha tido por causa, próxima ou sequer remota, principal ou meramente concorrente, as patologias do prédio alegadas na comunicação dos autores de 26 de Outubro de 2019, que na fixação do preço compradores e vendedores tenham entrado em linha de conta com a despesa necessária para reparar aquelas patologias e, muito menos, que a redução, deveras elevada, do preço tenha sido determinado pelo valor daquela despesa ou sequer que o valor da redução corresponda ao valor dessa mesma despesa.

3.1.4. O acórdão arguido de nulo, sublinhou que segundo os factos materiais adquiridos para o processo pelas instâncias, os defeitos do prédio, cuja reparação fez incorrer os autores na despesa de € 67 568, 09 foram os que constataram depois da entrega do prédio – ocorrida no dia 9 de Março de 2020. É que o concludentemente decorre, desde logo do ponto de facto julgado provado com o algarismo 7: no período compreendido entre a entrega do imóvel aos autores (09-3-2020) e o momento em que foi efetuada a visita técnica que deu origem ao Relatório Técnico abaixo referido (07-4-2020), os autores começaram a constatar um forte cheiro a humidade, que, mesmo abrindo as janelas, não desaparecia.

3.1.5. O acórdão contestado fez notar que os réus AA e cônjuge, BB, alegaram, nos art.ºs 147.º a 148.º do seu articulado de contestação, que decidiram aceitar a redução do preço anunciado – pedido pelos autores no e-mail de 26 de Outubro de 2019 – principalmente porque segundo o Sr. EE da imobiliária dificilmente iriam conseguir vender a moradia pelo preço de € 395 000,00, por esta não ter piscina e que, assim, confiando na experiência deste angariador, conjugado com o facto de terem o imóvel à venda desde 2017, sem propostas concretas, acabaram por aceitar o valor de € 355 000,00, e que em lado nenhum, portanto, os réus invocaram, como factor de redução do preço as patologias invocadas pelos autores naquela comunicação de que, segundo alegação daquela parte, contida no art.º 153.º do articulado em que deduziram a defesa, só tiveram conhecimento em 24 de Novembro de 2020, portanto, depois mesmo da conclusão do contrato de compra e venda.

3.2. Fundamentos de direito.

3.2.1. Tempestividade da reclamação.

Tanto a reclamação como o recurso estão sujeitas a prazos peremptórios cujo decurso importa a extinção, por caducidade, do direito a impugnação (artº 139.º, n.ºs 1 a 3, do CPC). A razão da sujeição da impugnação a prazos peremptórios explica-se por si: evitar o estado permanente de incerteza sobre a eficácia da decisão proferida. A impugnação caduca quando se extingue ope legis, sem necessidade de qualquer manifestação de vontade tendente a esse resultado, em consequência de certo evento a que a lei atribui efeito extintivo – o decurso do prazo peremptório a que está sujeita. Verificado esse evento, e a partir do momento em que se verifique, o direito à impugnação cai por si. A omissão da impugnação não tem, por definição, um carácter negocial.

Mal vale a perder uma palavra para explicar que além de peremptório o prazo de impugnação é contínuo, está sujeito a tolerância, mediante o pagamento de multa ou por verificação do justo impedimento, e é prorrogável, ainda que uma só vez e por igual período, por acordo das partes (art.ºs 138.º n.º 1, 140.º e 141,º, n.ºs 1 e 2, do CPC). Note-se, porém, que, na ausência de impugnação, o trânsito em julgado da decisão se verifica no terminus ad quem do prazo normal da sua dedução.

A reclamação contra o acórdão, com fundamento na sua nulidade substancial e no erro manifesto de julgamento deve ser deduzida no prazo de 10 dias, contado da notificação daquele acto decisório (art.ºs 149.º, n.º 1, 615.º, n.º 4 e 616.º, n.º 1, ex-vi art.º 666.º, n.º 1, do CPC).

Na espécie sujeita, os reclamantes foram notificados, por via electrónica, do acórdão reclamado no dia 12 de Fevereiro de 2025 presumindo-se, por isso, notificados no terceiro dia útil subsequente, portanto, no dia 17 do mesmo mês, pelo que o prazo de 10 dias aplicável, atingiu o seu terminus ad quem no dia 27 de igual mês (art.º 248.º, n.º 1, e 138.º n.º 1, do CPC). O acto está porém, sujeito a tolerância, podendo ser praticado, mediante o pagamento de multa, dentro dos três primeiros dias subsequente aquele terminus, portanto, mesmo até ao 5 do mês de Março, dado que no dia último do prazo de tolerância – 4 de Março, data em que foi apresentada a reclamação e paga a multa devida – os tribunais se consideram encerrados, visto que aquele dia foi dia de Carnaval e foi concedida tolerância de ponto (art.ºs 137.º n.º 1, 138.º, n.ºs 2 e 3, e 139.º. n.º 5, c), do CPC)1.

O direito dos reclamantes a impugnarem, por via de reclamação, o acórdão que julgou o recurso de revista, não se mostra, portanto, extinto por caducidade.

3.2.2. Invalidade do acórdão reclamado.

O valor jurídico negativo da nulidade do acórdão por omissão de pronúncia resulta da abstenção, injustificada, de conhecimento de questões suscitadas pelas partes ou de pedidos por elas formulados. O tribunal deve, realmente, resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução encontrada para outras (art.ºs 130.º e 608.º, n.º 2, do CPC). O tribunal deve, pois, examinar toda a matéria de facto e analisar todos os pedidos formulados por elas, com excepção apenas das matérias ou dos pedidos que forem juridicamente irrelevantes ou cuja apreciação se tornar inútil pelo enquadramento jurídico escolhido ou pela resposta fornecida a outras questões. A nulidade que a reclamante assaca ao acórdão impugnado resulta da infracção deste dever (art.º 615.º c), 1.ª parte, ex-vi art.º 666.º, n.º 1, do CPC).

Mas a propósito desta causa de nulidade da decisão há que ter presente o seguinte: não existe omissão de pronúncia, mas um error in iudicando, se o tribunal não aprecia uma qualquer questão com o argumento, por exemplo, de que ela não foi invocada ou de que não tem o dever de sobre ela se pronunciar: aquela omissão pressupõe uma abstenção não fundamentada de julgamento – e não uma fundamentação errada para não conhecer de certa questão. Efectivamente, uma coisa é o tribunal deixar de se pronunciar sobre uma questão, outra invocar razão, boa ou má, procedente ou improcedente, para justificar a sua abstenção.

Além disso – como este Supremo Tribunal tem reiterado, firme e consistentemente – há que fazer um distinguo entre questão que deve ser decidida e considerações, argumentos ou razões produzidas pelas partes para sustentar o seu ponto de vista: desde que decida a questão posta, o tribunal não tem de se ocupar nem está vinculado a apreciar os fundamentos ou razões em que as partes se apoiam para sustentar a sua pretensão2. Como é comum, quando as partes põem ao tribunal uma dada questão, socorrem-se, a cada passo, de várias razões ou fundamentos para valer o seu ponto de vista; o que importa é que o tribunal decida a questão posta; não lhe incumbe apreciar todos essas razões, argumentos ou fundamentos. Maneira que, para se concluir pela invalidade do acto decisório do tribunal importa verificar qual era o âmbito ou o perímetro do dever de decidir; a nulidade substancial de qualquer acto decisório por uma omissão de pronúncia só se verifica se o tribunal, de modo injustificado, se abstiver de resolver uma questão que se compreenda ou inscreva no âmbito daquele dever.

Em face deste enunciado, julga-se claro que o acórdão que julgou o recurso de revista dos autores não se encontra ferido, pela causa indicada pelos reclamantes,, com o desvalor da nulidade.

Em primeiro lugar, o objecto da revista julgada pelo acórdão impugnado era constituída somente pela questão suscitada na revista dos autores, dado que o revista dos reclamantes foi julgada inadmissível e os últimos nem sequer responderam ao recurso dos primeiros. Em segundo lugar, essa questão, por virtude da vinculação temática deste Tribunal à alegação do recorrente, era apenas a de saber se qual era o quantum da prestação de indemnização a que os réus, ora reclamantes, deviam ser adstritos em consequência do não cumprimento da sua obrigação de reparação dos defeitos da coisa imóvel vendida a que foram vinculados pelas instâncias, problema cuja resolução exigia, desde logo, o exame da correcção do critério de decisão utilizado pelo acórdão impugnado para determinar a quantidade daquela prestação: a equidade. E, patentemente, o acórdão resolveu uma tal questão, não interessando, para o problema do valor negativo da nulidade por omissão injustificada de pronúncia, se bem se mal. O acórdão, por força da sua vinculação temática à alegação dos autores não estava adstrito ao dever de resolver qualquer outra questão e, muito menos, as questões, v.g. do enriquecimento se causa, do abuso do direito e da inflação da factura dos trabalhos de reparação, que, a propósito ou a pretexto da arguição de nulidade, são agora, na reclamação, suscitadas pelos reclamantes. Aceitar-se como boa a arguição dos reclamantes implicaria, no fundo, conhecer das questões que os reclamantes suscitaram no seu recurso de revista que – recorde-se – foi julgado inadmissível.

Não há, assim, motivo para, por uma qualquer omissão de pronúncia, ter o acórdão reclamado por nulo.

3.2.3. Erro manifesto de julgamento.

Ainda segundo os reclamantes, o acórdão contestado encontra-se ferido com um manifesto error in iudicando, erro que derivaria da circunstância de constar dos autos o email que o Autor marido enviou no dia 26 de Outubro de 2019, através do qual propôs, para a aquisição da moradia, o custo que o mesmo sabia ter de gastar para reparar os defeitos/patologias de construção e anomalias que ele e o Arquitecto FF alegadamente detectaram, e-mail que é prova inequívoca e fundamental, que constitui prova plena - supõe-se - do facto de a despesa com a reparação dos defeito da coisa vendida ter sido considerado pelo comprador e pelo vendedor na fixação do preço final ou definitivo da coisa vendida, como concluiu o acórdão da Relação e que fundamentou a sua decisão de utilizar, como critério de decisão, a equidade.

Motivada pelo propósito de realização efectiva e adequada do direito material e fundada no entendimento de que é mais útil à paz social e ao prestígio e dignidade da administração da justiça corrigir que perpetuar um erro juridicamente insustentável, a lei adjectiva - flexibilizando, embora em termos necessariamente circunscritos, o princípio do esgotamento do poder jurisdicional com o proferimento do despacho, da sentença ou do acórdão - permite actualmente o suprimento de erro de julgamento pelo seu próprio autor (art.º 616.º, n.º 2, ex-vi art.º 666.º, n.º 1, do CPC ).

Portanto, em princípio o error in iudicando só pode ser apreciado no recurso interposto da decisão. Mas a lei permite – talvez com pouca justificação - que qualquer das partes requeira, em certas condições, a reforma do despacho, da sentença ou do acórdão, com base em erro de direito ou de facto. Isso sucede quando, por lapso manifesto do juiz na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos a decisão tenha sido proferida em violação de lei expressa (art.º 616.º, n.º 2, a) do CPC) e quanto constem do processo documentos ou quaisquer elementos que, por si só, impliquem necessariamente decisão diversa da proferida e que o juiz ou juízes, igualmente por lapso manifesto, não hajam tomado em consideração (art.º 619, n.º 2 b), do CPC). A primeira situação constitui um erro de direito; a última assenta num erro sobre os factos.

Sempre que a decisão – sentença, despacho ou acórdão – se encontre ferida com um erro de conteúdo e esse erro seja judicial, i.e., ocorra uma divergência entre o que se afirma na decisão e, designadamente, a verdade jurídica e, portanto, ocorra um erro na determinação da norma aplicável ou na qualificação jurídica dos factos – que se verifica quando o juiz qualifica correctamente o caso, mas escolhe mal a norma aplicável ou qualifica incorrectamente o caso e, por isso, escolhe necessariamente mal a norma aplicável - à parte é lícito – em requerimento autónomo, se a decisão, como é o caso, não admitir recurso ordinário – requerer a sua reforma. No entanto, como a jurisprudência e a doutrina fazem notar, una voce, não é, porém, suficiente um qualquer erro, devendo, antes, tratar-se de um erro manifesto, ostensivo, patente ou palmar (art.º 616.º, n.º 2, ex-vi art.º 666.º, n.º 1, do CPC)3. O pedido de reforma visa assegurar a conformidade da decisão ferida com um error in iudicando manifesto com a verdade jurídica e, não evidentemente, obter, por via oblíqua, a modificação da decisão, ou dar corpo ao propósito de protelar o trânsito em julgado dessa mesma decisão ou de manifestar a irresignação inconsequente da parte com o seu sentido.

Estamos certos de que, na espécie sujeita, o acórdão reclamado não padece do error in iudicando invocado pela reclamante nem, em qualquer caso, esse erro se revestiria da característica exigível para justificar a reforma daquele acto decisório.

Em primeiro cumpre reiterar, pela sua exactidão, a afirmação, contida no acórdão reclamado, seguinte: em nenhum lado da matéria de facto apurada pelas instâncias consta, porém, que a redução do preço publicitado tenha tido por causa, próxima ou sequer remota, principal ou meramente concorrente, as patologias do prédio alegadas na comunicação dos autores de 26 de Outubro de 2019, que na fixação do preço compradores e vendedores tenham entrado em linha de conta com a despesa necessária para reparar aquelas patologias e, muito menos, que a redução, deveras elevada, do preço tenha sido determinado pelo valor daquela despesa ou sequer que o valor da redução corresponda ao valor dessa mesma despesa. Uma leitura, ainda que meramente obliqua, dos fundamentos de facto do acórdão recorrido, constitui a este propósito, res ipsa loquitur.

O Supremo Tribunal de Justiça é um tribunal de revista e, portanto, não controla a decisão da questão de facto e não revoga por erro de facto, controlando apenas a decisão de direito e só revogando por erro de direito, limitação que é justificada pela função de harmonização jurisprudencial sobre a interpretação e aplicação da lei que é característica e própria dos tribunais supremos (art.ºs 46.º da LOSJ, aprovada pela Lei n.º 62/2013, de 26 de Agosto, e 682.º, n.º 1, do CPC). Por isso que o erro na apreciação das provas e na fixação dos factos materiais da causa não constitui objecto idóneo do recurso de revista, salvo os casos de ofensa de uma disposição expressa de lei que exija certa espécie de prova para a existência do facto ou que fixe a força de determinado meio de prova, i.e., exceptuados os casos de prova necessária, i.e., em que a lei exige certo meio de prova para se poder demonstrar o facto probando, ou de prova legal ou tarifada, quer dizer, em que a lei impõe ao juiz a conclusão que há-de tirar do meio de prova (art.º 674.º, n.º 3, do CPC).

O Supremo Tribunal de Justiça está, pois, vinculado aos factos fixados pelas instâncias e, como consequência dessa vinculação, está adstrito a uma obrigação negativa: a de não poder alterar, salvo em casos excepcionais, essa matéria (art.º 682.º, n.º 2, do CPC). Estas vinculações implicam que não pode controlar a apreciação da prova, porque uma vinculação à matéria de facto averiguada nas instâncias e a proibição de alterar, implicam, necessariamente, a impossibilidade – e mesmo a desnecessidade – de controlar a sua apreciação. Em especial, o Supremo não pode controlar a prudência ou a imprudência da convicção das instâncias sobre a prova produzida, sempre que se trate de provas submetidas ao princípio da liberdade de apreciação, i.e., que assenta na prudente convicção que o tribunal tenha adquirido das provas produzidas (art.º 607.º, n.º 5, 1.ª parte, do CPC). Trata-se de jurisprudência absolutamente firme ou acorde4.

Não obstante a vinculação do Supremo à matéria de facto averiguada pelas instâncias, essa adstrição está bem longe de significar que esse Tribunal não possa utilizar factos que não foram considerados pela Relação. Esta ressalva não é contraditória com aquela vinculação: se o Supremo não pode deixar de considerar os factos apurados pela Relação, isso não implica, como corolário que não possa ser recusado, que só possa usar esses factos ou que esteja impedido de utilizar outros5. Desde logo é indiscutível que o Supremo se pode servir, além dos factos notórios e de conhecimento funcional, de facto que, apesar de não ter sido utilizado pela Relação deva considerar-se adquirido desde a 1.ª instância (art.º 412.º, n.ºs 1 e 2, do CPC). Assim, o Supremo pode utilizar como fundamentos todos os factos que foram adquiridos durante a tramitação da causa. Estão nessas condições, os factos admitidos por acordo, ou seja, os factos alegados por uma parte e não impugnados pela contraparte, os factos plenamente provados por documentos juntos ao processo por iniciativa das partes ou do tribunal - e os factos provados por confissão, reduzida a escrito, seja ela uma confissão judicial ou extrajudicial (art.ºs 463.º n.º 1, 465.º n.ºs 1 e 2, 574.º, n.º 2, 356.º e 358.º, 362.º e 363.º. n.ºs 1 e 2, do Código Civil).

Simplesmente, a comunicação contida no e-mail enviado pelo autor – aliás, para pessoa diversa dos reclamantes – não é adequada para provar, e muito menos para provar plenamente, que a redução do preço publicitado teve por causa próxima ou remota as despesas com a reparação das patologias da coisa imóvel vendida. Por várias razões, de resto.

Desde logo – como o acórdão impugnado pôs em relevo – porque um tal facto nem sequer foi alegado pelos reclamantes: a este propósito o que os impugnantes alegaram nos art.ºs 147.º a 148.º do seu articulado de contestação, foi que decidiram aceitar a redução do preço anunciado – pedido pelos autores no e-mail de 26 de Outubro de 2019 – principalmente porque segundo o Sr. EE da imobiliária dificilmente iriam conseguir vender a moradia pelo preço de € 395 000,00, por esta não ter piscina e que, assim, confiando na experiência deste angariador, conjugado com o facto de terem o imóvel à venda desde 2017, sem propostas concretas, acabaram por aceitar o valor de € 355 000,00. Depois, a demonstração mais concludente da falta de prova que as despesas para corrigir ou eliminar as patologias referidas naquela comunicação serviu de fundamento para a redução do preço anunciado para a venda é feita pelos próprios reclamantes: é que, segundo a sua alegação, contida, no art.º 153.º no seu articulado de contestação, só tiveram conhecimento do apontado e-mail em 24 de Novembro de 2020, portanto, depois mesmo da conclusão do contrato de compra e venda. Do que decorre que aquele e-mail não faz qualquer prova, nem muito menos, uma prova plena, do facto em discussão.

Em qualquer caso, cumpre notar que, segundo a matéria de facto apurada pelas instâncias – que, pelas razões já indicadas, é intangível para este Tribunal Supremo - os defeitos do prédio, cuja reparação fez incorrer os autores na despesa de € 67 568, 09 foram os que constataram depois da entrega do prédio – ocorrida no dia 9 de Março de 2020. É que o concludentemente decorre, desde logo do ponto de facto julgado provado com o algarismo 7: no período compreendido entre a entrega do imóvel aos autores (09-3-2020) e o momento em que foi efetuada a visita técnica que deu origem ao Relatório Técnico abaixo referido (07-4-2020), os autores começaram a constatar um forte cheiro a humidade, que, mesmo abrindo as janelas, não desaparecia.

Todas as contas feitas, a conclusão a tirar é de que o acórdão reclamado não se encontra ferido com o desvalor da nulidade nem com o erro manifesto de julgamento que os reclamantes lhe assacam. Cumpre, por isso, desamparar a reclamação.

Expostos todos os argumentos, afirma-se, em síntese estreita:

- Dado que valor jurídico negativo da nulidade do acórdão por omissão de pronúncia resulta da abstenção, injustificada, de conhecimento de questões suscitadas pelas partes ou de pedidos por elas formulados, não se encontra ferido com aquele desvalor, o acórdão que resolveu a única questão que, por força da sua vinculação temática à impugnação do recorrente, tinha que decidir;

- O pedido de reforma do acórdão visa assegurar a conformidade da decisão ferida com um error in iudicando manifesto com a verdade jurídica e não obter, por via oblíqua, a modificação da decisão, ou dar corpo ao propósito de protelar o trânsito em julgado dessa mesma decisão ou de manifestar a irresignação inconsequente da parte com o seu sentido.

Os reclamantes sucumbem na reclamação. Essa sucumbência torna-os objectivamente responsáveis pela satisfação das respectivas custas (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC). Considerando, de um aspecto, a complexidade e a multiplicidade dos objectos da reclamação e, de outro, a patente falta de razão dos reclamantes, julga-se adequado e proporcional fixar a taxa de justiça devida pela reclamação em 2 UC (art.º 7.º, n.º 1, 2.ª parte, do RC Processuais, e Tabela II Anexa).

4. Decisão.

Pelos fundamentos expostos, julga-se improcedente a reclamação deduzida pelos demandados, AA e cônjuge, BB, contra o último acórdão que julgou o recurso de revista.

Custas pelos reclamantes, com 2 UC de taxa de justiça.

2025.04.08

Henrique Antunes (Relator)

António Magalhães

Anabela Luna de Carvalho

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1. Despacho n.º 2678-A/2025, de 25 de Fevereiro, do Primeiro-Ministro, DR n.º 40/2025, Série II de 2025-02-26.↩︎
2. Por último – e por todos – o Ac. do STJ de 08.02.2024 (995/20).↩︎
3. Assim, v.g., os Acs. do STJ de 04.05.2010 (361/04) e de 12.02.2009 (08A2680) e José Lebre de Freitas/Isabel Alexandre, CPC Anotado, Vol. 2.º, 3.ª edição, Almedina, pág. 742.↩︎
4. V.g., Acs. do STJ de 14.07.2023 (19645/18), 03.11.2021 (4096/18), 14.12.2016 (2604/13), 12.07.2018 (701/14) e 12.02.2019 (882/14).↩︎
5. Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 1997, pág. 427.↩︎