RECURSO DE REVISTA
ADMISSIBILIDADE DE RECURSO
EMBARGOS DE TERCEIRO
INSOLVÊNCIA
DUPLA CONFORME
REJEIÇÃO DO RECURSO
Sumário


Não é admissível recurso de revista se se verifica a dupla conformidade decisória prevista no art. 671º, 3, do CPC e se o recorrente não lança mão da revista excepcional e, correspondentemente, de qualquer dos fundamentos do art. 672º, 1, do CPC, nem se socorre de qualquer das situações residuais de revista extraordinária (art. 629º, 2, ex vi 1.ª parte do art. 671º, 3), únicas formas de evitar o impedimento recursivo colocado como regra no art. 671º, 3, do CPC.

Texto Integral


Reclamação: arts. 641º, 6, 643º, CPC; Tribunal Reclamado – Relação de Guimarães, 1.ª Secção

Reclamação para a Conferência: Arts. 643º, 4, 652º, 3, CPC

Acordam em conferência na 6.ª Secção do Supremo Tribunal de Justiça

I) RELATÓRIO

1. «Quintas de Geraldo, Lda.» apresentou Reclamação (nos termos do art. 652º, 3, do CPC) contra o despacho da Ex.ma Juíza Desembargadora do Tribunal da Relação de Guimarães (TRG), que não admitiu recurso de revista normal interposto do acórdão desse TRG, proferido em 28/11/2024; tal impugnação foi convolada oficiosamente por despacho em Reclamação para o STJ (nos termos do art. 643º do CPC), subindo os autos devidamente instruídos nos termos legais.

2. Neste processo, tramitado por apenso ao processo em que foi decretada a insolvência de AA, a Reclamante deduziu embargos de terceiro, nos termos dos arts. 342º e ss do CPC, contra BB, pedindo que fosse ordenada a suspensão das diligências de entrega do imóvel identificado e denominado “...” e a manutenção provisória da sua posse à Embargante (75% desse imóvel foram apreendidos para a massa insolvente do insolvente e os restantes 25% pertencem a dois sócios da Embargante; alega ter a sua sede e instalações destinadas à realização da sua actividade no imóvel).

3. O Juiz de Comércio de ... proferiu despacho de indeferimento liminar dos embargos de terceiro deduzidos, por aplicação do art. 342º, 2, do CPC, no qual fixou como valor da causa o montante indicado no requerimento inicial, a saber, € 41.468,88, transitado em julgado.

4. Inconformada, a Embargante interpôs recurso de apelação para o TRG, que conduziu a ser proferido acórdão, que, delimitada a questão recursiva em “saber se a embargante pode deduzir embargos de terceiro, por apenso ao processo de insolvência, com vista a salvaguardar o direito de uso do imóvel de que invoca ser titular”, julgou improcedente a apelação, com a consequente manutenção da sentença recorrida.

5. Novamente sem se resignar, a Embargante veio depois interpor recurso de revista para o Supremo Tribunal de Justiça, usando como fundamento os arts. 629º, 3, c), e 671º do CPC.

6. O Senhor Juiz Desembargador proferiu o referido despacho de não admissão do recurso, com a seguinte fundamentação:

“Quintas de Geraldo, Lda. veio interpor recurso de revista normal para o Supremo Tribunal de Justiça.

O recurso tem por objeto o acórdão, proferido em 28.11.2024, por este Tribunal, o qual, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, julgou a apelação improcedente e confirmou a decisão recorrida de indeferimento liminar dos embargos de terceiro deduzidos.

Dispõe o nº 1 do art. 671º, do CPC, que cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que conheça do mérito da causa ou que ponha termo ao processo, absolvendo da instância o réu ou algum dos réus quanto a pedido ou reconvenção deduzidos.

Porém, estabelece o nº 3 do mesmo normativo que, sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte.

Assim, à luz deste normativo, sempre que exista uma situação de “dupla conforme”, não é admissível a interposição de recurso de revista “normal”, só sendo admissível a interposição de recurso de revista excecional, ressalvados os casos em que é sempre admissível recurso.

Ora, no caso dos autos, ocorre uma situação de “dupla conforme” porquanto o acórdão recorrido confirmou a decisão proferida pela 1ª instância sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente.

Por outro lado, não se trata de nenhuma das situações em que o recurso é sempre admissível e que se encontram elencadas no art. 629º, nº 2, do CPC.

A recorrente invoca a al. c) do nº 3 desse normativo com vista a enquadrar a situação na hipótese de o recurso ser sempre admissível ressalvada dos casos de irrecorribilidade decorrente de dupla conforme.

Porém, fá-lo injustificadamente pois o nº 3 do art. 629º não estabelece os casos em que o recurso é sempre admissível, limitando-se a elencar nas suas alíneas a) a c) os casos em que, independentemente do valor da causa e da sucumbência, é sempre admissível recurso para a Relação.

Ora, no caso, não se trata de um recurso para a Relação, mas sim de um recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, razão pela qual esta norma não se aplica.

Como tal, resta concluir que, ocorrendo uma situação de “dupla conforme”, não se tratando de situação em que o recurso é sempre admissível e não tendo sido interposto recurso de revista excecional, a decisão proferida não é passível de recurso de revista “normal”, pelo que o recurso interposto é inadmissível.”

7. A sociedade Reclamante não se resignou com este despacho, sustentando na Reclamação, em Conclusões:

“A – A douta decisão singular decidiu não admitir o recurso de revista.

B – Esta posição defendida na decisão singular não é seguida unanimemente pela jurisprudência, nem pela lei.

C – O referido recurso não foi admitido pelo Tribunal,

D – O artigo 671.º do Código de Processo Civil, dispondo o seu n.º 1 que cabe revista para o Supremo Tribunal de Justiça do acórdão da Relação, proferido sobre decisão da 1.ª instância, que ponha termo ao processo.

E – Ora, a decisão recorrida põe termo ao processo.

F – Ora, o tribunal judicial de ..., juízo de comércio ao decidir pela continuação das diligências de venda do imóvel, põe termo à causa.

G – O processo de liquidação termina.

H – Nos termos do artigo 630º nº2 do C.P.C. uma decisão de simplificação ou agilização processual, se contenderem com os princípios da igualdade e do contraditório, são admissíveis de recurso,

I – Foi requerido no processo a suspensão das diligências de liquidação do imóvel, por existir um direito real de garantia sobre o imóvel,

J – A ora recorrente alegou e invocou que detém materialmente o imóvel e goza do direito de posse, propriedade e retenção sobre o mesmo,

L – Direitos que decorrem directamente da lei, surgindo sem necessidade de prévia declaração judicial, com eficácia erga ommes, permitindo ao retentor realizar o seu crédito com prioridade sobre os credores restantes, designadamente sobre os credores que gozem de hipoteca, mesmo com registo anterior,

M – Pelo que, os direitos de posse propriedade e retenção, que configuram direitos reais de garantia e que decorre directamente da lei, não tem que ser declarado ou reconhecido, previamente pelo tribunal,

N – A requerente pretende que o tribunal cumpra a lei e proteja os direitos existentes, não permitindo a continuação de diligências de venda do imóvel, pondo fim ao processo.

O – Portanto o mecanismo processual da restituição e da separação de bens NÃO é o meio processual ao qual pode recorrer o terceiro titular de um direito, para fazer valer o seu direito e reagir contra uma apreensão que ofenda o mesmo.

P – Não tendo existido apreensão do bem na totalidade, concretamente dos vinte e cinco por cento dos quais o insolvente não é proprietário, não se pode reagir com uma acçao de separação de bens nos termos do preceituado no CIRE,

Q – Porque só as questões que envolvam o insolvente e a sua massa, ou bens que daquela devam ser separados, são, obrigatoriamente tratadas nesse processo de separação de bens.

R – Nunca se referindo a bens que não pertencem ao insolvente, como o é neste caso, pois os vinte e cinco por cento NAO PERTENCEM ao insolvente,

S – Aliás, os vinte e cinco por cento do imóvel nunca foram apreendidos,

T – Mas, neste processo o que está em causa não é uma apreensão de bens em processo de insolvência,

U – Portanto, a forma de reagir nos presentes autos é um embargo de terceiro,

V – Porque, o ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, ofende a posse e direitos incompatíveis de que seja titular quem não é parte na causa, podendo assim o lesado fazê-los valer, deduzindo embargos de terceiro. 342º nº1 C.P.C.

X – A ora recorrente tem de proteger os seus direitos, nomeadamente a sua posse e tem que reagir legalmente de forma a proteger os mesmos.

Z – A posse da recorrente não pode ser alvo de turbação.

AA – Os DIREITOS EXISTENTES não podem ficar desprotegidos e a LEI sem cumprir, concretamente a posse do imóvel,

BB – NOMEADAMENTE A TENTATIVA DE TURBAÇAO DA POSSE EXISTENTE DO IMÓVEL, à recorrente.”

Não foi apresentada qualquer Resposta nos termos admitidos pelo art. 643º, 2, do CPC.

8. Foi proferida Decisão Singular, julgando-se improcedente a Reclamação e, consequentemente, mantendo-se o despacho reclamado de não admissão do recurso.

9. Sem se resignar, a Recorrente veio deduzir Reclamação para a Conferência, nos termos oferecidos pelos arts. 643º, 4, 2.ª parte, e 652º, 3, do CPC, batendo-se novamente pela admissão da revista à luz do art. 671º, 1, do CPC, de modo a permitir que sejam suspensas todas as diligências de venda do imóvel.

Não foi atravessada nos autos qualquer resposta.


Dispensados os vistos nos termos legais, cumpre apreciar e decidir em conferência da bondade da pretensão.

II) APRECIAÇÃO DA RECLAMAÇÃO E FUNDAMENTOS

1. A questão a decidir é, assim, a de saber se o despacho de não admissão deve ou não proceder tendo em conta a aplicação do art. 671º, 3, do CPC, isto é, o impedimento recursivo da “dupla conformidade decisória”.

Segue-se o que se sustentou na decisão reclamada.

2. Antes de mais, sendo esta acção tramitada em apenso ao processo de insolvência (art. 344º, 1, CPC), segue o regime da revista ordinária, por força do art. 17º, 1, do CIRE, sem estar submetido ao regime de revista restritiva e atípica prevista no art. 14º, 1, do CIRE, fundada em oposição jurisprudencial (cfr. AUJ do STJ n.º 13/2023, de 17/10/2023, publicado in DR 1.ª Série, de 21/11/2023). O que implica a submissão da impugnação recursiva para o STJ aos termos gerais, aplicando-se, para tanto, as regras do processo civil em sede de recursos.

3. Estão preenchidos os requisitos gerais de admissibilidade do recurso ordinário (arts. 629º, 1, 631º, 1, CPC) e os requisitos especiais de admissibilidade da revista enquanto espécie (art. 671º, 1 («ponha termo ao processo» por extinção da instância), uma vez antes aplicado na apelação o art. 644º, 1, a), do CPC).

4. O art. 671º, 3, do CPC determina a existência de “dupla conformidade decisória” entre a Relação e a 1.ª instância como obstáculo ao conhecimento do objecto do recurso de revista normal ou regra junto do STJ, em relação à decisão ou segmentos decisórios objecto de impugnação nos quais se verifica identidade de julgados sem voto de vencido, ou em que a decisão recorrida, no ou nos segmentos decisórios recorridos e seus fundamentos atendíveis, se revela mais favorável, qualitativa ou quantitativamente, à parte recorrente (ainda que vencida, total ou parcialmente).

5. No que respeita ao objecto do recurso – a saber: a interpretação e aplicação do art. 342º, 2, do CPC a “embargos de terceiro” deduzidos no processo de insolvência, em face da aplicação dos arts. 141º e ss do CIRE para a “restituição e separação de bens” (em particular, Conclusões 3. a 13., 20. a 36., 42. a 48.) –, verifica-se que a revista normal fundada no art. 671º, 1, do CPC não é admissível, tendo em conta a existência de “dupla conformidade decisória” na fundamentação coincidente das instâncias no que toca à questão de direito da admissibilidade dos embargos, sem prejuízo de reforço e desenvolvimento argumentativo desencadeado pelo argumentário da Apelante em 2.ª instância, que não serve(m) de todo para descaracterizar (por inovação) a “dupla conformidade” obstativa na interpretação e aplicação ao caso (v., nomeadamente, quanto ao despacho liminar, o ponto 2., e, quanto ao acórdão recorrido, págs. 7-14), sem voto de vencido, nos termos do art. 671º, 3, do CPC.

6. A Recorrente não interpôs a revista socorrendo-se da revista excepcional e, correspondentemente, de qualquer dos fundamentos do art. 672º, 1, do CPC, nem tendo por base qualquer das situações residuais de revista extraordinária (art. 629º, 2, ex vi 1.ª parte do art. 671º, 3) – únicas formas de evitar o impedimento recursivo colocado como regra no art. 671º, 3, do CPC.

7. A Recorrente alega no seu requerimento de interposição da revista o art. 629º, 3, c), do CPC, fundamento recursivo para o recurso de apelação, que manifestamente não pode aproveitar à revista, nem sequer é explicitado como tal nas alegações.

Assim.

8. Não se vislumbram razões para alterar estes fundamentos usados na Decisão Singular, em todas as vertentes analisadas e na mobilização do regime legal aplicável, conducente à inadmissibilidade da revista.

Mais a mais, a Reclamação agora apreciada não tem qualquer motivação para rebater a decisão reclamada, em qualquer dos fundamentos que ancoraram o resultado decisório.

Importa, pois, agora colegialmente em conferência, sublinhar a sua adequação e decidir em acórdão pela sua confirmação, o que se fará como epílogo: não há como permitir o acesso da impugnação recursiva ao 3.º grau de jurisdição por via da revista normal tal como interposta pela Recorrente.

III) DECISÃO

Pelo exposto, julga-se improcedente a Reclamação, mantendo-se a decisão singular que confirmara o despacho reclamado de não admissão do recurso por via do regime do art. 643º do CPC.

Custas pela Reclamante para a conferência, que se fixa em taxa de justiça correspondente a 3 (três) UCs, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário que esteja concedido.

STJ/Lisboa, 9 de Abril de 2025

Ricardo Costa (Relator)

Anabela Luna de Carvalho

Maria Olinda Garcia

SUMÁRIO DO RELATOR (arts. 663º, 7, 679º, CPC)