I - Se dos actos da parte activa, maxime da petição inicial, adequadamente interpretados, se conclui que a acção foi proposta contra a parte que comprovadamente dispõe de personalidade judiciária, que foi citada e que a contestou, é incorrecta a decisão de julgar verificada a excepção dilatória da falta de personalidade judiciária, com fundamento no facto de a acção ter sido proposta contra uma parte destituída dessa personalidade.
II - A acção popular, ainda que com finalidade ressarcitória, está excluída do princípio da interdependência ou da adesão da acção civil ao processo penal.
1. Relatório.
Citizens Voice – Consumer Advocacy Association, propôs, ao abrigo dos artigos 2 (1), 3 e 12 da lei 83/95 e artigo 3 e 9 da lei 23/2018, no Juízo Central Cível da de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, contra Pingo Doce, Distribuição Alimentar, SA, acção declarativa, popular, de condenação, com processo comum, na qual formulou a multiplicidade de pedidos seguinte:
ser declarado que a ré:
A. teve o comportamento descrito no §3 supra;
B. violou qualquer uma das seguintes normas:
1. artigo 35 (1, c), do decreto lei 28/84;
2. artigos 6, 10, 11 (1), 12, do decreto lei 330/90;
3. artigo 311 (1, a, e), do decreto lei 110/2018;
4. artigos 4, 5 (1), 6 (b), 7 (1, b, d), 9 (1, a), do decreto lei 57/2008;
5. artigos 3 (a) (d) (e) (f), 4, 7 (4) e 8 (1, a, c, d) (2), da lei 24/96;
6. do artigo 11, da lei 19/2012;
7. artigos 6, 7 (1) (2) e 8, da diretiva 2005/29/CE;
8. artigo 3, da diretiva 2006/114/CE;
9. artigos 2 (a) (b), 4 (1), da diretiva 98/6/CE;
10. artigo 102, do TFUE;
C. especulou nos preços das embalagens de Queijo ricotta, marca Galbani, 250 g, queijo burrata de búfala, marca Pingo Doce, 125 g, comida de cão seleção mista de frango, marca Pedigree, 4 x 100 g e ravioli de atum e tomate, marca Giovanni Rana, 250 g na sua sucursal, localizada em Avenida ..., distrito de...;
D. publicitou enganosamente o preço das embalagens de queijo ricotta, marca Galbani, 250 g, queijo burrata de búfala, marca Pingo Doce, 125 g, comida de cão seleção mista de frango, marca Pedigree, 4 x 100 g e ravioli de atum e tomate, marca Giovanni Rana, 250 g, na sua sucursal localizada em Avenida ..., distrito de ...;
E. teve o comportamento supra descrito em qualquer um dos pedidos anteriores e que o mesmo é ilícito e
1. doloso; ou, pelo menos,
2. grosseiramente negligente;
F. agiu com culpa e consciência da ilicitude no que respeita aos factos supra referidos, com os autores populares;
G. com a totalidade ou parte desses comportamentos lesou gravemente os interesses dos autores populares, nomeadamente os seus interesses económicos e sociais, designadamente os seus direitos enquanto consumidores;
H. causou e causa danos aos interesses difusos de proteção do consumo de bens e serviços, sendo a ré condenada a reconhecê-lo. e em consequência, de qualquer um dos pedidos supra, deve a ré ser condenada a:
I. a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que lhes foram causados por estas práticas ilícitas, no que respeita ao sobrepreço, seja a titulo doloso ou negligente, em montante global:
1. a determinar nos termos do artigo 609 (2), do CPC;
2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço;
3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;
J. subsidiariamente ao ponto anterior, ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos que resultou do sobrepreço causado pelas práticas ilícitas, em montante global:
1. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4) do CC, determinado em 0,24 euros, 0,19 euros, 0,75 euros e 0,9 euros por cada embalagem de queijo ricotta, marca Galbani, 250 g, queijo burrata de búfala, marca Pingo Doce, 125 g, comida de cão seleção mista de frango, marca Pedigree, 4 x 100 g e ravioli de atum e tomate, marca Giovanni Rana, 250 g, respetivamente vendida na sua sucursal, com estabelecimento localizado em Avenida ..., distrito de ..., durante, pelo menos, entre , pelo menos, 06.06.2023, às 08h00, e 13.06.2023, às 19h47;
2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelo sobrepreço;
3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;
K. ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares pelos danos morais causado pelas práticas ilícitas, em montante global:
1. a fixar por equidade, nos termos do artigo 496 (1) e (4), do CC, mas nunca inferior a 1 euro por autor popular;
2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelos danos morais;
3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;
L. ser a ré condenada a indemnizar integralmente os autores populares, in casu, todos os consumidores em geral, medidos por agregados familiares privativos, pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência, e montante global:
1. nos termos do artigo 9 (2), da lei 23/2018, ou por outra medida, justa e equitativa, que o tribunal considere adequada, mas nunca menos que 1 euro por autor popular, in casu, agregados familiares privativos;
2. acrescido de juros vencidos e que se vencerem, à taxa legal em vigor a cada momento, contados desde a data em que as práticas consideradas ilícitas foram praticadas até ao seu integral pagamento, tendo como base para o cálculo dos juros os valores que a ré for condenada a indemnizar os autores populares pelos danos de distorção da equidade das condições de concorrência;
3. e com método para determinação e distribuição de indemnizações individuais determinado pelo tribunal;
M. ser a ré condenada a pagar todos os encargos que a autora interveniente tiver ou venha ainda a ter com o processo e com eventual incidente de liquidação de sentença, nomeadamente, mas não exclusivamente, com os honorários advocatícios, pareceres jurídicos de professores universitários, pareceres e assessoria necessária à interpretação da vária matéria técnica [tanto ao abrigo do artigo 480 (3), do CPC, como fora do mesmo preceito], que compreende uma área de conhecimento jurídico-económico complexa e que importa traduzir e transmitir com a precisão de quem domina a especialidade em causa e em termos que sejam acessíveis para os autores e seu mandatário, de modo a que possam assim (e só assim) exercer eficazmente os seus direitos, nomeadamente de contraditório, e assim como os custos com o financiamento do litígio (litigation funding) que venha a ser obtido pela autora interveniente
N. porque o artigo 22 (2), da lei 83/95, estatui, de forma inequívoca e taxativa, que deve ser fixada uma indemnização global pela violação de interesses dos titulares ao individualmente identificados, mas por outro lado é omissa sobre quem deve administrar a quantia a ser paga, nomeadamente quem deve proceder à sua distribuição pelos autores representados na ação popular, vêm os autores interveniente requerer que declare que CITIZENS’ VOICE – CONSUMER ADVOCACY ASSOCIATION, agindo como autora interveniente neste processo e em representação dos restantes autores populares, têm legitimidade para exigir o pagamento das supras aludidas indemnizações, incluindo requerer a liquidação judicial nos termos do artigo 609 (2), do CPC e, caso a sentença não seja voluntariamente cumprida, executar a mesma, sem prejuízo do requerido nos pontos seguintes.
subsidiariamente, e nos termos do §4 (m), :
O. o comportamento da ré, tido com todos os autores populares e descritos no §3, subsidiariamente, para o caso de não se aplicar nenhum dos casos supra, deve ser considerado mediante o instituto do enriquecimento sem causa e os autores populares indemnizados pelo sobrepreço cobrado, tal como sustentando em § 4 (m) supra.
em qualquer caso, deve:
Em face do elevado número de processos judiciais intentados pela a aqui autora e a complexidade dos mesmos, provocados pelas várias exceções invocadas pelos réus nesses processos, e a necessidade de obter consultoria jurídica e pareceres de professores catedráticos, a autora encontra-se neste momento a negociar o financiamento de vários litígios com várias entidades, incluindo o presente. Assim que a autora tiver celebrado o contato de financiamento do presente litígio, informará o processo das condições do mesmo.
P. o comportamento da ré, tido com todos os autores populares e descritos no §3, sempre deve ser considerado com abuso de direito e, em consequência, paralisado e os autores populares indemnizados por todos os danos que tal comportamento lhes causou;
requer-se ainda que Vossa Excelência:
Q. decida relativamente à responsabilidade civil subjetiva conforme § 15, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido;
R. decida relativamente ao recebimento e distribuição da indemnização global nos termos do § 16, apesar de tal decorrer expressamente da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido;
S. seja publicada a decisão transitadas em julgado, a expensas da ré e sob pena de desobediência, com menção do trânsito em julgado, em dois dos jornais presumivelmente lidos pelo universo dos interessados, apesar de tal decorrer expressamente do artigo 19 (2), da lei 83/95, sem necessidade de entrar no pedido, e com o aviso da cominação em multa de € 100.000 (cem mil euros) por dia de atraso no cumprimento da sentença a esse respeito;
T. declare que a autora interveniente tem legitimidade para representar os consumidores lesados na cobrança das quantias que a ré venha a ser condenada, nomeadamente, mas não exclusivamente, por intermédio da liquidação judicial das quantias e execução judicial de sentença;
U. declare, sem prejuízo do pedido imediatamente anterior, que a ré deve proceder ao pagamento da indemnização global a favor dos consumidores lesados diretamente à entidade designada pelo tribunal para proceder à administração da mesma tal como requerido em infra em §16, fixando uma sanção pecuniária compulsória adequada, mas nunca inferior a € 100.000 (cem mil euros) por cada dia de incumprimento após o trânsito em julgado de sentença que condene a ré nesse pagamento;
V. declare uma remuneração, com uma taxa anual de 5 % sobre o montante total da indemnização global administrada, mas nunca inferior a € 100.000 (cem mil euros) nos termos do requerido infra em §16, a favor da entidade que o tribunal designar para administrar as quantias que a ré for condenada a pagar;
W. declare que a autora interveniente tem direito a uma quantia a liquidar em execução de sentença, a título de procuradoria, relativamente a todos os custos que teve com a presente ação, incluindo honorários com todos os serviços prestados, tanto de advogados, como de técnicos especialistas,
como com a obtenção e produção de documentação e custos de financiamento e respetivo imposto de valor acrescentado nos termos dos artigos 21 e 22 (5), da lei 83/95, sendo tais valores pagos exclusivamente daquilo que resultarem dos montantes prescritos nos termos do artigo 22 (4) e (5), da lei 83/95.
Fundamentou estas pretensões, ao longo de 291 artigos, no facto de a demandada, que se dedica à venda ao público de produtos alimentares, nomeadamente na sua sucursal, com estabelecimento na Avenida ..., vender embalagens de Queijo ricotta, marca Galbani, 250 g, queijo burrata de búfala, marca Pingo Doce, 125 g, comida de cão seleção mista de frango, marca Pedigree, 4 x 100 g e ravioli de atum e tomate, marca Giovanni Rana, 250 g, por preço superior, em 34,75%, ao que consta dos letreiros elaborados por si, tendo muitos consumidores, que não se aperceberam que o preço cobrado no momento do pagamento era superior ao anunciado no letreiro que anunciava o preço e que fundamentou a sua escolha, acabado por pagar um sobrepreço que chegou a 0,24 euros, 0,19 euros, 0,75 euros e 0,9 euros por cada embalagem, respetivamente.
Pingo Doce, Distribuição Alimentar, SA – sociedade comercial que foi citada para a acção – defendeu-se por excepção dilatória, invocando a incompetência territorial e material do Tribunal, a litispendência, a nulidade de todo o processo por ineptidão da petição inicial, por falta de concretização dos sujeitos abrangidos pela acção popular e de indicação da causa de pedir, e a ilegitimidade da autora, por excepção peremptória, alegando o abuso, por aquela, de direito, e por impugnação.
Fundamentou a arguição da incompetência material do Tribunal no facto de os pedidos de indemnização formulados pela autora, assentes na alegada prática de um crime de especulação e da contraordenação de publicidade enganosa terem, necessariamente, por força do princípio da adesão, de ser processados juntamente com a acção penal, sendo o tribunal criminal o materialmente competente para proceder ao julgamento e aos termos subsequentes no processo de crime de especulação, não podendo a factualidade atinente ao alegado crime de especulação ser apreciada nestes autos, o mesmo valendo para os tipos contraordenacionais, cuja competência se encontra atribuída ás autoridades competentes para o processo criminal e, no caso de arquivamento, à autoridade administrativa.
O Ministério Público emitiu parecer no sentido de que a autora tem legitimidade para a presente acção popular.
A Sra. Juíza de Direito, por despacho de 13 de Setembro de 2024 - depois de observar que no formulário e no cabeçalho da petição inicial vemos que a acção é instaurada contra Pingo Doce – Distribuição Alimentar SA, mas que, continuando com a leitura da petição inicial verificamos que no ponto de identificação das partes consta, sendo a presente acção movida contra a sua sucursal, com estabelecimento na Avenida ... Distrito de ..., que na pág. 74 da petição consta que a autora interveniente pede a condenação da ré, sita Avenida... Distrito de..., com base na sua invocada responsabilidade civil contratual e extracontratual - entendeu que é demandada nos autos a alegada sucursal do PINGO DOCE – DISTRIBUIÇÃO ALIMENTAR, SA, com estabelecimento em Avenida ... Distrito de ..., mas que, por a ré não possuir órgãos de administração local, estamos perante um estabelecimento comercial, pelo que é evidente a falta de personalidade judiciária da entidade demandada nos autos, julgou verificada a excepção da falta de personalidade da ré e, em consequência, absolveu-a da instância.
A autora interpôs desta decisão, recurso de revista per saltum – no qual pede a sua revogação se mande a acção baixar à 1.ª instância e aí prosseguir os seus termos – tendo encerrado a sua alegação com as conclusões seguintes:
1. Os autores populares, ora recorrentes, notificados do douto despacho proferido nos presentes autos e não se conformando com o mesmo, vêm interpor RECURSO DE REVISTA PER SALTUM, sobre a matéria de direito, nos termos e ao abrigo nos artigos 627, 629 (1), 631, 637, 639, 672, 675, 678 (1) aplicável ex vi artigo 644 (1, a) e 678 (3), todos do CPC, diretamente para este COLENDO SUPREMO TRIBUNAL DE JUSTIÇA.
2. O tribunal a quo, ponderada toda a matéria de facto e de direito, decidiu proferir a decisão de julgar verificada a exceção dilatória de falta de personalidade judiciária da ré e, em consequência, absolver a mesma da instância, por entender que o estabelecimentos comercial da ré, não é uma sucursal.
3. Ressalvado o devido respeito, que é o maior, o tribunal recorrido decidiu sem o acerto e ponderação que se lhe exigia o caso sub judice.
4. Assim, a única questão que importa que este Colendo Supremo Tribunal de Justiça se ocupe de responder é a de saber contra quem se dirige a ação e, então, verificar se tal sociedade, contra quem a ação foi dirigida, tem ou não personalidade jurídica, isto sem prejuízo da apreciação dos valores inerentes ao princípio da economia processual e aproveitamento dos atos praticados.
5. A ação foi proposta, tal como consta no formulário e na petição inicial, contra a sociedade PINGO DOCE – DISTRIBUIÇÃO ALIMENTAR, S.A., pessoa coletiva 500829993 e matriculada com o mesmo número na conservatória do registo comercial de ... tem sede Rua..., em ....
6. Sociedade que existe e tem personalidade jurídica e judiciária.
7. Foi essa sociedade que contestou, adotando um comportamento processual de ré, perfeitamente identificada, defendo inclusivamente isso logo no artigo 1 da sua douta contestação.
8. Tudo isto, sem prejuízo dos autores terem sustentado na petição inicial, que a ação era movida contra os factos praticados na sucursal da supra referida sociedade, com estabelecimento em Avenida ..., distrito de ..., por ter sido nesse estabelecimento os comportamentos ilícitos foram observados.
9. Assim, constatando o preenchimento, no formulário Citius, do nome da sociedade Pingo Doce… e na morada a sua sede, isto tudo no campo destinado à identificação dos réus, é a prevalência do formulário, assinalada no artigo 7 (2) da portaria 280/2013, que conta.
10. Em qualquer caso, salvo douta e melhor opinião, o tribunal a quo deveria ter adotado uma solução que favorecesse a economia processual e o aproveitamento dos atos praticados – o que é incompatível com a sentença proferida.
11. Destarte, pugna-se pela procedência do recurso.
Por sua vez, a demandada, interpôs, da mesma decisão, também per saltum, recurso subordinado, no qual pede, na alegação corrigida, a sua revogação e substituição por acórdão que julgue procedente a excepção da incompetência material, declare o Juízo Central Cível de ... incompetente e a absolva da instância, ou, subsidiariamente, que julgue procedente a excepção da incompetência territorial, a absolva da instância e ordene a remessa do processo para os Juízes Centrais Cíveis de ....
Os fundamento deste recurso, expostos nas conclusões, são os seguintes:
1º. Omitindo a pronúncia sobre a exceção de incompetência material, invocada pela Ré e de conhecimento oficioso, a douta sentença recorrida enferma do vício de nulidade previsto pelo artigo 615.º, n.º 1, alínea d) do CPC.
2º. O crime de especulação, previsto e punido pelo artigo 35.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de janeiro, é um crime público, para cuja apreciação são competentes os juízos criminais.
3º. É, também, um crime de denúncia obrigatória (cf. artigo 286.º, n.º 1, al. b) do CPP).
4º. Logo, a consequência juridicamente necessária e obrigatória da participação dos factos constantes da p.i., será a denúncia destes para instauração do procedimento criminal, até porque a Autora foi enfática no enquadramento desses mesmos factos enquanto subsumíveis ao tipo legal do crime de especulação e aos ilícitos contraordenacionais indicados (sobre os quais rege o princípio da competência por conexão).
5º. Acresce que, vigorando no nosso ordenamento o princípio da adesão obrigatória (artigo 71.º do CPP), os pedidos de indemnização formulados pela Autora nesta ação, assentes da alegada prática de um crime de especulação e das contraordenações que identifica, teriam de ser necessariamente processados juntamente com a ação penal.
6º. Por conseguinte, o juízo central cível é incompetente em razão da matéria para julgar uma acção popular em que se imputa à ré a prática de um crime de especulação e vários ilícitos contraordenacionais e se pede a sua condenação em indemnização pela prática desses ilícitos.
7º. A sentença do Tribunal de primeira instância declarou improcedente a alegada exceção de incompetência territorial do Tribunal Judicial da Comarca de Braga invocada pela Ré, atendendo a que a Autora configura a presente ação, no que à competência concerne, com base no disposto no artigo 71.º n.º 2, ou seja, no local onde ocorreu o alegado facto ilícito.
8º. Acontece que, tal decisão conflitua com avisada jurisprudência, designadamente, do Tribunal da Relação do Porto e Tribunal Judicial da Comarca do Porto – Juízo Central Cível da ..., termos da qual “No caso concreto, face aos valores peticionados, estarão em causa factos ilícitos praticados em todo o território nacional – é consabido que a ré possui estabelecimentos espalhados por todo o país; ora, a nosso ver, não seria compaginável ou adequada uma solução que permitisse uma escolha casuística do foro mais conveniente já que, em todos os estabelecimentos se alega ter existido uma discrepância entre o preço afixado e o efetivo; neste sentido, a forma possível de determinar o local da prática do facto ilícito será, naturalmente, o de considerar como tal o domicílio/sede do alegado infrator”.
9º. Por seu turno, a Ré não tem sucursais, uma vez que não possui órgãos de administração local – facto alegado pela Ré e reconhecido pela própria Autora – pelo que, tal figura seria insuscetível à prática de factos relacionados com fixação de preços e a prática de crime ou contraordenações.
10º. O facto, tal como configurado pela Autora, traduz-se na decisão de vender com sobrepreço e, como ocorre em muitas situações de responsabilidade civil extracontratual, o lugar do facto ilícito causal não coincide com o lugar do dano. O facto ilícito, a ter existido, teria sido praticado na sede da Autora e não onde, alegadamente terá ocorrido o dano (o qual, também, nas palavras da Autora, terá ocorrido em todo o território nacional.)
11º. Em suma, aos presentes autos aplica-se a regra geral de aferição da competência prevista nos artigos 71.º n.º 2 e 81.º n.º 2 do CPC, isto é, na sede da Ré.
Cada uma das partes, conclui, na resposta ao recurso da contraparte, pela sua improcedência.
O Ministério Público extraiu, da sua resposta ao recurso da autora, as conclusões seguintes:
1.º O douto despacho saneador/sentença, ora em crise, concluiu pela falta de personalidade judiciária da demandada (no pressuposto que a demandada foi a sucursal, do PINGO DOCE– DISTRIBUIÇÃO ALIMENTAR, SA., com estabelecimento na Avenida ..., distrito de ...”).
2.º No entanto, nada impede a substituição processual da sucursal ou agência demandada pela sociedade ou pessoa colectiva, a quem respeita a relação jurídica.
3.º E a acima referida substituição pode - e deve - ter lugar por iniciativa do Juiz, fazendo uso dos poderes-deveres de gestão processual/adequação formal (artigos 6.º e 590.º, n.º 2, alínea a), do Código Processo Civil).
4.º O dever de gestão processual exposto no artigo 6º do Código de Processo Civil deverá ser satisfeito no contexto do rito processual legal preexistente, no caso, o disposto no artigo 14.º e 590.º, n.º 1 e 2, alínea a), ambos do Código Processo Civil.
5.º Assim, ao proferir o douto despacho saneador /sentença em crise sem previamente ter providenciado pelo suprimento da falta de personalidade judiciária da Ré demandada, o Tribunal “a quo” formou precipitadamente a sua convicção, omitindo “iter” processual legalmente exigível.
A Sra. Juíza de Direito, por despacho de 13 de Fevereiro de 2025, notando que no recurso subordinado foi arguida, com razão, a omissão de pronúncia no tocante à excepção da incompetência do tribunal em razão da matéria, procedeu ao seu suprimento, e com fundamento em que não há notícia da pendência de qualquer processo de índole criminal versando estes factos e que a acção popular segue os termos de uma acção declarativa com processo comum, o que determina a competência do Juízo Central Cível, declarou que este é o materialmente competente para preparar e decidir a acção popular, improcedendo a excepção invocada pela ré.
2. Delimitação do âmbito objectivo dos recursos e individualização das questões a solucionar.
Como o âmbito objetivo da revista é delimitado, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, pelo objecto da acção, pelos casos julgados formados nas instâncias, pela parte dispositiva da decisão impugnada que for desfavorável ao impugnante, e pelo recorrente, ele mesmo, designadamente nas conclusões da sua alegação, as questões concretas controversas que importa resolver são as de saber se (art.º 635.º n.º 4, 639.º, n.º 1, e 608.º, n.º 2, ex-vi art.º 663.º, n.º 2, do CPC):
- A acção foi proposta contra entidade ou realidade que não é susceptível de ser parte e, portanto, não é dotada de personalidade judiciária;
- O Tribunal de que provém o recurso é ou não competente, do ponto de vista material, para conhecer o objecto da causa.
A resolução do primeiro destes problemas vincula, naturalmente, à determinação do sujeito contra quem foi, na realidade, proposta a acção, o que exige que se proceda à interpretação, designadamente, do articulado de petição inicial; a do segundo à aferição da competência material do Tribunal de que o recurso procede, tendo em conta o elemento objectivo da causa, representado pela causa petendi e pelo pedido e o princípio da interdependência ou adesão do pedido de indemnização civil ao processo penal.
A delimitação do âmbito do recurso reclama ainda, contudo, duas precisões complementares.
A primeira respeita à circunstância de a decisão impugnada no recurso subordinado – a relativa à competência material – não se conter originariamente na decisão impugnada, mas antes em decisão posterior: a que, com o fundamento, evidente, da nulidade, por omissão de pronúncia, daquela decisão, arguida pela recorrente subordinada a reformou, concluindo pela competência, em razão da matéria do tribunal. Como a decisão de reforma se considera complemento ou parte integrante da decisão da qual o recurso foi interposto, este fica a ter como objecto a nova decisão, sendo que, no caso, aquela recorrente subordinada nem sequer se sentiu na necessidade de alargar o âmbito objectivo do recurso, dado que, impugnou, por antecipação, a decisão, relativa à competência absoluta do tribunal, que dele constitui objecto (art.ºs 617.º n.ºs 1 e 2, e 641.º, n.º 1, do CPC). A segunda consiste no facto de, no recurso subordinado, a respectiva recorrente impugnar, não apenas a decisão relativa à competência material, portanto, absoluta, do tribunal, mas cumulativa e subsidiariamente, a decisão que concluiu pela sua competência relativa, em razão do território. A decisão proferida sobre a competência relativa – apenas - pode ser impugnada através de reclamação para o presidente da Relação com competência na circunscrição territorial do tribunal de 1.ª instância, que decide definitivamente a questão (art.ºs 105.º n.º 4 do CPC e 62.º, n.º 1, h), da LOSJ). Este Tribunal não é, pois, sequer dotado de competência para apreciar uma tal questão, nada mais restando, quanto a este objecto do recurso, do que declarar essa incompetência.
3. Fundamentos.
3.1. Fundamentos de facto.
Os factos, puramente procedimentais, relativos ao conteúdo da petição inicial e das decisões impugnadas nos recursos e aos elementos subjectivos e objectivos da instância, que relevam para o conhecimento do seu objecto, são os que, em síntese estreita, o relatório documenta.
3.2. Fundamentos de direito
Este Tribunal Supremo já foi, muito recentemente, chamado a resolver as questões - suscitadas entre as mesmas partes, com um objecto essencialmente homótropo e decididas pelo mesmo Tribunal de que provém a revista - que constituem objecto dos recursos. Fê-lo no processo n.º 5623/23.7T8BRG-S1.1, tendo concluído pela improcedência do recurso, independente – no qual se impugnava também a decisão que julgou verificada a excepção dilatória da falta de personalidade judiciária da demandada – e do recurso subordinado – no qual se contestava igualmente, com fundamento na violação do princípio da adesão da acção civil ao processo penal, a decisão de julgar o tribunal materialmente competente – com fundamento nas proposições seguintes:
1. Quando não haja razões para duvidar de que, nas passagens da petição inicial em que se refere também à “sucursal”, a intenção da autora é de demandar esta enquanto “desdobramento” da ré, sociedade comercial, não pode julgar-se verificada a excepção dilatória de falta de personalidade judiciária.
2. Tal como ocorre com as acções colectivas, a acção popular tem uma natureza que não se presta à aplicação estrita do princípio da adesão, pelo que não pode julgar-se verificada a excepção dilatória de incompetência em razão da matéria do tribunal cível com fundamento na violação do artigo 71.º do CPP.
É esta jurisprudência que, pela sua inteira correcção – e pela sempre desejável uniformidade jurisprudencial e da consequente unidade na aplicação do direito - se reitera, restando apenas, em cumprimento do dever de fundamentação a que este Tribunal está indubitavelmente adstrito, proceder ao detalhe de ambas as proposições, das quais decorre, como corolário que não pode ser recusado, a improcedência de ambos os recursos.
3.2. Excepção dilatória da falta de personalidade judiciária.
Consabidamente, a personalidade judiciária consiste na susceptibilidade de ser parte (art.º 11.º, n.º 1, do CPC). De harmonia com o princípio da coincidência, que não comporta qualquer excepção, quem tiver personalidade jurídica tem personalidade judiciária (art.º 11.º, n.º 2, do CPC). Princípio que compreende também esta regra: só quem tem personalidade jurídica tem personalidade judiciária, regra, que, porém, já admite excepções, dado que há entidades desprovidas de personalidade jurídica às quais é atribuída personalidade judiciária. Assim, segundo o critério de afectação do acto, é atribuída personalidade judiciária, designadamente, às sucursais, desde que acção tenha por objecto um acto ou facto por elas praticado (art.º 13, n,º 1, do CPC). Como a atribuição de personalidade judiciária às sucursais é nitidamente orientada pela tutela dos interesses do demandante, nada obsta que o autor escolha propor a acção contra a própria sociedade ou que demande, em simultâneo, em litisconsórcio, a sociedade e a sua sucursal. Em regra, a falta de personalidade não é sanável, mas a lei admite o suprimento da falta de personalidade judiciária das sucursais, mediante a intervenção da administração principal e a ratificação do processado (art.º 14.º do CPC). Trata-se de uma intervenção inominada, dado que importa a substituição de uma parte sem personalidade judiciária, por uma parte dotada dessa personalidade.
Diferente da sanação do vício da falta de personalidade é a correcção da parte, demandante ou demandada, e a consequente substituição dessa parte por uma outra, embora, como a doutrina faz notar, a jurisprudência aceite a sanação da falta de personalidade judiciária activa nos casos em que esta pode ser sanada através da intervenção dos interessados em substituição da entidade desprovida dessa personalidade2. O estabelecimento comercial, por ser um simples conjunto de coisas, corpóreas e incorpóreas, devidamente organizado para a prática do comércio3, não dispõe, evidentemente, de personalidade judiciária.
Na espécie do recurso, a Sra. Juíza de Direito, examinando, designadamente, a petição inicial, terminou por concluir que quem foi demandado não foi a sociedade comercial Pingo Doce, SA, nem um uma sucursal desta – mas um estabelecimento seu. Como, comprovadamente, nenhum critério atribui ao estabelecimento comercial personalidade judiciária, concluiu pela verificação da excepção dilatória correspondente, mas absolveu da instância, não o estabelecimento comercial – mas a ré.
Cremos que não se decidiu bem e que, maxime, o articulado de petição inicial, devida ou adequadamente interpretado, impõe a conclusão de que a acção foi proposta contra a parte que foi citada para a acção e que se apresentou a contestá-la e que, segundo aquele articulado, é nesta entidade e não em qualquer outra que aquela qualidade de parte radica. Aliás, na lógica da decisão impugnada se a acção se considera proposta contra parte, desprovida de personalidade judiciária, diversa daquela que foi citada para a acção e que a contestou, quem deveria ter sido absolvida da instância era a parte contra quem, na perspectiva daquela decisão, a acção foi proposta e não a parte contra quem, no seu ver, a qual a acção não foi intentada: a decisão de absolver a ré, recorrida, da instância tem implícita a admissão de que a acção foi proposta contra esta parte, e não é coerente com a circunstância de essa mesma parte dispor de personalidade judiciária, dado que se absolveu da instância, com fundamento na falta daquela personalidade, quem dela indiscutivelmente dispõe (art.ºs 11.º, n.º 2, do CPC, conjugado com o art.º 5.º do CS Comerciais).
À interpretação dos actos das partes são aplicáveis os critérios definidos para o negócio jurídico, aplicáveis também aos actos não negociais (art.ºs 236.º, ex-vi art.º 295º do Código Civil). Dado que os actos das partes têm por destinatários o tribunal e a contraparte, o acto deve ser interpretado de acordo com o sentido que um destinatário normal colocado na posição do real declaratário – o tribunal e a contraparte – possa deduzir do comportamento da parte (art.º 236.º, n.º 1, do Código Civil). Na dúvida sobre o sentido ou significado do acto – declaração – da parte o juiz encontra-se adstrito ao dever de convidar a parte a fornecer os necessários esclarecimentos (art.º 7.º, n.º 2, do CPC).
Por aplicação do apontado critério de interpretação dos actos da autora – v.g., do formulário através do qual apresentou a petição inicial – cuja informação em caso de desconformidade, prevalece, aliás, sobre a contida naquela petição - e, sobretudo, deste articulado, no qual surge repetidamente indicada como parte passiva a sociedade comercial Pingo Doce, SA – a conclusão a tirar é a de que a acção foi interposta contra esta parte e não, apesar da incompreensível oscilação da autora, quanto ao sujeito passivo da instância, uma sucursal sua ou um estabelecimento seu (art.º 7.º, n.º 2, da Portaria n.º 280/2013, de 26 de Agosto, na sua redacção actual). E foi esse significado que, comprovadamente, quer o tribunal – ao citar para a acção aquela sociedade comercial e prosseguir com ela a instância até à decisão impugnada - começou por dar àquele articulado e foi esse mesmo sentido que lhe deu a recorrida, como linearmente decorre do conteúdo do seu articulado de contestação.
E, se a Sra. Juíza de Direito tinha dúvidas, em face, designadamente da petição inicial, sobre quem, no ver da autora, era, realmente, a contraparte, o que estava indicado é que as esclarecesse junto, maxime, daquela recorrente e não se decidisse logo para atribuir aos actos da autora, quanto a este ponto, de entre os vários significados possíveis, um de todo contrário, quer ao que resulta de uma correcta aplicação dos critérios de interpretação dos actos da parte activa, quer ao princípio da sanabilidade dos vícios processuais e da máxima utilidade e aproveitamento dos actos de processo (art.º 6.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
De resto, o que, em última extremidade, se justificava era que a Sra. Juíza de Direito – por aplicação do referido princípio da sanabilidade dos vícios puramente processuais, invocado pelo Ministério Público na sua resposta ao recurso da autora - aceitasse ou concluísse pelo suprimento da falta de personalidade da parte que, no seu ver foi demandada, declarando-a substituída pela parte que foi citada para a acção e que a contestou, indubitavelmente dotada de personalidade judiciária e que comprovadamente reúne a qualidade de parte, em sentido formal e material.
A decisão de absolvição da instância, com fundamento na falta de personalidade da parte demandada, impugnada no recurso da autora, é, pois, incorrecta. Importa, em coerência, revogá-la e logo a substituir por outra que declare que o sujeito passivo da instância é a sociedade comercial que foi citada para a acção e a contestou e que determine o prosseguimento dessa mesma instância com aquela parte.
3.3. Excepção dilatória da incompetência absoluta, em razão da matéria, do tribunal.
Segundo a recorrente subordinada, o tribunal de que o recurso emana não é materialmente competente para julgar a acção popular. Razão: o princípio da adesão, do qual decorre a dependência processual do pedido de indemnização civil perante o processo penal e que importa a atribuição da competência material para conhecer do objecto da causa popular ao tribunal penal e a consequente incompetência, em razão da matéria, do tribunal cível4.
Até à publicação do Código Penal de 1982, a indemnização por perdas e danos emergentes de um crime constituía um efeito da condenação (art.º 75.º. § 3º do CP de 1886). Tratava-se, na verdade, de um efeito penal da condenação, de uma parte da pena pública, de arbitramento oficioso, que se não identificava, nos fins e nos fundamentos, com a indemnização civil, nem com ela tinha de coincidir no seu montante5.
O Código Penal vigente, ao dispor que a indemnização de perdas e danos emergente de um crime é regulada pela lei civil, alterou profundamente a situação. Mas apenas no que respeita à materialidade da acção de indemnização a discutir que, formalmente junta ao processo penal e nele decidida, conserva, para todos os efeitos, a sua especificidade de verdadeira acção civil (art.º 128.º). De um ponto de vista material, as partes civis são sujeitos da acção civil que adere ao processo penal e que como acção civil permanece até ao fim.
Já não assim, porém, no que toca à adesão, em princípio obrigatória – se bem que contando agora com muitas mais excepções – do pedido de indemnização civil ao processo penal respectivo, adesão que subsiste (art.º 71.º do Código de Processo Penal (CP Penal).
A prática do facto qualificado como crime acarreta, em muitos casos, ao lado da lesão ou do perigo, uma lesão de direitos civis patrimoniais e não patrimoniais das pessoas. O caso mais vulgar é, decerto, o de a infracção resultar para o lesado um direito civil de indemnização. Segundo a sua própria natureza, o tratamento processual de um tal pedido deveria pertencer – à imagem do que sucede no plano substantivo que é tratado pelo direito civil - ao processo civil e ao tribunal cível. Não é essa, porém, nem a orientação tradicional nem a solução actual do nosso direito. Apesar dos perigos que para a plena satisfação dos direitos civis do lesado podem advir de se tramitar o respectivo pedido dentro de um processo que, como o penal, não foi especificamente pensado para tal tramitação, o direito português orienta-se, nitidamente, pelo princípio da adesão ou da interdependência (art.º 71.º do CP Penal).
Sejam quais forem os fundamentos, tanto teóricos como práticos, em que se deva assentar, o nosso sistema é, portanto, o de dependência processual do pedido de indemnização civil perante o processo penal.
Verdadeiras excepções ao princípio geral da adesão – definitivamente orientadas para o princípio oposto, da alternatividade ou da opção – são, decerto, todos aqueles casos em que se permite a promoção directa e independente do pedido de indemnização perante o tribunal civil, sem ter de se aguardar um certo estádio ou efeito do processo penal. É o que sucede nos casos em que o processo penal não tiver conduzido à acusação no prazo de oito meses a contar da notícia do crime ou estiver parado durante lapso de tempo igual, o processo penal tiver sido arquivado ou suspenso provisoriamente ou se tiver extinguido antes do julgamento, o procedimento criminal depende de queixa ou de acusação particular, em que não houver danos ao tempo da acusação ou estes não forem conhecidos em toda a sua extensão, em que o pedido tiver sido deduzido contra o arguido e outras pessoas com responsabilidade civil, ou somente contra estas e haja sido provocada, nessa acção, a intervenção principal do arguido meramente, em que o valor do pedido permite a intervenção do tribunal colectivo, devendo o processo penal correr perante o tribunal singular, em que o lesado não tenha sido informado da possibilidade deduzir o pedido civil ou notificado para o fazer e, finalmente, nos casos em que ao processo penal corresponda forma sumária ou sumaríssima (art.º 72.º. n.º 1, a) a) i) do CP Penal). De verdadeiras excepções já não poderá falar-se nos casos de admissibilidade da acção cível separada, dado que não deixa de continuar presente uma certa dependência do pedido de indemnização civil, posto que somente por vicissitudes desta poderá desligar-se dela, para ser proposta ou apreciada na jurisdição civil.
Apesar da maior maleabilidade do sistema relativamente ao direito anterior – que resulta de um maior número e de mais extensas excepções - o princípio geral continua a ser, portanto, o da dependência da acção civil relativamente ao processo penal, com a consequente obrigatoriedade imposta ao lesado de deduzir o seu pedido civil no processo penal. Decerto que o sistema apresenta dificuldades – maxime as resultantes da diferente natureza do objecto da acção civil. Mas são igualmente irrecusáveis as suas virtualidade, de que se sobreelevam a ajuda que o processo da adesão presta aos fundamentos finais da pena, as vantagens processuais da exclusão de julgamentos contraditórios e a indiscutível economia processual que comporta e, finalmente – e sobretudo – a realização mais ágil, mais barata e mais eficaz do direito do lesado à indemnização.
O âmbito normativo da legitimidade popular assenta no binómio acção popular administrativa e acção popular civil, embora seja atribuída aos titulares do direito de acção popular o direito de denúncia, queixa ou participação do Ministério Público por violação dos interesses difusos, bem como o direito de se constituírem assistentes no respectivo processo penal (art.ºs 12.º e 25.º da Lei de Participação Procedimental e de Acção Popular (LPPAP), aprovada pela Lei n.º 83/95 de 31 de Agosto, na sua redacção actual). Os titulares do direito de acção popular podem, por esta via, assumir a posição de colaboradores do Ministério Público, pelo que não se reserva exclusivamente para o último a tutela penal daqueles interesses, tornando admissível a participação e o controlo popular também sobre a administração da justiça penal relativa àqueles interesses.
Todavia, entre aqueles preceitos existe uma diferença fundamental. Ao passo que o que estabelece que qualquer acção civil ou administrativa pode ser proposta como acção popular, o segundo limita-se a referir a concessão de legitimidade aos titulares do direito de acção popular legitimidade para a denúncia, queixa ou participação ao Ministério Público ou para a sua constituição como assistentes num processo penal, do que decorre que enquanto acção popular civil ou administrativa segue o seu regime próprio com as adaptações constantes da LPPAP, o processo penal não sofre qualquer desvio em consequência de a denúncia queixa ou participação ter sido feita pelo titular do direito de acção popular ou de este se ter constituído como assistente (art.ºs 13.º a 21.º da LPPAP). O que inculca, irrecusavelmente, que há uma acção popular civil e uma acção popular administrativa – mas não há um processo ou uma acção penal popular. Dito doutro modo: a legitimidade popular penal limita-se ao direito do autor popular de dar notícia do crime ao Ministério Público e de se constituir assistente no processo penal, apesar da legitimidade para a constituição de assistente, exercida embora fora da acção popular, ser ainda, uma legitimidade popular, pertencendo a qualquer titular do direito de acção popular.
A concretização da acção popular apenas nas áreas do contencioso administrativo e do processo civil mostra, realmente, que a acção popular, e a legitimidade correspondente, é excluída noutros processos, como, por exemplo, o processo laboral, o processo fiscal – e o processo penal, neste último, necessariamente por via da acção civil. Efectivamente, dado que a LPPAP define os casos e os termos em que é conferido e pode ser exercido o direito de acção popular – art.º 1.º, n.º 1 - a norma que concretiza aquela definição e estes termos – o art.º 12.º - deve, necessariamente ser entendida como circunscrevendo os processos em que a legitimidade popular pode ser exercida: como esta só prevê o exercício do direito de acção popular no contencioso administrativo e no processo civil, é meramente consequencial que estão excluídos da acção e da legitimidade populares quaisquer outros processos, maxime, o processo penal.
É neste contexto normativo que se coloca a questão particularmente espinhosa de saber se, os cidadãos e as organizações, titulares daquela legitimidade, além de se poderem constituírem assistentes devem ou podem deduzir, no processo penal, pedido de indemnização civil em representação dos titulares do interesse difuso violado, desde que, evidentemente, o dano que se pretende ressarcir tenha resultado dessa violação e, por isso, tenha sido suportado por uma categoria ou grupo de interessados.
Apesar da dificuldade da questão, a resposta que se tem por correcta, é negativa6.
Em primeiro lugar, falta uma previsão legal específica – semelhante à que permite a aquisição pelo autor popular da qualidade de sujeito processual penal de assistente – que justifique a solução: tendo atribuído, excepcionalmente, legitimidade, aos cidadãos e às organizações, para se constituírem assistentes, é deveras significativa a ausência de atribuição de uma igual legitimidade para deduzir o pedido de indemnização civil7. Em segundo lugar, como o titular da legitimidade popular pode não ser o lesado, ou pelo menos o único lesado, pela conduta criminosa, não é possível cumprir a exigência da lei processual penal de que o pedido de indemnização civil seja formulado pelo próprio lesado (art.º 74.º, n.º 1, do CP Penal), Em terceiro lugar, nos casos em que a acção popular não tem uma finalidade exclusivamente ressarcitória, mas por exemplo, também uma finalidade inibitória, ou uma feição restituitória, como sucede quando se invoca, como causa petendi, o enriquecimento sine causa, a necessária dedução do pedido por via do pedido de indemnização civil, sempre implicaria o inevitável fraccionamento ou o parcelamento do objecto da acção popular por jurisdições diversas, com a inevitável perda dos benefícios ou vantagens da economia processual e da harmonização de julgados em que se fundamenta, também, o princípio da adesão da acção civil ao processo penal. Depois, a difícil compatibilidade, por exemplo, das regras de citação dos titulares dos interesses difusos, para a finalidade de intervirem na acção civil enxertada no processo penal ou de se auto excluírem da representação com as regras processuais penais do pedido de indemnização civil (art.º 15.º, n.º 1, da LPPAP). Por último – mas não de somenos – a autonomia da acção popular8. A acção popular configura-se, logo no plano constitucional, como uma acção principal e instrumento autónomo de defesa preferencial relativamente a outros meios processuais, não tendo, pois, natureza subsidiário nem carácter dependente ou subordinado relativamente de qualquer outra acção ou meio processual, primacialmente ordenado para fim diverso daquele que a caracteriza, que exige, um tratamento especial, por um lado, relativamente à legitimação processual e, por outro, aos efeitos do caso julgado (art.º 59.º da Constituição da República Portuguesa).
Para além da, deveras significativa, ausência de uma previsão legal específica, todas estas circunstâncias sobreelevam as razões de economia processual e de harmonização de julgados que, em geral, aconselham que a responsabilidade civil seja apurada no processo penal e que subjazem ao princípio da adesão da acção civil ao processo criminal. A derradeira conclusão a tirar é, deste modo, que a legitimidade popular penal se restringe ao direito da constituição como assistente, não compreendendo o direito de deduzir pedido de indemnização civil e, portanto de intervir, como parte civil, no processo penal nem, muito menos, o dever de dedução injuntiva da pretensão ressarcitória, incidentalmente, no processo penal, por via do pedido de indemnização civil9. Por outras palavras: a acção popular, ainda que, no todo ou em parte, de finalidade ou de feição puramente ressarcitória está excluída do principio da adesão ou da interdependência, não dispondo o autor popular do direito nem estando adstrito ao dever de fazer aderir ao processo penal a acção popular civil indemnizatória. Conclusão que é coerente com as regras de delimitação, positiva e negativa, do âmbito normativo da legitimidade popular, das quais decorre a concretização da acção popular apenas na área do contencioso administrativo e do processo civil e que circunscreve aos processos correspondentes o exercício do direito de acção popular, excluindo a acção e a legitimidade populares no processo penal, excepto no que se refere aos direitos de dar ao Ministério Público notícia do crime e de constituição como assistente.
Todavia, ainda que ex-adverso o contrário se devesse entender, sempre se imporia concluir, na espécie sujeita,, pela competência material do Tribunal de que procede o recurso: é que, como a decisão impugnada salientou, falta no caso a prova – necessariamente documental – do facto fundamental de que depende a actuação do princípio da adesão: a instauração e a pendência do processo penal, pelos factos, em abstracto, criminalmente puníveis, invocados pela autora como causa de pedir do pedido de indemnização. Por último, sempre seria de recusar a procedência da excepção da incompetência material, com fundamento na violação do princípio da adesão, no tocante ao pedido de restituição formulado pela autora assente no enriquecimento sem causa, dado que tal pedido não tem natureza ressarcitória, mas antes carácter restituitório e, portanto, não constitui, juntamente com a respectiva causa de pedir, uma acção popular civil que seja admissível enxertar no processo penal (art.ºs 473.º, n.º 1, e 479.º, n.ºs 1 e 2, do Código Civil).
Assim sendo, a apreciação do objecto da acção compete, não ao tribunal penal, mas ao tribunal cível, no caso, dado o valor da causa - € 60 000,00 - e a forma de processo aplicável – o processo comum - ao Tribunal de que provém o recurso: o juízo central cível (art.ºs 12.º, n.º 2, da LPPAP, 303.º, n.º 3, e 546.º e 548.º do CPC, e 117.º, n.º 1, a), da LOSJ)10.
A decisão impugnada no recurso subordinado, que concluiu pela competência ratione materiae do Tribunal recorrido é, pois, ainda que por alguns fundamentos diversos daqueles em que assenta, correcta. Cumpre, por isso, desamparar este recurso.
Expostos todos os argumentos, conclui-se, em síntese – reiterando jurisprudência recentíssima anterior deste Tribunal, que:
- Se dos actos da parte activa, maxime da petição inicial, adequadamente interpretados, se conclui que a acção foi proposta contra a parte, que comprovadamente dispõe de personalidade judiciária, que foi citada e que a contestou, é incorrecta a decisão de julgar verificada a excepção dilatória da falta de personalidade judiciária, com fundamento no facto de a acção ter sido proposta contra uma parte destituída dessa personalidade;
- A acção popular, ainda que com finalidade ressarcitória, está excluída do princípio da interdependência ou da adesão da acção civil ao processo penal.
Pingo Doce, SA, sucumbe, tanto na revista independente, como na revista subordinada. Esta sucumbência torna-a objectivamente responsável pela satisfação das respectivas custas (art.º 527.º, n.ºs 1 e 2, do CPC).
4. Decisão.
Pelos fundamentos expostos:
1. Declara-se este Tribunal Supremo incompetente para conhecer do objecto do recurso subordinado representado pela incompetência relativa, em razão do território, do Tribunal recorrido;
2. Julga-se procedente a revista independente da autora, Citizens Voice – Consumer Advocacy Association, e improcedente a revista subordinada da demandada, Pingo Doce, Distribuição Alimentar, SA, e consequentemente:
a) Declara-se que a acção foi proposta contra Pingo Doce, Distribuição Alimentar, SA, revoga-se a decisão de absolvição da instância, fundada na excepção dilatória da falta de personalidade judiciária, e determina-se a sua substituição por outra que, se uma qualquer outra circunstância a isso não obstar, determine o prosseguimento da instância;
b) Confirma-se a decisão impugnada que concluiu pela competência material do Tribunal de que os recursos procedem para conhecer do objecto da causa.
Custas de ambos os recursos pela demandada, Pingo Doce, Distribuição Alimentar, SA.
2025.04.08
Henrique Antunes (Relator)
António Magalhães
António Domingos Pires Robalo
_____________________________________________
1. Disponível em dgsi.pt.↩︎
2. João de Castro Mendes/Miguel Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, AAFDL, 2022, Vol. I., pág. 299. Assim, para a errada identificação da herança indivisa como autora, que pode ser sanada através da sua substituição pelos herdeiros, se estes estiveram devidamente identificados na acção, os Acs. da RG de 13.01.2022 (164/21) e da RE de 14.09.2023 (521/23).↩︎
3. A. Ferrer Correia, Lições de Direito Comercial, Lex, Reprint págs. 117 a 120; Barbosa de Magalhães, Do Estabelecimento Comercial, 2ª ed., 1964 e Fernando Olavo, Direito Comercial, I, 2ª ed., 1979, pág. 259.↩︎
4. Ac. do STJ de 21.06.2022 (25639/19).↩︎
5. Jorge de Figueiredo Dias, Sobre a reparação de perdas e danos arbitrada em processo penal, separata, dos Estudos Beleza dos Santos, I, 1966, pág. 79. A doutrina dominante, sustentava, porém, que o arbitramento, na sentença condenatória penal, de uma reparação ao lesado era, efectivamente, uma decisão em coisa cível – uma verdadeira indemnização civil de perdas e danos. Cfr. Vaz Serra, BMJ nº 91, pág. 196, Gomes da Silva, o Dever de Prestar e o Dever de Indemnizar, 1949, págs. 109 e ss. e Pereira Coelho, RDES 6/84.↩︎
6. Assim, o Ac. da RP de 05.03.1998, CJ, 98, II, pág. 250; diferentemente, Miguel Teixeira de Sousa, A Legitimidade Popular na Tutela dos Interesses Difusos, Lex, 2003, págs. 140 e 141.↩︎
7. Parecendo ser essa razão pela qual se fala em quase-acção popular penal: Paulo Otero, A Acção Popular, configuração e valor no actual Direito português, disponível em portal.oa.pt.↩︎
8. Ac. do STJ de 13.03.2025, cit.↩︎
9. Diferentemente, o Ac.do STJ de 12.10.2023 (898/22).↩︎
10. Ac. do STJ de 16.11.2023 (913/23).↩︎