I – Afastado está nas nações civilizadas o tempo em que o arguido estava sujeito ao dever de verdade, insuportável num Estado de Direito Democrático e Social fundado na dignidade da pessoa humana como o nosso - artigo 1º da Constituição - e por isso que a nossa lei fundamental no artigo 32º, n.º 1 estabelece que o processo criminal, assegura todas as garantias de defesa, entre as quais se encontra o direito à não autoincriminação e o correlativo direito ao silêncio, o qual constitui um princípio constitucional não escrito.
II – No processo penal temos uma concretização deste direito à não autoincriminação, no direito ao silêncio do arguido previsto nos artigos 61º, nº1, al. d), 132º, nº 2, 141º, nº 4, a), e 343º, n. 1, do CPP.
III – O direito ao silêncio nasce apenas no momento em que o arguido é constituído nessa qualidade, mas ao ser exercido tem efeitos retroativos, ficando silenciado tudo o que fora por ele dito no processo e para o processo, incluindo no momento do início deste, no momento da aquisição da notícia do crime pelo órgão de polícia criminal, sob pena de se dividir a pessoa, o sujeito processual, em duas no mesmo processo, uma antes e outra depois de ter sido constituída arguida e desse modo suprimir essa essencial e sacrossanta garantia de defesa do processo penal das nações civilizadas: o direito ao silêncio.
IV – E este direito não pode ser contornado, escondido ou suprimido sob a capa ou o enfeite de preciosas definições ou filigranas processuais, como, por exemplo, a das ‘conversas informais’, a do ainda não haver arguido constituído, a de ainda não haver motivos para constituir arguido o ‘falante informal’, a da boa-fé ou má-fé do órgão de polícia criminal ao abordar e conversar com o ‘futuro arguido’, sob pena de corrermos o risco de transformar essa marca de civilização numa afirmação vazia e a pessoa arguida de sujeito em mero objeto do processo, reduzindo a pessoa a uma coisa.
V – Assim, no caso dos autos não podem ser valorados como prova, por força do disposto nos artigos 61º, nº1, al. d) e 343º, n. 1 e 125º do CPP, na parte em que reproduziram as declarações da então ainda não constituída arguida, os depoimentos dos agentes policiais que a abordaram e a quem esta entregou uma mochila dentro qual se encontravam 13 gramas de cocaína, tendo de seguida respondido a questões sobre de quem era o produto estupefaciente.
(Sumário da responsabilidade do Relator)
Relator: William Themudo Gilman
1º Adjunto: Jorge Langweg
2º Adjunto: Paula Cristina Jorge Pires
1.1-No Processo Comum (Tribunal Singular) nº 233/23.1PDPRT.P1 do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo Local Criminal do Porto - Juiz 6, após julgamento foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:
«Pelo exposto, julga-se parcialmente provada e procedente a acusação deduzida pelo Ministério Público, em função do que se decide:
a) Absolver o arguido AA da prática, como coautor material e na forma consumada, de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p., pelo artigo 25.º, al. a), conjugado com o artigo 21.º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei nº 15/93 de 22 de janeiro, com referência à Tabela anexa I-B do citado diploma legal.
b) Condenar a arguida BB pela prática, como autora material e na forma consumada, de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p., pelo artigo 25.º, al. a), conjugado com o artigo 21.º, n.º 1, ambos do Decreto-Lei nº 15/93 de 22 de janeiro, com referência à Tabela anexa I-B do citado diploma legal, na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão.
c) Suspender a execução da pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão, aplicada à arguida BB, por igual período de tempo.
d) Declarar perdido a favor do Estado o produto estupefaciente apreendido nos autos e descrito a fls. 8, nos termos do disposto no artigo 35.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, determinando, desde já, a sua destruição nos termos do artigo 62.º, n.º 6 do mesmo diploma legal e 109.º do Código Penal; (…)»
Não se conformando com esta sentença, recorreram para este Tribunal da Relação a arguida BB e o Ministério Público, concluindo nas respetivas motivações o seguinte (transcrição):
1.2.1- Arguida BB
«CONCLUSÕES
11. Nos termos do disposto no artigo 412º, número 1., do Código de Processo Penal, o âmbito do Recurso é delimitado pelas conclusões extraídas da respetiva motivação. No circunstancialismo deste caso.
12.A Arguida BB adquiriu o produto estupefaciente descrito na Tabela I B, do Decreto Lei n" I 5 93, de 22 de janeiro, em quantidade superior ao consumo médio individual durante o período de 10 dias para seu consumo exclusivo e próprio.
13. Arguida decidiu remeter-se ao Silêncio
14.O direito ao silêncio e a "primeira e imediata expressão da liberdade". O aproveitamento de provas obtidas através do arguido pressupõe respeito pelo principio "nemo tenetur se ipsum accusare", que reconhece a todo o imputado da prática de um crime o direito ao silêncio e a não produzir prova em seu desfavor.
15. A falta de constituição atempada de arguido gera a ineficácia contra o declarante nos termos do numero 2., do artigo 61°, do Código de Processo Penal.
16.O núcleo irredutível do principio nemo tenetur" reside na não obrigatoriedade de contribuir para a auto incriminação através do uso da palavra, no sentido de declaração prestada. A auto-incriminação, a existir, tem de ser livre, voluntária e esclarecida.
17.A Arguida BB somente pretende um Julgamento Justo e Equitativo, o qual, com Absoluto Respeito, não teve lugar.
18.O Silêncio a que se remeteu a Arguida BB foi, como se constata, valorado contra Si, pois, resulta das Regras de Experiência Comum e é de Conhecimento do Domínio Público que os consumidores deslocam-se àquele local para adquirir estas substâncias ilícitas;
19.O Silêncio a que se remeteu a Arguida BB foi, como se constata, valorado contra Si, pois, resulta das Regras de Experiência Comum e é de Conhecimento do Domínio Público que esses mesmos Consumidores adquirem normalmente quantidades acima do consumo médio individual superior a dez dias porque se deslocam de localidades já distantes da cidade do Porto;
20.Com Absoluto Respeito, o Silêncio a que se remeteu a Arguida BB foi. como se constata, valorado contra Si, pois, resulta das Regras de Experiência Comum e é de Conhecimento do Domínio Público que os consumidores adquirem quantidades acima do consumo médio individual superior a dez dias porque são dados descontos na aquisição de maiores quantidades pelos traficantes.
21.A Arguida BB informou os Agentes do Órgão de Polícia Criminal que o produto estupefaciente apreendido se destinava a seu consumo exclusivo.
22.O Tribunal "a quo" à mingua de demais atos de investigação em fase de Inquérito fundamentou a sua convicção somente neste ato de abordagem do OPC
23.A Arguida BB é imputado o Crime de Tráfico de Estupefacientes sem que na fase de inquérito tenha sido levado a efeito atos de investigação que apurassem, sem margem para dúvidas, que faz desse ato ilícito modo de vida.
24.Faltam elementos de facto, designadamente, os relativos à investigação do modo de vida da Arguida correspondente ao Tráfíco de Estupefacientes imputado, que permitam determinar com objetividade e justiça a imputação que lhe é imposta da Sentença, e resulta mesmo do texto da sentença recorrida que ficaram por realizar diligências por parte do tribunal e da Ministério Público em fase de Inquérito, que poderiam completar ou melhorar a factualidade apurada, pelo que é de concluir que a decisão recorrida enferma do vícios a que aludem as alíneas a), b) e c) do nt°2, do artigo 410." do Código de Processo Penal.
Nos termos consignados na alínea a), do artigo 412°, do Código de Processo Penal, a Douta Sentença recorrida viola os artigos 25°, alínea a), conjugada com o artigo 21°, número 1., ambos do Decreto-Lei n° 1 5/93, de 22 de janeiro, com referência à Tabela l-B, do citado diploma legal, bem como os artigos 27°, 28°, número 1. e 32°, número 2., da Constituição da República Portuguesa. UMA VEZ QUE OS FATOS IMPUTADOS NÃO PERMITEM SUSTENTAR A IMPUTAÇÃO NEM MUITO MENOS A CONDENAÇÃO DE UM CRIME DE TRÁFICO DE MENOR GRAVIDADE (dando cumprimento ao inciso no artigo 412°, número 2., alínea b), do Código de Processo Penal), devendo ser determinada a revogação da decisão de condenação da arguida BB pela prática, como autora material e na forma consumada, de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p., pelo artigo 25.°, al. a), conjugado com o artigo 21.º n.º 1, ambos do Decreto Lei nº 15/93 de 22 de janeiro, com referência à Tabela anexa l B do citado diploma legal, na pena de 1 (um) ano e 8 (oito) meses de prisão e ser decidida a sua absolvição do comissão do crime de tráfico de estupefacientes na forma privilegiada e o seu encaminhamento para Comissão para a Dissuasão da Toxicodependência, nos termos do número 4., do artigo 40º, do Decreto-Lei n° 15/93, de 22 de janeiro (dando cumprimento ao inciso na alínea c), do número 2., do artigo 412°, do Código de Processo Penal).
VÍCIO DE INCONSTITUCIONALIDADE: A VIOLAÇÃO DOS PRINCÍPIOS DE PRESUNÇÃO DE INOCÊNCIA E DO PRINCÍPIO "IN DÚBIO PRO REO", com assento no artigo 32°, número 2., da Constituição da República Portuguesa
Com o Devido Respeito e Salvo Melhor Opinião, face ao que ficou motivado e concluído supra, que se dá aqui por integralmente e implicitamente para efeitos de arguição de Vício de Inconstitucionalidade, a dúvida não foi valorada pelo Tribunal a favor dos direitos fundamentais da Arguido, Senhora BB.
O artigo 32º número 2., da nossa Lei Fundamental reconhece e preserva o principio de presunção de inocência do arguido, relativamente ao qual, na senda do artigo 48°, da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, doutrinam J.J. Comes Canotilho e Vital Moreira, in Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I. Coimbra Editora, 2004, a páginas 518 e 519, citando se, "O principio da presunção de inocência surge articulado com o tradicional principio in dúbio pro reo. Além de ser uma garantia subjectiva, o princípio é também uma imposição dirigida ao juiz no sentido de este se pronunciar de forma favorável ao réu. quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.
Este princípio considera-se também associado ao princípio nulla poena sine culpa, pois o princípio da culpa e violado se, não estando o juiz convencido sobre a existência dos pressupostos de facto, ele pronuncia uma sentença de condenação. Os princípios da presunção de inocência e in dúbio pro reo constituem a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico material da culpa concreta como suporte axiológico-normativo da pena".
TERMOS EM QUE, EM RECONCILIAÇÃO DO DIREITO COM A VERDADE, REQUER AOS VENERANDOS JUÍZES DESEMBARGADORES SE DIGNEM
Neste termos e nos melhores de direito, sempre com o Mui Douto Suprimento de V. Exas. que desde já se agradece, dando provimento ao Recurso, e, em consequência revogar a Douta Sentença, nos termos do artigo 410º, número 2., alíneas a), b) e c) do Código de Processo Penal, e ser substituída por outra que, em deferimento do requerido pela Arguida, determine a absolvição da pena de prisão de I ano e 8 meses a que foi condenada ao abrigo dos artigos 25º, alínea a), conjugado com o artigo 21º, número 1., ambos do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de janeiro, e, concomitantemente em sintonia, determine a absolvição do comissão do crime de tráfico de estupefacientes na forma privilegiada e o seu encaminhamento para Comissão para a Dissuasão da Toxicodependência, nos termos do número 4., do artigo 40º, do Decreto-Lei n 15/ 93, de 22 de janeiro, face à Culpabilidade Efetiva, às necessidades de Prevenção, credíveis possibilidades de Reinserção, Personalidade e Condição Social da Recorrente, atentos os critérios enunciados nos artigos 71° e 40º. do Código Penal, tendo por referência a aplicação concreta dos incisos nos artigos 127º e 379° número 1, alíneas b) e c), do Código de Processo Penal, constatada que foi a Inconstitucionalidade incursa pela mesma, por violação do determinado nos artigos 2º, 20°, número 1., 32°, número 2, da Constituição da República Portuguesa, na dimensão que lhes imprimem os princípios "in dúbio pro reo", de presunção de inocência e de nulla poena sinne lege, a qual poderá, eventualmente, ser objecto de Recurso de Inconstitucionalidade.
V. Exas, porém, como sempre, Farão a mais elevada, JUSTIÇA!»
1.2.2- Ministério Público
«=CONCLUSÕES=
I.Não obstante, se terem dado como não provados que,
a. “a)O arguido AA atuou conjuntamente com a arguida BB na prática dos factos dados como provados nos pontos 1 a 6” e,
b. “ b) O arguido AA agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado e de acordo com o plano previamente traçado de adquirir produto estupefaciente, que posteriormente pretendia vender a terceiros, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei”, não nos parece estar correctamente assentes, pois a prova e sua valoração não podem levar a esta conclusão, existindo um erro notório na apreciação da prova.
Ora, salvo melhor opinião, não podemos concordar que se tenham dado como não provados aqueles dois factos, por se nos afigurar que inexiste qualquer duvida face aos depoimentos das testemunhas presenciais e auto de notícia e porque nenhuma prova foi feita no sentido de ter ficado claramente provada a falta de conhecimento do arguido ou que o arguido ignorasse o que estava a fazer e ao que vinha fazer à cidade do Porto, junto do Bairro ..., num final de tarde, com a arguida, uma senhora casada, desempregada, sua conterrânea, uma vez que, ao serem abordados pela entidade policial, apresentaram nervosismo e inquietação, tendo a certo momento a passageira agarrado um mochila – cf. auto de notícia fls. 2.
II.Ou seja, de acordo as regras da lógica e as regras da experiência, tais circunstâncias não poderiam levar a considerar não provados os factos das alíneas a) e b), mas antes se deveria ter concluído pela prova positiva dos mesmos.
III.A douta sentença padece de erro notório na apreciação da prova (artigo 410.º n.º 2, al.c) do CPP), porquanto, em relação ao facto no ponto 4, de que a totalidade do referido produto estupefaciente pertencia à arguida”, pois, parece-nos salvo melhor opinião não se ter feito essa prova.
IV.Pelo contrário, o que resulta apurado é que a arguida BB se agarrou a mochila onde todo o estupefaciente apreendido, por ter sido encontrado no interior daquela mochila que agarrou quando a entidade policial os abordou.
V.Contudo, nenhuma prova se fez quanto à propriedade do estupefaciente e, portanto, a conclusão a retirar era a de que os arguidos foram encontrados com o produto estupefaciente no veículo pertencente ao arguido.
VI.E isto porque, os arguidos não prestaram declarações e, por isso, nenhum negou os factos, nem nenhum assumiu que o estupefaciente era só de um, ou sequer esclareceram o que quer que fosse para se poder concluir a propriedade ou posse do estupefaciente encontrado no veiculo do arguido AA, pelo que, apenas, nos restam os depoimentos das testemunhas presenciais que os abordaram e recolheram os elementos necessários a concluir pela detenção daqueles.
VII.Igualmente, resulta que as declarações informais, conforme foi acesamente invocado no decurso do julgamento, não podem ser aproveitadas, pelo que, não podem ser usados ou mesmo que usadas dentro de certos limites, apenas poderiam levar a uma conclusão inversa.
VIII.Ou seja, os arguidos acordaram deslocar-se ao Porto, Bairro ..., e que bem conheciam, para a aquisição de cocaína.
IX.Não obstante, entendemos que se tais declarações foram prestadas antes da constituição como arguido e no âmbito das diligências probatórias que os órgãos de policia criminal podem recolher na altura do crime por forma fundamentar e justificar a detenção dos suspeitos e constante do auto de notícia, tais declarações podem valer em julgamento para a prova dos factos.
X.Pois se assim não fosse qual a justificação para deter o arguido; obviamente que assentou no facto do mesmo ter referido o acordo que fez com a arguida para vir ao Porto comprar droga; o facto de ter permitido que a droga fosse colocada para ser transportada no seu veiculo, que seria por si conduzido até Vila Nova de Famalicão.
XI.Igualmente na altura da abordagem, ambos estavam nervosos e apreensivos, pelo que, se o arguido nada soubesse o que estava a fazer naquele local ou o que ia transportar; o que estava na posse da arguida BB, não demonstraria tal nervosismo como foi referido pelas testemunhas, agentes da PSP, ambas ouvidas em julgamento.
XII. E, a ter acontecido como descrito pelas testemunhas da acusação, tudo nos leva a crer que perante essa reação perante a entidade policial o arguido, bem sabia aquilo que estava a fazer no Bairro ..., naquele dia com a arguida BB.
XIII.Quer a descrição efetuada pelas testemunhas, quer o teor auto de noticia, na falta de outros esclarecimentos do arguido, e da co-arguida, obviamente que o raciocínio lógico, seria concluir que o arguido sabia e conhecia as circunstâncias pelas quais se deslocou com arguida ao Porto, pois inclusive, certamente, como estava com a arguida, viu a entrega dos sacos transparentes com a droga no carro (e o eventual pagamento) e em face da tal transação que presenciou e que sabia que ia acontecer, não nos parece logico concluir que o arguido era conhecedor da situação da aquisição, bem como, que não soubesse que transportou a arguida ao Porto para aquisição de droga, bem como, a ia transportar de volta para levar droga para Vila Nova de Famalicão, ondem residem. Nenhuma outra justificação foi invocada que não tenha sido o silêncio do arguido.
XIV. A arguida também não afastou o conhecimento pelo arguido do que vieram fazer ao Bairro ....
XV. Igualmente se concluirá que não tendo o arguido negado os factos, ou esclarecido o que quer que fosse, não se conseguem extrair outras conclusões que não seja que o arguido ajudou a arguida no transporte de droga de um local para o outro, ou, pelo menos, tinha a droga no seu veiculo, o que sabia e ia começar o transporte quando foram abordados pela polícia.
XVI. Face ao supra exposto, nesta parte, concluímos que a douta sentença incorre em erro notório da apreciação da prova, nos ternos do disposto no artigo 410.º n.º1 e 2, alínea c), do CPP e que os factos não provados quanto ao arguido AA, deverão ser dados como provados e consequentemente ser o arguido condenado pela prática do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, revogando-se a Douta Sentença recorrida na parte da sua absolvição e, consequentemente concluir pela condenação do arguido, numa pena de 2 anos e 5 meses suspensa na sua execução, mediante a prestação de um regime de prova.
XVII.Quanto à medida da pena concreta aplicada à arguida BB, entendemos para a correcta determinação da pena de prisão, terá de ser ponderado a favor da arguida a ausência de antecedentes criminais e contra a arguida o modo de execução dos factos através da detenção de produto estupefaciente – cocaína – a gravidade das suas consequências – a considerar a qualidade; grau de pureza e a quantidade dos produtos estupefacientes apreendidos (ou seja, 307 doses de cocaína que destinavam à venda a terceiros); o grau de violação dos deveres impostos aos arguidos; o dolo directo; as condições pessoais da arguida; a conduta posterior ao crime, o não arrependimento e a não aceitação da prática do facto ilícito ou falta interiorização da gravidade da prática do facto criminoso e as elevadas necessidades de prevenção geral, já que este tipo de ilícito e os demais associados, constituem um autêntico flagelo social, bem como, as necessidades de prevenção especial que não caso são reduzidas, não será, no entanto, adequado concluir pela aplicação da pena que foi fixada na sentença recorrida, mas antes será justa, equitativa e adequada a pena em 2 ano e 5 meses, suspensa na execução por igual período de tempo com regime de prova.
XVIII. Considerando que é intenso, in casu, o grau de ilicitude e de culpa e que as exigências de prevenção geral se mostram também elas intensas, a aplicação da pena fixada na douta sentença recorrida, não assegura, perante a consciência colectiva a validação da norma violada e os bens jurídicos de terceiros que se querem ver acautelados e protegidos com a incriminação da conduta.
XIX.São elevadíssimas as razões de prevenção geral que importa acautelar e que a sociedade em geral espera ver protegida, pelo que, a pena a fixar terá de ser adequada à gravidade da ilicitude e culpa do agente, não se nos afigurando que a pena fixada em 1 ano e 8 meses seja adequado nas circunstâncias concretas da factualidade dos autos
XX.A crença da comunidade na validade das normas incriminadoras, os sentimentos de segurança e de confiança nas instituições jurídico-penais, impõem, pois a opção e a aplicação de um quantitativo que se ajuste às circunstâncias do caso em concreto e que no caso dos autos só será equitativo se ponderadas as circunstância descritas e legalmente previstas, se fixar a pena de prisão em 2 anos e 5 meses de prisão.
XXI. Do supra exposto, e quanto a esta parte da medida concreta da pena, pugnamos pela revogação da Douta Sentença do Tribunal a quo quanto à medida concreta da pena, a qual deverá ser substituída por outra que condene a arguida pela prática, em co-autoria material, de um crime de tráfico de menor gravidade, p. e p., pelo art.º 25.º alínea a) do DL n.º 15/93, de 22 de Janeiro com referência às Tabelas I-A e I-B, do citado diploma legal, na pena de 2 anos e 5 meses de prisão, suspensa na sua execução pelo mesmo período, mas sujeito a um regime de prova no decurso da suspensão, tudo nos termos do disposto no art.º 50.º, 53.º e 54.º, todos do Código Penal.
Contudo, V.ªs Ex.as, farão JUSTIÇA »
1.3.1-O Ministério Público, nas suas alegações de resposta, pronunciou-se no sentido de ser julgado improcedente o recurso da arguida.
1.3.2-O arguido AA, nas suas alegações de resposta, pronunciou-se no sentido de ser julgado improcedente o recurso do Ministério Público.
Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
2.1-QUESTÕES A DECIDIR
Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (artigo 412.º, n.º 1, do CPP), que se delimita o objeto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
Face às conclusões extraídas pelos recorrentes da motivação apresentada, são as seguintes as questões a apreciar e decidir:
1-Vícios da decisão e nulidade da prova.
2-Violação dos princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo.
3-Do preenchimento do tipo de ilícito.
4-Determinação da pena.
2.1.2- A DECISÃO RECORRIDA:
Tendo em conta as questões objeto do recurso, da decisão recorrida importa evidenciar a fundamentação da matéria de facto que é a seguinte (transcrição):
« II. FUNDAMENTAÇÃO:
A) Factos Provados:
Da prova produzida, resultou provada a seguinte factualidade:
1.No dia 4 de maio de 2023, a arguida BB, deslocou-se à Cidade do Porto, mais concretamente ao Bairro ..., em viatura automóvel conduzida pelo arguido AA, com o propósito de ali adquirir estupefaciente, para ceder e vender a terceiros na área da sua residência, sita em Vila Nova de Famalicão.
2.Pelas 19h00m, ao regressarem do Bairro ..., estando a arguida BB na posse do estupefaciente que adquiriu a individuo cuja identidade não se logrou apurar, fazendo-se transportar na viatura BMW, com a matricula ..-..-XG, conduzido pelo arguido AA, foi intercetada por agentes da PSP na Rua ..., nesta cidade.
3.Nestas circunstâncias de tempo e lugar, foi encontrado, na posse da arguida BB: - duas embalagens de plástico com vários pedaços de cocaína (éster metílico), com o peso líquido de 13,815 gramas, com um grau de pureza de 66,8%, correspondente a 307 doses – cfr. exame pericial de fls. 45, cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
4.A totalidade do referido produto estupefaciente pertencia à arguida BB, que o destinava à cedência e venda a terceiros, mediante contrapartida económica.
5.A arguida BB agiu de forma livre e consciente, sabendo quais eram as características, natureza e efeitos do produto estupefaciente que detinha, transportava e guardava, para cedência e venda, sempre com a intenção de obter contrapartida económica.
6.Sabia ainda que a posse, detenção, transporte, guarda, cedência e venda de tais produtos era proibida e punida por lei.
7.Não obstante disso bem saber, a arguida BB quis agir e sabia que procedia da forma descrita com propósito concretizado de comprar, deter e efetuar o transportar desses estupefacientes, deslocando-se especificamente ao Porto para esse fim e para, mais tarde, esse estupefaciente vir a ser por si vendido.
8.Sabia a arguida BB que a sua conduta era proibida e punida por lei.
- Relativamente à arguida BB, resultou ainda provado que:
9.A arguida é casada, vivendo com o marido e duas filhas (com 19 e 23 anos de idade), e um neto (com nove meses), em casa arrendada pelo valor mensal de € 327,00.
10.A arguida encontra-se desempregada, não beneficiando de qualquer pensão ou rendimento.
11.O marido da arguida trabalho como empregado fabril, auferindo o salário mínimo nacional.
12.A arguida não possui carta de condução.
13.Não possui antecedentes criminais.
- Relativamente ao arguido AA, resulta ainda provado que:
14.O arguido é solteiro, vivendo em casa do progenitor.
15.Tem a seu cargo um filho com 14 anos de idade, tendo ainda uma filha com 10 anos de idade que se encontra a residir com a respetiva progenitora.
16.Trabalha como empregado fabril, auferindo o salário mínimo nacional.
17.Não possui antecedentes criminais.
B) Factos não Provados:
Com interesse para a decisão da causa, resultou não provado que:
a) O arguido AA atuou conjuntamente com a arguida BB na prática dos factos dados como provados nos pontos 1 a 6.
b) O arguido AA agiu de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito concretizado e de acordo com o plano previamente traçado de adquirir produto estupefaciente, que posteriormente pretendia vender a terceiros, sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei.
O tribunal formou a sua convicção com base no conjunto da prova testemunhal produzida na audiência de discussão e julgamento e na análise da prova documental e pericial junta aos autos, a qual foi apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, conforme o artigo 127.º do CPP (Código de Processo Penal).
Foram tidos em conta os documentos juntos aos autos, cuja genuinidade ou veracidade não foi posta em causa, nomeadamente, o auto de notícia por detenção de fls. 1/2, o auto de apreensão de fls. 8, o teste rápido de fls. 9, o fotograma de fls. 11, o relatório de exame pericial de fls. 45 e os certificados de registo criminal atualizado dos mesmos.
Quanto aos arguidos, ambos não prestaram declarações quanto aos factos de que vinham acusados, tendo somente relatado as suas condições pessoais, sociais e económicas, de modo que se afigurou credível.
Foram ainda ouvidas as testemunhas CC e DD, ambos agentes da PSP, tendo sido estes os responsáveis pela abordagem realizada aos arguidos nas circunstâncias de tempo e lugar descritas na acusação, relatando de forma isenta e descomprometida e interação tida com os mesmos. Resultou dos seus depoimentos que o produto estupefaciente apreendido se encontrava, na sua totalidade, na posse da arguida BB, que seguia na viatura automóvel no lugar do pendura, a qual revelou nervosismo e inquietação na abordagem policial realizada, segurando contra o próprio corpo uma mochila, a qual entregou aos agentes após ter sido questionada se tinha algo de ilícito na sua posse, reconhecendo prontamente ser a proprietária do produto estupefaciente que estava armazenado no seu interior, o qual havia sido momentos antes por si adquirido, pelo valor de € 300,00. Por sua vez, o arguido AA, condutor do veículo, nada tinha na sua posse.
Mais declararam os referidos agentes que nenhum dos arguidos tinha aparência física de ser consumidor habitual de produtos estupefacientes, nem tinham consigo os utensílios normalmente utilizados para o consumo do produto estupefaciente apreendido, e bem assim que a quantidade apreendida se mostra muito superior à que normalmente é adquirida por estes, mesmo tratando-se de residentes de fora do Porto (o que habitualmente leva à compra de quantidades superiores para evitar deslocações frequentes para a compra de produto estupefaciente), sendo sua convicção de que o produto estupefaciente apreendido na posse da arguida se destinava a ser transacionado na sua área de residência.
Em suma, analisando conjugadamente a prova produzida nos presentes autos, mormente os depoimentos prestados pelas testemunhas acima descritas e os elementos documentais e periciais juntos aos autos, tudo à luz das regras da experiência comum e da lógica, não restou qualquer dúvida ao Tribunal acerca dos factos acima dados como provados quanto à arguida BB. De facto, ficou demonstrado que a mesma tinha na sua posse 13,815 gramas de cocaína (ester metílico), o qual havia momentos antes adquirido a individuo de identidade desconhecida, quantidade essa a que correspondem 307 doses, atento o grau de pureza revelado pelo exame pericial (que foi de 66,8 %). Para além de tal quantidade de produto estupefaciente se revelar, à luz das regras da experiência e da lógica, incompatível com a finalidade do consumo exclusivo pela própria, acresce que, no caso dos autos, nem sequer resultou apurado que a arguida fosse consumidora habitual de cocaína, ou de qualquer outro tipo de produto estupefaciente. Temos assim que, atento o circunstancialismo verificado nos autos quanto ao modo como foi adquirido o produto estupefaciente em causa, e a quantidade apreendida na posse da arguida, não restou qualquer dúvida quanto à intenção lucrativa da atividade desenvolvida pela arguida, ou seja, de que esta apenas se deslocou à cidade do Porto, mais concretamente ao Bairro ..., para proceder à compra de cocaína a um preço mais reduzido, e obter lucro com a sua posterior revenda na sua área de residência.
Pelo contrário, quanto ao arguido AA, temos que a prova produzida se revelou escassa e pouco concludente, nada mais se tendo apurado a não ser que era este quem se encontrava a conduzir o veículo em que seguia a arguida BB, desconhecendo-se o concreto contexto mediante o qual o mesmo aceitou transportar a arguida até ao referido bairro, motivo pelo qual, à míngua de quaisquer outros elementos probatórios e em respeito ao princípio do in dúbio pro reo, se concluiu pela impossibilidade de afirmar coparticipação deste arguido na prática dos factos levados a cabo pela arguida BB, motivo pelo qual foi dada como não provada a factualidade contida nas alíneas a) e b).
Na verdade, o referido arguido não foi detetado com qualquer produto estupefaciente na sua posse, não adotou qualquer comportamento suspeito perante as autoridades policiais (mormente de ocultação de produto estupefaciente), nem resultou afirmado pela coarguida BB que o produto estupefaciente que lhe foi apreendido também pertencente àquele. Isto posto, não é de excluir a hipótese do mesmo apenas ter acedido em transportar a coarguida BB até à cidade do Porto sem ter qualquer ligação com a atividade ilícita desenvolvida pela mesma, até porque, conforme se apurou, a arguida não é portadora de carta de condução e necessitava de se socorrer de terceiros para se deslocar até à cidade do Porto.
Temos assim que não resultou demonstrado, em virtude da falta de prova concludente nesse sentido, de que o arguido AA tivesse atuado conjuntamente com a arguida BB, nomeadamente na aquisição/detenção do produto estupefaciente apreendido, ou bem assim de que este fosse auxiliar a coarguida na posterior venda do mesmo a terceiras pessoas.
Ora, com direta decorrência do principio da presunção de inocência, encontramos o denominado principio “in dubio pro reo”, de acordo com o qual, só podem dar-se como provados quaisquer factos ou circunstâncias desfavoráveis ao arguido, quando eles se tenham, efetivamente, provado para além de qualquer dúvida, pelo que, em caso de dúvida, na apreciação da prova, a decisão não pode ser desfavorável ao arguido, (cfr. Jesheck, “Tratado de Derecho Penal – Parte General”, trad. de Mir Puig e Munõz Conde, Bosch, Barcelona, 1981, pág. 195).
Sobre esta matéria Figueiredo Dias ensina que “à luz do principio da investigação bem se compreende, efetivamente, que todos os factos relevantes para a decisão (quer respeitem ao facto criminosos, quer à pena) que, apesar de toda a prova recolhida, não possam ser subtraídos à “dúvida razoável” do tribunal, também não possam considerar-se como provados, (cfr. artigo “Direito Processual Penal”, I Vol., Reimpressão de 1984, pág. 213).
E se, por outro lado, aquele mesmo princípio obriga em último termo o tribunal a reunir as provas necessárias à decisão, logo se compreende que a falta delas não possa, de modo algum, desfavorecer a posição do arguido: um “non liquet” na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido, ou seja, relativamente aos factos desfavoráveis ao arguido, a dúvida conduzirá a que os mesmos se deem como não provados. É com este sentido e conteúdo que se afirma o principio “in dubio pro reo”.
A dúvida que fundamenta o apelo ao princípio terá de ser insanável, razoável e objetivável.
Em primeiro lugar, a dúvida terá de ser insanável, pressupondo, por conseguinte, que houve empenho e diligência no esclarecimento dos factos, sem que tenha sido possível ultrapassar o estado de incerteza.
Deverá ser razoável, ou seja, impõe-se que se trata de uma dúvida séria, argumentada e racional. A dúvida que é gerada, unicamente, pela preguiça ou pelo medo de decidir, não é uma verdadeira dúvida.
A dúvida deverá ainda ser objetivável, ou seja, é necessário que possa ser justificada perante terceiros, o que exclui dúvidas arbitrárias ou fundadas em meras conjeturas e suposições.
Recentrando a nossa atenção no caso “a quo”, identificadas as provas, feita a sua apreciação critica e considerando os explicitados critérios de valoração, não se dissiparam as duvidas surgidas quanto à verificação dos factos contidos nas alíneas a) e b), devendo, pois, concluir-se pela sua não verificação, por força do descrito principio “in dúbio pro reo”.
*»
2.3.1- Vícios da decisão e nulidade da prova - insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e erro notório na apreciação da prova - artigo 410º, n.º 2, als. a), b) e c) do CPP.
Resumindo, entende a recorrente BB nas conclusões do seu recurso em primeiro lugar que houve uma violação do princípio "nemo tenetur se ipsum accusare", uma vez que o seu silêncio foi valorado contra si e que faltam elementos de facto, designadamente, os «relativos à investigação do modo de vida da Arguida correspondente ao tráfíco de estupefacientes imputado que permitam determinar com objetividade e justiça a imputação que lhe é imposta da Sentença, e resulta mesmo do texto da sentença recorrida que ficaram por realizar diligências por parte do tribunal e da Ministério Público em fase de Inquérito, que poderiam completar ou melhorar a factualidade apurada, pelo que é de concluir que a decisão recorrida enferma do vícios a que aludem as alíneas a), b) e c) do nt°2, do artigo 410." do Código de Processo Penal.»
Sintetizando, o recorrente Ministério Público entendeu que deveriam ter sido dados como provados os factos relativos à coautoria e elemento subjetivo relativamente ao arguido AA, por se afigurar que inexiste qualquer dúvida face aos depoimentos das testemunhas presenciais e auto de notícia e porque nenhuma prova foi feita no sentido de ter ficado claramente provada a falta de conhecimento do arguido ou que o arguido ignorasse o que estava a fazer e ao que vinha fazer à cidade do Porto, junto do Bairro ..., num final de tarde, com a arguida, uma senhora casada, desempregada, sua conterrânea, uma vez que, ao serem abordados pela entidade policial, apresentaram nervosismo e inquietação, tendo a certo momento a passageira agarrado um mochila, pelo que, de acordo com as regras da lógica e as regras da experiência, tais circunstâncias não poderiam levar a considerar não provados os factos das alíneas a) e b), mas antes se deveria ter concluído pela prova positiva dos mesmos e a sentença padece de erro notório na apreciação da prova (artigo 410.º n.º 2, al. c) do CPP), porquanto, em relação ao facto no ponto 4, de que a totalidade do referido produto estupefaciente pertencia à arguida”, pois, parece salvo melhor opinião não se ter feito essa prova.
Vejamos.
De acordo com o artigo 410º, n.º 2 do CPP, mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recurso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) A contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) Erro notório na apreciação da prova.
O vício que estiver em causa, tal como resulta da norma, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos estranhos à decisão.
O vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea a), do CPP, consiste numa carência de factos que suportem uma decisão de direito dentro do quadro das soluções plausíveis da causa, conduzindo à impossibilidade de ser proferida uma decisão segura de direito sobre a mesma. O tribunal não dá nem como provado nem como não provado algum facto necessário para justificar a posição tomada.
Este vício não se confunde com a insuficiência da prova para a decisão de facto proferida, em que se afirma que teriam sido dados como provados factos sem prova para tal.
O vício da contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão, previsto no artigo 410.º, n.º 2, alínea b), do CPP, consiste na incompatibilidade, insuscetível de ser ultrapassada através da própria decisão recorrida, entre os factos provados, entre estes e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão.
O vício do erro notório na apreciação da prova, previsto no artigo 410.º, n.º 2, al. c), do CPP, ocorre quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Existe erro notório na apreciação da prova quando o tribunal a valoriza contra as regras da experiência comum ou contra critérios legalmente fixados, dando como provado o que não pode ter acontecido e aferindo-se o requisito da notoriedade pela circunstância de pela simples leitura da decisão não passar o erro despercebido ao cidadão comum.
A recorrente afirma no seu recurso que informou os Agentes do Órgão de Polícia Criminal que o produto estupefaciente apreendido se destinava a seu consumo exclusivo, mas uma vez que se remeteu ao silêncio em audiência o tribunal deveria ter investigado se como é habitual os consumidores deslocarem-se àquele local para adquirirem estupefaciente e que normalmente adquirem quantidades acima do consumo médio individual para o consumo. Da leitura da sentença, por um lado, não resulta que a recorrente tenha feito a referida afirmação perante os agentes da PSP e, por outro, consta da sentença que «Mais declararam os referidos agentes que nenhum dos arguidos tinha aparência física de ser consumidor habitual de produtos estupefacientes, nem tinham consigo os utensílios normalmente utilizados para o consumo do produto estupefaciente apreendido, e bem assim que a quantidade apreendida se mostra muito superior à que normalmente é adquirida por estes, mesmo tratando-se de residentes de fora do Porto (o que habitualmente leva à compra de quantidades superiores para evitar deslocações frequentes para a compra de produto estupefaciente), sendo sua convicção de que o produto estupefaciente apreendido na posse da arguida se destinava a ser transacionado na sua área de residência.»
Assim, desde logo não vemos que o tribunal não tivesse dado como provados e não provados os factos necessários para a decisão da causa, ou que tivesse valorado a prova contra as regras da experiência comum, ou que se tivesse valorado contra a arguida o seu silêncio. Com efeito, não só a quantidade de estupefaciente detida é significativa como também os arguidos não tinham aparência de toxicodependentes com também não é normal que os toxicodependentes residentes fora do Porto costumem comprar tais quantidades, pelo que as regras da experiência levam a concluir pela propriedade do estupefaciente apreendido e pelo seu destino de venda.
Passando à questão seguinte, temos para nós como certo que é ainda no campo do erro notório na apreciação da prova do artigo 410.º, n.º 2, do CPP que se deve apreciar a questão da valoração de prova proibida ou proibição de valoração de prova levantada pela recorrente, a questão de se saber se é possível valorar a prova resultante do depoimento dos agentes da PSP que depuseram em audiência de julgamento e que referiram que a arguida entregou a mochila que tinha consigo e reconheceu prontamente ser a proprietária do produto estupefaciente que estava armazenado no seu interior.
A valoração do depoimento dos agentes da PSP na parte em que referem que na sequência da abordagem da arguida e da entrega por esta de uma mochila contendo no seu interior 13 gramas de cocaína a arguida reconheceu prontamente ser proprietária do produto estupefaciente é violadora do princípio da não autoincriminação do arguido - nemo tenetur se ipsum accusare ou simplesmente nemo teneur -, que tem como correlativo e núcleo essencial o direito ao silêncio e constitui uma das garantias de defesa do arguido.
Longe vão os tempos em que tinha assento nos Tribunais da Igreja o “juramento ex officio” em que os suspeitos de heresia tinham de prestar juramento sobre a sua inocência, e se vacilassem significava que Deus os considerava culpados. Como afastado está nas nações civilizadas o tempo em que o arguido estava sujeito ao dever de verdade, sendo o acusado ‘ajudado’ pelo recurso à tortura de modo a ser obtida uma confissão, pois entendia-se que o valor central da comunidade transcendia os interesses conflituantes no processo e obrigava os participantes a colaborar na descoberta da verdade.
Tal dever de verdade seria insuportável num Estado de Direito Democrático e Social fundado na dignidade da pessoa humana como o nosso - artigo 1º da Constituição - e por isso que a nossa lei fundamental no artigo 32º, n.º 1 estabelece que o processo criminal, assegura todas as garantias de defesa, entre as quais se encontra o direito à não autoincriminação e o correlativo direito ao silêncio, o qual constitui um princípio constitucional não escrito.
No processo penal temos uma concretização deste direito à não autoincriminação, não recaindo sobre o arguido o dever de colaborar na descoberta da verdade material, no direito ao silêncio do arguido previsto nos artigos 61º, nº1, al. d), 132º, nº 2, 141º, nº 4, a), e 343º, n. 1, do CPP.
O direito ao silêncio nasce apenas no momento em que o arguido é constituído nessa qualidade, mas ao ser exercido tem efeitos retroativos, ficando silenciado tudo o que fora por ele dito no processo e para o processo, incluindo no momento do início deste, no momento da aquisição da notícia do crime pelo órgão de polícia criminal, sob pena de se dividir a pessoa, o sujeito processual, em duas no mesmo processo, uma antes e outra depois de ter sido constituída arguida e desse modo suprimir essa essencial e sacrossanta garantia de defesa do processo penal das nações civilizadas: o direito ao silêncio[1] [2].
E este direito não pode ser contornado, escondido ou suprimido sob a capa ou o enfeite de preciosas definições ou filigranas processuais, como, por exemplo, a das ‘conversas informais’, a do ainda não haver arguido constituído, a de ainda não haver motivos para constituir arguido o ‘falante informal’, a da boa-fé ou má-fé do órgão de polícia criminal ao abordar e conversar com o ‘futuro arguido’, sob pena de corrermos o risco de transformar essa marca de civilização numa afirmação vazia e a pessoa arguida de sujeito em mero objeto do processo, reduzindo a pessoa a uma coisa.
Assim, no caso dos autos não podem ser valorados como prova, por força do disposto nos artigos 61º, nº1, al. d) e 343º, n. 1 e 125º do CPP, na parte em que reproduziram as declarações da então ainda não constituída arguida, os depoimentos dos agentes policiais que a abordaram e a quem esta entregou uma mochila dentro qual se encontravam 13 gramas de cocaína, tendo de seguida respondido a questões sobre de quem era o produto estupefaciente.
Ora, a sentença recorrida procedeu à valoração indevida dos depoimentos dos agentes policiais que abordaram a arguida na parte em que reproduziram as declarações desta, verificando-se uma proibição de prova e proibição de valoração de prova, arrastando a sentença para a nulidade nessa parte – artigos 125º do CPP -, pelo que deverá ser reformulada, expurgando-se a prova em causa.
Lendo a motivação da sentença recorrida vemos que na formação da convicção do tribunal teve importância o facto de a arguida ter dito ou produzido declarações perante as testemunhas da PSP, reproduzidas por estes em audiência de julgamento, que o estupefaciente era daquela, o que permitiu não só ‘reforçar’ a prova contra esta, mas também ‘reforçar’ a dúvida quanto ao coarguido recorrido.
Fundamentando-se a sentença em prova proibida, a prova é nula – artigo 125º do CPP – arrastando a sentença para a nulidade, devendo os autos ser remetidos à primeira instância para elaboração de nova sentença que, analisando a restante prova válida, mantenha ou modifique em conformidade a matéria de facto e a respetiva matéria de direito.
Fica prejudicado o conhecimento das demais questões colocadas pelos recursos.
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação do Porto em conceder parcial provimento aos recursos e em consequência declarar a nulidade da sentença recorrida, por utilização na formação da convicção do julgador de prova de valoração proibida, impondo-se a prolação de nova sentença que exclua como meios de prova os depoimentos dos agentes da PSP na parte em que referem as declarações da arguida proferidas na sequência da abordagem relatada nos autos.
Sem custas.
Porto, 2 de abril de 2025
William Themudo Gilman
Jorge Langweg
Paula Pires
_________________
[1] Cfr. neste sentido, entre outros, os Acórdãos: STJ de 30.11.2022, proc. 417/14.3TACBR.C3.S1, (Ana Barata Brito), in https://www.dgsi.pt/jstj.nsf/954f0ce6ad9dd8b980256b5f003fa814/f0efc27711580cd98025890f00434b9b?OpenDocument; TRP de 07.02.2024, proc. 182/22.2GCVFR.P1 (Pedro Vaz Pato), in https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/e51b95c0cb21bac380258ae0005c689d?OpenDocument ;
TRP de 25.01.2023, proc. 999/20.0PWPRT.P1 (Maria Joana Grácio), in https://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/56a6e7121657f91e80257cda00381fdf/277a8cf0094000d58025894a00505e88?OpenDocument ;
TRG de 08.10.2024, proc. 239/21.5GBCHV.G1 (Paulo Correia Serafim), in https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/04bc4db431c8e48680258bc4003c4565?OpenDocument ;
TRE de 22.09.2020, proc. 476/17.8GVSTR.E1 (Ana Barata Brito), in https://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/dc473019bf3d4126802586070039b6f3 ;
[2] O Relator deste acórdão já defendeu (Ac. de 6.04.2022, proferido no processo n.º 515/18.4GDVFR.P1, não publicado em dgsi.pt) a posição de que até ao momento em que há uma suspeita razoavelmente fundada, momento em que se impõe a suspensão imediata do ato e a constituição formal como arguido nos termos do artigo 59º, n.º 1 do CPP, até esse momento são admissíveis as «conversas informais» e o seu relato pela testemunha agente policial. Posição que após melhor estudo abandona.