I – O bem jurídico protegido pelo tipo legal de crime de prevaricação p. e p. pelo disposto no artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, é “a fidelidade à lei e ao direito, no exercício de funções públicas”, assim se compreendendo o elemento objetivo do tipo legal de crime “conscientemente conduzir ou decidir contra direito um processo em que intervenha no exercício das suas funções”.
II – A condução ou decisão de aquisição de bens e serviços, por autarcas, por meio de ajuste direto, em violação dos regimes legais de impedimentos - arts. 8º e 9º-A, 1, da Lei nº 64/93, de 26 de Agosto (em vigor até 24 de Outubro de 2019), art. 9º da Lei n° 52/2019, de 31 de julho (em vigor a partir de 25 de Outubro de 2019) e artigo 69º do Código de Procedimento Administrativo (CPA) (em vigor simultaneamente com os dois regimes antecedentes) – é suscetível de integrar o elemento objetivo do tipo legal de crime de prevaricação (artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho), mas a violação do regime jurídico dos impedimentos na contratação pública não gera, per se, responsabilidade penal, mas apenas a nulidade ou anulabilidade dos contratos e, nalguns casos, a perda de mandato dos autarcas.
III – As condutas de autarcas, conduzindo e/ou decidindo aquisições de bens e serviços por ajuste direto em violação das regras de impedimentos – tanto ao abrigo da Lei n.º 64/93, de 26 de Agosto, como da Lei nº 52/2019, de 31 de Julho ou do CPA -, apenas constituirão crime, se as mesmas preencherem os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime de prevaricação p. e p. pelo disposto no art. 11º da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, exigindo a demonstração – na fase da instrução, a indiciação - da condução ou decisão dos respetivos procedimentos administrativos de contratação, no exercício das suas funções, em violação do direito, com a intenção de, por essa forma, prejudicar ou beneficiar alguém.
IV – Ao proferir uma decisão instrutória, o juiz pronuncia-se sobre a existência, ou não, de indícios suficientes da prática de crime(s) - com o alcance previsto no art. 308º do CPP – emitindo um juízo probabilístico, o que não se confunde com a prova certa de factos ou, sequer, a demonstração de fortes indícios que possam legitimar, potencialmente, a aplicação de determinadas medidas de coação privativas da liberdade.
V – Quando um sujeito processual recorre de um despacho de não pronúncia, impugnando o juízo de não indiciação de factos descritos na acusação apenas motivado pela afirmação implícita de existir em sede de inquérito prova indiciária bastante para a comprovação judicial da acusação pública, o mesmo viola o princípio da colaboração e fragiliza a motivação do seu recurso.
(Sumário da responsabilidade do Relator)
Data do acórdão: 2 de Abril de 2025
Desembargador relator: Jorge M. Langweg
Desembargadora 1ª adjunta: Maria Dolores da Silva e Sousa
Desembargadora 2ª Adjunta: Maria Deolinda Dionísio
Origem:
Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este
Juízo de Instrução Criminal de Penafiel
Acordam, em conferência e por unanimidade, os juízes acima identificados da
2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto
nos presentes autos, em que figura como recorrente o Ministério Público;
I - RELATÓRIO
1. Por
decisão datada de 4 de Novembro de 2024, foi decidida a não pronúncia dos arguidos AA, BB, CC, DD, EE e FF, pela prática, em coautoria material e em concurso real, de todos os crimes de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho e artigo 28º do CP, de que vinham acusados pelo Ministério Público.
2. Inconformado com o despacho de não pronúncia, do mesmo interpôs recurso o Ministério Público, concluindo o respetivo recurso com a formulação das seguintes conclusões:
“É ao tribunal de julgamento que cabe, ante a prova da factualidade objetiva imputada aos arguidos, apreciar e decidir se, atentos critérios de normalidade e de experiência comum, é lícito presumir, para além de dúvida razoável, que os mesmos agiram com a intenção criminosa que o Ministério Público lhes imputou na acusação.
Ao apreciar prova que entendeu produzir em sede de instrução, perante si - quando a demais prova indiciária dos autos o não foi - acabou o Meritíssimo Juiz de Instrução por dar a tais elementos de prova uma relevância e credibilidade, que só poderá resultar da falta de imediação quanto à restante prova.
A conclusão a que se chega na decisão instrutória de que «existiram situações, que apesar de contactadas mais do que uma entidade, a autarquia só recebeu uma resposta (...)» não tem suporte na prova documental carreada para os autos em sede de inquérito.
Várias testemunhas declararam ter recebido orientações do arguido CC para contactar e pedir orçamentos às empresas geridas pelos arguidos EE e FF, o que sucedeu em seis dos dez procedimentos em crise nestes autos, no âmbito dos quais a edilidade não remeteu convites nem contactou quaisquer outras empresas, empresários ou entidades.
O arguido DD estava impedido de intervir nos procedimentos de contratação com os números ... e ..., que culminaram com a adjudicação de prestação de serviços alimentares à sociedade A..., Lda., gerida pelo seu irmão FF (aqui arguido).
O Município ... não podia adjudicar a prestação de bens e serviços às sociedades B..., Lda. e A..., Lda. porquanto as mesmas são geridas pelos arguidos AA, EE e FF.
Pelo mesmo motivo, os arguidos EE e FF, em representação e no interesse das sociedades por si geridas, não podiam celebrar contratos com o Município ..., uma vez que os respetivos companheiro e irmão ali exerciam funções de presidente e vereador, respetivamente.
A decisão recorrida é totalmente omissa sobre a violação pelos arguidos do artigo 9.° da Lei n.° 52/2019, de 31 de julho, e do artigo 69.° do Código do Procedimento Administrativo;
Aos arguidos AA, BB, CC e DD exigia-se que, no exercício das suas funções públicas, se pautassem por critérios de estrita legalidade e se motivassem exclusivamente pelo interesse público, o que não se verificou no caso, pois que atuaram movidos por interesses de índole pessoal.
Assim, deve ser dado provimento ao recurso e, em consequência, deverá ser revogada a decisão recorrida, com a pronúncia dos arguidos pelos factos pelos quais foram acusados, assim se fazendo justiça.”
3. O recurso foi liminarmente admitido, subindo imediatamente, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo (arts. 406º, nº 1, 407º, nº 2, i) e 408º, todos do Código de Processo Penal (CPP).
4. O arguido AA apresentou resposta ao recurso, que concluiu nos seguintes termos:
“(…) A prova produzida em sede de instrução tem carácter meramente indiciário, no sentido em que não se pretende através dela a demonstração da realidade dos factos, antes e tão só indícios, sinais de ocorrência do crime, donde se pode formar a convicção, para a decisão de pronúncia, de que existe uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força dela, uma pena ou uma medida de segurança (cfr. Artigos 308º, nºs 1 e 2; 283º, nº 2 e 301º, nº 3 do Código de Processo Penal), visando-se assim apurar se, em face das diligências probatórias realizadas, foram ou não recolhidos indícios suficientes da prática pelo arguido de factos que constituam crime, em termos suficientes para que exista, in casu, uma subsunção fáctica.
Em sede de inquérito, como na instrução, apurou-se que cada serviço, face às necessidades de determinados eventos, preenche um documento interno onde indica o evento, dia e hora e, por regra, o próprio indica o restaurante/entidade a contratar, face às necessidade do evento (apoiemo-nos nos depoimentos recolhidos em inquérito e na instrução, em particular GG, chefe de Divisão de contratação pública. - GG disse, ainda, que no seu gabinete (gabinete de contratação), que, após receberem as propostas, aferem da referida legalidade do procedimento, nomeadamente têm atenção de que os familiares não têm intervenção no procedimento, o que sucedeu in casu, embora tal, às vezes, se apresente difícil por estarmos perante uma autarquia de pequena dimensão;
De todos os depoimentos das testemunhas inquiridas em sede de inquérito, HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN, OO, PP, QQ, RR e SS, nenhum deles vai no sentido de houve a violação dolosa de qualquer procedimento de contratação das entidades/restaurantes em causa, nomeadamente de que o arguido AA, tivesse traçado qualquer plano para favorecer as empresas B..., Lda. e A..., Unipessoal, Lda. –
O que foi sustentado, em termos gerais, por todas as testemunhas inquirida.
Já em sede instrutória, a prova produzida – nomeadamente, os documentos juntos aos autos em tal sede e as testemunhas TT, GG, UU, II, OO, JJ – é clara no sentido de que se possa afirmar que a contratação pública efetuada pelos serviços camarários, a pedido pelos diversos serviços, se orientou pela habitual rotatividade,
De todas as testemunhas inquiridas em sede de instrução, nenhuma disse saber ou foi abordada, por qualquer um dos arguidos, nomeadamente por AA, no sentido de determinar e beneficiar as sociedades B... e A..., Lda., o que também se constata de todos os depoimentos recolhidos em sede de inquérito.
Resultou claro, da prova produzida em sede instrutória, que o facto de se contactar uma ou mais entidades, estava diretamente relacionado com as necessidades dos eventos (pois muitos dos restaurantes não estavam aptos para a prestação de serviços), e muitas das vezes relacionado com o próprio interesse dessas entidades (não ter demora de pagamento pela edilidade, etc.)
Ao contrário do que refere Ministério Público, concatenada toda a prova recolhida em sede de inquérito e na instrução, apurou-se que era habitual os serviços requisitantes ao elaborar a requisição interna, atualmente denominada da necessidade de contratar, e pedir orçamentos a uma ou mais entidades. Era também normal muitos desses pedidos serem efetuados de forma informal, por contacto telefónico ou email, e que muitas das vezes só era obtido um orçamento, sendo depois esse nome (a entidade) o apresentado à divisão de contratação pública.
Em conclusão, diga-se que, após a audição de todas as testemunhas em sede de inquérito, como na instrução, constata-se que não houve uma única a alegar que havia algum tipo de entendimento, pedido ou conluio no sentido de favorecer determinados restaurantes em prejuízo de outros, pois os critérios foram sempre o de proximidade (do concelho), finalidades/espaço e preços.
Assim, resulta claro, perante a prova produzida nos autos, que os procedimentos descritos na acusação pública cumpriram os pressupostos legais para a contratação pública, sendo realizados no âmbito de ajuste direto simplificado, bem como que o pedido de orçamento a uma ou mais entidades era o habitual, tendo como critério a rotatividade, razão pela qual muitas outras entidades, para além das indicadas na acusação pública, foram abordadas e contratadas,
Resulta ainda inequívoco que, a B..., conhecida pelo restaurante C... (existente no concelho há mais de 30/40 anos), já no anterior executivo (ou seja, antes do executivo liderado pelo arguido AA), era também convidada a prestar serviços de restauração para à autarquia.
De todas as testemunhas inquiridas em sede de inquérito, tal como na instrução, nenhuma delas fez referência a qualquer pedido, intervenção ou influência em qualquer procedimento ou contratação de serviços por parte do arguido AA;
Perante o acima descrito, Podemos concluir apenas que, não só não existe qualquer prova de conluio ou concertação de esforços do arguido, AA, no sentido de se aproveitar da circunstância de exercer funções na Câmara Municipal ..., e se ter determinado a beneficiar a sociedade B..., Lda. e FF, como não existe qualquer prova de que os arguidos, BB e CC, tivessem aderido a qualquer desígnio daquele.
Inexiste também qualquer elemento probatório que aponte no sentido de que, para alcançar os seus propósitos, o arguido AA, se determinou a emitir ordens aos funcionários que exerciam, à data, funções na edilidade nomeadamente no gabinete de apoio à presidência, no serviço de contratação pública, no serviço de desporto e no serviço de ação social para que, no âmbito dos procedimentos que seriam lançados, propusessem que as sociedades B..., Lda. e A..., Lda. fossem selecionadas para a prestação dos serviços em causa.
Sabendo-se que a lei exige que o dolo aqui em causa seja directo, na falta de qualquer outra prova, jamais tal elemento do tipo seria comprovado em sede de audiência de julgamento, tal como a aderência de todos os demais arguidos a este alegado propósito comum.
Em suma, atenta a prova recolhida em sede de inquérito, conjugada com a recolhida em sede de instrução, seria elevada a probabilidade de o arguido ser absolvido em sede de audiência de julgamento, razão pela qual se impõe a sua não pronúncia, conforme doutamente decidido, devendo, assim, o recurso ora apresentado ser declarado totalmente improcedente.”
5. O arguido CC apresentou resposta ao recurso, que concluiu nos seguintes termos:
“Não se conformando o Ministério Público com o despacho de não pronuncia, interpôs recurso, assentando o mesmo em três fundamentos:
a) Da inobservância das finalidades da instrução;
b) Da desconsideração da prova indireta;
c) Da desconsideração do regime legal dos impedimentos
Não assiste qualquer fundamento aos argumentos apresentados pelo Ministério Público, devendo o recurso improceder.
No que se refere ao primeiro fundamento, parece-nos com todo o respeito, que o Ministério
Público pretendia, ao arrepio da lei que, que a fase de instrução fosse preterida, ao argumentar que ao arguido lhe foi dada a possibilidade de se defender através do seu interrogatório, o que é totalmente descabido, subentendendo-se que, fica assim limitado à sua defesa no processo, não podendo de outro modo sindicar a acusação contra si proferida.
Ora cabe esclarecer, que a instrução, que é uma das fases preliminares do processo penal, que visa, como dispõe o artigo 286°, n°1, do Código de Processo Penal, a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.
A instrução constitui uma fase judicial (a direção da instrução compete a um juiz de instrução criminal - artigo 288º, n.º 1, do Código de Processo Penal), formada pelo conjunto de atos de instrução que o juiz entenda dever levar a cabo, e obrigatoriamente por um debate instrutório, oral e contraditório - artigo 289º, nº 1, do mesmo diploma.
A instrução pode ser requerida pelo arguido ou pelo assistente, conforme a natureza do ato que os afete e que lhes confira o interesse em fazer comprovar judicialmente o ato de encerramento do inquérito: o arguido pode requerer a instrução no caso de ter sido deduzida acusação, e o assistente, se o procedimento não depender de acusação particular, no caso de arquivamento, isto é, relativamente aos factos pelos quais o Ministério Público não tiver deduzido acusação - artigo 287º, nº 1, alíneas a) e b) do referido diploma.
Foi o que aconteceu nos presentes autos, o arguido não se conformando com a acusação requereu a abertura da instrução com o objetivo comprovar judicialmente a decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não o arguido a julgamento.
Para o efeito, apresentou o arguido o seu requerimento de abertura da instrução contendo a indicação das razões de facto e de direito de discordância relativamente à acusação, bem como, os atos de instrução que pretendia levar a cabo.
Não se limitou o arguido, ao contrário do referido pelo Ministério Público contestar os factos descritos na acusação, a dizer que os mesmos não ocorreram, ou a apresentar versões alternativas ou mesmo factos novos, mas sim a expor as suas razões de facto e de direito de discordância com a acusação de que foi alvo, sendo este o momento próprio para o fazer.
Requereu o arguido junto do MM. Juiz de instrução a comprovação judicial da decisão de acusar.
Foi neste prossuposto e com todas a exigências, acompanhado de rigorosa disciplina nos atos conjugada com a formulação de decisões concisas e assertivas, mas rigorosas, que o MM. Juiz realizou as diligências de instrução, comprovou que dos elementos constantes do inquérito não resultavam indícios suficiente que levassem os arguidos a serem submetidos a julgamento de onde resultasse com toda a probabilidade a sua condenação e proferiu a decisão instrutória de não pronúncia do arguido.
Agiu assim, o MM. Juiz de Instrução em cumprimento da finalidade da instrução de verificação judicial do acerto da decisão final do inquérito, atentos os elementos disponíveis nos autos e mediante o concurso de outros, entretanto fornecidos por quem pediu a abertura desta fase processual, analisando-os na sua globalidade segundo um juízo critico e com base nas regras da experiência, efetuando uma exposição do processo racional e lógico pelo qual decidiu não pronunciar os arguidos, com base na prova produzida em sede de inquérito e de instrução.
Quer a doutrina, quer a jurisprudência, entendem que “o juiz só deve pronunciar os arguidos quando pelos elementos de prova recolhidos nos autos forma a sua convicção no sentido de que é muito provável que os arguidos tenha cometido o crime” ou que “os indícios são suficientes quando haja uma alta probabilidade de futura condenação dos arguidos ou, pelo menos, uma probabilidade mais forte de condenação do que de absolvição” (cfr. respetivamente, na jurisprudência, Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 20/10/93, CJ, Ano XVIII, Tomo IV, pg. 261 e ss. e na doutrina, Germano Marques da Silva, in Do Processo Penal Preliminar, Coimbra Editora, Coimbra, 1999, pg. 347-8, Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, I, 1974, pg. 133, Jorge Noronha e Silveira, in O Conceito de Indícios Suficientes no Processo Penal Português, in Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos Fundamentais, Almedina, Coimbra, 2004, pg. 155 e Fernanda Palma, in Da acusação e da pronúncia num direito processual de conflito entre a presunção de inocência e a realização da justiça punitiva, I Congresso de Processo Penal, Memórias.
Bem andou o MM. Juiz ao decidir pela não pronúncia do arguido.
No que à desconsideração da prova direta por parte do Mmo. Juiz de instrução, também não assiste razão ao Ministério Público.
Assenta o Ministério Público a sua alegação quanto a este ponto, essencialmente no ponto de que face a ausência de prova direta quanto ao conluio celebrado entre os arguidos, de forma concertada, em favorecer familiares do presidente da Câmara Municipal ..., AA e do vereador DD, através da adjudicação da prestação de serviços e do fornecimento de bens a sociedades geridas por aqueles, que ao MM. Juiz de Instrução não era permitido concluir, sem mais, pela ausência de prova.
O MM. Juiz de Instrução ao fundamentar a sua decisão não o faz apenas com recurso à existência de prova direta sobre este facto, muito pelo contrário, o MM. Juiz de Instrução analisou todos os elementos de prova recolhidos em sede de inquérito, bem como os produzidos em se de instrução e de uma análise critica e rigorosa de toda a prova, assente nas regras da experiência, é que conclui, que não resulta qualquer indício da mesma que tenha existido qualquer conluio ou compadrio, por parte dos arguidos, com vista a beneficiar as empresas B..., Lda. (conhecido pelo antigo “C...”) e A..., Unipessoal, Lda. (conhecido por “D...”, em decorrência das alegadas relações familiares, conforme decorre da decisão instrutória, para a qual se remete.
Toda esta imputação da existência de um conluio ou compadrio por parte dos arguidos com vista a beneficiar as empresas B..., Lda. (conhecido pelo antigo “C...”) e A..., Unipessoal, Lda. (conhecido por “D...”, em decorrência das alegadas relações familiares, feita pelo Ministério Público na acusação, é genérica, vaga e conclusiva, sem suporte fáctico, não resultando da extensa prova documental, quer das declarações prestadas pelas testemunhas e arguido, para as quais se remete por mera economia processual, que o arguido tenha celebrado qualquer acordo e que tenha atuado em conjugação de esforços e intentos.
Por outro lado, da análise da prova recolhida em sede de inquérito e instrução, resulta cabalmente que, não se encontram preenchidos os elementos constitutivos do ilícito criminal pelo qual os arguidos se encontravam acusados.
O crime de prevaricação vem previsto no artigo 11.º da Lei n.º 34/87 de 16 de Julho, dispondo que “O titular de cargo político que conscientemente conduzir ou decidir contra direito um processo em que intervenha no exercício das suas funções, com a intenção de por essa forma prejudicar ou beneficiar alguém, será punido com prisão de dois a oito anos.”.
Importa ater que os elementos constitutivos do tipo objetivo e subjetivo de ilícito do crime de prevaricação, conforme acima se referiu, p. e p. pelos arts. 11.º da Lei n.º 34/84, de 16 de Julho, por referência aos arts. 1.º, 2.º e 3.º, n.º 1, al. i), do mesmo diploma legal são:
a) A qualidade de membro de órgão representativo de autarquia local do agente;
b) A condução ou decisão contra direito de um processo por parte do agente, no exercício das respetivas funções;
c) A vontade consciente por parte do agente em assim proceder, com a intenção de por essa forma prejudicar ou beneficiar alguém.
Não se encontram assim, preenchidos os requisitos formais contantes das alíneas c) e d) quanto ao arguido, pelo que, não pode ser acusado pela prática de tais ilícitos, logo não podia de outra forma decidir o MM. Juiz de Instrução.
Por último, conforme decorre de toda a prova carreada para o inquérito, bem como da prova produzida em sede de instrução, o regime legal dos impedimentos foi TOTALMENTE RESPEITADO, carecendo de total fundamento a alegação do Ministério Público.”
6. O arguido DD apresentou resposta ao recurso, tendo apresentado as seguintes conclusões:
“Ao contrário do que começa por alegar o MP, a decisão recorrida que decidiu não pronunciar os Arguidos e determinar o consequente arquivamento dos autos não padece de qualquer vício, respeitando integralmente as finalidades da fase de instrução, e traduz o correto exercício dos poderes-deveres conferidos ao juiz de instrução pelos arts. 286° e ss. do CPP-
A lei impõe que o juiz pondere a existência de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, procedendo a um juízo de probabilidade de condenação (arts. 308.° e 283.°, n.° 2, do CPP).
E para alcançar tal desiderato, o juiz tem o dever legal de produzir e mandar produzir todos os meios probatórios que se afigurem necessários ao apuramento da verdade, investigando autonomamente o caso sob instrução (arts. 288.°, n.° 4, 289.°, n.° 1, 291.°, n.° 1, e 292.°, n.° 1, do CPP).
Por outro lado, inexiste prova indiciária ou indireta capaz de sustentar a tese da acusação e suportar a intenção de levar os Arguidos a julgamento, limitando-se o MP a verter meras suposições e conjeturas acerca do que, em abstrato, poderia ter acontecido, sendo certo que reconhece a inexistência de qualquer prova direta de ilícitos.
E tanto assim é que o MP nem sequer procurou identificar os concretos factos não indiciados que considera incorretamente apreciados pelo Tribunal, nem tão pouco especificou quais os concretos meios de prova que imporiam decisão diversa. ~
Por outro lado, as adjudicações em causa nos autos pautaram-se por critérios de rotatividade, proximidade geográfica, de adequação ao evento e de preço, e não por qualquer intenção de ilegitimamente beneficiar ou prejudicar alguém.
Inexiste nos autos qualquer elemento que sustente a existência de um benefício ilegítimo das sociedades visadas (em particular da A..., Unipessoal, Lda.), e muito menos de que o arguido DD tenha participado, por ação ou omissão, em qualquer conluio ou procedimento tendo em vista tal efeito.
As contratações realizadas respeitaram os limites de valor e os procedimentos previstos no CCP para ajustes diretos simplificados, como o MP reconhece, mais reconhecendo não estar em causa os preços contratados e o seu não empolamento.
A conduta do Arguido, no exercício de funções públicas autárquicas, pautou-se pela fidelidade à lei e ao direito, orientada para o interesse do bem comum.
Assim sendo, claro está que não se mostram verificados os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal do crime de prevaricação, p. e p. nos termos conjugados do art. 11.° da Lei n.° 34/87, de 22/06, e do art. 28.° do CP, que o MP imputa aos Arguidos.
Tudo visto, e face ao exposto, a douta decisão proferida não merece a censura que o MP lhe aponta, nem enferma de qualquer nulidade, irregularidade, insuficiência, contradição ou erro, motivo pelo qual deve ser mantida.”
7. O arguido BB apresentou resposta ao recurso, em que manifestou adesão à resposta ao recurso apresentada pelos arguidos CC e DD.
8. Nesta instância, o Ministério Público[1] emitiu parecer, sustentando a procedência parcial do recurso:
“(…)
Apreciando, crêem-se relevantes as seguintes considerações relativamente ao recurso.
Na tese da acusação, no exercício dos cargos que detinham na Câmara Municipal ..., os arguidos AA [presidente], e DD [vereador] determinaram-se a beneficiar as sociedades B..., Ld.ª, detidas e geridas pelo arguido AA e pela arguida EE, companheira deste, a primeira, e pelo arguido FF, irmão do arguido DD, a segunda, contando com o apoio dos arguidos BB [vice-presidente] e CC [chefe de gabinete do presidente], que aderiram a tais desígnios e que com eles se concertaram para o efeito, para alcançar o dito propósito; e isto sabendo todos que o Município ... não podia contratar com as referidas sociedades por via das referidas relações familiares, mesmo assim determinando os contratos de adjudicação descritos para beneficiar tais sociedades, visando favorecê-las patrimonialmente por força das relações familiares e em detrimento do interesse público, assim as abonando de quantias pecuniárias que em condições de estrita observância dos princípios da livre concorrência, legalidade, transparência e boa gestão dos dinheiros públicos nunca poderiam auferir.
Não está posta em causa a pertença do capital social das sociedades à data dos factos, nem que a sua gestão coubesse aos arguidos EE e FF, matéria, aliás, assente em prova documental.
Também resulta pacífica a existência das referidas relações familiares entre o arguido AA e a arguida EE [unidos de facto] e o arguido DD e o arguido FF [irmãos].
Por fim, está também sólida e consensualmente indiciada a realização dos dez procedimentos administrativos de contratação pública que o Ministério Público alinha de 32. a 119. da acusação, procedimentos também eles bem assentes em prova documental, compilada no apenso I.
Ora, face a esta matéria, não resta qualquer dúvida que os procedimentos contratuais ... [32. a 40.], ... [41. a 48.] e ... [49. a 56.] envolvendo a sociedade B... e os procedimentos Verde Honra [77. a 84.], ... [85. a 94.] e ... [95. a 103.] com a sociedade A... Unipessoal, violaram fragrante e frontalmente o regime de impedimentos de contratação vigente à data em que foram celebrados.
Na verdade, como o Ministério Público aponta no recurso, o artigo 8.º n.º2, alínea a), da Lei 64/93, de 26.08, era bem claro no sentido de impedir a contratação de tais empresas com a autarquia, por do seu capital ser titular, em medida superior a 10%, a arguida EE, unida de facto do arguido AA, seu presidente [sociedade B...], e o arguido FF, irmão do arguido DD, ali vereador [no caso da sociedade A..., Unipessoal].
À lei 64/93, de 26.08, sucedeu a Lei 52/2019, de 31.07, com início de vigência no dia 25.10.2019, a qual manteve na íntegra o impedimento sobre os unidos de facto de titulares de cargos políticos de âmbito local, e respetivas sociedades, em relação a procedimentos de contratação pública desenvolvidos pela pessoa coletiva local de cujos órgãos aqueles titulares façam parte -cfr. artigo 9.º, n.ºs 5 e 6.
Pelo que, também à luz desta lei eram inadmissíveis os procedimentos ... [57. a 66.] e ... [67. a 76.], envolvendo a sociedade B....
Porém, importará considerar, já quanto à sociedade A..., Unipessoal, que a referida Lei 52/2019, de 31.09, trouxe importantes alterações relativamente ao regime antecedente, desonerando de qualquer impedimento a contratação com empresas de cujo capital, em qualquer medida, seja titular colateral até ao 2.º grau, sozinho ou com outros que não o titular do órgão ou cargo, não sujeitando sequer essa contratação ao regime especial de publicidade previsto no artigo 9.º n.º 9 –quanto a estes colaterais, o que esta lei prevê, só, é a participação em procedimentos de contratação pública de empresas em cujo capital sejam detentores, conjuntamente com o titular do órgão ou cargo, de uma participação superior a 10 % ou cujo valor seja superior a €50 000.
Esta alteração mostra-se de fundamental relevância no caso em apreço, já que, face à mesma, relativamente aos procedimentos de contratação celebrados pela Câmara Municipal ... com a sociedade A..., Unipessoal, em 2020 [procedimentos ... e ...] perde cabimento a argumentação da acusação, e do recurso, de que os arguidos desrespeitaram conscientemente a norma que os impedia de contratar com esta sociedade para assim a favorecer, simplesmente porque nenhum obstáculo decorrente de impedimento havia à contratação e nenhum outro foi suscitado.
Já no que respeita aos procedimentos relativamente aos quais se verificou a violação do regime dos impedimentos, supra elencados, não se descortina argumentação que acresça à do recurso, no sentido da pronúncia dos arguidos.”
5. O arguido CC respondeu ao parecer, reiterando, no essencial, a sua resposta ao recurso.
6. Não tendo sido requerida audiência, o processo foi à conferência, após os vistos legais, respeitando as formalidades legais [artigos 417º, 7 e 9, 418º, 1 e 419º, 1 e 3, c), todos, ainda do mesmo texto legal].
Do thema decidendum do recurso:
Para definir o âmbito do recurso, a doutrina [2] e a jurisprudência [3] são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
A função do tribunal superior perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o thema decidendum que foi colocado à sua apreciação, mediante a formulação de um juízo de mérito.
Atento o teor do relatório atrás produzido, importa decidir a questão a seguir concretizada – sem prejuízo de conhecimento de eventual questão de conhecimento oficioso – que sintetizam as conclusões do recorrente:
A decisão instrutória incorreu em erro, devendo ser formulado despacho de pronúncia, por se encontrar indiciada a prática, pelos arguidos, dos seguintes crimes:
“I – Procedimento n.º ...
Cometeram os arguidos AA, BB e CC, em coautoria material, em concurso real com os demais crimes, e na forma consumada:
- um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho,
» Sendo a arguida EE responsável nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal;
II – Procedimento n.º ...
Cometeram os arguidos AA, BB e CC, em coautoria material, em concurso real com os demais crimes, e na forma consumada:
- um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho,
» Sendo a arguida EE responsável nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal;
III – Procedimento n.º ...
Cometeram os arguidos AA e BB, em coautoria material, em concurso real com os demais crimes, e na forma consumada:
- um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho,
»Sendo a arguida EE responsável nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal;
IV – Procedimento n.º ...
Cometeram os arguidos AA e BB, em coautoria material, em concurso real com os demais crimes, e na forma consumada:
- um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho,
» Sendo a arguida EE responsável nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal;
V – Procedimento n.º ...
Cometeram os arguidos AA e BB, em coautoria material, em concurso real com os demais crimes, e na forma consumada:
- um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho,
» Sendo a arguida EE responsável nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal;
VI – Procedimento relativo ao evento Verde Honra – Ex Combatentes do Ultramar
Cometeram os arguidos BB, CC e DD, em coautoria material, em concurso real com os demais crimes, e na forma consumada:
- um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho,
» Sendo o arguido FF responsável nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal;
VII – Procedimento ...
Cometeram os arguidos AA e DD, em coautoria material, em concurso real com os demais crimes, e na forma consumada:
- um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho,
» Sendo o arguido FF responsável nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal;
VIII – Procedimento ...
Cometeram os arguidos AA e DD, em coautoria material, em concurso real com os demais crimes, e na forma consumada:
- um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho,
» Sendo o arguido FF responsável nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal;
IX – Procedimento ...
Cometeram os arguidos BB, CC e DD, em coautoria material, em concurso real com os demais crimes, e na forma consumada:
- um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho,
» Sendo o arguido FF responsável nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal;
X – Procedimento ...
Cometeram os arguidos AA, CC e DD, em coautoria material, em concurso real com os demais crimes, e na forma consumada:
- um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho,
» Sendo o arguido FF responsável nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal.
(…)”.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Para aferir o mérito do recurso, importa começar por recordar o teor integral do despacho de não pronúncia:
« Relatório:
a.) A Digna Procuradora da República, junto do DIAP de Penafiel, comarca de Porto-Este, deduziu acusação pública contra os arguidos:
A- AA, titular do cartão de cidadão n.º ..., nascido em ../../1978, natural da freguesia ..., concelho de Felgueiras, filho de VV e de WW, divorciado, com domicílio profissional na Câmara Municipal ..., sita na Praça ..., ..., ... Felgueiras;
B- BB, titular do cartão de cidadão n.º ..., nascido em ../../1977, natural da freguesia ..., concelho de Felgueiras, filho de XX e de YY, divorciado, com domicílio profissional na Câmara Municipal ..., sita na Praça ..., ..., ... Felgueiras;
C- CC, titular do cartão de cidadão n.º ..., nascido em ../../1973, natural de ..., Porto, filho de ZZ e de AAA, casado, residente na Praça ..., ..., ..., ..., ... Felgueiras;
D- DD, titular do cartão de cidadão n.º ..., nascido em ../../1978, natural da freguesia ..., concelho de Felgueiras, filho de BBB e de CCC, solteiro, com domicílio profissional na Câmara Municipal ..., sita na Praça ..., ..., ... Felgueiras;
E- EE, titular do cartão de cidadão n.º ..., nascida em ../../1980, natural da freguesia ..., concelho de Felgueiras, filha de DDD e de EEE, divorciada, residente na Rua ..., ... Felgueiras;
F- FF, titular do cartão de cidadão n.º ..., nascido em ../../1981, natural da freguesia ..., concelho de Felgueiras, filho de BBB e de CCC, solteiro, residente na Rua ..., ... ..., Felgueiras;
Imputando-lhes a prática, respetivamente:
I – Procedimento n.º ...
Aos arguidos AA, BB e CC, em coautoria material, em concurso real com os demais crimes, e na forma consumada: - um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, sendo a arguida EE responsável nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal;
II – Procedimento n.º ...
Aos arguidos AA, BB e CC, em coautoria material, em concurso real com os demais crimes, e na forma consumada um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, sendo a arguida EE responsável nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal;
III – Procedimento n.º ...
Aos arguidos, AA e BB, em coautoria material, em concurso real com os demais crimes, e na forma consumada: um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, sendo a arguida EE responsável nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal;
IV – Procedimento n.º ...
Aos arguidos AA e BB, em coautoria material, em concurso real com os demais crimes, e na forma consumada um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, sendo a arguida EE responsável nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal;
V – Procedimento n.º ...
Aos arguidos AA e BB, em coautoria material, em concurso real com os demais crimes, e na forma consumada um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, sendo a arguida EE responsável nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal;
VI – Procedimento relativo ao evento Verde Honra – Ex Combatentes do Ultramar.
Aos arguidos BB, CC e DD, em coautoria material, em concurso real com os demais crimes, e na forma consumada, um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, sendo o arguido FF responsável nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal;
VII – Procedimento ...
Aos arguidos AA e DD, em coautoria material, em concurso real com os demais crimes, e na forma consumada, um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, sendo o arguido FF responsável nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal;
VIII – Procedimento ...
Aos arguidos AA e DD, em coautoria material, em concurso real com os demais crimes, e na forma consumada, um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, sendo o arguido FF responsável nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal;
IX – Procedimento ...
Aos arguidos BB, CC e DD, em coautoria material, em concurso real com os demais crimes, e na forma consumada, um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, sendo o arguido FF responsável nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal;
X – Procedimento ...
Aos arguidos AA, CC e DD, em coautoria material, em concurso real com os demais crimes, e na forma consumada, um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, sendo o arguido FF responsável nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal.
Alega, ainda, o arguido, CC, que caso a conduta em causa preenchesse o referido ilícito criminal, estaríamos apenas perante um único crime e não vários ilícitos, ou seja, por cada um dos procedimentos.
Em suma, e em termos gerais, os arguidos consideram que as suas condutas não são suscetíveis de preencher os referenciados ilícitos criminais, como melhor decorre dos requerimentos de abertura da instrução de fls. 910 a 920 e 921 a 930.
Finalidade da instrução:
A instrução que tem carácter facultativo visa, in casu, a comprovação jurisdicional dos pressupostos jurídicos factuais da acusação pública contra os arguidos/requerentes e, assim, da decisão processual do Ministério Público deduzir acusação pública – artigo 286º, nº 1 do Código de Processo Penal, sem prejuízo das consequências legais que se possam retirar para os não requerentes da abertura da instrução.
Constitui, portanto, uma fase preparatória e instrumental em relação ao julgamento.
Assim, a prova produzida em sede de instrução tem carácter meramente indiciário, no sentido em que não se pretende através dela a demonstração da realidade dos factos, antes e tão só indícios, sinais de ocorrência do crime, donde se pode formar a convicção, para a decisão de pronúncia, de que existe uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força dela, uma pena ou uma medida de segurança (cfr. artigos 308º, nºs 1 e 2; 283º, nº 2 e 301º, nº 3 do Código de Processo Penal), visando-se assim apurar se, em face das diligências probatórias realizadas, foram ou não recolhidos indícios suficientes da prática pelo arguido de factos que constituam crime [cfr. Germano Marques da Silva, in “Curso de Direito Processual Penal”, Editorial Verbo, 1994, páginas 182/183].
O que sejam indícios suficientes procurou o legislador definir no artigo 283°, nº 2 do Código de Processo Penal, quando estatui “consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança”.
Não basta assim a existência de meros indícios para submeter um arguido a julgamento, mas é também necessário que esses indícios permitam um juízo de prognose póstuma, no sentido de haver probabilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada uma pena ou medida de segurança. Por outras palavras, pode ler-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 1/3/2005 (Processo nº 1481/04-1, acessível em www.dgsi.pt/jtre): «Para que os indícios sejam suficientes, ou seja, para que os indícios tenham um valor probatório é necessário que sejam precisos, graves e concordantes».
Assim, «o juiz só deve pronunciar o arguido quando, pelos elementos de prova recolhidos, forma a sua convicção no sentido de que é mais provável que o arguido tenha cometido o crime de que o não tenha cometido, havendo por isso uma probabilidade mais forte de condenação do que absolvição» (cfr. Acórdão de 05/06/1996 do Tribunal da Relação do Porto, disponível em www.dgsi.pt)
Constitui assim, a existência de indícios suficientes, que para terem valor probatório, terão de ser precisos, graves e concordantes (cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 01/03/2005 acessível em www.dgsi.pt), um verdadeiro pressuposto para a prolação do despacho de pronúncia.
Conforme referido, a suficiência dos indícios está intimamente ligada com um juízo de prognose sobre a aplicação, em sede de julgamento, de uma pena ou de uma medida de segurança ao arguido, sendo que na esteira do Acórdão do Tribunal Constitucional nº 439/2002 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt/acórdãos) temos por certo que o princípio da presunção de inocência não pode ser visto como uma «presunção meramente teórica da inocência, que na prática não redunda em qualquer posição processual vantajosa para o arguido, mas o coloca ilimitadamente à disposição da acusação, a qual pouco terá de demonstrar para que o julgamento se realize».
Não é plausível que, num Estado de Direito fundado sobre o princípio da presunção de inocência, havendo dúvidas sobre a culpabilidade de uma pessoa se opte por submeter a mesma a um julgamento e, assim, quer se queira quer não, à censura pública. Por isso, entendemos que, mesmo nesta fase da instrução, há que aplicar o princípio in dubio pro reo.
Em suma, há que fazer um juízo de prognose, apreciando criticamente as provas existentes nos autos, sempre com pleno respeito pelo princípio da presunção de inocência.
Contudo, além de avaliar da existência de indícios suficientes, o Juiz de Instrução deve também aferir da verificação dos pressupostos de punibilidade no caso concreto, sendo que, como bem refere o Professor Germano Marques da Silva (in Curso de Processo Penal, III, Verbo, 2000, pág. 170) «os mesmos fundamentos que determinam o arquivamento do inquérito, nos termos do art. 277.º, serão também causa de decisão instrutória de não pronúncia.»
Vejamos.
Os arguidos vêm acusados nos seguintes termos:
1º: AA, titular do cartão de cidadão n.º ..., nascido em ../../1978, natural da freguesia ..., concelho de Felgueiras, filho de VV e de WW, divorciado, com domicílio profissional na Câmara Municipal ..., sita na Praça ..., ..., ... Felgueiras;
2º: BB, titular do cartão de cidadão n.º ..., nascido em ../../1977, natural da freguesia ..., concelho de Felgueiras, filho de XX e de YY, divorciado, com domicílio profissional na Câmara Municipal ..., sita na Praça ..., ..., ... Felgueiras;
3º: CC, titular do cartão de cidadão n.º ..., nascido em ../../1973, natural de ..., Porto, filho de ZZ e de AAA, casado, residente na Praça ..., ..., ..., ..., ... Felgueiras;
4º: DD, titular do cartão de cidadão n.º ..., nascido em ../../1978, natural da freguesia ..., concelho de Felgueiras, filho de BBB e de CCC, solteiro, com domicílio profissional na Câmara Municipal ..., sita na Praça ..., ..., ... Felgueiras;
5º: EE, titular do cartão de cidadão n.º ..., nascida em ../../1980, natural da freguesia ..., concelho de Felgueiras, filha de DDD e de EEE, divorciada, residente na Rua ..., ... Felgueiras;
6º: FF, titular do cartão de cidadão n.º ..., nascido em ../../1981, natural da freguesia ..., concelho de Felgueiras, filho de BBB e de CCC, solteiro, residente na Rua ..., ... ..., Felgueiras;
Porquanto:
I – Dos arguidos
1. O arguido AA exerce as funções de presidente da Câmara Municipal ... desde 25 de outubro de 2017, tendo sido eleito para o cargo no mandato de 2017-2021 e reeleito no mandato de 2021-2025 – cfr. fls. 706 a 709.
2. O arguido BB exerce as funções de vice-presidente da Câmara Municipal ... desde 25 de outubro de 2017, tendo sido eleito para o cargo no mandato de 2017-2021 e reeleito no mandato de 2021-2025 – cfr. fls. 706 a 709.
3. O arguido DD exerce as funções de vereador a tempo inteiro na Câmara Municipal ..., estando-lhe atribuídos os pelouros de desporto, lazer e juventude, turismo e atividades empresariais, obras municipais, serviços urbanos, gestão de espaços verdes e naturais, gestão de equipamentos e espaços públicos, mercados e feiras, empreendedorismo e empregabilidade – cfr. fls. 706 a 709.
4. O arguido CC exerceu as funções de chefe de Gabinete de Apoio à Presidência da Câmara Municipal ... entre 26 de outubro de 2017 e 28 de março de 2022 – cfr. fls. 703 a 705 e fls. 578.
5. Os arguidos AA e EE vivem em comunhão de mesa, leito e habitação e têm um filho em comum.
6. O arguido AA é irmão de FFF – cfr. fls. 695 e 699.
7. Os arguidos DD e FF são irmãos – cfr. fls. 696 e 697.
II – Das sociedades
- Sociedade B..., Lda. (cfr. fls. 518 a 523)
8. A sociedade B..., Lda., pessoa coletiva n.º ..., com sede na Rua ..., ... Felgueiras, foi constituída em 23 de março de 2018 sob a designação B..., Lda., com o capital social de € 5.000,00, dividido em duas quotas, a saber:
- uma quota no valor de € 4.900,00, titulada pela arguida EE;
- uma quota no valor de € 100,00 titulada pela sociedade E..., Lda. – atualmente com a designação F..., Lda.
9. No ato de constituição da sociedade, foi nomeada gerente a arguida EE.
10. Em 24 de fevereiro de 2021 a arguida EE cessou as funções de gerente da sociedade, tendo sido designado para tal cargo GGG.
11. Em 20 de outubro de 2021 a quota titulada pela arguida EE foi cedida à sociedade G..., Unipessoal, Lda. Sociedade F..., Lda. (cfr. fls. 524 a 535)
12. Por seu turno, a sociedade F..., Lda. (pessoa coletiva n.º ...), com sede na Avenida ... Felgueiras, foi constituída em 8 de abril de 2016 sob a designação E..., Lda. e com o capital social inicial de € 5.000,00 dividido em duas quotas, a saber:
- uma quota no valor de € 2.500,00, titulada por FFF;
- uma quota no valor de € 2.500,00 titulada pelo arguido AA,
13. Os quais foram designados gerentes no ato de constituição da sociedade.
14. Em 17 de julho de 2018 FFF e o arguido AA cederam as respetivas quotas à arguida EE e à sociedade H..., S.A. (pessoa coletiva n.º ..., com sede na Rua ..., ... ... – cfr. fls. 546 a 574).
15. Em 10 de agosto de 2020 as quotas foram cedidas à sociedade G..., Lda. e a HHH.
16. Em 11 de setembro de 2020 GGG foi nomeado para o cargo de gerente. Sociedade G..., Lda. (cfr. fls. 536 a 545)
17. A sociedade G..., Lda. (pessoa coletiva n.º ...) tem sede na Rua ..., ... Felgueiras, e foi constituída em 28 de novembro de 2016 com o capital social de € 2.500,00, titulado por FFF, o qual foi designado gerente no ato de constituição da empresa.
18. Atualmente, a sociedade tem o capital social de € 50.000,00,
19. Sendo gerente HHH.
Assim:
20. Não obstante as alterações no contrato de sociedade e na gerência da sociedade B..., Lda., vertidas na respetiva certidão permanente, a empresa nunca saiu da esfera dos arguidos AA e EE.
21. Com efeito, à data dos factos que infra se descreverão, ocorridos entre os anos de 2018 e 2020, os arguidos AA e EE tomavam decisões sobre a sociedade B..., Lda., cabendo-lhes decidir sobre o serviço a executar pela empresa, os preços que esta praticava, contactar clientes e fornecedores e dar ordens aos trabalhadores sobre a prestação do trabalho. Sociedade FF, Unipessoal Lda. (cfr. fls. 575 a 577)
22. A sociedade FF, Unipessoal Lda. (pessoa coletiva n.º ...) tem sede na Rua ..., ... Felgueiras, e foi constituída em 29 de junho de 2018 com o capital social de € 5.000,00, concentrado numa quota titulada pelo arguido FF, o qual foi nomeado gerente no ato de constituição da sociedade.
23. À data dos factos que infra se descreverão, situados entre os anos de 2018 e 2020, o arguido FF exercia a gerência da sociedade FF, Unipessoal Lda., dando ordens aos seus trabalhadores, pagando os ordenados, decidindo quem contratava e quem despedia, contactando fornecedores e clientes, etc.
III – Dos factos
24. Em data não concretamente apurada, situada no ano de 2018, os arguidos AA e DD, aproveitando a circunstância de exercerem funções na Câmara Municipal ..., determinaram-se a beneficiar as sociedades B..., Lda. e FF, Lda., geridas por si e por familiares seus, especificamente os aqui arguidos EE e FF, através da adjudicação do fornecimento de refeições em almoços, jantares e eventos organizados ou em que interviesse o Município ....
25. Os arguidos BB e CC aderiram aos desígnios dos arguidos AA e DD, com os quais se concertaram para alcançar aquele propósito.
26. Ora, os arguidos AA e DD sabiam que os arguidos EE e FF não podiam celebrar contratos com o Município ..., dadas as relações familiares existentes.
27. Sabiam ainda que, pelos mesmos motivos, estavam impedidos de intervir, em representação da edilidade, em contratos em que interviessem os arguidos EE e FF.
28. Tais circunstâncias eram do conhecimento dos arguidos BB e CC.
29. Não obstante, para alcançarem os seus propósitos, os arguidos AA, BB, CC e DD determinaram-se a emitir ordens aos funcionários que exerciam, à data, funções na edilidade – nomeadamente no gabinete de apoio à presidência, no serviço de contratação pública, no serviço de desporto e no serviço de ação social – para que, no âmbito dos procedimentos que seriam lançados, propusessem que as sociedades B..., Lda. e FF, Lda. fossem selecionadas para a prestação dos serviços em causa.
30. Determinaram-se também a tramitar tais procedimentos ou a influenciar a sua tramitação, de forma a que os serviços a prestar fossem adjudicados àquelas empresas.
31. Para criar uma aparência de legitimidade e regularidade dos procedimentos, mais acordaram os arguidos AA e BB que nos procedimentos em que os serviços a prestar seriam adjudicados à sociedade B..., Lda., gerida pela arguida EE, o arguido AA não proferisse quaisquer despachos ou decisões, sendo substituído para o efeito pelo arguido BB.
ASSIM:
i. Das adjudicações à sociedade B..., Lda.
- Procedimento n.º ... (cfr. fls. 81 a 86 do Apenso I)
32. Na execução do plano previamente elaborado com o arguido AA, em data não concretamente apurada, anterior a 22 de maio de 2018, o arguido CC, na qualidade de chefe do Gabinete de Apoio à Presidência da Câmara Municipal ... e no exercício dessas funções, ordenou a II, assistente técnica em exercício de funções naquele Gabinete, que, ante a necessidade de contratar o fornecimento de refeições no âmbito da reunião extraordinária do Conselho Intermunicipal, propusesse no procedimento a lançar que se contratasse a sociedade B..., Lda., ciente que a mesma era gerida pela arguida EE e que esta vivia em união de facto com o arguido AA.
33. Nessa sequência, em 22 de maio de 2018 e em 7 de agosto de 2018, II, na qualidade de funcionária da Câmara Municipal ..., e no exercício das suas funções, elaborou duas requisições internas para aquisição de vinte e quatro refeições no valor total de € 530,97,
34. E ordenou a OO, técnica do Serviço de Contratação Pública da Câmara Municipal ..., que propusesse no procedimento a lançar que se contratasse a sociedade B..., Lda.
35. Deste modo, em 30 de agosto de 2018, OO, na qualidade de técnica do Serviço de Contratação Pública da Câmara Municipal ..., e no exercício das suas funções, solicitou à sociedade B..., Lda. a apresentação de orçamento para o fornecimento das aludidas refeições,
36. Tendo a empresa apresentado dois orçamentos, no valor global de € 600,00.
37. Em 26 de setembro de 2018, OO, no exercício das suas funções, solicitou autorização para recorrer ao ajuste direto – regime simplificado,
38. Tendo o arguido BB, na qualidade de vice-presidente da Câmara Municipal ..., autorizado recorrer ao aludido procedimento por despacho proferido em 27 de setembro de 2018.
39. Na mesma data, OO propôs a adjudicação à sociedade B..., Lda. e requereu autorização para a realização da despesa no valor global de € 600,00,
40. Tendo o arguido BB, na qualidade de vice-presidente da Câmara Municipal ..., autorizado adjudicar o fornecimento das refeições à mencionada empresa pelo referido valor, por despacho proferido em 27 de setembro de 2018, não obstante saber que a mesma era gerida pela arguida EE e que esta vivia em união de facto com o arguido AA.
- Procedimento n.º ... (cfr. fls. 87 a 91 do Apenso I)
41. Na execução do plano previamente elaborado com o arguido AA, em data não concretamente apurada, anterior a 18 de outubro de 2018, o arguido CC, na qualidade de chefe do Gabinete de Apoio à Presidência da Câmara Municipal ..., e no exercício dessas funções, ordenou a II, funcionária da edilidade, que, ante a necessidade de contratar o fornecimento de refeições no âmbito do evento IRIS Social Inovation Meet Up, propusesse no procedimento a lançar que se contratasse a sociedade B..., Lda., ciente que a mesma era gerida pela arguida EE e que esta vivia em união de facto com o arguido AA.
42. Nessa sequência, nos dias 18 e 19 de outubro de 2018, II apresentou duas requisições internas, para aquisição de dezanove refeições no valor total de € 475,00,
43. E ordenou a HH, assistente técnica do Serviço de Contratação Pública da Câmara Municipal ..., que propusesse no procedimento a lançar que se contratasse a sociedade B..., Lda.
44. Em 31 de outubro de 2018, HH, na qualidade de assistente técnica do Serviço de Contratação Pública da Câmara Municipal ..., e no exercício das suas funções, solicitou autorização para recorrer ao ajuste direto – regime simplificado,
45. Tendo o arguido BB, na qualidade de vice-presidente da Câmara Municipal ..., autorizado recorrer ao aludido procedimento por despacho proferido na mesma data.
46. Também em 31 de outubro de 2018, HH propôs a adjudicação à sociedade B..., Lda. e requereu autorização para a realização da despesa no valor global de € 475,00, sem antes solicitar à empresa a apresentação de orçamento,
47. Tendo o arguido BB, na qualidade de vice-presidente da Câmara Municipal ..., autorizado adjudicar o fornecimento das refeições à mencionada empresa pelo referido valor, por despacho proferido naquele mesmo dia 31 de outubro de 2018, não obstante saber que a sociedade era gerida pela arguida EE e que esta vivia em união de facto com o arguido AA.
48. Apenas em 7 de novembro de 2018, HH solicitou à sociedade B..., Lda. a apresentação de orçamento para o fornecimento das aludidas refeições, tendo a empresa apresentado orçamento no valor global de € 475,00.
- Procedimento n.º ... (cfr. fls. 92 a 100 do Apenso I)
49. Em 13 de setembro de 2019, II ordenou a OO que, ante a necessidade de contratar o fornecimento de refeições no âmbito de um almoço realizado pelo arguido AA com cinco membros da sociedade I..., propusesse no procedimento a lançar que se contratasse a sociedade B..., Lda.
50. Nessa sequência, nos dias 13 e 20 de setembro de 2019, OO elaborou duas requisições internas, para aquisição de sete refeições no valor total de € 175,00.
51. Concomitantemente, em 13 de setembro de 2020, OO solicitou à sociedade B..., Lda. a apresentação de orçamento para o fornecimento das aludidas refeições,
52. Tendo a empresa apresentado orçamento no valor global de € 175,00.
53. Na mesma data, OO solicitou autorização para recorrer ao ajuste direto – regime simplificado,
54. Tendo o arguido BB, na qualidade de vice-presidente da Câmara Municipal ..., autorizado recorrer ao aludido procedimento por despacho proferido naquele mesmo dia 13 de setembro de 2019.
55. Também em 13 de setembro de 2019, OO propôs a adjudicação à sociedade B..., Lda. e requereu autorização para a realização da despesa no valor global de € 175,00,
56. Tendo o arguido BB, na qualidade de vice-presidente da Câmara Municipal ..., autorizado adjudicar o fornecimento das refeições à mencionada empresa pelo referido valor, por despacho proferido naquele mesmo dia 13 de setembro de 2019, não obstante saber que a mesma era gerida pela arguida EE e que esta vivia em união de facto com o arguido AA.
- Procedimento n.º ... (cfr. fls. 99 a 108 do Apenso I)
57. Em 20 de novembro de 2019, KK, na qualidade de assistente técnica dos Serviços de Ação Social da Câmara Municipal ..., elaborou um documento denominado fundamentação da necessidade de contratar, com vista à contratação de serviço de fornecimento de almoços, no âmbito do evento Centro Municipal de Voluntariado.
58. Na mesma data, PP, na qualidade de Chefe do Serviço de Ação Social da Câmara Municipal ..., aprovou o aludido documento, o qual foi remetido para o Serviço de Contratação Pública.
59. Nessa sequência, nos dias 20 e 21 de novembro de 2019, HH, na qualidade de assistente técnica do Serviço de Contratação Pública da Câmara Municipal ..., e no exercício das suas funções, solicitou às sociedades B..., Lda. e J... a apresentação de orçamentos para o fornecimento de dez almoços.
60. Em 20 de novembro de 2019, a arguida EE, em representação da sociedade B..., Lda., apresentou um orçamento no valor de € 115,00.
61. Em 21 de novembro de 2019 a sociedade J... apresentou um orçamento no valor de € 120,00.
62. Em 21 de novembro de 2019, QQ, na qualidade de técnica superior do Departamento de Administração da Câmara Municipal ... e no exercício das suas funções, apresentou uma requisição interna, para aquisição de dez refeições no valor total de € 115,00, no âmbito do aludido evento.
63. Na mesma data, HH, assistente técnica do Serviço de Contratação Pública da Câmara Municipal ..., e no exercício das suas funções, solicitou autorização para recorrer ao ajuste direto – regime simplificado,
64. Tendo o arguido BB, na qualidade de vice-presidente da Câmara Municipal ..., autorizado recorrer ao aludido procedimento, por despacho proferido na mesma data.
65. Também em 22 de novembro de 2019, HH, assistente técnica do Serviço de Contratação Pública da Câmara Municipal ..., e no exercício das suas funções, propôs a adjudicação à sociedade B..., Lda. e solicitou autorização para a realização da despesa no valor global de € 115,00,
66. Tendo o arguido BB, na qualidade de vice-presidente da Câmara Municipal ..., autorizado adjudicar o fornecimento das refeições à mencionada empresa pelo referido valor, não obstante saber que a mesma era gerida pela arguida EE e que esta vivia em união de facto com o arguido AA.
- Procedimento n.º ... (cfr. fls. 109 a 118 do Apenso I)
67. Em 20 de novembro de 2019, KK, na qualidade de assistente técnica do Serviço de Ação Social da Câmara Municipal ..., elaborou o documento denominado fundamentação da necessidade de contratar, com vista à contratação de serviço de fornecimento de almoços, no âmbito do evento Aqui Entre Nós, a realizar no dia 14 de dezembro de 2019.
68. Na mesma data, PP, na qualidade chefe do Serviço de Ação Social da Câmara Municipal ..., aprovou o aludido documento, o qual foi encaminhado para os Serviços de Contratação Pública.
69. Nessa sequência, em 21 de novembro de 2019, QQ, na qualidade de técnica superior do Departamento de Administração da Câmara Municipal ... e no exercício das suas funções apresentou uma requisição interna, para aquisição de trinta e três refeições no valor total de € 396,02, no âmbito do aludido evento.
70. Concomitantemente, em 26 de novembro de 2019, HH, assistente técnica do Serviço de Contratação Pública da Câmara Municipal ..., e no exercício das suas funções, solicitou à sociedade B..., Lda. e ao estabelecimento K... a apresentação de orçamento para o fornecimento das aludidas refeições 71. Em 26 de novembro de 2019 o estabelecimento K... apresentou orçamento no valor total de € 365,05.
72. Em 2 de dezembro de 2019 a arguida EE, em representação da sociedade B..., Lda. apresentou orçamento no valor total de € 350,46.
73. Em 5 de dezembro de 2019, HH solicitou autorização para recorrer ao ajuste direto – regime simplificado,
74. Tendo o arguido BB, na qualidade de vice-presidente da Câmara Municipal ..., autorizado recorrer ao aludido procedimento por despacho proferido na mesma data.
75. Em 6 de dezembro de 2019, HH propôs a adjudicação à sociedade B..., Lda. e solicitou autorização para a realização da despesa no valor global de € 396,02,
76. Tendo o arguido BB, na qualidade de vice-presidente da Câmara Municipal ..., autorizado adjudicar o fornecimento das refeições à mencionada empresa pelo referido valor, não obstante saber que a mesma era gerida pela arguida EE e que esta vivia em união de facto com o arguido AA.
ii. Das adjudicações à sociedade FF, Unipessoal Lda.
- Procedimento relativo ao evento Verde Honra – Ex Combatentes do Ultramar (cfr. fls. 119 a 123 do Apenso I)
77. Na execução do plano previamente elaborado com o arguido DD, em data não concretamente apurada, anterior a 7 de setembro de 2018, o arguido CC, na qualidade de chefe do Gabinete de Apoio à Presidência da Câmara Municipal ... e no exercício dessas funções, ordenou a II, assistente técnica do Gabinete de Apoio à Presidência da Câmara Municipal ..., que, ante a necessidade de contratar o fornecimento de refeições no âmbito do evento Verde Honra – Ex Combatentes do Ultramar, propusesse no procedimento a lançar que se contratasse a sociedade FF, Unipessoal Lda., ciente que a mesma era gerida pelo arguido FF e que este é irmão do arguido DD.
78. Nessa sequência, em 7 de setembro de 2018, II, no exercício das suas funções, apresentou uma requisição interna, para aquisição de bebida e comida no âmbito do aludido evento.
79. Concomitantemente, II solicitou ao arguido FF a apresentação de orçamento para o fornecimento de vinho verde cavacas, sumos e águas.
80. Em 12 de setembro de 2018 o arguido FF, no nome e em representação da sociedade FF, Unipessoal Lda., apresentou um orçamento no valor total de € 215,00.
81. Em 18 de setembro de 2018, HH, assistente técnica do Serviço de Contratação Pública da Câmara Municipal ..., e no exercício das suas funções, solicitou autorização para recorrer ao ajuste direto – regime simplificado,
82. Tendo o arguido BB, na qualidade de vice-presidente da Câmara Municipal ..., e por impedimento do arguido AA, autorizado recorrer ao aludido procedimento por despacho proferido na mesma data.
83. No mesmo dia, HH propôs a adjudicação à sociedade FF, Unipessoal Lda. e solicitou autorização para a realização da despesa no valor global de € 215,00,
84. Tendo o arguido BB, na qualidade de vice-presidente da Câmara Municipal ..., e por impedimento do arguido AA, autorizado adjudicar o fornecimento das bebidas e comida à mencionada empresa pelo referido valor, por despacho proferido naquele mesmo dia 18 de setembro de 2018, não obstante saber que a mesma era gerida pelo arguido FF e que este é irmão do arguido DD.
- Procedimento ... (cfr. fls. 124 a 131 do Apenso I)
85. Em 12 de outubro de 2018, LL e RR, na qualidade de técnicas superiores do Gabinete de Comunicação e Imagem da Câmara Municipal ..., e na sequência de uma reunião tida com o arguido DD, requereram ao mesmo autorização para a aquisição de serviços de coffee break, no âmbito do evento L... em Gestão do Risco e Economia Circular, a realizar no dia 23 de outubro de 2018.
86. Em 15 de outubro de 2018, o arguido DD autorizou que se providenciasse pela contratação dos aludidos serviços.
87. Nessa sequência, em 15 de outubro de 2018 LL, no exercício das suas funções de técnica superior do Gabinete de Comunicação e Imagem da Câmara Municipal ..., apresentou uma requisição interna para aquisição de serviços de coffee break para setenta pessoas, no âmbito do aludido evento.
88. Concomitantemente, em 19 de outubro de 2018 e em 22 de outubro de 2018, HH, assistente técnica do Serviço de Contratação Pública da Câmara Municipal ..., e no exercício das suas funções, solicitou ao estabelecimento Quinta ... e ao arguido FF a apresentação de orçamentos para o fornecimento de produtos para um coffee break, mormente água, café, sumo de laranja, cavacas e pão de ló.
89. Em 19 de outubro de 2018, III, em representação do estabelecimento Quinta ..., apresentou um orçamento no montante de € 1.240,00, acrescido de imposto de valor acrescentado.
90. Em 22 de outubro de 2018, o arguido FF, em representação da sociedade FF, Unipessoal Lda., apresentou um orçamento no valor de € 350,00, acrescido de imposto de valor acrescentado.
91. Em 23 de outubro de 2018, HH, assistente técnica do Serviço de Contratação Pública da Câmara Municipal ..., e no exercício das suas funções, solicitou autorização para recorrer ao ajuste direto – regime simplificado,
92. Tendo o arguido AA, na qualidade de presidente da Câmara Municipal ..., autorizado recorrer ao aludido procedimento por despacho proferido na mesma data.
93. No mesmo dia, HH propôs a adjudicação à sociedade FF, Unipessoal Lda. e solicitou autorização para a realização da despesa no valor global de € 350,00,
94. Tendo o arguido AA, na qualidade de presidente da Câmara Municipal ..., autorizado adjudicar o fornecimento das bebidas e comida à mencionada empresa pelo referido valor, por despacho proferido naquele mesmo dia 23 de outubro de 2018, não obstante saber que a mesma era gerida pelo arguido FF e que este é irmão do arguido DD.
- Procedimento ... (cfr. fls. 132 a 143 do Apenso I)
95. Em 18 de setembro de 2018, NN, na qualidade de chefe dos Serviços de Desporto da Câmara Municipal ..., requereu autorização ao arguido DD para a realização de um coffee break, no âmbito do evento Workshop de Captação de Dirigentes Desportivos ..., a realizar no dia 29 de novembro de 2018.
96. Em 21 de setembro de 2018, o arguido DD autorizou que se realizasse o aludido coffee break.
97. Nessa sequência, em 26 de outubro de 2018 MM, na qualidade de assistente técnica dos Serviços de Desporto da Câmara Municipal ..., apresentou uma requisição interna para aquisição de serviços de coffee break para quarenta pessoas, no âmbito do aludido evento.
98. Concomitantemente, em 5 de novembro de 2018, HH, assistente técnica do Serviço de Contratação Pública da Câmara Municipal ..., e no exercício das suas funções, solicitou ao arguido FF a apresentação de orçamento para o fornecimento de produtos para um coffee break, mormente água, café, sumo, bolos sortidos, bolachas e doces regionais.
99. Em 12 de novembro de 2018, o arguido FF, em representação da sociedade FF, Unipessoal Lda., apresentou orçamento no valor de € 450,00, acrescido de imposto de valor acrescentado.
100. Em 13 de novembro de 2018, HH, assistente técnica do Serviço de Contratação Pública da Câmara Municipal ..., e no exercício das suas funções, solicitou autorização para recorrer ao ajuste direto – regime simplificado,
101. Tendo o arguido AA, na qualidade de presidente da Câmara Municipal ..., autorizado recorrer ao aludido procedimento por despacho proferido na mesma data.
102. No mesmo dia, HH propôs a adjudicação à sociedade FF, Unipessoal Lda. e solicitou autorização para a realização da despesa no valor global de € 450,00,
103. Tendo o arguido AA, na qualidade de presidente da Câmara Municipal ..., autorizado adjudicar o fornecimento das bebidas e comida à mencionada empresa pelo referido valor, por despacho proferido naquele mesmo dia 13 de novembro de 2018, não obstante saber que a mesma era gerida pelo arguido FF e que este é irmão do arguido DD.
- Procedimento ... (cfr. fls. 144 a 149 do Apenso I)
104. Na execução do plano previamente elaborado com o arguido DD, em data não concretamente apurada, anterior a 17 de julho de 2020, o arguido CC, na qualidade de chefe do Gabinete de Apoio à Presidência da Câmara Municipal ... e no exercício das suas funções, ordenou a JJ, secretária daquele Gabinete, que, ante a necessidade de aquisição de oito refeições para membros do executivo municipal, propusesse no procedimento a lançar que se contratasse a sociedade FF, Unipessoal Lda. ciente que a mesma era gerida pelo arguido FF e que este é irmão do arguido DD.
105. Nessa sequência, em 17 de julho de 2020, JJ requereu autorização para a aquisição de oito refeições para membros do executivo municipal, e propôs que o orçamento fosse solicitado ao arguido FF.
106. Seguidamente, na mesma data, QQ, na qualidade de técnica superior do Departamento de Administração da Câmara Municipal ..., e no exercício das suas funções, apresentou uma requisição interna para aquisição de oito refeições.
107. Em 17 de julho de 2020, OO solicitou autorização para recorrer ao ajuste direto – regime simplificado,
108. Tendo o arguido BB, na qualidade de vice-presidente da Câmara Municipal ..., e por impedimento do arguido AA, autorizado recorrer ao aludido procedimento por despacho proferido na mesma data.
109. No mesmo dia, OO propôs a adjudicação à sociedade FF, Unipessoal Lda. e solicitou autorização para a realização da despesa no valor global de € 200,00,
110. Tendo o arguido BB, na qualidade de vice-presidente da Câmara Municipal ..., e por impedimento do arguido AA, autorizado adjudicar o fornecimento das bebidas e comida à mencionada empresa pelo referido valor, não obstante saber que a mesma era gerida pelo arguido FF e que este é irmão do arguido DD.
- Procedimento ... (cfr. fls. 150 a 158 do Apenso I)
111. Na execução do plano previamente elaborado com o arguido DD, em data não concretamente apurada, anterior a 14 de setembro de 2020, o arguido CC, na qualidade de chefe do Gabinete de Apoio à Presidência da Câmara Municipal ... e no exercício dessas funções, ordenou a JJ, secretária do vice-presidente da Câmara Municipal ... (aqui arguido BB), que, ante a necessidade de aquisição de seis refeições para membros do executivo municipal, propusesse no procedimento a lançar que se contratasse a sociedade FF, Unipessoal Lda.
112. Consequentemente, em 14 de setembro de 2020, JJ, na qualidade de secretária do vice-presidente da Câmara Municipal ... (aqui arguido BB), requereu autorização para a aquisição de seis refeições para membros do executivo municipal.
113. Nessa sequência, na mesma data, SS, na qualidade assistente técnica do Departamento de Administração da Câmara Municipal ..., e no exercício das suas funções, apresentou uma requisição interna para aquisição de seis refeições.
114. Concomitantemente, na mesma data, JJ solicitou ao arguido FF a apresentação de orçamento para o fornecimento de almoços para seis pessoas.
115. No mesmo dia, o arguido FF, em representação da sociedade FF, Unipessoal Lda., apresentou orçamento no valor total de € 150,00.
116. Também em 14 de setembro de 2020, HH, assistente técnica do Serviço de Contratação Pública da Câmara Municipal ..., e no exercício das suas funções, solicitou autorização para recorrer ao ajuste direto – regime simplificado,
117. Tendo o arguido AA, na qualidade de presidente da Câmara Municipal ..., autorizado recorrer ao aludido procedimento por despacho proferido na mesma data.
118. No mesmo dia, HH propôs a adjudicação à sociedade FF, Unipessoal Lda. e solicitou autorização para a realização da despesa no valor global de € 150,00,
119. Tendo o arguido AA, na qualidade de presidente da Câmara Municipal ..., autorizado adjudicar o fornecimento das bebidas e comida à mencionada empresa pelo referido valor, por despacho proferido naquele dia 14 de setembro de 2020, não obstante saber que a mesma era gerida pelo arguido FF e que este é irmão do arguido DD.
120. Os arguidos AA, BB, CC e DD agiram de forma livre deliberada e consciente,
121. No exercício dos cargos que exerciam na Câmara Municipal ... de presidente, vice-presidente, chefe de gabinete e vereador, respetivamente,
122. Aproveitando o exercício das respetivas funções para beneficiar os arguidos EE e FF, com a adjudicação de contratos de fornecimento de refeições e bens alimentares às sociedades B..., Lda. e FF, Lda., geridas por estes.
123. Os arguidos AA e DD atuaram cientes que, atentas as relações familiares com os arguidos EE e FF, estavam impedidos de intervir, por qualquer forma (direta ou indireta), no exercício das suas funções e em representação do Município, na celebração daqueles contratos, bem como de interferir ou influenciar a sua tramitação e desfecho.
124. Tal impedimento era conhecido pelos arguidos BB e CC, os quais sabiam que os arguidos AA e EE viviam em união de facto e que os arguidos DD e FF são irmãos, e que, por esse motivo, os mesmos estavam impedidos de intervir, por qualquer forma (direta ou indireta), no exercício das suas funções e em representação do Município, na celebração daqueles contratos, bem como de interferir ou influenciar a sua tramitação e desfecho.
125. Os arguidos AA, BB, CC e DD sabiam ainda que os arguidos EE e FF, em representação e no interesse das sociedades por si geridas, não podiam celebrar contratos com o Município ..., uma vez que os respetivos companheiro e irmão ali exerciam funções de presidente e vereador, respetivamente.
126. Os arguidos AA, BB, CC e DD agiram do modo descrito conhecendo as leis aplicáveis à contratação pública e aos impedimentos, as quais deliberadamente decidiram não acatar nos procedimentos de adjudicação acima identificados.
127. Assim, ao atuar do modo descrito, os arguidos AA, BB, CC e DD desrespeitaram, de forma consciente e intencional, os deveres inerentes ao exercício das respetivas funções, nomeadamente no que concerne ao regime dos impedimentos previsto na lei, abusando dos poderes decorrentes dos cargos que exerciam, dos quais se aproveitaram para beneficiar os arguidos EE e FF,
128. Visando, com a respetiva conduta, favorecer patrimonialmente os arguidos EE e FF, com base em relações de proximidade familiar e pessoal, em detrimento dos interesses públicos tutelados pelos princípios que norteiam a contratação pública.
129. Os arguidos AA, BB, CC e DD atuaram bem sabendo que a respetiva conduta era adequada a abonar os arguidos EE e FF de quantias pecuniárias que, em condições de estrita observância dos princípios da livre concorrência, legalidade, transparência e boa gestão dos dinheiros públicos, os mesmos não reuniam condições de auferir.
130. Mais atuaram sabendo que as suas condutas eram lesivas dos interesses públicos de natureza patrimonial, que sabiam estarem incumbidos de defender no exercício das suas funções e, especificamente, no âmbito das adjudicações acima identificadas.
131. Por seu turno, os arguidos EE e FF agiram de forma livre, deliberada e consciente,
132. Cientes que os arguidos AA, BB, CC e DD exerciam na Câmara Municipal ... as funções de presidente, vice-presidente, chefe de gabinete e vereador, respetivamente,
133. E que os mesmos atuaram do modo descrito, adjudicando às sociedades B..., Lda. e A..., Lda. a prestação dos anteditos serviços, com a intenção de os beneficiar, o que aceitaram e quiseram,
134. Sabendo que não podiam celebrar contratos com o Município ..., uma vez que os respetivos companheiro e irmão ali exerciam funções de presidente e vereador, respetivamente.
135. Os arguidos agiram todos sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Ante o exposto:
I – Procedimento n.º ...
Cometeram os arguidos AA, BB e CC, em coautoria material, em concurso real com os demais crimes, e na forma consumada:
- um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho,
» Sendo a arguida EE responsável nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal;
II – Procedimento n.º ...
Cometeram os arguidos AA, BB e CC, em coautoria material, em concurso real com os demais crimes, e na forma consumada:
- um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho,
» Sendo a arguida EE responsável nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal;
III – Procedimento n.º ...
Cometeram os arguidos AA e BB, em coautoria material, em concurso real com os demais crimes, e na forma consumada:
- um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho,
» Sendo a arguida EE responsável nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal;
IV – Procedimento n.º ...
Cometeram os arguidos AA e BB, em coautoria material, em concurso real com os demais crimes, e na forma consumada:
- um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho,
» Sendo a arguida EE responsável nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal;
V – Procedimento n.º ... Cometeram os arguidos AA e BB, em coautoria material, em concurso real com os demais crimes, e na forma consumada:
- um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho,
» Sendo a arguida EE responsável nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal;
VI – Procedimento relativo ao evento Verde Honra – Ex Combatentes do Ultramar
Cometeram os arguidos BB, CC e DD, em coautoria material, em concurso real com os demais crimes, e na forma consumada:
- um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho,
» Sendo o arguido FF responsável nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal;
VII – Procedimento ...
Cometeram os arguidos AA e DD, em coautoria material, em concurso real com os demais crimes, e na forma consumada:
- um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho,
» Sendo o arguido FF responsável nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal;
VIII – Procedimento ...
Cometeram os arguidos AA e DD, em coautoria material, em concurso real com os demais crimes, e na forma consumada:
- um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho,
» Sendo o arguido FF responsável nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal;
IX – Procedimento ...
Cometeram os arguidos BB, CC e DD, em coautoria material, em concurso real com os demais crimes, e na forma consumada:
- um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho,
» Sendo o arguido FF responsável nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal;
X – Procedimento ...
Cometeram os arguidos AA, CC e DD, em coautoria material, em concurso real com os demais crimes, e na forma consumada:
- um crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho,
» Sendo o arguido FF responsável nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal.
Os arguidos AA, BB, CC e DD atuaram em grave violação dos deveres inerentes às suas funções, quebrando a confiança que neles foi depositada para o seu adequado exercício.
Destarte, ao abrigo do disposto no artigo 29.º, al. f) da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, deverá ser decretada a perda dos mandatos que os arguidos exercem, o que se requer…”
Prova:
1 – Documental:
1.1 – Dos autos principais:
- cota/juntada junta a fls. 46 a 48;
- print junto a fls. 49 a 52;
- auto de análise junto a fls. 267 a 272;
- certidões permanentes juntas a fls. 528 a 577;
- assentos de nascimento juntos a fls. 695 a 699;
- despachos de constituição do gabinete de apoio à presidência junto a fls. 703 a 705;
- atas de instalação da Câmara Municipal ..., juntas a fls. 706 a 709;
- informação junta a fls. 710;
1.2 – Do apenso I:
- procedimentos de ajuste direto simplificado juntos a fls. 81 a 158;
2 – Testemunhal:
1ª: HH, id. a fls. 345;
2ª: II, id. a fls. 391;
3ª: OO, id. a fls. 514;
4ª: JJ, id. a fls. 396
5ª: KK, id. a fls. 501;
6ª: LL, id. a fls. 504;
7ª: MM, id. a fls. 507;
8ª: NN, id. a fls. 510:
9ª: PP, id. a fls. 731;
10ª: QQ, id. a fls. 734;
11ª: RR, id. a fls. 737;
12ª: SS, id. a fl. 740.
Vejamos.
Questões a apreciar:
- se existem indícios dos factos imputados aos arguidos;
- se a conduta dos arguidos preenche, em termos objetivos e subjetivos, o tipo de ilícito que lhes é imputado.
Dispõe o artigo 1º do citado diploma, sob a epigrafe “âmbito da presente lei”, que a lei em causa tem em vista determinar os crimes de responsabilidade que titulares de cargos políticos cometam no exercício das suas funções, bem como as sanções que lhes são aplicáveis e os respetivos efeitos, e desde a entrada em vigor da redação introduzida pela Lei n.º 41/2010 de 3/9, também titulares de altos cargos públicos que cometam no exercício das suas funções, bem como as sanções que lhe são aplicáveis e respetivos efeitos.
Em suma, «prevê os chamados “crimes de responsabilidade”. Os “crimes de responsabilidade” são, pois, os praticados por titulares de cargos políticos no exercício das suas funções, infringindo bens ou valores particularmente relevantes na ordem constitucional, contrapondo-se assim aos «crimes comuns» que possam cometer fora do exercício das suas funções”.
“Certos crimes só podem ser cometidos por determinadas pessoas, na medida em que possuem uma determinada qualidade ou sobre elas recai um dever especial. São os chamados crimes específicos, como é o caso dos crimes de responsabilidade. Com efeito, é característica essencial destes apenas poderem ser praticados pelos titulares de cargos políticos no exercício das suas funções”.
A delimitação dos titulares de cargos políticos a quem é aplicável a Lei n.º 34/87 de 16 de julho é feita, em termos taxativos, no seu art. 3º, em cujo elenco, na al. i), consta o “de membro de órgão representativo de autarquia local”.
O município é, consabidamente, uma autarquia local, que tem como órgãos representativos a assembleia municipal e câmara municipal (arts. 235º, 236º e 250º a 252º da Constituição da República Portuguesa e arts. 5º e 6º da Lei n.º 75/2013 de 12/9).
Dispõe o art.º 11º da citada Lei n.º 34/87 de 16/7 que “o titular de cargo político que conscientemente conduzir ou decidir contra direito um processo em que intervenha no exercício das suas funções, com a intenção de por essa forma prejudicar ou beneficiar alguém, será punido com prisão de dois a oito anos».
Assim, o crime de prevaricação visa a punição daquele que se torna infiel ao próprio cargo, em assumida violação dos deveres ao mesmo inerentes, como se extrai da construção do tipo legal contido no artigo 11º da Lei 34/87, de 16/7.
O bem jurídico protegido é a fidelidade à lei e ao direito, no exercício de funções públicas. Neste contexto, o bem jurídico protegido com a incriminação da prevaricação em causa consiste na realização da função administrativa autárquica segundo o direito e no interesse do bem comum, sem ilegalidades, nem compadrios ou malquerenças particulares, o que se extraia do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, 2024.01.31, disponível em www.dgsi.pt. Por seu lado, Maria do Carmo Silva Dias (in «Comentário das Leis Penais Extravagantes», volume I, página 751), refere que «o que se tutela é a necessidade de garantir a submissão à lei e aos princípios fundamentais do Direito do titular de cargo político que, por virtude do cargo que ocupa, tem a função de conduzir ou decidir processo que lhe está afeto. São, por isso, interesses (coletivos) supra-individuais que se protegem, independentemente de mediatamente também poderem vir a ser afetados interesses (privados) individuais e, nessa medida, estes poderem ser protegidos reflexamente». No citado acórdão do STJ, de 31/1/2024, deixou-se consignado que a razão material que preside à criação de um regime jurídico específico para os titulares de cargos políticos prende-se com a especial intensidade e importância dos deveres de zelo e promoção de bens jurídico-constitucionais, em sentido estrito, a que se encontram adstritos os titulares de cargos políticos, em razão das suas funções e da sua particular legitimidade democrática (cf. Jorge Miranda e Rui Medeiros, in “Constituição Portuguesa Anotada”, II, 2006, 322). Nesta medida, à contratação pública são especialmente aplicáveis os princípios da transparência, da igualdade e da concorrência (artigo 1.º, n.º 4 do Código dos Contratos Públicos). Por outro lado, não é necessária a existência de prejuízo para a entidade adjudicante, bastando a intenção de beneficiar ou prejudicar alguém. O tipo legal em análise pode classificar-se como um delito de intenção ou de tendência interna transcendente, no sentido de que o agente persegue um resultado, que determina internamente a sua conduta, sem que, contudo, o preenchimento do tipo dependa da efetiva produção desse resultado» (in “O crime de prevaricação, no âmbito da responsabilidade criminal dos titulares de cargos políticos”, Sílvia Marques Alves, RPCC, nº 1, 2015).
Deste modo, o crime de prevaricação pressupõe que, em procedimento administrativo inerente às suas funções, o agente cometa atos ou omissões contrárias ao direito, entendido este como conjunto de princípios e normas jurídicas vinculativas ao processo e à decisão respetiva. – cfr. acórdão do TRL de 9/11/2011, relatado pelo Desembargador Paulo Fernandes da Silva (consultável em www.dgsi.pt).
No que concerne ao tipo subjetivo, torna-se clara a exigência de dolo direto ou necessário, em face da exigência típica resultante da expressão “conscientemente". Neste sentido e a título exemplificativo, cf. o acórdão do TRL de 24/6/2020, relatado pelo Desembargador João Lee Ferreira, in www.dgsi.pt.Como observa A. Medina de Seiça, in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, parte especial, tomo III, em anotação ao artigo 369.º do Código Penal, exigindo a lei portuguesa que o funcionário atue “conscientemente”, pelo que as situações reconduzíveis à dolosidade eventual, isto é, aquelas em que o agente representando a realização do facto como possível conforma-se com a sua realização (art.º 14.º, n.º 3), não se encontram abrangidas pela norma incriminadora, o mesmo é dizer, não são puníveis. Dito de outra forma, o ilícito em causa é apenas punível a título de dolo direto (aqui incluído o “dolo necessário”). Assim, na linha do que tem sido entendido pela jurisprudência, o crime de prevaricação tem como elementos objetivos do tipo: - condução ou decisão de um processo por titular de cargo político em que intervenha no exercício das suas funções; - conscientemente contra direito. E, como elemento subjetivo: - o dolo (excluindo a forma eventual em face da utilização da expressão “consciente” pela norma legal); e, - especial intenção de por essa forma prejudicar ou beneficiar alguém (o denominado “dolo específico”). Para o cometimento do crime de prevaricação não é necessária a existência de prejuízo para a entidade adjudicante, mas que o agente, conscientemente, conduza – ou decida contra direito um processo em que intervenha no exercício das suas funções, com a intenção de por essa forma prejudicar ou beneficiar alguém. Para que se possa entender por “conduzir” um processo é preciso ter o poder de o orientar, de lhe imprimir um determinado rumo, de acordo com o formalismo legal e “decidir” implica proferir uma decisão de fundo sobre a questão (administrativa) que é colocada (cf. o acórdão do TRP de 9/11/2022, relatado pela Desembargadora Maria Luísa Arantes, in www.dgsi.pt). Por seu lado, o «alguém» de que se fala pode ser uma pluralidade de pessoas, singulares ou coletivas, desde que concretamente determinadas. O benefício – entendido como toda a vantagem que o sujeito ativo pretende retirar da sua atuação -, embora ilegítimo, não tem que ser patrimonial, podendo derivar do mero compadrio, ou mesmo assumir fins caritativos ou altruísticos, como assinala Paula Ribeiro de Faria (in “Comentário Conimbricense do Código Penal”, parte especial, tomo III, em anotação ao artigo 382.º do Código Penal).
Na situação concreta, o que se diz, em termos gerais na acusação pública, é de que “em data não concretamente apurada, situada no ano de 2018, os arguidos AA e DD, aproveitando a circunstância de exercerem funções na Câmara Municipal ..., determinaram-se a beneficiar as sociedades B..., Lda. e A..., Lda., geridas por si e por familiares seus, especificamente os aqui arguidos EE e FF, através da adjudicação do fornecimento de refeições em almoços, jantares e eventos organizados ou em que interviesse o Município ....
Os arguidos BB e CC aderiram aos desígnios dos arguidos AA e DD, com os quais se concertaram para alcançar aquele propósito.
Ora, os arguidos AA e DD sabiam que os arguidos EE e FF não podiam celebrar contratos com o Município ..., dadas as relações familiares existentes.
Sabiam ainda que, pelos mesmos motivos, estavam impedidos de intervir, em representação da edilidade, em contratos em que interviessem os arguidos EE e FF.
Tais circunstâncias eram do conhecimento dos arguidos BB e CC.
Não obstante, para alcançarem os seus propósitos, os arguidos AA, BB, CC e DD determinaram-se a emitir ordens aos funcionários que exerciam, à data, funções na edilidade – nomeadamente no gabinete de apoio à presidência, no serviço de contratação pública, no serviço de desporto e no serviço de ação social – para que, no âmbito dos procedimentos que seriam lançados, propusessem que as sociedades B..., Lda. e FF, Lda. fossem selecionadas para a prestação dos serviços em causa.
Determinaram-se também a tramitar tais procedimentos ou a influenciar a sua tramitação, de forma a que os serviços a prestar fossem adjudicados àquelas empresas.
Para criar uma aparência de legitimidade e regularidade dos procedimentos, mais acordaram os arguidos, AA e BB, que nos procedimentos em que os serviços a prestar seriam adjudicados à sociedade B..., Lda., gerida pela arguida EE, o arguido, AA, não proferisse quaisquer despachos ou decisões, sendo substituído para o efeito pelo arguido BB…”
Pois bem.
Como se sabe, a 1 de janeiro de 2018 entrou em vigor o Código dos Contratos Públicos (CCP) revisto, no Decreto-Lei n.º 111-B/2017, de 31 de agosto de 2017, que pretendeu simplificar, desburocratizar e flexibilizar os procedimentos de formação dos contratos públicos com vista a um aumento de eficiência da despesa pública. No intuito de garantir o normal funcionamento ou fazer face às necessidades imprevistas, os serviços e instituições públicas necessitam de fazer aquisições de diferentes tipos (obras, bens e serviços). Na verdade, as despesas envolvidas nas aquisições representam uma grande fatia dos orçamentos dos serviços e instituições públicas e uma considerável quantia de dinheiro público é gasta anualmente. A contratação pública, em termos sumários, são procedimentos administrativos (isto é, regulados por normas de direito administrativo) da iniciativa de uma entidade adjudicante, tendo em vista a escolha de um concorrente e da sua proposta para a celebração de um contrato ou para a prática de um ato administrativo.
O Código dos Contratos Públicos é um diploma que regula duas grandes matérias, a formação e a execução de contratos públicos, ou seja, por um lado, diz como é que os contratos públicos podem ser celebrados, estabelece as regras dos procedimentos que dão origem a um contrato público, e, por outro lado, disciplina, umas vezes de forma imperativa, outras vezes de forma complementar, aspetos muito importantes da execução do contrato, nomeadamente as obrigações e os poderes das partes, o incumprimento, a modificação do contrato, entre outros.
Nesta linha de orientação, dispõe o artigo 112º do CCP, sob a “Noção de consulta prévia e de ajuste direto”, no seu nº1, de que a consulta prévia é o procedimento em que a entidade adjudicante convida diretamente pelo menos três entidades à sua escolha a apresentar proposta, podendo com elas negociar os aspetos da execução do contrato a celebrar.
E no seu nº2, o ajuste direto é o procedimento em que a entidade adjudicante convida diretamente uma entidade à sua escolha a apresentar proposta.
No artigo 113º, sob a epigrafe “Escolha das entidades convidadas”, dispõe-se que:
- Sem prejuízo do disposto no n.º 1 do artigo 128.º, a escolha das entidades convidadas a apresentar proposta nos procedimentos de consulta prévia ou de ajuste direto cabe ao órgão competente para a decisão de contratar.
2 - Não podem ser convidadas a apresentar propostas, entidades às quais a entidade adjudicante já tenha adjudicado, no ano económico em curso e nos dois anos económicos anteriores, na sequência de consulta prévia ou ajuste direto adotados nos termos do disposto nas alíneas c) e d) do artigo 19.º e alíneas c) e d) do n.º 1 do artigo 20.º, consoante o caso, propostas para a celebração de contratos cujo preço contratual acumulado seja igual ou superior aos limites referidos naquelas alíneas.
3 - Para efeitos do disposto no número anterior:
(…)
b) Quando a entidade adjudicante seja um município, são tidos em conta, autonomamente, os contratos celebrados no âmbito de cada serviço municipalizado.
4 - O disposto no n.º 2 não se aplica aos procedimentos de ajuste direto para a formação de contratos de locação ou aquisição de bens móveis e de aquisição de serviços de uso corrente promovidos por autarquias locais sempre que:
a) A entidade convidada seja uma pessoa singular ou uma micro, pequena ou média empresa, devidamente certificada nos termos da lei, com sede e atividade efetiva no território do concelho em que se localize a entidade adjudicante; e
b) A entidade adjudicante demonstre fundamentadamente que, nesse território, a entidade convidada é a única fornecedora do tipo de bens ou serviços a locar ou adquirir.
5 - Não podem igualmente ser convidadas a apresentar propostas entidades que tenham executado obras, fornecido bens móveis ou prestado serviços à entidade adjudicante, a título gratuito, no ano económico em curso ou nos dois anos económicos anteriores, exceto se o tiverem feito ao abrigo do Estatuto do Mecenato.
Dispondo, neste particular, o artigo 20.º, sob a epigrafe “Escolha do procedimento de formação de contratos de locação ou de aquisição de bens móveis e de aquisição de serviços”
1 - Para a celebração de contratos de locação ou de aquisição de bens móveis e de aquisição de serviços, pode adotar-se um dos seguintes procedimentos:
a) Concurso público ou concurso limitado por prévia qualificação, com publicação de anúncio no Jornal Oficial da União Europeia, qualquer que seja o valor do contrato;
b) Concurso público ou concurso limitado por prévia qualificação, sem publicação de anúncio no Jornal Oficial da União Europeia, quando o valor do contrato seja inferior aos limiares referidos nas alíneas b) ou c) do n.º 3 do artigo 474.º, consoante o caso;
c) Consulta prévia, com convite a pelo menos três entidades, quando o valor do contrato seja inferior a (euro) 75.000;
d) Ajuste direto, quando o valor do contrato for inferior a (euro) 20.000.
2 - (Revogado.)
3 - (Revogado.)
4 - (Revogado.)
Por seu lado, na SECÇÃO III, sob a epigrafe “Ajuste direto simplificado”, artigo 128º, dispõe-se quanto à tramitação:
No nº 1 - No caso de se tratar de ajuste direto para a formação de um contrato de aquisição ou locação de bens móveis e de aquisição de serviços cujo preço contratual não seja superior a (euro) 5.000, ou no caso de empreitadas de obras públicas, a (euro) 10.000, a adjudicação pode ser feita pelo órgão competente para a decisão de contratar, diretamente, sobre uma fatura ou um documento equivalente apresentado pela entidade convidada, com dispensa de tramitação eletrónica.
2 - À decisão de adjudicação prevista no número anterior está subjacente a decisão de contratar e a decisão de escolha do ajuste direto nos termos do disposto na alínea d) do artigo 19.º e na alínea d) do n.º 1 do artigo 20.º
3 - O procedimento de ajuste direto regulado na presente secção está dispensado de quaisquer outras formalidades previstas no presente Código, incluindo as relativas à celebração do contrato, à publicitação prevista no artigo 465.º e à designação do gestor do contrato previsto no artigo 290.º-A, assim como do regime de faturação eletrónica.
4 - O regime previsto no presente artigo é aplicável, nos limites previstos no n.º 1, às aquisições de bens e serviços realizadas através de plataformas de intermediação online.
Por fim, dispondo o artigo 129º do citado diploma, sob o prazo e preços:
Nos contratos celebrados na sequência do ajuste direto regulado na presente secção:
a) O prazo de vigência não pode ter duração superior a três anos a contar da decisão de adjudicação nem pode ser prorrogado, sem prejuízo da existência de obrigações acessórias que tenham sido estabelecidas inequivocamente em favor da entidade adjudicante, tais como as de sigilo ou de garantia dos bens ou serviços adquiridos;
b) O preço contratual não é passível de revisão.
Em suma, o ajuste direto simplificado é um procedimento para a aquisição de bens/serviços cujo preço contratual não seja superior a 5.000,00€. O preço contratual no ajuste direto simplificado não pode ser objeto de revisões (alínea b) do artigo 129.º CCP). A entidade adjudicante convida através de e-mail uma ou mais entidades para apresentação de orçamento para os bens/serviços identificados. Após a receção dos orçamentos, analisa os preços e as condições de fornecimento e propõe a adjudicação da melhor proposta, sendo emitido o cabimento da despesa no valor da adjudicação. Os serviços administrativos elaboram uma informação de autorização de despesa para o órgão com competência para a decisão de contratar. O órgão com competência para a decisão de contratar autoriza a despesa, sendo em seguida emitida e enviada ao fornecedor uma nota de encomenda com a notificação da adjudicação do bem ou serviço. A adjudicação é direta sobre a fatura ou documento equivalente.
O prazo de vigência neste tipo de procedimento não pode ter duração superior a 1 (um) ano a contar da decisão de adjudicação, nem pode ser prorrogado (artigo 129.º alínea a) CCP).
Com base no supra exposto, ou seja, nas normas que regulam os procedimentos por ajuste direto simplificado supra referidos, não se vislumbra que qualquer um dos procedimentos descritos na acusação pública tenham violado qualquer norma legal, nomeadamente violando os valores das adjudicações, aos prazos e entidades em causa.
Aliás, se atentarmos à factualidade da acusação pública, constata-se que nada se diz a esse respeito, ou seja, não se coloca em causa o tipo de adjudicação, os prazos ou valores, tanto mais que nem sequer se alega de que existiam, para aquele tipo de serviços, entidades que praticassem preços inferiores aos que praticaram as entidades contratadas.
Aliás, no âmbito do procedimento nº ..., de fls. 99 a 108, apenso I, diz-se que a solicitação de HH, assistente técnica do Serviço de Contratação Pública da Câmara Municipal ..., a 20.11.2019, a arguida, EE, em representação da sociedade B..., apresentou um orçamento no valor de €115,00 para a prestação do serviço, e a 21 de novembro de 2019, a sociedade J..., apresentou um orçamento no valor de € 120,00, tendo o serviço sido adjudicado à B..., ou seja, à entidade que apresentou o orçamento com o valor mais baixo.
Em suma, no único caso referido na acusação pública com dois orçamentos, a opção dos serviços Camarários recaiu pela entidade que apresentou o orçamento mais baixo.
Dito isto, a acusação cinge-se a um alegado entendimento/conluio entre os arguidos com vista a “beneficiarem” duas empresas/entidades, a saber: sociedades B..., Lda. e FF, Lda., geridas por si e por familiares seus, especificamente os aqui arguidos EE e FF, através da adjudicação do fornecimento de refeições em almoços, jantares e eventos organizados ou em que interviesse o Município ..., atento as relações familiares.
Não obstante o alegado na acusação publica, o certo é que os elementos probatórios recolhidos em sede de inquérito, como na instrução, não demonstram tais factos, ou seja, o alegado conluio ou compadrio com vista a beneficiar as empresas, B..., Lda. (conhecido como o antigo “C...”) e A..., Unipessoal, Lda. (conhecido como a “D...”), em decorrência das alegadas relações familiares.
Repare-se:
- em sede de inquérito, como na instrução, apurou-se que cada serviço, face às necessidades de determinados eventos, preenche um documento interno onde indica o evento, dia e hora e, por regra, o próprio indica o restaurante/entidade a contratar, face às necessidade do evento e numero de pessoas, basta atentar nos depoimentos recolhidos em inquérito e na instrução, em particular GG, chefe de Divisão de contratação pública.
- GG disse, ainda, que no seu gabinete (gabinete de contratação), após receberem as propostas, aferem da referida legalidade do procedimento, nomeadamente têm atenção de que os familiares não têm intervenção no procedimento, embora tal, às vezes, se apresente difícil por estarmos perante uma autarquia de pequena dimensão;
- De todos os depoimentos das testemunhas inquiridas em sede de inquérito, HH, II, JJ, KK, LL, MM, NN, OO, PP, QQ, RR e SS, nenhum deles vai no sentido de houve a violação dolosa de qualquer procedimento de contratação das entidades/restaurantes em causa, nomeadamente de que o arguido AA, DD, ou qualquer outro arguido, tivesse traçado qualquer plano para favorecer as empresas B..., Lda. e A..., Unipessoal, Lda.
- O que foi sustentado, em termos gerais, por todas as testemunhas inquiridas em sede de instrução - TT, GG, UU, II, OO, JJ – é a de que a contratação pública efetuada pelos serviços camarários, a pedido pelos diversos serviços, orientou-se pela habitual rotatividade.
Em processos até 5.000,00€, a competência para determinar/aprovar a realização de determinado evento é da competência do vereador, mediante proposta/requisição apresentada pelos serviços, sendo que estes, na maior parte das vezes, indicavam a entidade a contratar.
Os pedidos aparecem na divisão da contratação pública com uma ou mais entidades e respetivos orçamentos, embora a maior parte dos casos até só aparece um (1) orçamento, atento aos valores baixos e ao desinteresse de muitas entidades.
Nos respetivos serviços camarários, ao que se apurou, as entidades a contratar eram orientadas com base a rotatividade e a necessidade dos respetivos serviços face ao evento a realizar, nomeadamente se era necessário um restaurante com sala reservada/ou mais requintado (o que ocorria com a “B...” – “C...”), não sendo conhecido outro tipo de restaurantes com este tipo de características), ou a necessidade de realização de catering no local do evento ou serviço mais informal, o que já seria mais adequado a sociedade “A..., Unipessoal, Lda., “D...”.
-De todas as testemunhas inquiridas em sede de instrução, nenhum disse saber ou ter sido abordada, por qualquer um dos arguidos, nomeadamente por AA e DD no sentido de determinar e beneficiar as sociedades B... e A..., Lda., o que também se constata de todos os depoimentos recolhidos em sede de inquérito.
- Em face do supra exposto, resultou claro que o facto de se contactar uma ou mais entidades, estava diretamente relacionado com as necessidades dos eventos (pois muitos dos restaurantes não estavam aptos para a prestação de serviços), e muitas das vezes relacionado com o próprio interesse dessas entidades (não ter capacidade para tal, o valor do serviço a contratar ser diminuto, ser conhecido a demora de pagamento pela edilidade, etc.)-veja-se, neste particular, os depoimentos, entre outros, de UU, GG, na instrução, ou LL, a fls. 756, no inquérito ).
Em suma, analisada toda a prova recolhida em sede de inquérito e na instrução, apurou-se que era habitual os serviços requisitantes ao elaborar a requisição interna, atualmente denominada da necessidade de contratar, pedir orçamentos a uma ou mais entidades.
Que era também normal muitos desses pedidos serem efetuados de forma informal, por contacto telefónico ou email, e que muitas das vezes só era obtido um (1) orçamento, sendo depois esse nome (a entidade) o apresentado à divisão de contratação pública.
Por exemplo, a testemunha II, funcionária do GAP, gabinete de apoio à Presidência, referiu que sempre que era necessário a contratação de serviços para o executivo, faziam a requisição para que o mesmo fosse para o serviço de contratação e que havia algumas das situações em que era o próprio chefe de gabinete, no caso CC, a indicar.
Deu, a titulo de exemplo, o evento “verde de honra dos combatentes de ultramar”, que face ao dia em causa (domingo) e logística, não tiveram qualquer outra entidade capaz de prestar os referidos serviços, que não fosse o restaurante denominado – D... – sociedade A..., Unipessoal, Lda..
O mesmo referiu JJ, em sede de instrução, de que o chefe de gabinete, CC, as vezes dava a indicação de um, dois ou três nomes a contactar. Contudo, em decorrência do tipo de serviço ou necessidades, só ficava as vezes com um nome, ou seja, uma única entidade que aceitava o tipo de serviço a prestar.
Questionada diretamente se alguma vez recebeu alguma indicação concreta para beneficiar determinada entendida em prejuízo de outra, disse que nunca tal ocorreu, nem se apercebeu que tal tivesse ocorrido.
Em suma, após a audição de todas as testemunhas em sede de inquérito, como na instrução, constata-se que não houve uma única a alegar que havia algum tipo de entendimento, pedido ou conluio no sentido de favorecer determinados restaurantes em prejuízo de outros, pois os critérios foram sempre o de proximidade (do concelho), finalidades/espaço e preços.
Perante a presente prova, extrai-se o seguinte:
- os procedimentos descritos na acusação pública cumpriram os pressupostos legais para a contratação pública, sendo realizados no âmbito de ajuste direto simplificado - procedimento para a aquisição de bens/serviços cujo preço contratual não seja superior a 5.000,00€.
- o pedido de orçamento a uma ou mais entidades era o habitual, tendo como critérios a rotatividade, razão pela qual muitas outras entidades, para além das indicadas na acusação pública, foram abordadas e contratadas, como decorre do mapa de contratação de fls. 1021 a 1035.
- a B..., conhecido pelo restaurante C... (existente no concelho há mais de 30/40 anos), tal a sociedade A..., Unipessoal,Lda (existente no concelho há mais de 15 anos), já no anterior executivo (ou seja, antes do executivo liderado pelo arguido AA), eram também convidados a prestar serviços de restauração para à autarquia.
- a B..., é conhecida por ter um serviço mais “elitista” e reservado (tem sala para almoço ou jantar reservado), ao passo que a D..., era vista para eventos mais informais ou que carecessem de catering no local.
- existiram situações, que apesar de contactadas mais do que uma entidade, a autarquia só recebeu uma resposta (tal ocorria por falta de capacidade de muitos restaurantes ou de interesse na prestação de serviço, sabendo que depois tinham que aguardar pelo pagamento, que poderia ir de 30, 60 a mais dias).
- de todas as testemunhas inquiridas em sede de inquérito, tal como na instrução, nenhuma delas fez referência a qualquer pedido, intervenção ou influencia em qualquer procedimento ou contratação de serviços por parte do presidente de Câmara, AA ou de qualquer outro arguido;
- a circunstância de em determinados procedimentos, como os que constam na acusação pública, existir a indicação de um (ou mais) nome/entidade a contactar para eventual contratação, por parte dos responsáveis pelos serviços, como ocorreu com o arguido CC, chefe de gabinete de apoio à presidência (GAP), tal não só se apresentava como normal e regular, atento as suas funções, como inclusive outros o faziam, em face das necessidades/evento pedido por cada serviço.
- mais, no próprio gabinete, outros funcionárias, por vezes, também indicavam o nome de possíveis entidades a contactar, face ao tipo de evento, logística ou necessidades.
Perante o exposto, não só não existe qualquer prova de conluio ou concertação de esforços dos arguidos, AA e DD, no sentido de se aproveitarem da circunstância de exercerem funções na Câmara Municipal ..., e se terem determinado a beneficiar as sociedades B..., Lda. e A..., Lda., como não existe qualquer prova de que os arguidos, BB e CC, tivessem aderido a qualquer desígnio dos arguidos AA e DD, nesse sentido.
Mais, que para alcançarem os seus propósitos, os arguidos AA, BB, CC e DD determinaram-se a emitir ordens aos funcionários que exerciam, à data, funções na edilidade – nomeadamente no gabinete de apoio à presidência, no serviço de contratação pública, no serviço de desporto e no serviço de ação social – para que, no âmbito dos procedimentos que seriam lançados, propusessem que as sociedades B..., Lda. e A..., Lda. fossem selecionadas para a prestação dos serviços em causa. Por último, mas não menos importante, sabendo-se que a lei exige que o funcionário, titular de cargo politico, atue “conscientemente”, ou seja, com dolo direto, na falta de qualquer outra prova, jamais tal elemento do tipo seria comprovado em sede de audiência de julgamento, tal como a aderência de todos os demais arguidos a este alegado prepósito comum.
Em suma, atento à prova recolhida em sede de inquérito, conjugada com a recolhida em sede de instrução, seria elevada a probabilidade de os arguidos serem absolvidos em sede de audiência de julgamento, razão pela qual se impõe a não pronúncia.
Claro está que face ao supra exposto, o que se diz em relação aos arguidos requerentes de abertura da instrução, tem natural aplicação aos demais arguidos não requerentes de abertura da instrução, pelo que se impõe também a sua não pronuncia, nos termos do nº4 do artigo 307º do CPP.
(…)
Dos factos não indiciados com interesse:
Em data não concretamente apurada, situada no ano de 2018, os arguidos AA e DD, aproveitando a circunstância de exercerem funções na Câmara Municipal ..., determinaram-se a beneficiar as sociedades B..., Lda. e A..., Lda., … através da adjudicação do fornecimento de refeições em almoços, jantares e eventos organizados ou em que interviesse o Município ....
Os arguidos BB e CC aderiram aos desígnios dos arguidos AA e DD, com os quais se concertaram para alcançar aquele propósito.
Não obstante, para alcançarem os seus propósitos, os arguidos AA, BB, CC e DD determinaram-se a emitir ordens aos funcionários que exerciam, à data, funções na edilidade – nomeadamente no gabinete de apoio à presidência, no serviço de contratação pública, no serviço de desporto e no serviço de ação social – para que, no âmbito dos procedimentos que seriam lançados, propusessem que as sociedades B..., Lda. e A..., Lda. fossem selecionadas para a prestação dos serviços em causa.
Determinaram-se também a tramitar tais procedimentos ou a influenciar a sua tramitação, de forma a que os serviços a prestar fossem adjudicados àquelas empresas.
Para criar uma aparência de legitimidade e regularidade dos procedimentos, mais acordaram os arguidos AA e BB que nos procedimentos em que os serviços a prestar seriam adjudicados à sociedade B..., Lda., gerida pela arguida EE, o arguido AA não proferisse quaisquer despachos ou decisões, sendo substituído para o efeito pelo arguido BB.
….Os arguidos AA, BB, CC e DD agiram de forma livre deliberada e consciente,
No exercício dos cargos que exerciam na Câmara Municipal ... de presidente, vice-presidente, chefe de gabinete e vereador, respetivamente,
Aproveitando o exercício das respetivas funções para beneficiar os arguidos EE e FF, com a adjudicação de contratos de fornecimento de refeições e bens alimentares às sociedades B..., Lda. e A..., Lda., geridas por estes.
Os arguidos AA e DD atuaram cientes que, atentas as relações familiares com os arguidos EE e FF, estavam impedidos de intervir, por qualquer forma (direta ou indireta), no exercício das suas funções e em representação do Município, na celebração daqueles contratos, bem como de interferir ou influenciar a sua tramitação e desfecho.
Os arguidos AA, BB, CC e DD agiram do modo descrito conhecendo as leis aplicáveis à contratação pública e aos impedimentos, as quais deliberadamente decidiram não acatar nos procedimentos de adjudicação acima identificados.
Ao atuar do modo descrito, os arguidos AA, BB, CC e DD desrespeitaram, de forma consciente e intencional, os deveres inerentes ao exercício das respetivas funções, nomeadamente no que concerne ao regime dos impedimentos previsto na lei, abusando dos poderes decorrentes dos cargos que exerciam, dos quais se aproveitaram para beneficiar os arguidos EE e FF,
Visando, com a respetiva conduta, favorecer patrimonialmente os arguidos EE e FF, com base em relações de proximidade familiar e pessoal, em detrimento dos interesses públicos tutelados pelos princípios que norteiam a contratação pública.
Os arguidos AA, BB, CC e DD atuaram bem sabendo que a respetiva conduta era adequada a abonar os arguidos EE e FF de quantias pecuniárias que, em condições de estrita observância dos princípios da livre concorrência, legalidade, transparência e boa gestão dos dinheiros públicos, os mesmos não reuniam condições de auferir.
… atuaram sabendo que as suas condutas eram lesivas dos interesses públicos de natureza patrimonial, que sabiam estarem incumbidos de defender no exercício das suas funções e, especificamente, no âmbito das adjudicações acima identificadas.
Por seu turno, os arguidos EE e FF agiram de forma livre, deliberada e consciente,
Cientes que os arguidos AA, BB, CC e DD exerciam na Câmara Municipal ... as funções de presidente, vice-presidente, chefe de gabinete e vereador, respetivamente, e que os mesmos atuaram do modo descrito, adjudicando às sociedades B..., Lda. e A..., Lda. a prestação dos anteditos serviços, com a intenção de os beneficiar, o que aceitaram e quiseram,
Sabendo que não podiam celebrar contratos com o Município ..., uma vez que os respetivos companheiro e irmão ali exerciam funções de presidente e vereador, respetivamente.
Os arguidos agiram todos sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei…”
C – Apreciando e decidindo
§ 1 - O Ministério Público recorrente imputou à decisão recorrida, essencialmente, um erro no juízo indiciário a respeito dos factos da acusação pública, sobrevalorizando a prova produzida em instrução em detrimento daquela que foi recolhida na fase de inquérito, bem como um erro em matéria de direito, por não ter valorado as situações de impedimento legal na contratação pública.
Numa análise mais pormenorizada da motivação de recurso, constata-se que não obstante ter procedido a tal crítica relativamente ao juízo indiciário, o recorrente não impugnou substancialmente o juízo indiciário produzido na decisão, designadamente quanto aos factos considerados não indiciados, nem indicou meios de prova indiciários concretos suscetíveis de gerar decisão diversa, além de fazer uma alusão genérica à prova indiciária constante do inquérito que, no seu entender, foi desvalorizada.
Quanto ao erro em matéria de direito, o recorrente limitou-se a alegar que a decisão recorrida não ponderou a violação, pelos arguidos, do artigo 9.° da Lei n.° 52/2019, de 31 de Julho e do artigo 69.° do Código do Procedimento Administrativo, o que, no seu entender, esteve na base dos crimes de prevaricação descritos na acusação.
§ 2 – Os arguidos AA, CC e, por adesão aos anteriores, o arguido BB, responderam ao recurso, concluindo pela sua improcedência, reiterando, no essencial, a tese jurídica vertida no despacho de não pronúncia, alegando que não ficou indiciado qualquer benefício ilegítimo das sociedades visadas, nem que os arguidos tenham participado em qualquer conluio ou procedimento tendo em vista tal efeito. Segundo os mesmos, as contratações realizadas respeitaram os limites de valor e os procedimentos previstos na lei para ajustes diretos simplificados.
§ 3 – Por seu turno, o Ministério Público, no seu douto parecer junto neste tribunal superior, concluiu não restar qualquer dúvida que os procedimentos contratuais ... [32. a 40.], ... [41. a 48.] e ... [49. a 56.] envolvendo a sociedade B... e os procedimentos Verde Honra [77. a 84.], ... [85. a 94.] e ... [95. a 103.] com a sociedade FF Unipessoal, violaram fragrante e frontalmente o regime de impedimentos de contratação vigente à data em que foram celebrados.
O artigo 8.º n.º2, alínea a), da Lei 64/93, de 26.08, é bem claro no sentido de impedir a contratação de tais empresas com a autarquia, uma vez que do seu capital social são titulares, em medida superior a 10%, a arguida EE, unida de facto do arguido AA, seu presidente [sociedade B...], e o arguido FF, irmão do arguido DD, ali vereador [no caso da sociedade A..., Unipessoal].
A Lei nº 64/93, de 26.08, sucedeu à Lei 52/2019, de 31.07, com início de vigência no dia 25.10.2019, a qual manteve na íntegra o impedimento sobre os unidos de facto de titulares de cargos políticos de âmbito local, e respetivas sociedades, em relação a procedimentos de contratação pública desenvolvidos pela pessoa coletiva local de cujos órgãos aqueles titulares façam parte - cfr. seu artigo 9.º, nºs 5 e 6.
Pelo que, também à luz desta lei eram inadmissíveis os procedimentos ... [57. a 66.] e ... [67. a 76.], envolvendo a sociedade B....
Porém, o mesmo erro não se pode apontar relativamente à sociedade A..., Unipessoal, uma vez que a Lei 52/2019, de 31.09 desonerou de qualquer impedimento a contratação com empresas de cujo capital, em qualquer medida, seja titular colateral até ao 2.º grau, sozinho ou com outros que não o titular do órgão ou cargo, não sujeitando sequer essa contratação ao regime especial de publicidade previsto no artigo 9.º n.º 9 –quanto a estes colaterais, o que esta lei prevê, só, é a participação em procedimentos de contratação pública de empresas em cujo capital sejam detentores, conjuntamente com o titular do órgão ou cargo, de uma participação superior a 10 % ou cujo valor seja superior a €50.000.
Esta alteração mostra-se de fundamental relevância relativamente aos procedimentos de contratação celebrados pela Câmara Municipal ... com a sociedade A..., Unipessoal, em 2020 [procedimentos ... e ...], afastando o fundamento legal – e factual - da acusação relativamente a estes procedimentos, pois os arguidos não desrespeitaram, quanto a esta sociedade, qualquer norma que os impedisse de contratar com esta sociedade para assim a favorecer, simplesmente porque nenhum obstáculo decorrente de impedimento havia à contratação e nenhum outro foi suscitado.
Já no que respeita aos procedimentos relativamente aos quais se verificou a violação do regime dos impedimentos, supra elencados, não se descortina argumentação que acresça à do recurso, no sentido da pronúncia dos arguidos.
§ 4 – Cumpre apreciar e decidir.
A – Da instrução
A instrução visou a comprovação judicial da decisão do Ministério Público, neste caso, de deduzir acusação contra os arguidos, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, tendo caráter facultativo (art. 286º, nº 1, do CPP) e tido lugar, in casu, por iniciativa dos arguidos AA e CC, mediante o necessário requerimento de abertura de instrução [art. 287º, nº 1, alínea a) do CPP].
A decisão instrutória recorrida não é discricionária nem arbitrária, tendo sido fundamentada, conforme imposto pelo disposto no art. 97º números 4 e 5, do CPP e 205º número 1 da Constituição da República Portuguesa.
A mesma constitui um despacho de não pronúncia, à luz do disposto no artigo 308.º do CPP, o qual estatui que “Se, até ao encerramento da instrução, tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz, por despacho, pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não pronúncia.”.
Em sede de decisão instrutória, o juiz pronuncia-se sobre a existência, ou não, de indícios suficientes (com o alcance previsto no art. 308º do CPP),– não confundir com a prova certa de factos, nem sequer com fortes indícios que podem legitimar, potencialmente, a aplicação de determinadas medidas de coação privativas da liberdade - emitindo um juízo probabilístico, o qual pode estar errado, por não ser uma certeza. Por tal razão, um despacho de pronúncia só pode ser atacado com fundamento na inexistência dos mesmos indícios. Diferentemente, numa sentença deve ser formulado um juízo de certeza, com base em juízos lógicos, razão pela qual a decisão final pode incorrer em erro notório, no caso de o juízo lógico formulado se encontrar viciado.
À luz do exposto, perante o despacho de não pronúncia formulado nos autos, competia ao Ministério Público indicar a prova indiciária que, no seu entender, deveria determinar a sua revogação e substituição por despacho de pronúncia, o que não fez – diga-se, de forma ostensiva – refugiando-se na alegação genérica “Ao apreciar prova que entendeu produzir em sede de instrução, perante si - quando a demais prova indiciária dos autos o não foi - acabou o Meritíssimo Juiz de Instrução por dar a tais elementos de prova uma relevância e credibilidade, que só poderá resultar da falta de imediação quanto à restante prova.”, deixando apenas implícita a afirmação que em sede de inquérito existe prova indiciária bastante para a comprovação judicial da acusação pública.
Ao não concretizar a mesma e demonstrar, com isso, o juízo indiciário que pretende seja formulado por este tribunal superior, o Ministério Público violou o princípio da colaboração e fragilizou a motivação do seu recurso.
Porém, não se tratando de uma situação de manifesta improcedência do recurso, importa, ora, apreciar o seu mérito, que passa, nomeadamente, pela análise do direito e dos indícios pertinentes ao objeto do procedimento criminal que constituiu objeto da acusação pública e, por conseguinte, da instrução que culminou com a prolação da decisão instrutória recorrida.
B – Do crime de prevaricação
O presente processo diz respeito a um tipo legal de crime integrado nos denominados “crimes de responsabilidade” que titulares de cargos políticos (e desde a entrada em vigor da redação introduzida pela Lei n.º 41/2010 de 3 de Setembro, também titulares de altos cargos públicos) cometam no exercício das suas funções, cuja previsão legal foi estabelecida pela Lei nº 34/87, de 16 de Julho, conforme resulta do seu artigo 1º: “A presente lei determina os crimes de responsabilidade que titulares de cargos políticos cometam no exercício das suas funções, bem como as sanções que lhes são aplicáveis e os respetivos efeitos.”
Nos termos do disposto no art. 2º da citada Lei, “Consideram-se praticados por titulares de cargos políticos no exercício das suas funções, além dos como tais previstos na presente lei, os previstos na lei penal geral com referência expressa a esse exercício ou os que mostrem terem sido praticados com flagrante desvio ou abuso da função ou com grave violação dos inerentes deveres.”
A alínea i) do nº 1 do art. 3º do mesmo diploma considera titular de cargo político, para os efeitos de aplicação do aludido regime legal, os “membros de órgão representativo de autarquia local”.
O município é, consabidamente, uma autarquia local, que tem como órgãos representativos a assembleia municipal e câmara municipal (arts. 235º, 236º e 250º a 252º da Constituição da República Portuguesa e arts. 5º e 6º da Lei n.º 75/2013 de 12 de Setembro).
Dito isto, com relevo para a decisão, constitui matéria de facto pacífica nos autos que:
a) O arguido AA exerce as funções de presidente da Câmara Municipal ... desde 25 de outubro de 2017, tendo sido eleito para o cargo no mandato de 2017-2021 e reeleito no mandato de 2021-2025 – cfr. fls. 706 a 709.
b) O arguido BB exerce as funções de vice-presidente da Câmara Municipal ... desde 25 de outubro de 2017, tendo sido eleito para o cargo no mandato de 2017-2021 e reeleito no mandato de 2021-2025 – cfr. fls. 706 a 709.
c) O arguido DD exerce as funções de vereador a tempo inteiro na Câmara Municipal ..., estando-lhe atribuídos os pelouros de desporto, lazer e juventude, turismo e atividades empresariais, obras municipais, serviços urbanos, gestão de espaços verdes e naturais, gestão de equipamentos e espaços públicos, mercados e feiras, empreendedorismo e empregabilidade – cfr. fls. 706 a 709.
No seguimento de tal constatação, importa ainda ter presente, quanto aos demais arguidos, o estatuído no artigo 28.º do Código Penal (Ilicitude na comparticipação): “1 - Se a ilicitude ou o grau de ilicitude do facto dependerem de certas qualidades ou relações especiais do agente, basta, para tornar aplicável a todos os comparticipantes a pena respectiva, que essas qualidades ou relações se verifiquem em qualquer deles, excepto se outra for a intenção da norma incriminadora.”
Os arguidos foram acusados pela prática de um crime de prevaricação p. e p. pelo disposto no artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, com referência, ainda, ao artigo 28º do Código Penal:
“O titular de cargo político que conscientemente conduzir ou decidir contra direito um processo em que intervenha no exercício das suas funções, com a intenção de por essa forma prejudicar ou beneficiar alguém, será punido com prisão de dois a oito anos.”
Este tipo legal de crime delimita o círculo dos possíveis autores da ação delituosa em função de uma determinada qualidade: o de titular de cargo político. Por conseguinte, a doutrina e a jurisprudência classificam-no como um crime especial próprio, crime próprio ou crime específico próprio, na medida em que uma determinada qualidade aqui, ser titular de cargo político (definição concretizada no já citado art. 3º do mesmo diploma legal) é pressuposto do tipo de ilícito.
Assim sendo, não sendo outra a intenção da norma incriminadora à luz do disposto no art. 28º do Código Penal, basta para tornar aplicável aos demais comparticipantes, a qualidade de titular de cargo político de um dos comparticipantes.
Estes encontram-se identificados na acusação pública nos seguintes termos:
d) O arguido CC exerceu as funções de chefe de Gabinete de Apoio à Presidência da Câmara Municipal ... entre 26 de outubro de 2017 e 28 de março de 2022 – cfr. fls. 703 a 705 e fls. 578;
e) Os arguidos AA e EE vivem em comunhão de mesa, leito e habitação e têm um filho em comum;
f) O arguido FFF é irmão do presidente da Câmara Municipal ..., AA (fls. 695 e 699); e
g) O arguido FF é irmão do vereador a tempo inteiro DD (fls. 696 e 697).
De um modo simplista, o crime de prevaricação visa a punição daquele que se torna infiel ao próprio cargo, em assumida violação dos deveres ao mesmo inerentes, como se extrai da construção do tipo legal acima reproduzido. A razão material que preside à criação de tal regime jurídico-penal específico para os titulares de cargos políticos está ligada à especial intensidade e importância dos deveres de zelo e promoção de bens jurídico-constitucionais, em sentido estrito, a que se encontram adstritos tais agentes políticos, em razão das suas funções e da sua particular legitimidade democrática.[4] [5]
A doutrina identifica o bem jurídico protegido como sendo “a fidelidade à lei e ao direito, no exercício de funções públicas.”[6] Assim se compreende o elemento objetivo do tipo legal de crime “conscientemente conduzir ou decidir contra direito um processo em que intervenha no exercício das suas funções”.
Os elementos objetivos do tipo legal de crime são os seguintes:
a) a qualidade de membro de órgão representativo de autarquia local do agente;
b) a condução ou decisão contra direito de um processo no exercício das respetivas funções;
Segundo os escritos de Carlos Silva Dias, in loc cit., “O crime de prevaricação é, manifestamente, doloso, exigindo o conhecimento e vontade de realização do tipo de ilícito objetivo. Porém, acresce ao dolo do facto a descrição de especiais elementos subjetivos do tipo, que caracterizam, de forma mais precisa, a vontade que preside ao comportamento objetivo típico, restringindo assim a conduta incriminada a uma espécie delimitada.” E “De facto, o legislador considerou necessária a verificação de um especial grau de consciência dos factos e a consagração de um desvalor de resultado como elemento referencial da intencionalidade, no sentido da não exigência da sua produção, mas da demonstração de factos objetivos que externalizem essa específica orientação da conduta. (…) O tipo legal em análise pode classificar-se como um delito de intenção ou de tendência interna transcendente, no sentido de que o agente persegue um resultado, que determina internamente a sua conduta, sem que, contudo, o preenchimento do tipo dependa da efetiva produção desse resultado.”
Sabendo-se que os agentes dos crimes são, designadamente, autarcas, importa ora aferir se os mesmos conduziram ou decidiram contra direito um processo no exercício das respetivas funções, tal como exigido pelo elemento objetivo do crime. Esse é, aliás, o motivo substancial do dissenso do recorrente relativamente à decisão recorrida:
a) na lógica do despacho de não pronúncia, os procedimentos descritos na acusação pública cumpriram os pressupostos legais para a contratação pública, nos termos do Código dos Contratos Públicos (CCP) revisto, no Decreto-Lei n.º 111-B/2017, de 31 de agosto de 2017, sendo realizados no âmbito de ajuste direto simplificado - procedimento para a aquisição de bens/serviços cujo preço contratual não seja superior a 5.000,00€ e os elementos probatórios recolhidos em sede de inquérito e na instrução não demonstram o alegado conluio ou compadrio com vista a beneficiar as empresas, B..., Lda. (conhecido como o antigo “C...”) e A..., Unipessoal, Lda. (conhecido como a “D...”), em decorrência das alegadas relações familiares; e
b) segundo a motivação do recurso interposto pelo Ministério Público, diga-se pouco rigorosa e pormenorizada, omitindo a formulação dos silogismos jurídicos de modo a enquadrar juridicamente cada conduta que considera indiciada em relação aos arguidos, a decisão recorrida ignorou que os arguidos autarcas se encontravam impedidos de intervir nos procedimentos de contratação, que culminaram com a adjudicação de prestação de serviços alimentares às empresas de familiares e tais familiares estavam impedidos de celebrar contratos com o Município ..., tendo em conta a sua relação de família com o Presidente da Câmara e um Vereador e, tendo celebrado tais contratos, violaram o disposto no artigo 9.° da Lei n.° 52/2019, de 31 de julho, e do artigo 69.° do Código do Procedimento Administrativo;
Na acusação pública, o Ministério Público imputou aos arguidos condutas suscetíveis de preencher violações do tipo legal de crime de prevaricação, p. e p. pelo artigo 11.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho.
Apenas depois de notificado do despacho de não pronúncia, o ora recorrente, titular da ação penal, ampliou a base legal de tal incriminação na motivação do recurso, imputando aos arguidos, concretamente, a violação do disposto no artigo 9° da Lei n.° 52/2019, de 31 de julho e do artigo 69.° do Código do Procedimento Administrativo, na lógica do preenchimento do elemento objetivo (a antijuridicidade) do tipo do crime de prevaricação “a condução ou decisão contra direito de um processo no exercício das respetivas funções.”
Não aferindo, ora, se foram ultrapassados os limites do princípio do acusatório mediante a ampliação da base legal da incriminação, na lógica da motivação do recurso, os arguidos autarcas terão conduzido e/ou decidido procedimentos administrativos de aquisição de bens e serviços para o município, violando o disposto nas normas jurídicas agora citadas, referentes aos impedimentos legais dos membros de órgão representativo de autarquia local, sendo os demais arguidos responsáveis nos termos do disposto no artigo 28.º, n.º 1 do Código Penal (sic), significando tal expressão que o Ministério Público também lhes imputa a prática de crimes de prevaricação pela sua comparticipação criminosa na respetiva contratação pública – apesar de nunca o ter concretizado expressis verbis, o que também não deixa de ser, de algum modo, insólito, pouco transparente e incompleto, à luz do disposto no art. 283º, nº 3, alínea d), do CPP, por não ter indicado, quanto a tais arguidos, a prática do crime de prevaricação p. e p. pelo disposto no art. 11º da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, apesar de pretender responsabilizá-los por isso, conforme deixou claro quando aludiu à aplicação do disposto no art. 28º do Código Penal.
No entanto, resulta do tipo legal de crime que para existir despacho de pronúncia, deve encontrar-se indiciado que os arguidos autarcas tenham agido naqueles termos com o dolo específico de terem a intenção de, por essa forma, prejudicar ou beneficiar alguém.
Importa, ora, aferir se os autos revelam indícios – na aceção já acima explanada – da prática dos crimes de prevaricação descritos na acusação pública.
B.1. – Do respeito pelas regras gerais da contratação pública
Estando em causa negócios jurídicos por ajuste direto realizados por município, interessa recordar alguns princípios legais que norteiam a contratação pública: o artigo 1º-A, nº 1, do Código dos Contratos Públicos, na versão em vigor à data dos factos em causa nos presentes autos (na versão introduzida pelo Decreto-Lei nº 18/2008, de 29 de Janeiro) rege que (sublinhado nosso) ”Na formação (…) dos contratos públicos devem ser respeitados os princípios gerais (…), em especial os princípios da legalidade, da prossecução do interesse público, da imparcialidade, da proporcionalidade, da boa-fé, da tutela da confiança, da sustentabilidade e da responsabilidade, bem como os princípios da concorrência, da publicidade e da transparência, da igualdade de tratamento e da não-discriminação.
Ora, de acordo com a decisão instrutória recorrida, devidamente fundamentada nos factos indiciados nos autos e no direito, o município respeitou todas as regras gerais do Código dos Contratos Públicos – e quanto a essa conclusão jurídica, o Ministério Público não apontou qualquer erro em matéria de direito no respetivo recurso -.
B.2. – Dos impedimentos para a contratação pública
O que constitui matéria controvertida, porque suscitada no recurso é a alegada violação, pelos arguidos, do regime especial de exercício de funções por titulares de cargos políticos e altos cargos públicos, aprovado pela Lei n.° 52/2019, de 31 de julho.
No entanto, assinala-se que esta lei, invocada na motivação de recurso do Ministério Público, apenas entrou em vigor em 25 de Outubro de 2019 – ou seja, após a data de alguns dos factos descritos na acusação pública[7] -, por corresponder ao primeiro dia da XIV Legislatura da Assembleia da República, data em que entrou em vigor o aludido diploma, por força do disposto no seu artigo 26º.
Na motivação de recurso, o Ministério Público não procedeu à formulação do necessário silogismo jurídico exigido pelo art. 412º, 2, b), do CPP, limitando-se a indicar o artigo 9º do aludido texto legal, como tendo sido a norma de impedimentos infringida, mas omitiu a menção da alínea do referido artigo, cuja estatuição entende ter sido violada pelos arguidos, não tendo sido realizado o necessário silogismo jurídico, integrando os factos no direito.
Recorda-se assim o teor integral do aludido preceito, destacando a negrito as passagens mais relevantes:
«art. 9º
Impedimentos
1 - Os titulares de cargos políticos e de altos cargos públicos estão impedidos de servir de árbitro ou de perito, a título gratuito ou remunerado, em qualquer processo em que seja parte o Estado e demais pessoas coletivas públicas.
2 - Os titulares de cargos políticos ou de altos cargos públicos de âmbito nacional, por si ou nas sociedades em que exerçam funções de gestão, e as sociedades por si detidas em percentagem superior a 10 /prct. do respetivo capital social, ou cuja percentagem de capital detida seja superior a 50 000 (euro), não podem:
a) Participar em procedimentos de contratação pública;
b) Intervir como consultor, especialista, técnico ou mediador, por qualquer forma, em atos relacionados com os procedimentos de contratação referidos na alínea anterior.
3 - O regime referido no número anterior aplica-se às empresas em cujo capital o titular do órgão ou cargo, detenha, por si ou conjuntamente com o seu cônjuge, unido de facto, ascendente e descendente em qualquer grau e colaterais até ao 2.º grau, uma participação superior a 10 /prct. ou cujo valor seja superior a 50.000 (euro).
4 - O regime referido no n.º 2 aplica-se ainda aos seus cônjuges que não se encontrem separados de pessoas e bens, ou a pessoa com quem vivam em união de facto, em relação aos procedimentos de contratação pública desencadeados pela pessoa coletiva de cujos órgãos o cônjuge ou unido de facto seja titular.
5 - O regime dos n.os 2 a 4 aplica-se aos demais titulares de cargos políticos e altos cargos públicos de âmbito regional ou local não referidos no n.º 2, aos seus cônjuges e unidos de facto e respetivas sociedades, em relação a procedimentos de contratação pública desenvolvidos pela pessoa coletiva regional ou local de cujos órgãos façam parte.
6 - No caso dos titulares dos órgãos executivos das autarquias locais, seus cônjuges e unidos de facto e respetivas sociedades, o regime dos n.os 2 a 4 é aplicável ainda relativamente aos procedimentos de contratação:
a) Das freguesias que integrem o âmbito territorial do respetivo município;
b) Do município no qual se integre territorialmente a respetiva freguesia;
c) Das entidades supramunicipais de que o município faça parte;
d) Das entidades do setor empresarial local respetivo.
7 - De forma a assegurar o cumprimento do disposto nos números anteriores, os titulares de cargos políticos ou de altos cargos públicos e os seus cônjuges não separados de pessoas e bens têm direito, sem dependência de quaisquer outras formalidades, à liquidação da quota por si detida, nos termos previstos no Código Civil, à exoneração de sócio, nos termos previstos no Código das Sociedades Comerciais ou à suspensão da sua participação social durante o exercício do cargo.
8 - O direito previsto no número anterior pode ser exercido em relação à liquidação e exoneração da totalidade do valor da quota ou apenas à parcela que exceda o montante de 10 /prct. ou de 50 000 (euro), e, caso o titular do cargo não exerça qualquer uma das faculdades previstas no n.º 7, pode a sociedade deliberar a suspensão da sua participação social.
9 - Devem ser objeto de averbamento no contrato e de publicidade no portal da Internet dos contratos públicos, com indicação da relação em causa, os contratos celebrados pelas pessoas coletivas públicas de cujos órgãos os titulares de cargos políticos e altos cargos públicos são titulares com as seguintes pessoas com as quais mantêm relações familiares:
a) Ascendentes e descendentes em qualquer grau do titular do cargo;
b) Cônjuges que se encontrem separados de pessoas e bens do titular do cargo;
c) Pessoas que se encontrem numa relação de união de facto com o titular do cargo.
10 - O disposto no número anterior aplica-se ainda a contratos celebrados com empresas em que as pessoas referidas no número anterior exercem controlo maioritário e a contratos celebrados com sociedades em cujo capital o titular do cargo político ou de alto cargo público, detenha, por si ou conjuntamente com o cônjuge ou unido de facto, uma participação inferior a 10 /prct. ou de valor inferior a 50 000 (euro).
11 - O disposto no presente artigo é aplicável às sociedades de profissionais que estejam sujeitas a associações públicas profissionais.»
Porém, a mera infração de tais regras de impedimento corresponde a nulidade dos atos e dos negócios jurídicos praticados (art. 12º do mesmo texto legal) e, para os titulares de cargos eletivos que tenham violado as mesmas, a perda do respetivo mandato.
Antes da entrada em vigor da Lei nº 52/2019, de 31 de Julho[8], encontrava-se em vigor outro regime legal de impedimentos – não citado na motivação de recurso, mas mencionado no parecer junto pelo Ministério Público neste tribunal superior -, a saber, a Lei n.º 64/93, de 26 de Agosto, que regulava o regime do exercício de funções pelos titulares de órgãos de soberania e por titulares de outros cargos políticos, considerando titulares de cargos políticos, entre outros, “O presidente e vereador a tempo inteiro das câmaras municipais” (art. 1º, alínea f), do referido diploma) e em que no seu artigo 8º estabeleceu um regime distinto de impedimentos a sociedades:
«Artigo 8.º
Impedimentos aplicáveis a sociedades
1 - As empresas cujo capital seja detido numa percentagem superior a 10/prct. por um titular de órgão de soberania ou titular de cargo político, ou por alto cargo público, ficam impedidas de participar em concursos de fornecimento de bens ou serviços, no exercício de actividade de comércio ou indústria, em contratos com o Estado e demais pessoas colectivas públicas.
2 - Ficam sujeitas ao mesmo regime:
a) As empresas de cujo capital, em igual percentagem, seja titular o seu cônjuge, não separado de pessoas e bens, os seus ascendentes e descendentes em qualquer grau e os colaterais até ao 2.º grau, bem como aquele que com ele viva nas condições do artigo 2020.º do Código Civil;
b) As empresas em cujo capital o titular do órgão ou cargo detenha, directa ou indirectamente, por si ou conjuntamente com os familiares referidos na alínea anterior, uma participação não inferior a 10/prct..
Artigo 9.º-A
Actividades anteriores
1 - Sem prejuízo da aplicabilidade das disposições adequadas do Código do Procedimento Administrativo, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 442/91, de 15 de Novembro, com as alterações introduzidas pelo Decreto-Lei n.º 6/96, de 31 de Janeiro, os titulares de órgãos de soberania, de cargos políticos e de altos cargos públicos que, nos últimos três anos anteriores à data da investidura no cargo, tenham detido, nos termos do artigo 8.º, a percentagem de capital em empresas neles referida ou tenham integrado corpos sociais de quaisquer pessoas colectivas de fins lucrativos não podem intervir:
a) Em concursos de fornecimento de bens ou serviços ao Estado e demais pessoas colectivas públicas aos quais aquelas empresas e pessoas colectivas sejam candidatos;
b) Em contratos do Estado e demais pessoas colectivas públicas com elas celebrados;
c) Em quaisquer outros procedimentos administrativos, em que aquelas empresas e pessoas colectivas intervenham, susceptíveis de gerar dúvidas sobre a isenção ou rectidão da conduta dos referidos titulares, designadamente nos de concessão ou modificação de autorizações ou licenças, de actos de expropriação, de concessão de benefícios de conteúdo patrimonial e de doação de bens.»
A cominação legal para os casos de incumprimento destas regras de impedimento encontra-se prevista no art.14º do mesmo diploma, a saber, a nulidade dos atos praticados.
Resulta do exposto que a primeira dessas normas apenas refere, no que interessa ao caso, a situação de impedimento de sociedades, cujo capital social seja detido numa percentagem superior a dez por cento por presidente e vereadores a tempo inteiro de câmaras municipais – ou empresas de cujo capital, em igual percentagem, seja titular o seu cônjuge, não separado de pessoas e bens, os seus ascendentes e descendentes em qualquer grau e os colaterais até ao 2.º grau -, e a segunda, ressalvando a aplicabilidade, também, das regras do Código de Procedimento Administrativo, estabelece um regime de impedimento a tais titulares dos mesmos cargos públicos em procedimentos administrativos de concursos de fornecimentos de bens ou serviços, ou celebração de outros contratos, aos respetivos municípios e em quaisquer outros procedimentos administrativos em que aquelas sociedades intervenham.
Além da referida sucessão de leis no tempo, tal como também se mostra ressalvado no art. 9º-A, 1, da Lei nº 64/93, de 26 de Agosto, encontrava-se também em vigor o artigo 69º do Código de Procedimento Administrativo (CPA), aprovado pelo Decreto-Lei nº 4/2015, de 7 de Janeiro, também citado na motivação de recurso.
Esta norma estatui um regime de impedimentos que visa garantir o princípio da imparcialidade consagrado no Código do Procedimento Administrativo – afinal, dois dos princípios que deve reger a contratação pública, como acima referido - (destacando-se novamente a negrito as passagens relevantes), norma que, aliás, nunca foi revogada, mantendo-se ainda hoje em vigor[9]:
1 - Salvo o disposto no n.º 2, os titulares de órgãos da Administração Pública e os respetivos agentes, bem como quaisquer outras entidades que, independentemente da sua natureza, se encontrem no exercício de poderes públicos, não podem intervir em procedimento administrativo ou em ato ou contrato de direito público ou privado da Administração Pública, nos seguintes casos:
a) (…);
b) Quando, por si ou como representantes ou gestores de negócios de outra pessoa, nele tenham interesse o seu cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, algum parente ou afim em linha reta ou até ao segundo grau da linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem vivam em economia comum ou com a qual tenham uma relação de adoção, tutela ou apadrinhamento civil;
Deste regime de impedimentos resulta que o mesmo abrange, objetivamente, todos os procedimentos administrativos em que tenham interesse todas as pessoas que, em relação ao titular de órgão da administração pública, seja o cônjuge ou pessoa com quem viva em condições análogas às dos cônjuges, algum parente ou afim em linha reta ou até ao segundo grau da linha colateral, bem como qualquer pessoa com quem vivam em economia comum ou com a qual tenham uma relação de adoção, tutela ou apadrinhamento civil, aplicando-se, por conseguinte, potencialmente a todos os negócios descritos na acusação pública, desde que nos mesmos tenham tido intervenção nos respetivos procedimentos de aquisição de bens e serviços o Presidente, Vice-Presidente ou Vereadores a tempo inteiro da Câmara Municipal em causa.
Importa no entanto deixar claro que as normas jurídicas acima reproduzidas, dos dois regimes legais que se sucederam no tempo, bem como no Código de Procedimento Administrativo, não tipificam, per se, crimes.
A única sanção prevista também no CPA para os contratos celebrados em violação do art. 69º do CPA está prevista no art. 76º, 1, do mesmo Código: “São anuláveis nos termos gerais os atos ou contratos em que tenham intervindo titulares de órgãos ou agentes impedidos ou em cuja preparação tenha ocorrido prestação de serviços à Administração Pública em violação do disposto nos n.os 3 a 5 do artigo 69.º.”, do mesmo modo que nos outros dois regimes jurídicos que se sucederam no tempo prevê a nulidade dos atos praticados, como já foi referido.
As condutas dos arguidos autarcas, em violação das regras de impedimentos – tanto ao abrigo da Lei n.º 64/93, de 26 de Agosto, como da Lei nº 52/2019, de 31 de Julho ou do CPA -, apenas constituirão crime, se as mesmas preencherem os elementos objetivos e subjetivos do tipo legal de crime de prevaricação p. e p. pelo disposto no art. 11º da Lei nº 34/87, de 16 de Julho, já anteriormente concretizados, o que exige a demonstração – nesta fase processual, a indiciação - da sua condução ou decisão dos respetivos procedimentos administrativos de contratação, no exercício das suas funções, em violação do direito, com a intenção de, por essa forma, prejudicar ou beneficiar alguém.
Tal significa que mesmo que haja fornecimentos de bens e serviços por ajuste direto, por empresas legalmente impedidas de o fazer, ao Município ...:
a) os atos praticados, incluindo a celebração dos contratos de fornecimento, são nulos ou anuláveis; e
b) não existe responsabilidade criminal e, por conseguinte, despacho de pronúncia de qualquer um dos arguidos por crime(s) de prevaricação, a não ser que esteja indiciado que os arguidos Presidente e Vereadores a tempo inteiro na Câmara Municipal ... tenham dirigido, conduzido ou decidido o(s) respetivo(s) procedimento(s) de contratação, sabendo estarem a violar as regras de impedimentos, com a intenção de, por essa forma, prejudicar ou beneficiar alguém.
Deste modo, verifica-se o crime de prevaricação sempre que, na condução ou decisão de procedimento administrativo inerente às suas funções, o agente cometa atos ou omissões contrários ao direito, neste caso, violando as regras legais de impedimentos prevista nos regimes jurídicos acima concretizados, com a intenção de beneficiar alguém.
Como referido, o despacho de não pronúncia recorrido apenas analisou a prova indiciária à luz do cumprimento, ou não, pelo Município ..., das normas gerais que regulam os procedimentos por ajuste direto simplificado, tendo concluído não se vislumbrar que qualquer um dos procedimentos descritos na acusação pública tenha violado qualquer norma legal ao abrigo do regime jurídico da contratação pública, mas não se pronunciou a respeito da questão agora suscitada no recurso pelo Ministério Público, que apenas diz respeito à alegada violação das regras dos impedimentos legais para a celebração dos contratos acima descritas por parte dos arguidos titulares de cargos políticos na Câmara Municipal em causa, corresponsabilizando os demais arguidos ao abrigo do art. 28º do Código Penal.
É isso que importa, ora, aferir, formulando o necessário juízo de indiciação, ou de não indiciação dos arguidos por crime de prevaricação, de modo a aferir o mérito do recurso quanto à decisão instrutória recorrida.
Na motivação de recurso, o Ministério Público destacou, em bloco, a relevância do teor dos depoimentos prestados pelas testemunhas em sede de inquérito e a prova documental junta no Anexo I junto aos autos, para demonstrar a indiciação dos arguidos.
A tese da acusação pública, consubstanciada factualmente, não descreve qualquer conduta dos arguidos AA (presidente da Câmara Municipal ...), BB (vice-presidente do mesmo órgão autárquico) DD (vereador a tempo inteiro da mesma autarquia) em qualquer um dos procedimentos administrativos de seleção dos fornecedores de bens e serviços e na adjudicação da compra a empresas dos respetivos familiares que se encontrassem impedidas de contratar com o Município ..., mas concretiza, antes, uma ação concertada entre diversos arguidos com cargos na aludida Câmara Municipal, de modo a que certos procedimentos de aquisição de bens e serviços a tais empresas apenas tivesse a sua condução e decisão assegurada por titulares de cargos autárquicos que não se encontrassem pessoalmente impedidos de conduzir e de decidir tais procedimentos.
Segundo o libelo acusatório e a motivação do recurso, encontrar-se-á indiciado que para alcançarem tais propósitos, os arguidos AA, BB, CC e DD emitiram ordens aos funcionários que exerciam, à data, funções na edilidade – nomeadamente no gabinete de apoio à presidência, no serviço de contratação pública, no serviço de desporto e no serviço de ação social – para que, no âmbito dos procedimentos que seriam lançados, propusessem que as sociedades B..., Lda. e A..., Lda. fossem selecionadas para a prestação dos serviços em causa, acompanhando e tramitando os procedimentos necessários para a sua concretização, de modo a que os serviços a prestar fossem adjudicados àquelas empresas.
Porém, a análise de toda a prova indiciária produzida nos autos – e, em especial aquela que suporta a acusação pública e a motivação do recurso – não permite sufragar a tese de conluio expressa na acusação pública.
Produzindo um juízo indiciário, constata-se que em sede de inquérito foram inquiridas testemunhas, precisamente, oriundas de todos os serviços camarários que requisitaram os fornecimentos de bens e serviços em causa na acusação pública, bem como do departamento administrativo que centralizava os procedimentos financeiros, contabilísticos e os contactos com os fornecedores e, não obstante, não houve qualquer depoimento que revelasse, ou indiciasse de algum modo, que os arguidos AA (presidente da Câmara Municipal ...), BB (vice-presidente do mesmo órgão autárquico) DD (vereador a tempo inteiro da mesma autarquia) tivessem tido intervenção pessoal em qualquer um dos procedimentos administrativos de seleção dos fornecedores de bens e serviços e na adjudicação da compra a empresas de familiares seus, não tendo, assim, violado o disposto no artigo 69º do CPA.
De igual modo, nenhum dos aludidos depoimentos revelou o menor indício de conluio entre os mesmos arguidos, no sentido de favorecerem a aquisição de bens e serviços a empresas de familiares de outro autarca impedido de conduzir e de decidir os respetivos procedimentos administrativos para a contratação pública, de modo a contornar as restrições dos respetivos impedimentos, nem resulta indiciado que os arguidos autarcas alguma vez tivessem a intenção de beneficiar alguma das empresas contratadas, tendo em conta os valores contratualizados e o teor concreto dos fornecimentos, descritos nos autos. De resto, as funcionárias administrativas do município revelaram nunca terem recebido dos arguidos autarcas quaisquer instruções no sentido de escolher alguma das empresas com as quais foram celebrados os ajustes diretos simplificados, a qual terá resultado dos “serviços requisitantes” dentro da Câmara Municipal. Encontrando-se tal indiciado, os decisores dos procedimentos administrativos teriam também tido a noção de que as empresas teriam sido escolhidas com base em critérios objetivos e imparciais, não havendo qualquer intenção de favorecimento das empresas selecionadas e, sempre que houve mais do que uma proposta foi sempre escolhida aquela que tinha um preço menor.
Para chegar a tal conclusão, importa ter presentes os seguintes depoimentos acima aludidos de forma genérica
a) HH - que era à data dos factos assistente técnica da C.M ... desde 1997, desempenhando funções no Serviço de Tesouraria (depoimento documentado a folhas 345 a 348) -, tendo-se limitado a revelar, de mais relevante, que a escolha da empresa a contratar era feita pelo serviço requisitante, nunca tendo recebido qualquer indicação ou instrução por parte dos arguidos autarcas;
b) II - funcionária da C.M ... desde o ano de 2001, estando desde o ano de 2019 a desempenhar as funções de Coordenadora do Gabinete de Apoio às Freguesias, prestando ainda apoio ao Gabinete da Presidência e Vereação - (a folhas 391 a 395), limitou-se, no essencial, a identificar os serviços requisitantes, tal como constam dos documentos dos procedimentos administrativos que se encontram no anexo I dos autos;
c) KK - funcionária da C.M ... desde final do ano de 2018, estando a desempenhar funções de assistente técnica no Serviço de Ação Social, chefiado por PP (a fls. 513 a 516) -, assumiu apenas, com interesse, a escolha do fornecedor do procedimento de compra ..., por se tratar de um restaurante muito agradável e situado perto do local das filmagens em causa (fator relevante); quanto aos demais procedimentos com que foi confrontada, não revelou ter tido conhecimento de qualquer influência ou decisão de algum dos arguidos autarcas;
d) JJ - secretária do Vice-presidente da C.M ..., BB, desde o ano de 2017 – (a folhas 396 a 398), apenas revelou ter tido conhecimento do procedimento n.° ....../S do ano de 2019 que diz respeito à aquisição de serviço de 8 almoços (reunião membros do executivo sobre PDM) no valor de 200,00 € (162,60 € sem IVA) adjudicado através de ajuste direto à empresa “A..., Unipessoal Lda”, tendo confirmado ter sido a gestora do respetivo contrato, tendo elaborado o documento denominado “fundamentação da decisão de contratar”, esclarecendo que o serviço requisitante foi o Gabinete de Apoio à Presidência, em resultado de uma indicação emanada pelo Chefe do Gabinete de Apoio à Presidência, CC;
e) LL - funcionária da C.M ... desde 1999, sendo técnica superior no Gabinete de Comunicação e Imagem - (folhas 504 a 506) apenas revelou com interesse ter participado no Procedimento n.° ... do ano de 2018 e que diz respeito à prestação de serviços (Coffee Break – L...) cujo contrato foi adjudicado à empresa “A..., Unipessoal Lda”, também designada por ‘D... “, tendo elaborado a respetiva requisição interna; não teve conhecimento de qualquer influência ou indicação da empresa fornecedora por parte do arguido vereador DD, que apenas esteve na base da necessidade de requisitar um fornecimento com tais caraterísticas no âmbito de uma iniciativa do seu pelouro;
f) MM - funcionária da C.M ... desde 1999, referiu, em suma, que à data dos factos desempenhava funções no Serviço de Desporto do referido município (a fls. 507 e 508) e participou no procedimento ... do ano de 2018 e que diz respeito a aquisição de serviços (Coffee Break), tendo elaborado a respetiva requisição, confirmando ainda que o serviço requisitante foi o Serviço de Desporto, desconhecendo outros pormenores;
g) NN - funcionária da C.M ... desde 2016, desempenhando as funções de Chefe de Serviço do Desporto desde o ano de 2018 – (a folhas 510-511) revelou, no essencial, o mesmo que a testemunha anterior;
h) PP – chefe de divisão da Acção Social e Saúde, desde 30 de Abril de 2023, tendo sido admitida ao serviço do município em 2017 (a fls. 732 e 733), limitou-se, no essencial, a confirmar o teor de documentação que lhe foi exibida e que consta do anexo I;
i) QQ – técnica superior do departamento de administração desde 21 de Janeiro de 2019 (a fls. 735 e 736), limitou-se também, no essencial, a confirmar o teor de documentação que lhe foi exibida e que consta do anexo I;T
j) RR – técnica superior do gabinete de comunicação da C.M ... (a fls. 737 a 739) prestou um depoimento, no essencial, com o teor acima referenciado quanto à testemunha LL, apenas acrescentando conhecer uma reunião em que participou o arguido DD, a autorizar a requisição de um fornecimento com as características que acabaram por ser contratadas; e
k) SS – assistente técnica do departamento de administração – (a folhas 740 a 742), limitou-se, no essencial a confirmar ter elaborado a requisição interna que consta a folhas 154 verso do apenso I dos autos.
Por outro lado, a documentação que consta no anexo I, onde se encontram nomeadamente documentados os procedimentos que resultaram nas adjudicações diretas descritas na acusação, não revelam, nomeadamente, que:
a) os arguidos autarcas tivessem tido intervenção pessoal na seleção do(s) fornecedor(es) em qualquer um dos procedimentos administrativos de ajuste direto de compra(s) a empresa(s) de pessoas suas familiares;
b) os arguidos autarcas tivessem tido uma ação concertada entre si, de modo a que certos procedimentos de aquisição de bens e serviços a tais empresas apenas tivesse a sua condução e decisão assegurada por titulares de cargos autárquicos que não se encontrassem pessoalmente impedidos de conduzir e de decidir tais procedimentos;
c) os arguidos autarcas tivessem tido a intenção de favorecer alguma das empresas com as quais o município adquiriu os fornecimentos de bens e serviços por ajuste direito simplificado.
A prova recolhida em instrução também não acrescentou novos indícios, tendo os depoimentos das testemunhas TT, GG, UU, II, OO e JJ apenas acrescentado em relação ao que já constava do inquérito, que os fornecedores eram selecionados segundo uma “habitual rotatividade”, embora esta afirmação não tenha sido suportada por prova documental junta aos autos, limitada aos procedimentos descritos na acusação.
Em conclusão, os autos não indiciam que os arguidos titulares de cargos políticos na Câmara Municipal ... tenham conscientemente conduzido ou decidido contra direito um processo em que intervieram no exercício das suas funções, com a intenção de por essa forma prejudicar ou beneficiar alguém, o que, além do mais, também resulta, de algum modo, do número relativamente diminuto de ajustes diretos descritos na acusação, dos valores envolvidos, da adjudicação dos contratos a quem oferecia um preço mais reduzido, sempre que havia mais do que uma empresa convidada e das explicações dadas pelas funcionárias camarárias que tramitaram os procedimentos administrativos e esclareceram que os fornecimentos foram requisitados por diversos serviços camarários, tendo em conta necessidades concretas.
As suspeitas que originaram o inquérito não se consubstanciaram em indícios da prática dos crimes de prevaricação por parte daqueles arguidos e, por consequência, dos demais arguidos que não tinham cargos autárquicos, mas que, em caso de haver indícios de comparticipação, poderiam ser pronunciados pela prática do mesmo tipo legal de crime, à luz do disposto no art. 28º do Código Penal.
De tudo quanto ficou exposto, importa negar provimento ao recurso e confirmar o despacho de não pronúncia recorrido.
Das custas processuais:
Não há lugar ao pagamento de custas do recurso do Ministério Público, atenta a isenção subjetiva prevista no art. 522º, 1, do Código de Processo Penal.
III – DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam em conferência e por unanimidade os juízes signatários da 2ª Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso do Ministério Público.
Sem custas.
Nos termos do disposto no art. 94º, 2, do Código de Processo Penal, aplicável por força do art. 97º, 3, do mesmo texto legal, certifica-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator.
Porto, em 2 de Abril de 2025.
Jorge Langweg
Maria Dolores da Silva e Sousa
Maria Deolinda Dionísio
________________
[1] Parecer subscrito pelo Procurador-Geral Adjunto Dr. José Eduardo Lima.
[2] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V.
[3] Como decorre já de jurisprudência datada do século passado, cujo teor se tem mantido atual, sendo seguido de forma uniforme em todos os tribunais superiores portugueses, até ao presente: entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de Maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, mais recentemente, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da Graça no processo nº. 30/09.7GCCLD.L1.S1.
[4] Neste sentido, entre outros, leia-se Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, II, 2006, pág. 322.
[5] A expressão “prevaricador” “evoluiu para uma dimensão mais abrangente, passando a designar aquele que se torna infiel ao próprio cargo, violando os deveres ao mesmo inerentes (Hungria, 1959, 375 segs.). Como veremos, é ainda esta dimensão que se projeta na construção do tipo legal do artigo 11º, da Lei nº 34/87, de 16 de Julho.”, na expressão de Sílvia Marques Alves, “O crime de prevaricação, no âmbito da responsabilidade criminal dos titulares de cargos políticos”, Revista Portuguesa de Ciência Criminal, nº 1, 2015.
[6] Carmo Silva Dias, Comentário das Leis Penais Extravagantes, I, U.C.E., 2010, pág. 751.
[7] Sendo assim, apenas aplicável aos factos nº 57 a 76 e 104 e seguintes da acusação pública, tendo em conta a data dos mesmos e a referida data da entrada em vigor da lei.
[8] Abrangendo, assim, os factos descritos na acusação pública sob os números 24 a 56 e 77 a 104, considerando a sua data e o período em que esteve em vigor essa lei – até 24 de Outubro de 2019, véspera da entrada em vigor da Lei nº 52/29019, de 31 de Julho.
[9] Como concluiu, também, implicitamente, o Conselho Consultivo da Procuradoria Geral da República, na conclusão nº 38 do Parecer nº 06/2021, acessível no endereço da rede digital global https://www.ministeriopublico.pt/sites/default/files/documentos/pdf/pp2021006.pdf.