OBRIGAÇÃO DE FIANÇA
INSOLVÊNCIA DO DEVEDOR
EFEITOS
Sumário

I - A declaração de insolvência afecta apenas o património do insolvente e não dos restantes devedores da mesma obrigação ou até de obrigações dependentes geneticamente dela, como é o caso da obrigação do fiador.
II - Para que ocorra a desoneração do devedor prevista no artigo 653º, é necessário a ocorrência de um facto voluntário, positivo ou negativo do credor.
III - A simples insolvência do devedor principal que é aliás filha da fiadora não integra essa previsão normativa.

Texto Integral

Processo: 2430/23.0T8VLG.P1

Sumário:

………………………………

………………………………

………………………………


*

*


Relatório:

AA, intentou a presente ação declarativa constitutiva e de condenação contra “Banco 1..., SA”, com sede Rua ..., ..., Porto, formulando os seguintes pedidos:

A) Seja reconhecida a extinção da fiança por si outorgada e assumida na aquisição da habitação sita na Rua ..., nº ..., 1º Drt.º, ..., Valongo, fração autónoma designada pela letra “D” destinada a habitação, do tipo T2, no 1º andar e garagem na cave inscrita na matriz predial urbana sob o art.º .../D/... e descrita na Conservatória do Registo Predial de Valongo sob o nº .../D/Valongo

B) E em consequência seja a ré condenada a comunicar ao Banco de Portugal a extinção da fiança de forma a libertar a autora do registo da responsabilidade bancária que pese extinta ainda se mantem por comunicação direta efetuada pela credora.

Para tanto alegou que foi fiadora da sua filha na aquisição da fração autónoma identificada. A sua filha deixou de cumprir e foi declarada insolvente, onde a fração foi vendida, encontrando-se a autora, segundo o mapa de responsabilidades do Banco de Portugal, responsável pela diferença entre o valor da venda e o valor do mútuo que ficou por liquidar, tendo a sua filha sido exonerada do passivo restante. Por conseguinte, também a autora ficou exonerada da sua dívida, pois que a extinção da obrigação principal determina a extinção da fiança. Além disso, o fiador que cumprir a obrigação fica sub-rogado nos direitos do credor e, face à exoneração, não pode sub-rogar-se no lugar da credora.

A ré contestou, pugnando pela improcedência do pedido. Para tanto, alegou que a exoneração do passivo restante do devedor principal não extingue a responsabilidade dos fiadores nem os desonera da responsabilidade do pagamento da parte sobrante da dívida por eles garantida. E, bem assim, que a extinção da fiança só se daria por facto do credor, o que não é o caso da insolvência do devedor principal, que não é imputável à ré.

Foi saneado e instruído o processo e, após julgamento, foi proferida sentença que julgou a acção improcedente.

Inconformada veio a autora interpor recurso, o qual foi admitido como de apelação, com subida nos próprios autos e efeito meramente devolutivo (artigos 629º, 631º, 638º, 644º, nº 1 al. a), 645º, nº 1 al. a) e 647º, nº 1, todos do Código de Processo Civil).


*

2.1 Conclusões da apelante[1]

E) Porém e conforme supra melhor aposto em de alegações supra e que ora se dão por reproduzidas o doutro Tribunal A Quo entendeu ter matéria suficiente para, salvo melhor opinião limitar a avaliação da Fiança à questão limitada da sua extinção por via da Exoneração concedida em sede de Insolvência à devedora principal do mútuo contratado e no qual a Recorrente está vinculada como se essa fosse a única razão de extinção da fiança.

F) O Tribunal A Quo com a sua decisão proferida reduz consome e reduz Instituto da Fiança a uma Exoneração proferida em sede de uma Insolvência esvaziando o mesmo de todas as demais obrigações e garantias legalmente existentes na relação civil mutualista no que tange à Recorrente sonegando o seu direito de sub-rogação G) Por via da Insolvência da devedora principal do contrato de mutuo a douta decisão ora em recurso é legitimado a Recorrida o seu incumprimento dos deveres legalmente devidos por via da Fiança para com os fiadores como se estes inexistissem ou fossem partes não relevantes. Ao ponto de lhe legitimar imputar um valor de divida que se desconhece de onde vem uma vez não se saber como se justifica atentos aos cálculos necessários de capital mutuado, pago e juros igualmente mutuados, pagos e em divida.

H) A douta decisão legitima a credora ora em causa detentora de uma hipoteca sobre o imóvel sujeito ao credito ao qual acresceu a Fiança de dispor da coisa vendendo-a de forma arbitrária sem de tal dar conhecimento aos fiadores satisfazendo parte do credito e não a sua totalidade mantendo uma divida que transfere nos termos do contrato de mutuo para o fiador com base nesse mesmo contrato que na verdade Por tudo quanto aposto em sede de Petição Inicial e que ora se replica bem como o supra melhor argumentado a titulo de jurisprudência ao caso em concreto ora se solicita a melhor justiça ao caso concreto que crê a Autora ser a sua desvinculação à fiança melhor explanada em sede de P.I. e consequente comunicação junto do Banco de Portugal de inexistência de responsabilidades bancárias


*

2.2. A ré contra-alegou, conforme alegações que se dão por reproduzidas e se resumem nos seguintes termos:

Além do mais, e conforme oportunamente se referiu, da redação do artigo 653.º deriva, e conforme tem vindo a ser entendido pela Doutrina e pela Jurisprudência de forma unânime, a extinção da fiança pressupõe um facto voluntário (ação ou omissão) do credor afiançado que inviabilize a sub-rogação do fiador nos direitos que lhe assistem.

Assim, só quando a impossibilidade de sub-rogação do fiador derive de um facto imputável ao credor, é que ocorrerá a extinção da fiança.


*

3. questões a decidir

1. Determinar se a extinção da responsabilidade da divida no decurso do processo de insolvência gera, ou não, a extinção da fiança

2. Caso assim não seja, determinar se a fiança se pode considerar extinta nos termos do art. 653º, do CC.


*

4. Motivação de Facto

1. Por escritura pública de Mútuo com Hipoteca e Fiança, outorgada no dia 18 de março de 2011, BB adquiriu aos seus avós, pelo preço de noventa e sete mil e quinhentos euros, a fração autónoma designada pela letra “D”, habitação no primeiro andar direito e garagem na cave, afeta ao prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., ... e Rua ..., ..., freguesia ..., concelho de Valongo, descrito na Conservatória do Registo Predial de Valongo sob o nº .../... e inscrito na matriz predial sob o artigo ....

2. Através da mesma escritura pública e respetivo documento complementar, a ré Banco 1... emprestou a BB a referida quantia de noventa e sete mil e quinhentos euros, para aquisição da sobredita fração, quantia da qual a aquela se confessou devedora e mais declarou constituir hipoteca sobre a referida fração para garantia do capital emprestado, respetivos juros e despesas extrajudiciais.

3. Através da mesma escritura, a autora AA e CC declararam entre o mais: “Que se responsabilizam como fiadores e principais pagadores por quanto venha a ser devido à Banco 1... credora em consequência do empréstimo aqui titulado dando, desde já, o seu acordo a quaisquer modificações de taxas de juro e bem assim às alterações a prazo ou moratórias que venham a ser convencionadas entre a credora e a parte devedora e aceitando que a estipulação relativa ao extrato de conta e aos documentos de débito seja também aplicável à fiança”.

4. Por sentença de 31 de março de 2014, proferida pelo extinto tribunal Judicial de Valongo 1ª Juízo, transitada em julgado, foi declarada a insolvência de BB.

5. Por sentença de 26/06/2014, transitada em julgado e proferida no apenso B, foi reconhecido e graduado à credora Banco 1..., um crédito “até ao valor de € 104.720,64, valor em dívida enquanto garantido por hipoteca voluntária (que garante valor superior)” graduado logo a seguir às dívidas da massa; e ainda outro crédito no valor de € 773,04 de natureza comum.

6. Em 14/10/2014, foi emitido o título de transmissão da fração identificada em 1 à credora Banco 1..., através de propostas em carta fechada, pelo valor de € 89.250,00, pagando a adjudicatária o valor de € 17.850,00 e ficando dispensada do depósito do remanescente.

7. Em 26/11/2014, foi proferido despacho que homologou o mapa de rateio final, do qual consta que à credora Banco 1... irá ser pago por cheque o montante de € 6.315,50, ficando ainda em dívida à Banco 1... a quantia de € 27.005,14.

8. Por despacho datado de 11/10/2021, transitado em julgado, foi concedida a exoneração do passivo restante à devedora BB.

9. A ré calculou a quantia em dívida incluindo os juros vencidos, em 17/08/2023, no montante de € 42.354,68.

10. Consta da Central de Responsabilidades do Banco de Portugal informação comunicada pela Banco 1..., SA, relativamente à responsabilidade da ora autora na qualidade de “avalista / fiador”, por crédito à habitação, pelo valor em dívida de € 26.586,21.


*

5. Motivação Jurídica

1. Da extinção da fiança por força da declaração de insolvência do devedor principal

Pretende o apelante que devido à declaração de insolvência da devedora e à exoneração do passivo restante principal a sua obrigação deve ser também extinta.

A questão não é nova e já foi resolvida na nossa jurisprudência.[2]

Dispõe o art. 91º do CIRE que “1 - A declaração de insolvência determina o vencimento de todas as obrigações do insolvente não subordinadas a uma condição suspensiva”.

Logo, essa norma, não é aplicável ao presente caso porque estamos perante uma obrigação pessoal da apelante.

Depois, os elementos sistemáticos apontam também para a subsistência dessa divida.

O art. 88º, do mesmo diploma, impõe que 1 - A declaração de insolvência determina a suspensão de quaisquer diligências executivas ou providências requeridas pelos credores da insolvência que atinjam os bens integrantes da massa insolvente”.

Daí resulta, pois, que os efeitos da insolvência só afectam o património do declarado insolvente.

Depois, mesmo quando tenha sido aprovado um plano de recuperação, o art. 217º, nº4, do CIRE, dispõe que: “as providências previstas no plano de insolvência com incidência no passivo do devedor não afetam a existência nem o montante dos direitos dos credores da insolvência, designadamente os que votem favoravelmente o plano, contra os codevedores ou os terceiros garantes da obrigação, mas estes sujeitos apenas podem agir contra o devedor em via de regresso nos termos em que o credor da insolvência pudesse exercer contra ele os seus direitos”.

Desta norma resulta a intenção do legislador em evitar a extensão dos efeitos resultantes do plano de recuperação aos terceiros garantes, mesmo que fiadores.

Tanto é assim que a redacção anterior (artigo 63.º do CPEREF), sob a epígrafe, “manutenção dos direitos dos credores contra terceiros” dispunha que “ As providências de recuperação a que se refere o artigo anterior não afectam a existência nem o montante dos direitos dos credores contra os coobrigados ou os terceiros garantes da obrigação, salvo se os titulares dos créditos tiverem aceitado ou aprovado as providências tomadas e, neste caso, na medida da extinção ou modificação dos respectivos créditos”.

Podemos assim concluir que a declaração de insolvência afecta apenas o património do insolvente e não dos restantes devedores da mesma obrigação ou até de obrigações dependentes geneticamente dela, como é o caso da obrigação do fiador.

Note-se, aliás que essa é a posição maioritária entre nós, como demonstram:

1. Ac da RP de 9.3.23, nº 6527/22.6T8PRT-B (Paulo Duarte Teixeira), o qual foi objecto de um recurso para o TC que não conheceu do mesmo.

2. Ac da RP de 13.7.22, nº 10015/21.0T8PRT-A.P1 (FERNANDO VILARES FERREIRA), considerou que “A autonomia da obrigação do avalista harmoniza-se com o preceituado no art. 217, n.º 4, do CIRE, pelo que a dedução de PER, assim como a aprovação e homologação do correspondente plano de recuperação da sociedade subscritora da livrança avalizada, e o que aí se faça constar quanto ao cumprimento das suas obrigações, sem aceitação do credor portador da livrança, não é invocável pelo avalista contra quem o portador da livrança venha a instaurar a execução”.

3. Ac da RL de 5.12.23, nº (Paulo Ramos Faria): “A exoneração do passivo restante, concedida no âmbito do processo de insolvência do devedor principal, não afeta a existência nem o montante do direito do credor contra o terceiro fiador, garante de uma obrigação abrangida pela exoneração”.

4. Ac da RL de 8.11.22, nº 28463/16.5T8LSB-A.L1-7 (Cristina Maximino): “ A declaração de exoneração do passivo restante no âmbito de um processo de insolvência de pessoa singular, ao extinguir a obrigação principal afiançada nos termos do artigo 245º, nº 1 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas, não faz extinguir a obrigação do fiador e, por isso, não determina a extinção da fiança”.

5. Ac do STJ de 25/05/2023 nº 19002/19.7T8SNT-A.L1.S1[3], que decidiu “a declaração de insolvência nenhum efeito tem quanto aos demais obrigados ou garantes (no caso os fiadores), mantendo-se na íntegra a obrigação que assumiram perante o credor”.

Logo, teremos de concluir que os efeitos da insolvência e exoneração do passivo restante não beneficiam a apelante.

E, note-se que bem se compreende, pois essa exclusão implicou a sujeição do insolvente a um regime alargado, no qual grande parte dos seus rendimentos foram destinados ao pagamento parcial das suas dívidas durante alguns anos. Logo estranho seria que a apelante pudesse beneficiar dessa exclusão total sem ter sido onerada com qualquer pagamento ou obrigação legal.

Podemos assim concluir que a declaração de insolvência afecta apenas o património do insolvente e não dos restantes devedores da mesma obrigação ou até de obrigações dependentes geneticamente dela dependentes (...)[4].

Improcede, pois, a primeira questão suscitada.


*

2. Da extinção da fiança ao abrigo do seu regime

Dispõe o art.º 653.º do Cód. Civil que “os fiadores, ainda que solidários, ficam desonerados da obrigação que contraíram, na medida em que, por facto positivo ou negativo do credor, não puderem ficar sub-rogados nos direitos que a este competem”.

Segundo Vaz Serra esta norma baseia-se, na seguinte obrigação: “o credor não deve proceder de maneira a obstar a que o fiador se sub-rogue nos seus direitos, pois, se esta sub-rogação se não der, pode ser o fiador prejudicado. Ora, o credor, assim como recebe com a fiança uma garantia para o crédito, deve, por outro lado, evitar que o fiador, por falta daquela sub-rogação, seja lesado”.[5]

In caso é até duvidoso (do ponto de vista, pelo menos, de uma obrigação natural) que a fiadora não possa recuperar o montante despendido no pagamento da parte restante do crédito da sua filha.

Mas, mesmo que assim não seja, o teor literal da norma é claro e a mesma pressupõe “um facto positivo ou negativo do credor”.

O Ac. do TRL 06-12-2022 (19002/19.7T8SNT-A.L1-8), exemplificou uma situação de omissão de informação: “uma vez iniciada a quebra de pagamentos por parte do devedor, desde que, pela sua frequência, seja objetivamente indiciadora da dificuldade ou impossibilidade económica do devedor cumprir – ou do propósito de não cumprir – o credor tem o ónus de informar o fiador. Se o não fizer, este, quando instado para pagar, já eventualmente em processo executivo, pode opor ao credor a exceção de inexigibilidade (parcial) da obrigação exequenda (art.º 813.º, al. e), CPC [hoje art.º 729.º, g)]), argumentando com o facto de não lhe ser eficaz o agravamento da dívida posterior ao momento em que razoavelmente deveria ter sido informado da quebra de pagamentos” .

O supracitado Ac da RL de 5.12.23 negou, no caso concreto, a relevância da omissão de informação do credor.

E, por exemplo, Manuel Januário da Costa Gomes,[6] defende que existe um dever do credor, imposto pelo princípio da boa-fé, que impõe a informação ao fiador as vicissitudes relevantes da obrigação principal de tal modo que: “ só é exigível que o fiador se apreste a pagar a dívida– depois de o credor executar a garantia, interpelando-o e informando-o do incumprimento”.

A nossa jurisprudência tem analisado várias situações em que afirmou a relevância dessa impossibilidade de exercer o direito de sub-rogação por conduta activa ou omissiva do credor.[7]

Mas é consensual que:

a) “ (…) Para que ocorra a desoneração do devedor prevista no artigo 653º, é necessário a ocorrência de um facto voluntário, positivo ou negativo (não necessariamente culposo), do credor: é razoável que o credor perca a vantagem da fiança na medida em que a perda do direito lhe seja imputável. [8]

b) e que “O artigo 653º exige ainda um nexo de causalidade entre o facto do credor e o efeito de o fiador não poder ficar suficientemente sub-rogado nos direitos daquele. Por um lado, terá de tratar-se de direitos que, em caso de cumprimento pelo fiador, se lhe transmitiriam por sub-rogação[9]

c) Sendo de notar que: “Este preceito prevê a extinção de direitos do fiador sobre o devedor principal por culpa do devedor, e não já a impossibilidade prática de realização do respectivo direito de cobrança do crédito correspondente à sub-rogação”. (nosso sublinhado).[10]

Ora, in casu não foi alegado (e por isso demonstrado) qualquer acto imputável ao credor/apelado que tenha provocado a impossibilidade de exercer a sub-rogação.

Note-se que a apelante é mãe da fiadora e que o imóvel e causa foi comprado aos avós daquela, logo, por certo a apelante foi informada devidamente das vicissitudes do incumprimento da obrigação não pelo credor mas pela devedora principal e é, a melhor pessoa, para conhecer em concreto o património desta.

Acresce que o valor de venda em execução do imóvel (89.250,00) é até bastante próximo do valor de aquisição (ao contrário do alegado no art. 14 da pi).

E, por último e mais importante, não foi sequer alegado qualquer acção ou omissão concreta da credora que tenha provocado a impossibilidade da sub-rogação. Bem, pelo contrario, essa impossibilidade foi causada pela devedora principal filha da apelante.

Improcedem assim as conclusões suscitadas.

6. Deliberação

Pelo exposto, este tribunal colectivo julga a presente apelação não provida e, por via disso, confirma integralmente a douta sentença recorrida.

Custas a cargo da apelante porque decaiu totalmente


Porto, 10.4.2025
Paulo Duarte Teixeira
Isabel Silva [Voto vencida pelas seguintes razões:
§ 1º - O regime da fiança encontra-se prescrito na lei geral, o CC. Constituindo o CIRE um regime especial, importa verificar se ele contém algum preceito que determine especialidades face ao regime da fiança do CC, pois nesse caso será o CIRE o regime aqui aplicável. Não ignorando que a posição expressa no acórdão tem o apoio de entendimento maioritário a nível jurisprudencial e doutrinal no que toca à aplicabilidade ao PER do art.º 217º nº 4 do CIRE, com todo o respeito por tão avalisadas opiniões, sentimos grandes reservas por esse entendimento. Em primeiro lugar, o art.º 217º do CIRE integra-se no plano de insolvência, o qual constitui também um processo especial dentro do CIRE, a par do processo de insolvência. No caso, segundo os factos provados, o que ocorreu foi uma declaração de insolvência. No regime do processo da insolvência não encontramos preceito equivalente ao art.º 217º nº 4 do CIRE. Compaginando o processo de insolvência e o plano de insolvência vemos que também eles não são uma e a mesma coisa, comportando diferenças significativas, ao nível dos pressupostos e do procedimento. Desde logo porque no plano de insolvência a decisão pertence aos credores, competindo ao poder judiciário apenas a verificação de que não ocorre “violação não negligenciável de regras procedimentais ou das normas aplicáveis ao seu conteúdo” (art.º 215º), decretando então a homologação, ou “se tal lhe for solicitado pelo devedor” (art.º 216º). Como se sabe, numa sentença homologatória, o juiz não conhece do mérito da causa, limitando-se a verificar a validade/regularidade dos atos. Neste sentido, acórdão do STJ de 30/10/2001, processo 01A2924: «A função da sentença homologatória da transacção não é decidir a controvérsia substancial, mas apenas fiscalizar a regularidade e a validade do acordo das partes.» Assim, no âmbito dum plano de insolvência, a disposição do art.º 217º nº 4 encontra sentido uma vez que estamos numa fase em que a insolvência pode não até não vir a ocorrer. A insolvência só ocorre se o plano não for cumprido (art.º 218º). No caso tratou-se de uma declaração de insolvência e no processo de insolvência não se encontra um preceito que, tal como o art.º 217º, defina qual o efeito da declaração de insolvência sobre os garantes. - Sobre o tema, veja-se Alexandre de Soveral Martins, “Um Curso de Direito da Insolvência”, 2ª edição, 2016, Almedina, pág. 445-449. O plano de insolvência envolve também especialidades relativamente aos efeitos comuns da declaração de insolvência, permitindo uma derrogação das normas legais que se aplicam na ausência de plano. Por fim, diremos que o nº 4 do art.º 217º não só é uma norma de direito especial, mas que pode também ser classificada como norma excecional, na medida que se reporta a uma parte restrita do setor de relações que regula e consagra um regime oposto ao regime-regra, designadamente ao nº 2 do art.º 192º do CIRE que preceitua que o plano só pode afetar por forma diversa a esfera jurídica dos interessados, ou interferir com direitos de terceiros, na medida em que tal seja expressamente autorizado neste título ou consentido pelos visados. - Neste sentido, Catarina Serra, “Nótula sobre o art.217.º n.º 4 do CIRE”, in “Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Alberto de Carvalho Fernandes”, Volume I, Universidade Católica Portuguesa, 2011, pág. 385, que preconiza uma interpretação restritiva do art.º 217º nº 4 do CIRE.

§ 2º - Ainda na hipótese de se perspetivar a possibilidade de aplicação do art.º 217º nº 4 do CIRE, diremos que ele apenas se refere a garantias, sem fazer qualquer distinção entre elas. Entendemos ser de o fazer, dado que os regimes são muito diversos, designadamente no que toca às garantias abstratas (aval, livrança, etc.) e à fiança, que é um negócio causal. A solução de equiparação implicaria o desvirtuamento do regime jurídico geral da fiança, operada simplesmente por uma remissão de norma dum processo especial que apenas fala em garantias. Nos termos do art.º 644º do CC, o fiador que cumprir a obrigação fica sub-rogado nos direitos do credor relativamente à totalidade do montante que pagou. Já de acordo com o art.º 217º nº 4 do CIRE, o fiador apenas pode exigir do devedor, em via de regresso, aquilo que o próprio credor poderia exigir do devedor nos termos estabelecidos no plano. Se do plano de insolvência constava uma redução do crédito, o fiador apenas pode peticionar esse montante reduzido, independentemente do valor que tenha pago. Um desvirtuamento do instituto da fiança cuja caraterística fundamental reside na acessoriedade! Como sabemos, embora exista afinidade entre ambos os institutos, a sub-rogação e o direito de regresso constituem, no sistema legal português, realidades jurídicas distintas e, em determinado aspeto, mesmo opostas. – Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. II, 7ª edição, Almedina, pág. 346-347.

§ 3º - A aplicabilidade do art.º 217º, protege o credor — que pode aderir a um acordo no plano de insolvência, sabendo que nada perde pois pode executar o crédito na íntegra através do fiador — e o devedor insolvente — que, mesmo em via de regresso, sabe que nunca pode ser confrontado com a totalidade do que o fiador haja pago, mas apenas com o valor e as condições estabelecidas no plano. Como dissemos, a solução encontra sentido num plano de insolvência, em que esta está como que “em suspenso”, e se trata duma negociação entre credores. Quem fica totalmente desprotegido é o garante fiador, que se vê confrontado com umas condições que não contratou ao dar a sua fiança e, mais grave ainda, que lhe foram alteradas sem ele sequer ter sido ouvido, posto que nem participou nas negociações do plano! Sabemos que não é necessário um credor participar na negociação e na aprovação do Plano para ver o seu crédito afetado pelas medidas nele contidas. Porém, é necessário que lhe tenha sido dada essa oportunidade, ou porque o crédito foi reconhecido no PER ou porque, apesar de não o ter sido, após impugnação, o juiz lhe conferiu essa possibilidade, nos termos do artigo 17.º-F, n.º 5, do CIRE. Ora, se isto é assim relativamente aos credores, que podem participar nas negociações, por maioria de razão se deve atender à posição dos garantes fiadores, a quem nada é dito ou facultado, sendo apenas constrangidos na sua esfera jurídica por aquilo que outros decidiram. É sabido que a fiança constitui um negócio de risco. Porém, como avaliar um risco quando a decisão está “nas mãos de outrem”? «A característica da fiança como negócio de risco ou de perigo permite identificar ou, pelo menos, alvitrar os seguintes aspectos do regime: a) possibilidade de o fiador saber ex ante o nível de risco assumido; b) possibilidade de o assuntor de risco poder consultar (estudar), no decurso do negócio, o nível de risco existente; c) interpretação estrita das declarações de assunção de risco, com a correlativa tendencial aplicação dos critérios in dubio pro fideiussione e in dubio pro fideiussore; d) impossibilidade de aplicação da doutrina da alteração das circunstâncias a favor do beneficiário da assunção do risco; e) forte restrição da aplicação da alteração das circunstâncias a favor do assuntor do risco; tendencial carácter intuitu personae da vinculação; g) carácter expresso das cláusulas de agravamento do risco fidejussório, como seja a cláusula de fiador e principal pagador, a cláusula de renúncia aos meios de defesa do devedor, a cláusula de pagamento ao primeiro pedido, a aceitação do acrescido risco fidejussório nas situações do artigo 632/2CC; h) e, last but not least, a aceitação da existência de deveres de informação e aviso sobre o risco da prestação de fiança, quer pelo credor, quer pelo devedor principal.» - Manuel Januário da Costa Gomes, in “Sobre os poderes dos credores contra os fiadores no âmbito de aplicação do CIRE. Breves notas”, in “III Congresso de Direito da Insolvência”, 2015, Almedina, pág. 337 a 341. Porém, uma coisa é o risco inerente a qualquer situação de direito de regresso (no sentido que o devedor principal pode já não ter património ou tê-lo muito diminuído); coisa diversa é a própria lei impor, ab initio, a impossibilidade ao fiador vir a recuperar em ação própria tudo aquilo que pagou.
Como bem refere Anabela Luna de Carvalho, ao nível do risco a solução anterior do revogado CPEREF revelava-se bem mais equilibrada ao nível dos interesses em confronto: «A solução anterior repartia, assim, equitativamente, as desvantagens económicas das providências acordadas, uma vez que, o credor suportava a alteração do seu crédito por via das medidas de extinção, redução ou moratória, que houvesse aprovado ou consentido, não podendo exigir do garante mais do que esse crédito reconfigurado (que, em extremo poderia ser extinto se tivesse concedido um perdão total) e, o garante suportava, apenas, se fosse o caso, o risco da insolvência propriamente dita, único impedimento ao seu ressarcimento por via de regresso.» - in Data Venia, Revista Jurídica Digital, ano 10, nº 13, “Aval e Plano de Insolvência, O financiamento pelos garantes da recuperação do insolvente. O art.º 217º nº 4 do CIRE. As diferenças de regime no PER”. Num tal quadro, seria caso de se pensar em inconstitucionalidade da norma por violação do princípio da confiança, como se refere no acórdão do STJ de 27/03/2007, processo nº 07A760: «O princípio da confiança postula uma ideia de protecção da confiança dos cidadãos e da comunidade na ordem jurídica e na actuação do Estado, o que implica um mínimo de certeza e de segurança no direito das pessoas e nas expectativas que lhes são juridicamente criadas, razão pela qual é inconstitucional a norma que, por sua natureza, obvie de forma intolerável ou arbitrária àquele mínimo de certeza e segurança que os cidadãos, a comunidade e o direito têm de respeitar.» No mesmo sentido, Catarina Serra, in “Nótula sobre o art.217.º n.º 4 do CIRE”, in “Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Alberto de Carvalho Fernandes”, Volume I, Universidade Católica Portuguesa, 2011, pág. 466-468, que preconiza uma interpretação restritiva do art.º 217º nº 4 do CIRE: «Outras vezes – a maior parte das vezes -, estaria em causa a violação do (sub)princípio da tutela da confiança, configurando-se um abuso do direito, na “modalidade” do venire contra factum proprium. O credor que, tendo tornado viável um plano de recuperação da empresa e consentido nas alterações aos créditos aí previstas, venha a pôr-se em condições de não ser afectado por tais alterações, a desinteressar-se da recuperação e a furtar-se aos riscos que lhe são inerentes, está a adoptar com certeza um comportamento diferente do esperado e a violar, com toda a probabilidade, as legítimas expectativas do insolvente, dos condevedores ou garantes e dos outros credores – a violar a sua confiança. Para que este comportamento fosse identificado como um “comportamento contraditório” bastaria, mais precisamente, que se verificassem os três requisitos fundamentais do venire contra factum proprium, autonomizados por BAPTISTA MACHADO: a) a situação objectiva de confiança; b) o “investimento” na confiança; c) a boa fé de quem confiou. Os dois primeiros verificar-se-iam quase sempre: a votação favorável ao plano de insolvência é apta a criar expectativas quanto ao comportamento futuro do credor, sendo a situação de confiança criada base para a subsequente tomada de posição ou conduta dos outros sujeitos envolvidos. O último verificar-se-ia sempre que os sujeitos envolvidos desconhecessem a divergência entre a intenção aparente do credor (de submeter-se aos condicionamentos do plano de pagamentos e continuar a apoiar a recuperação) e a intenção real (de furtar-se a isso), o que tão pouco haveria de ser raro.» - In “Nótula sobre o art.217.º n.º 4 do CIRE”, in “Estudos dedicados ao Professor Doutor Luís Alberto de Carvalho Fernandes”, Volume I, Universidade Católica Portuguesa, 2011, pág. 386-387, que preconiza uma interpretação restritiva do art.º 217º nº 4 do CIRE.

§ 4º - Concluindo, considero que o art.º 217º do CIRE apenas é aplicável ao processo especial em que se insere, o plano de insolvência, e não a uma declaração de insolvência proferida em processo de insolvência.]
Francisca Mota Vieira
_____________
[1] Que se resumem nesses termos e cujo restante teor se dá por integralmente reproduzido
[2] Nomeadamente, para além do citados, no Ac da RP de 9.5.24, Processo: 2456/22.1T8MAI-B.P1 (Paulo Duarte Teixeira) não publicado.
[3] Também citado na decisão recorrida
[4] Ac da RP de 9.3.23, nº 6527/22.6T8PRT-B (Paulo Duarte Teixeira), que analisa mais detalhadamente esta questão que nos coibimos de reproduzir.
[5] Apud Ac da RL de 14/04/2015, (Luís Espírito Santo), acessível em www.dgsi.pt.
[6] Assunção Fidejussória de Dívida, Coimbra, Almedina, 2000, p. 962.
[7] Nomeadamente o Ac da RC de 9.11.22, nº 1523/21.3T8CTB-A.C1.
[8] Ac da RC de 08.11.2016, nº 1343/14.1TBFIG-A.C1. e o Ac do STJ de 12.7.11., nº 5209/04.1TBSTB.E1.S1 (MARIA DOS PRAZERES BELEZA), que no caso concreto considerou existir um acto concreto do credor.
[9] Ac da RL de 8.11.22, já citado.
[10] Ac do STJ de 27.1.23, nº 081849 (Araújo Ribeiro).