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ARGUIDO
ANOMALIA PSÍQUICA
INIMPUTABILIDADE
AVALIAÇÃO
PERÍCIA MÉDICO-LEGAL
PARECER TÉCNICO
VALIDADE
PRESUNÇÃO JURIS TANTUM
PRINCÍPIO IN DUBIO PRO REO
APLICABILIDADE
Sumário
I – Para que o agente de um crime seja declarado inimputável não basta que esteja afetado de uma qualquer anomalia psíquica, sendo que para determinar da inimputabilidade fundada em patologia da mente, o legislador erigiu um critério bio-psíquico. II – Contudo, muitas anomalias da mente humana não afetam o juízo crítico do seu portador, não o privando da capacidade de avaliação da ilicitude do facto punível, nem da avaliação da censurabilidade da violação da esmagadora maioria dos bens jurídicos protegidos e de estar ciente de que essa violação comporta consequências jurídico-criminais, sendo capaz de escolher abster-se de agir. III – Ao agente de um crime, judicialmente declarado, ao mesmo tempo, inimputável e também perigoso, o tribunal aplica uma medida de segurança, decretando o seu internamento em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança. IV – O parâmetro da perigosidade radica no fundado receio de o inimputável poder reincidir em crimes da mesma espécie. V – A perícia médico-legal para percecionar se o arguido estava afetado de anomalia psíquica no momento em que praticou os crimes imputados e, decisivamente, se nesses precisos momentos estava incapaz de avaliar a ilicitude dos factos cometidos e de se determinar de acordo com essa avaliação, constitui uma presunção “juris tantum” de validade do parecer técnico ofertado pelo perito, que obriga o julgador, pelo que a conclusão a que chegou o perito só pode ser desprezada se o julgador, para poder rebatê--la, dispuser de argumentos, da mesma forma, científica. VI – Porém, o juízo pericial tem que constituir sempre uma afirmação categórica, isenta de dúvidas, sobre a questão proposta, não integrando tal categoria os juízos de probabilidade ou meramente opinativos, pois neste caso devolve-se plenamente ao tribunal a decisão da matéria de facto e este decide livre de qualquer restrição probatória e, portanto, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, onde deverá ter na devida conta o princípio “in dubio pro reo”.
Texto Integral
Processo: 15/21.5PEMAI.P1
Acordam, em conferência, na Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto:
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1. Relatório
Após realização da audiência de julgamento no Processo Comum (Tribunal Singular) nº 15/21.5PEMAI do Juízo Local Criminal da Maia (Juiz 2) do Tribunal Judicial da Comarca do Porto, em 23.10.2024 foi proferida sentença, da qual se transcreve o respetivo:
“III. Dispositivo
Pelo exposto, julgo a acusação parcialmente procedente por, nessa medida, provada e, em consequência, decido:
I. absolver o arguido AA da prática, em autoria material, de um crime de desobediência, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos arts. 152º, nºs. 1, alínea a) e 3 do Código da Estrada e arts. 348º, nº 1, alínea a) e 69º, nº 1, alínea c) do Código Penal;
II. condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material, de um crime de injúria agravado, previsto e punível pelas disposições conjugadas dos arts. 181º, nº 1 e 184º, por referência ao art. 132º, nº 2, alínea l), todos do Código Penal, na pena de sessenta dias de multa, à razão diária de oito euros, no montante total de quatrocentos e oitenta euros;
III. condenar o arguido AA, pela prática, em autoria material, de um crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto e punível pelo art. 347º, nº 1 do Código Penal, na pena de um ano e dois meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, nos termos do disposto no art. 50º, nºs. 1 e 5 do Código Penal;
IV. condenar, ainda, o arguido nas custas do processo, fixando-se a taxa de justiça em duas ucs, nos termos do disposto nos arts. 8º, nº 9 do Regulamento das Custas Processuais, por referência à Tabela III anexa e 513º, nºs. 1 a 3 do Código de Processo Penal.
(…)”
Inconformado com a sentença proferida, o arguido AA interpôs recurso para este Tribunal da Relação do Porto, finalizando as respectivas motivações com as seguintes conclusões: (transcrição)
A - Desde o início da audiência de julgamento que o arguido, com mais de 70 anos de idade, manifestou, com serenidade, consciência e até lamentando que "poderiam ter acontecido e o que lamentava e pedia desculpa aos ofendidos, mas não se lembrar de qualquer dos factos constantes na acusação" ... e provando andar em tratamento psiquiátrico e juntando as provas documentais, ínsitas no processo.
B - O arguido nos seus depoimentos e mesmo pelos depoimentos das testemunhas - mesmo os agentes da PSP envolvidos a favor da Ordem Pública e Paz Social -, que o comportamento persistente, demorado e em vários lugares para onde foi conduzido e detido, "não foram de normalidade comportamental e eram estranhos".
C - Sim, existiram causas prévias para os incidentes comportamentais, apresentando o arguido uma VISÍVEL atitude de INIMPUTABILIDADE ou da sua IMPUTABILIDADE DIMINUÍDA.
D - A forma, imutável, das afirmações declaradas pelas testemunhas na Audiência de Julgamento, a par das provas documentais juntas sobre a sintomatologia do foro psiquiátrico apresentadas pelo arguido, o Meritissimo Juiz suspendeu o ato e solicitou Perícia Psiquiátrica forense ao INML do Porto
E - Interpretado JURIDICAMENTE e em matéria de comportamentos humanos de natureza criminal, as claras e CONCLUSÕES da Perita Médica, Dra. BB:
...Assim, pela ausência de informação médica pregressa relevante, NÃO É POSSÍVEL AFIRMAR QUE O EXAMINADO PADEÇA DE DOENÇA MENTAL que altere a sua capacidade de avaliação e autodeterminação, atualmente e à data dos factos: MAS TAMBÉM NÃO É POSSÍVEL NEGAR A SUA EXISTÊNCIA, DE FORMA FUNDAMENTADA."
F. Nenhum resultado pericial médico definitivo, concreta. SIM, FICA A DUVIDA coerente e claramente resultante da prova feita, por todas as testemunhas na audiência de Julgamento
G - A conclusão pericial sobre asfaculdades mentais/psiquiátricas do arguidosão explicitas – A DÚVIDA CONCRETA.
H - Princípio cardinal do processo penal e é de referir, in dubio pro reo.
1 - A presunção de inocência é um principio jurídico, vigente em processo penal, mas formulado em sede Constitucional, nestes termos que dizem tudo: "Todo o arguido se presume inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação - arte 32º,2 da CRP”.
J - A Convenção Europeia dos Direitos do Homem estabelece no seu artº 6º nº 2 "qualquer pessoa acusada de uma infração presume-se inocente enquanto a sua culpabilidade não tiver sido legalmente provada".
K - A DUVIDA sobre a matéria da acusação ou da suspeita não pode virar-se contra o arguido, não pode prejudicá-lo, em vez de o favorecer.
L - O Tribunal a quo ao dar como provados os factos alegados a desfavor do arguido, com as fundamentações que constam da fundamentação da sentença, violou, entre outros, o princípio da livre apreciação da prova, consagrado no art. 127º, do CPP.
TERMOS EM QUE,
E NOS DEMAIS DE DIREITO, DEVE SER DADO PROVIMENTO AO PRESENTE RECURSO E, POR VIA DELE, SER REVOGADA A SENTENÇA RECORRIDA E, EM CONSEQUENCIA, SER O RECORRENTE ABSOLVIDO DOS CRIMES EM QUE FOI CONDENADO
VENERANDOS DESEMBARGADORES,
FAZENDO-SE, ASSIM, A HABITUAL E NECESSÁRIA JUSTICA E NO SUBIDO RESPEITO PELA PESSOA HUMANA E, IN CASU, PERANTE O ARGUIDO AA, UM CIDADÃO COM 72 ANOS E COM UMA VIDA DE TRABALHO E CÍVICA EXEMPLAR E DIGNA.
Por despacho proferido em 13.01.2025 foi o recurso regularmente admitido, sendo fixado o regime de subida imediata, nos próprios autos e com efeito suspensivo.
O Ministério Público junto da 1ª instância apresentou resposta ao interposto recurso, a qual remata com o seguinte quadro conclusivo:
AA - Do objecto do recurso ao qual respondemos 1. O objecto do recurso ao qual respondemos prende-se com a resolução da seguinte questão: i.) - saber se a dúvida sobre se o arguido era ou é inimputável tem como consequência necessária a dúvida sobre a possibilidade de, em sede de sentença, imputar a este último como provados factos criminalmente relevantes, designadamente os correspondentes aos elementos subjectivos dos crimes pelos quais foi julgado. BB.1) - Da solução encontrada
2. O arguido foi sujeito a um exame pericial de avaliação psiquiátrica cujo resultado foi inconclusivo, sublinhando-se, nesse exame, não ser sequer possível estabelecer que o arguido padecesse de efectiva doença mental e, muito menos, de um estado de inimputabilidade ou imputabilidade diminuída.
3. E pese embora se aluda no relatório elaborado à impossibilidade de negar que essa doença mental existisse ou exista, o que é certo é que nessa peça também não se alude a sintomatologia psiquiátrica característica de um qualquer estado patológico nem, muito menos, a um estado de perigosidade do arguido ou à ausência dele, como deve suceder neste tipo de exames quando haja confirmação de inimputabilidade ou imputabilidade diminuída.
4. Daí que não tenha sido possível ao Tribunal concluir fosse o que fosse sobre a eventual doença mental de que o arguido pudesse eventualmente padecer e, muito menos, sobre a possibilidade deste ser inimputável por anomalia psíquica ou imputável diminuído.
5. A declaração de inimputabilidade ou de imputabilidade diminuída excluem a culpa do agente e, portanto, a possibilidade de lhe ser aplicada uma pena, pelo que deve ser jurídico penalmente integrada no leque das causas de justificação penal excludentes da culpa.
6. As causas de justificação penal carecem de prova dos factos susceptíveis de as preencherem não podendo ser aplicado o seu regime legal sem que se comprove cada facto alusivo à situação subjacente a cada causa de justificação.
7. Ora, sendo a inimputabilidade uma causa de justificação penal a sua verificação depende da demonstração de factos que a preencham não sendo, a nosso ver, e salvo melhor opinião, tecnicamente possível responder positivamente em sede de fixação de matéria de facto a um quadro de dúvidas sobre a inimputabilidade nem, tão pouco, afastar a prova feita de todos os factos por haver dúvidas quanto à inimputabilidade do arguido.
8. O preenchimento e eficácia desta causa de justificação pressupõe a comprovação concreta nos autos dos factos que a preenchem não sendo possível dela extrair efeitos jurídicos em cenários de dúvida sobre inimputabilidade. 9. Não se vislumbra portanto, e salvo melhor opinião, qual o suporte legal ou jurisprudencial da tese defendida pelo recorrente. 10. Face a todo o exposto, considerando a globalidade dos pontos destas conclusões e, bem assim, de toda a motivação da presente resposta a recurso que lhes subjaz e aqui damos por integralmente reproduzida para os devidos efeitos legais, é de concluir que a decisão recorrida não é merecedora de qualquer reparo susceptível de alterar o seu conteúdo ou sentido, total ou parcialmente, pelo que deverá o recurso apresentado ser julgado integralmente improcedente, mantendo-se deste modo como assente toda a factualidade consolidada na sentença e todo o demais decidido, designadamente a condenação que sobre a arguido/recorrente impendeu e as respectivas penas aplicadas, nos seus precisos termos.
MAS VOSSAS EXCELÊNCIAS FARÃO, COMO SEMPRE, O QUE MELHOR FOR DE JUSTIÇA!
Subiram os autos a este Tribunal da Relação, e o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no qual manifesta concordância com razões constantes da resposta do Ministério Público na 1ª instância e, em aditamento observa que: “A inconclusividade do relatório do exame do INML do Porto não agrega em si um juízo pericial, mas uma condição de dúvida (pode ou não padecer de doença mental), um juízo cético que não vincula o tribunal. Nestes casos, incumbe ao tribunal esclarecer a matéria de facto, no âmbito da sua função de julgar e do princípio da livre apreciação do julgador, de modo a superar aquela dúvida. Ora, no caso destes autos, o Exmº Juiz, para decidir a matéria de facto, ponderou todas as provas de que dispunha e avaliou-as à luz das regras da experiência comum, de acordo com juízos de normalidade, com a lógica das coisas e com a experiência da vida. No caso, não descortinamos que tenha sido violado o princípio in dubio pro reo ou o da presunção de inocência. Tudo converge para que a culpa do recorrente foi tida como certa na mente do julgador, que decidiu para lá de qualquer dúvida razoável - o Tribunal não exprimiu qualquer dúvida, o que significa que chegou à sua convicção sobre a verdade dos factos para além de toda a dúvida razoável. Em conclusão, perante a decisão recorrida e a resposta do MP na 1ª instância, que, além do mais, abordou e contrariou a pretensão recursiva do arguido em termos que dispensam qualquer consideração suplementar, outro desfecho se não vislumbra para o recurso interposto que não seja o da sua improcedência.”
Não foi produzida resposta ao parecer.
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Efectuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
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2. Fundamentação
Conforme jurisprudência constante e assente, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, é pelas conclusões que o recorrente extrai da motivação apresentada, em que sintetiza as razões do pedido (art. 412º, nº 1, do CPP), que se delimita o objecto do recurso e os poderes de cognição do Tribunal Superior.
São apenas as questões suscitadas pelo recorrente e naquelas sumariadas que o tribunal de recurso tem de apreciar (excepcionando, naturalmente, as questões de conhecimento oficioso) – vide Ac. do STJ de 20.12.2006, Processo 06P3661, in www.dgsi.pt.
Tendo em conta este contexto normativo e o teor das conclusões que supra se deixaram transcritas, as questões suscitadas e que cumpre dirimir, são as seguintes:
- da inimputabilidade ou imputabilidade diminuída do arguido
- da violação do princípio in dúbio pro reo.
Donde, perante as questões suscitadas no recurso e que cumpre apreciar, importa conferir a fundamentação de facto da sentença recorrida:
“II. Fundamentação Factualidade provada e não provada
Dos factos vertidos na acusação e bem assim dos que resultaram da discussão da causa, mostra-se provado, com relevo para a respectiva decisão, que:
1. No dia 3 de novembro de 2021, pelas 15h30, na Rua ..., na Maia, por motivo e em circunstâncias não apurados, o veículo com a matrícula ..-UH-.. encontrava-se em plena faixa de rodagem, em posição perpendicular ao eixo da via e ocupando as duas vias, impedindo totalmente o trânsito de veículos naquela rua;
2. Quando os agentes da PSP, CC e DD, da Esquadra ..., chegaram ao local e solicitaram ao arguido que se identificasse, este afirmou que não se identificava a ninguém;
3. Após nova solicitação de identificação por parte do agente CC, o arguido recusou-se a fazê-lo, entrou no seu veículo e colocou a chave na ignição, tendo sido advertido por aquele agente que, se tentasse ausentar-se do local, seria detido;
4. Não obstante a advertência, o arguido colocou o seu veículo em funcionamento, preparando-se para abandonar o local, o que motivou que o agente CC tivesse que aceder ao interior do veículo e retirar a chave da ignição;
5. Enfurecido com a atitude do agente policial, o arguido agarrou-lhe o braço e disse-lhe, exaltado, “és um boi e um filho da puta”;
6. Nessa sequência, o arguido recebeu voz de detenção por parte do agente CC, tendo, no entanto, persistido na sua conduta de não sair do veículo;
7. Quando os agentes CC e DD se encontravam a tentar tirar o arguido do veículo, agarrando-lhe um dos braços, este, a fim de se opor à detenção, com a mão direita cerrada, desferiu um forte murro na face direita do primeiro agente;
8. Já cerca das 17h00, após ter sido pulverizado com gás pimenta no interior da Esquadra, para que se imobilizasse, e encontrando-se no interior de ambulância com destino ao Hospital ..., foi-lhe ordenado, pelo agente CC, que realizasse o exame de deteção de álcool no sangue, tendo o arguido recusado;
9. Não obstante o agente CC ter transmitido ao arguido que, caso mantivesse a recusa de realização do teste de alcoolemia, incorreria na prática de crime de desobediência, este manteve a sua recusa, sem qualquer motivo que o justificasse;
10. Como consequência da ação do arguido, o agente CC sofreu, para além de dores e edema na face, descolamento de peças do aparelho ortodôntico de que era portador, o que lhe determinou 3 dias para cura, sem afetação da capacidade para o trabalho geral e profissional;
11. Com as palavras dirigidas ao supra identificado agente, pretendeu o arguido, o que conseguiu, atingi-lo na respetiva honorabilidade e consideração pessoal e profissional, bem sabendo que se dirigia a agentes das forças de segurança no exercício das suas funções;
12. Agiu ainda o arguido com a intenção de molestar o corpo do agente CC, assim visando impedir que este o detivesse e conduzisse ao posto policial, atos que bem sabia serem legítimos e integrarem-se no exercício das respetivas funções;
13. O arguido agiu com plena consciência do teor da ordem de realização do teste de alcoolemia, que era emanada de uma autoridade policial com poderes para tal e de que, por isso, lhe devia obediência e, bem assim, das consequências do seu desrespeito;
14. Em todos os momentos, o arguido agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal;
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Mais se provou que:
15. O arguido aufere mil setecentos e cinquenta e um euros a título de pensão de reforma e reside em casa própria com a esposa, que se encontra reformada e que aufere a pensão de reforma de trezentos e cinquenta euros;
16. Não tem antecedentes criminais.
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Não se provaram, com relevo para a decisão da causa, quaisquer outros factos, para além ou contrariamente aos que antecedem e, designadamente, que:
1. O arguido tenha conduzido e parado o veículo referido no facto provado 1;
2. O arguido tenha agido com consciência de que a ordem referida no facto provado 8 era legítima.
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Motivação da decisão da matéria de facto
Para dispor sobre a matéria de facto que antecede, ancorado nas regras da experiência, fundou este tribunal a sua convicção na apreciação crítica do conjunto da prova produzida e no seu cotejo com o princípio da livre apreciação.
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O arguido, prestando declarações, referiu que não se lembra de nada do que se passou na altura. Anda e andava em tratamentos de psiquiatria e fazia medicação.
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Foram inquiridas as seguintes testemunhas:
- CC, agente da PSP na ..., o qual referiu ter sido quem elaborou o auto de notícia. Confirma que o arguido negou identificar-se inicialmente, com postura de exaltação. Confirma os pontos 1 a 7, 9 e 10 da acusação. O arguido não tinha aspecto de embriagado, mas encontra-se nitidamente alterado. Quiseram submete-lo ao exame de pesquisa de álcool porque uma pessoa lhe referiu que ele tinha manobrado a viatura. Não estava presente aquando dos demais insultos e uso de gás pimenta na esquadra.
- DD, agente da Esquadra .... Confirmou os factos descritos nos pontos 1 a 7, 9, 10 da acusação.
- EE, agente da PSP na esquadra ..., confirmou o facto 8 da acusação (excepto a expressão “tenho idade para ser vosso pai”).
- FF, agente da PSP, a qual referiu que o arguido não se mostrou colaborante aquando da sua permanência na esquadra. Ordenado, idade para serem filhos dele. Mas estava bastante exaltado. Não apresentou queixa por injúria. Estava consigo o agente EE e os dois do carro patrulha. Ele falava para os policias fardados. Não se recorda de expressões de pendor injurioso.
- GG, director comercial, que disse conhecer o arguido da situação em causa nos autos. Trabalhava perto do local do sucedido. Viu os agentes da PSP a tentarem tirar o arguido do carro e este demonstrando estar transtornado.
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Pericialmente, relevou o teor do relatório de avaliação de dano corporal de fls. 97/98 e bem assim o relatório de perícia psiquiátrica elaborado em fase de audiência de julgamento (não sendo da não formulação de um juízo de inimputabilidade ou imputabilidade diminuída).
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Documentalmente, relevou o teor de:
- fls. 2/4 (auto de notícia),
- fls. 12 (aditamento),
- fls. 7 (fotografias),
- fls. 8/9 (relatório de urgência) e
- fls. 79/90 e 105/108 (documentos diversos).
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A ausência de antecedentes criminais decorre do último crc junto aos autos..
As condições socioeconómicas do arguido foram sucintamente apuradas com recurso às suas declarações a esse respeito prestadas.
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Em sede de motivação da decisão da matéria de facto, importa referir que a factualidade provada decorre dos depoimentos de CC e DD, os quais foram prestados de forma consistente e espontânea, sendo ambos portadores de uma válida razão de ciência e veiculando uma versão factual dotada de plausibilidade objectiva.
Nenhuma prova directa foi produzida no sentido de que o arguido empreendeu a condução do veículo em apreço, não o sendo, de forma suficientemente inequívoca, os apurados factos circunstanciais, designadamente de o arguido se encontrar no interior de uma viatura imobilizada em via de circulação, ainda que no lugar do condutor.
O facto não provado 2 é decorrência lógica do facto não provado 1.
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Não foram tidas em consideração as asserções de pendor probatório (instrumentais), conclusivo (despidas de concretização factual) ou jurídico (co-envolvendo, mais ou menos explicitamente, juízos de enquadramento normativo).”
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Entrando já na apreciação do recurso:
- da inimputabilidade ou imputabilidade diminuída do arguido
Na óptica da defesa, “os factos foram indevidamente dados como provados, pois, enfermava de razões de saúde preponderantes que influenciaram e agitaram a sua consciência do comportamento normal e que foram a causa do comportamento anormal aquando da ocorrência dos factos.”
E em relação aos factos que foram indevidamente dados como provados – mas que não elenca – limita-se a referir que até podiam ter acontecido, não se revelando o seu comportamento escorreito, isto é, não se revelou normal. Pelo que, as afirmações declaradas pelas testemunhas na Audiência de Julgamento, a par das provas documentais juntas sobre a sintomatologia do foro psiquiátrico apresentadas pelo arguido, motivou a realização da Perícia Psiquiátrica forense ao INML do Porto, e as conclusões sobre as faculdades mentais/psiquiátricas do arguido geram dúvidas que deviam ser valoradas a seu favor.
Donde, embora não questione expressamente a facticidade provada, alega que a decisão recorrida não considerou as conclusões sobre as faculdades mentais/psiquiátricas do arguido, e que são inconclusivas.
No fundo entende que a sentença sob recurso deveria ter ponderado a avaliação psiquiátrica a que foi sujeito e mesmo sem o dizer expressamente pretende a sua desresponsabilização criminal (por não ter consciência da ilicitude dos seus comportamentos, muito embora não o afirme) e pretende que se revogue a antedita sentença, por forma a absolve-lo dos crimes em que foi condenado.
Vejamos.
Compulsados os autos apura-se que o arguido não apresentou contestação, o que consta do relatório da sentença impugnada.
Na decisão recorrida está assente que:
11. Com as palavras dirigidas ao supra identificado agente, pretendeu o arguido, o que conseguiu, atingi-lo na respetiva honorabilidade e consideração pessoal e profissional, bem sabendo que se dirigia a agentes das forças de segurança no exercício das suas funções;
12. Agiu ainda o arguido com a intenção de molestar o corpo do agente CC, assim visando impedir que este o detivesse e conduzisse ao posto policial, atos que bem sabia serem legítimos e integrarem-se no exercício das respetivas funções;
13. O arguido agiu com plena consciência do teor da ordem de realização do teste de alcoolemia, que era emanada de uma autoridade policial com poderes para tal e de que, por isso, lhe devia obediência e, bem assim, das consequências do seu desrespeito;
14. Em todos os momentos, o arguido agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal;
Nos autos, na sessão de audiência de julgamento que teve lugar no pretérito dia 26.09.2023, foi determinado pelo tribunal recorrido que: Tendo em consideração os meios de prova produzidos até ao momento, afigura-se-nos ser pertinente determinar a sujeição do arguido a uma perícia em psiquiatria a realizar nos termos do disposto no artº 351º, nºs 1 e 3 do C.P.P.. Tal perícia será solicitada ao INML e deverá ter como objecto aferir se: - à data da prática dos factos o arguido padecia de anomalia psíquica e se ainda dela padece e em que medida na actualidade; - em caso positivo, se tal anomalia psíquica, à data da prática dos factos, determinou que o mesmo tenha sido incapaz de nesse momento avaliar a ilicitude dos factos ou de se determinar de acordo com essa avaliação ou se viu essa capacidade sensivelmente diminuída; - determinar ainda se à presente data o arguido apresenta algum grau de perigosidade para a prática de factos da mesma natureza. Entende-se que a realização desta perícia é essencial para a boa decisão da causa e para a descoberta da verdade material, motivo pelo qual se determina a interrupção da audiência de julgamento, bem como que seja oficiado em conformidade com nota deurgência, informando-se que se encontra em curso a realização da audiência de julgamento, não se designando neste momento data para a continuação da mesma, o que oportunamente se fará em função da brevidade com que for junto aos autos o respectivo relatório pericial. O ora determinado tem também fundamento no disposto no artº 20 do C.P.”
Do relatório de perícia psiquiátrica forense datado de 29.06.2024 e junto aos autos consta nas conclusões: “Ao exame psiquiátrico directo não se apura doença mental descompensada; não foi possível aferir se padece de eventual défice cognitivo/quadro demencial inicial, uma vez que houve má cooperação reiterada e que as queixas de «esquecimentos » foram incongruentes. Assim, pela ausência de informação médica pregressa relevante, não é possível afirmar que o examinado padeça de doença mental que altere a sua capacidade de avaliação e autodeterminação, actualmente e à data dos factos; mas também não é possível negar a sua existência, de forma fundamentada.”
Perante a enunciada questão, parece o recorrente querer discutir a matéria de facto, sendo o seu enfoque a falta de consciência da ilicitude dos seus comportamentos, muito embora não o declare de forma explicita, depreendendo-se da sua argumentação tal pretensão.
Nesta medida, convém relembrar que a sindicância da matéria de facto pode ser feita por duas vias distintas, a saber: no âmbito restrito, mediante a arguição dos vícios decisórios previstos no art. 410º, nº 2, do CPP, cuja indagação tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo, por isso, admissível o recurso a elementos àquela estranhos para a fundamentar, ainda que se trate de elementos existentes nos autos e até mesmo provenientes do próprio julgamento; e pela impugnação ampla, com base em erro de julgamento, nos termos do art. 412º, nºs 3, 4 e 6, do CPP, caso em que a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência.
Assim, neste 2º caso - impugnação ampla - a apreciação da matéria de facto alarga-se à prova produzida em audiência (se documentada) mas com os limites decorrentes do ónus de especificação imposto pelos nºs 3, 4 e 6 do aludido art. 412º, nos termos dos quais:
“3. Quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida; c) As provas que devem ser renovadas; 4. Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta nos termos do nº 2 do artigo 364º devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação. (…) 6. No caso previsto no nº4 o tribunal procede à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa.”
Desta feita, para além da indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados, tem o recorrente de indicar o conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova, com a explicitação da razão pela qual essas “provas” impõem decisão diversa da recorrida, e havendo gravação das provas, essas especificações devem ser feitas com referência ao consignado na acta, e dentro destas tem o recorrente de indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação.
E tal ónus tem de ser observado para cada um dos factos impugnados, devendo ser indicadas em relação a cada um deles as provas concretas que impõem decisão diversa e bem assim tem de ser referido qual o sentido em que devia ter sido produzida a decisão.
Nessa decorrência o reexame da matéria de facto pelo tribunal de recurso constitui, salvo os casos de renovação da prova (art. 430º do CPP), uma atividade de fiscalização e de controlo da decisão proferida sobre a matéria de facto, rigorosamente delimitada pela lei aos pontos de facto que o recorrente entende erradamente julgados e ao reexame das provas que sustentam esse entendimento. Isto é, o tribunal de recurso não realiza um segundo julgamento da matéria de facto, incumbindo-lhe apenas emitir juízos de censura crítica a propósito dos pontos concretos que sejam especificados e indicados como não corretamente julgados.
Por seu turno, a decisão do recurso sobre a matéria de facto não pode ignorar, antes tendo de respeitar, o princípio da livre apreciação da prova do julgador, expresso no art. 127º do CPP - “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente” - em conformidade com o qual o juiz tem total liberdade, de acordo com a sua íntima convicção, de proceder à valoração dos meios de prova obtidos. E a livre apreciação da prova só está sujeita ao controlo desta instância de recurso, quando a violação do princípio da objetividade for manifesta.Donde, quando assente na lógica e na coerência das regras da experiência comum usadas, torna-se insindicável.
Assim, por regra, e ressalvadas as exceções previstas na lei na apreciação da prova e partindo das regras de experiência, o tribunal é livre de formar a sua convicção.
Pelo que, não basta para a procedência da impugnação e, portanto, para a modificação da decisão de facto, que as provas produzidas permitam uma decisão diversa da proferida pelo tribunal, sendo necessário que as provas concretas imponham a modificação da decisão de facto, isto é, que façam prova por si de que os factos se passaram de forma diversa da que perfilhou o tribunal a quo.
Feito o necessário enquadramento do tema e revertendo à presente situação, demonstra-se evidente que o recorrente não cumpriu o dever de alegar com respeito pelo sobredito normativo, pois desde logo não indicou os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, apenas se depreendendo da alegação recursiva que serão os factos relacionados com a consciência da ilicitude que o recorrente pretende questionar. No que diz respeito às provas a imporem decisão diversa relativamente a um conjunto de factos que, insiste-se não delimita, assinala a sobredita prova pericial produzida nos autos.
Donde, mesmo deficientemente cumprido o ónus de impugnação especificada consagrado no mencionado art. 412º, nºs 3 e 4, cumpre fazer a seguinte apreciação.
Sustenta o recorrente que o indicado meio de prova, revela-se incapaz de esclarecer se padece ou não de doença mental, pois não sendo possível afirmá-la, também, não é possível negar a sua existência, e não sendo o resultado definitivo, permanece a dúvida.
Assim, argumenta que foi desconsiderada a aludida prova pericial que afirma uma dúvida concreta.
Vejamos.
Para que o agente de um crime seja declarado inimputável não basta que esteja afetado de uma qualquer anomalia psíquica. Para determinar da inimputabilidade fundada em patologia da mente, o legislador erigiu um critério bio-psíquico. Contudo, muitas anomalias da mente humana não afetam o juízo crítico do seu portador, não o privando da capacidade de avaliação da ilicitude do facto punível, nem da avaliação da censurabilidade da violação da esmagadora maioria dos bens jurídicos protegidos e de estar ciente de que essa violação comporta consequências jurídico-criminais, sendo capaz de escolher abster-se de agir. Como adverte, Figueiredo Dias in Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, pag. 573. “só a anomalia psíquica, a «enfermidade mental» no seu mais amplo sentido – e não também, v. g., a «tendência» para o crime, a herança caracterológica ou o condicionalismo do «meio» - é susceptivel de destruir a conexão objetiva de sentido da actuação do agente e, portanto, a possibilidade de «compreensão» da sua personalidade manifestada no facto”.
Os pressupostos da declaração judicial de inimputabilidade por anomalia psíquica do agente de um crime constam do art. 20º do Código Penal. “É inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica, for incapaz, no momento da prática do facto, de avaliar a respetiva ilicitude ou de se determinar de acordo com a avaliação (n.º 1). Pode ser declarado inimputável quem, por força de uma anomalia psíquica grave, não acidental e cujos efeitos não domina, sem que por isso possa censurar-se, tiver, no momento da prática do facto, a capacidade de avaliação da ilicitude ou de determinação, sensivelmente diminuída. (n.º 2) A comprovada incapacidade do agente para ser influenciado pelas penas pode constituir índice da situação prevista no número anterior. (n.º 3). A imputabilidade não é excluída quando a anomalia psíquica tiver sido provocada pelo agente com intenção de praticar o facto. (n.º 4).
Relembrando-se que de harmonia com o disposto no art. 91º do Código Penal “1 -Quem tiver praticado um facto ilícito típico e for considerado inimputável, nos termos do artigo 20.º, é mandado internar pelo tribunal em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança, sempre que, por virtude da anomalia psíquica e da gravidade do facto praticado, houver fundado receio de que venha a cometer outros factos da mesma espécie. 2 - Quando o facto praticado pelo inimputável corresponder a crime contra as pessoas ou a crime de perigo comum puníveis com pena de prisão superior a cinco anos, o internamento tem a duração mínima de três anos, salvo se a libertação se revelar compatível com a defesa da ordem jurídica e da paz social.”.
Ou seja, ao agente de um crime, judicialmente declarado, ao mesmo tempo, inimputável e também perigoso, o tribunal aplica uma medida de segurança, decretando o seu internamento em estabelecimento de cura, tratamento ou segurança. O parâmetro da perigosidade radica no fundado receio de o inimputável poder “reincidir” em crimes da mesma espécie.
Ora, como se anotou, o recorrente foi submetido a perícia médico-legal para percecionar se estava afetado de anomalia psíquica no momento em que praticou os crimes imputados e cuja factualidade não discute no recurso, e, decisivamente, se nesses precisos momentos estava incapaz de avaliar a ilicitude dos factos cometidos e de se determinar de acordo com essa avaliação.
Mas não é suficiente sequer, como supra se assinalou, uma qualquer anomalia psíquica.
De todo modo, cumpre atentar que à luz da Lei nº 45/2004, de 19/08 que estabelece o Regime jurídico das perícias médico-legais e forenses e concretamente do seu art. 24º, (1- Os exames e perícias de psiquiatria e psicologia forense são solicitados pela entidade competente à delegação do INMLCF, I. P., da área territorial do tribunal que os requer.”, não há incerteza que está sujeita ao regime do art. 163º do CPP que estatui: “1 - O juízo técnico, científico ou artístico inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador. 2 - Sempre que a convicção do julgador divergir do juízo contido no parecer dos peritos, deve aquele fundamentar a divergência.”
A regra ali contida afasta por isso o princípio da livre apreciação da prova previsto no art. 127º do CPP.
Estabelece-se uma presunção juris tantum de validade do parecer técnico ofertado pelo perito, que obriga o julgador. Ou seja, a conclusão a que chegou o perito só pode ser desprezada se o julgador, para poder rebatê-la, dispuser de argumentos, da mesma forma, científicos (nº 2 do art. 163º)
Tal como se escreve no Ac. desta Relação de 26.01.2022 proferido no Proc. nº 2136/13.9TAMTS.P1
acessível em www.dgsi.pt“quando no nº 2 daquele mesmo normativo se prevê a possibilidade de divergir do parecer dos peritos, desde que tal seja devidamente fundamentado, pretende-se significar que uma tal divergência poderá assentar em perícia ou parecer similar de sinal contrário ou diferente, que comprometa o primitivamente existente, ou, então, derivar da não prova dos factos em que tal parecer se estribava, retirando-lhe actualidade ou, se quisermos, suporte fáctico alicerçante”.
E isto porque é consabido que “A perícia é a actividade de percepção ou apreciação dos factos probandos efectuada por pessoas dotadas de especiais conhecimentos técnicos, científicos ou artísticos” como refereGermano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, II, 3ª Edição, Editorial Verbo, 2002, pág. 197, cuja utilização é recomendada sempre que a investigação seja confrontada com obstáculos de apreensão ou de apreciação de factos não removíveis através dos procedimentos e meios de análise de que normalmente dispõe. No fundo, a prova pericial permite ao juiz suprir a sua falta de específicos conhecimentos científicos ou artísticos, auxiliando-o na apreensão realidades não directamente captáveis pelos sentidos – cfr. aresto citado que por sua vez transcreve sumário do acórdão do TRC datado de 01/07/2015 extraído da anotação ao artigo 163º do Código de Processo Penal anotado inserto na base da PGD Lisboa.
Todavia, o juízo pericial, tem que constituir sempre uma afirmação categórica, isenta de dúvidas, sobre a questão proposta, não integrando tal categoria, os juízos de probabilidade ou meramente opinativos. Por isso, quando tal não sucede, quando o perito, em vez de emitir um juízo técnico-científico claro e afirmativo sobre a questão proposta, emite uma probabilidade, uma opinião ou manifesta um estado de dúvida, devolve-se plenamente ao tribunal a decisão da matéria de facto, este decide livre de qualquer restrição probatória e, portanto, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova, onde deverá ter na devida conta o princípio in dubio pro reo - veja-se neste sentido o Ac. do STJ de 27.04.2011, proferido no proc. nº 693/09.3JABRG.P2.S1, e desta Relação de 27.01.2010, no proc. nº 45/06.7PIPRT.P1, ambos in www.dgsi.pt. podendo ler-se no sumário deste último “Um resultado pericial inconclusivo não conduz necessariamente a uma dúvida insanável: por não agregar um verdadeiro juízo pericial, mas antes um estado dubitativo, devolve-se plenamente ao tribunal a decisão da matéria de facto.”
Neste conspecto, o posicionamento actual do Código de Processo Penal vem de posição defendida por Figueiredo Dias, para quem os dados de facto do arrazoado técnico estão sujeitos à livre apreciação do julgador – “que, contrariando-os, pode furtar validade ao parecer” – enquanto o juízo científico expendido só é passível de crítica “igualmente material e científica”. Excepções seriam os casos inequívocos de erro, nos quais o juiz deve motivar sua divergência – Direito Processual Penal, I, 209, vide ainda, Maria do Carmo Silva Dias, Revista do CEJ, 2.º semestre de 2005, n.º 3, 219. Assim, a prova pericial é valorada pelo julgador a três níveis: quanto à sua validade (respeitante à sua regularidade formal), quanto à matéria de facto em que se baseia a conclusão e quanto à própria conclusão.
Quanto à validade, deve-se aferir se a prova foi produzida de acordo com a lei, ou se não foi produzida contra proibições legais (…)
Também fica a cargo do julgador examinar se o procedimento da perícia está de acordo com normas da técnica ou da prática corrente.
Com relação à matéria de facto em que se baseia a conclusão pericial, é lícito ao julgador divergir dela, sem que haja necessidade de fundamentação científica, porque não foi posto em causa o juízo de carácter técnico-científico expendido pelos peritos, aos quais escapa o poder de fixação daquela matéria. (sempre sublinhado nosso)
Esta é, portanto, a interpretação corrente dada pelos tribunais ao art. 163º do CPP, atenta a sua função de mero auxiliar do julgador, a quem incumbe a função de fixação dos factos, para que dispõe dos adequados conhecimentos jurídicos e da experiência da vida –cfr., entre outros, os Acórdãos do STJ, de 01.07.93, Proc. n.º 44431 e de 09.05.95, in CJ, STJ, III, T2, 189.”
Ora, na presente situação, o que sucedeu foi que o tribunal recorrido acolheu uma das hipóteses/conclusões vertidas na dita perícia admitidas como possibilidade - não é possível afirmar que o examinado padeça de doença mental que altere a sua capacidade de avaliação e autodeterminação, actualmente e à data dos factos – mesmo sem se alongar na respetiva fundamentação quanto a tais aspectos, já que se limitou a constatar isso mesmo “Pericialmente, relevou (…) e bem assim o relatório de perícia psiquiátrica elaborado em fase de audiência de julgamento (não sendo da não formulação de um juízo de inimputabilidade ou imputabilidade diminuída).
Donde, se por um lado, a decisão tomada em sede de facto não colide com as regras atinentes ao valor da prova pericial consagrados no antedito art. 163º do CPP face à inconclusividade ali afirmada, por outro, tal juízo dubitativo não vincula o tribunal, incumbindo-lhe esclarecer a matéria de facto em que se funda, no âmbito da sua função de julgar e superar, até onde lhe for possível, aquela dúvida.
E, perante a inconclusividade ou estado de estado de dúvida vertido na perícia, devolveu-se plenamente ao tribunal a decisão da matéria de facto, de acordo e apenas sujeito ao princípio da livre apreciação da prova, competindo-lhe tomar posição, julgar e remover, se for caso disso, a dúvida, fixando os necessários factos.
Pelo que, e face a tal quadro da perícia não está o tribunal constrangido a meramente reproduzir, no plano da valoração da prova e da fixação dos factos, a inconclusividade do resultado do exame. Ou seja, um resultado inconclusivo não tem necessariamente de conduzir a uma dúvida insanável por parte do tribunal, determinante do apelo ao princípio in dubio pro reo, como quer fazer crer o recorrente.
De resto, a convicção do tribunal a quo a respeito da capacidade de avaliação e autodeterminação do arguido ora recorrente à data da prática dos factos tem também sustentação na referida perícia, pois não a descarta. Com efeito, a dúvida é efetivamente afastada também pelo que consta do próprio relatório do IML, a saber “Ao exame psiquiátrico directo não se apura doença mental descompensada; não foi possível aferir se padece de eventual défice cognitivo/quadro demencial inicial, uma vez que houve má cooperação reiterada e que as queixas de «esquecimentos» foram incongruentes”, ou seja, uma atitude de não cooperação notoriamente dirigida a camuflar o exame e seu resultado, o que, até por este prisma, afasta a dúvida da sua capacidade de entender e querer.
Pelo que, deste e dos outros meios de prova examinados pelo tribunal recorrido, à luz da experiência comum como deflui da sentença, o tribunal recorrido no uso do seu poder de livre apreciação, decidiu corretamente nos termos expostos.
Com efeito, apesar do exame pericial psiquiátrico a que foi sujeito o arguido, e apesar dos indícios emergentes dos depoimentos das testemunhas ouvidas em julgamento sugestivos de que o arguido padeceria de doença do foro psiquiátrico, não foram carreados para os autos outros elementos probatórios que permitissem sustentar aquela tese. É que a defesa sugere mesmo a inversão do ónus da prova neste domínio, o que não se pode aceitar.
Como justamente observa o ministério Público na Resposta ao recurso, os factos vertidos na sentença foram todos confirmados com base na razão de ciência de conhecimento directo evidenciada por todos os depoentes ouvidos em julgamento. Ora, sendo a inimputabilidade uma causa de justificação penal a sua verificação depende da demonstração de factos que a preencham não sendo, tecnicamente possível responder positivamente em sede de fixação da factualidade provada a um quadro de dúvidas sobre a inimputabilidade nem, tão pouco, afastar a prova feita de todos os factos por haver dúvidas quanto à inimputabilidade do arguido.
O preenchimento e eficácia desta causa de justificação pressupõe a comprovação concreta nos autos dos factos que a preenchem não sendo possível dela extrair efeitos jurídicos em cenários de dúvida sobre inimputabilidade.
A regra é de que os cidadãos com idade igual ou superior a 16 anos são imputáveis (cfr. art. 19º do Código Penal) e essa aferição é feita na generalidade dos processos crime pelo tribunal sem que haja necessidade de sujeitar ninguém a perícias médicas. Se a dúvida surge e se a perícia médica não a esclarece a conclusão terá de ser, imperativamente, a de que o indivíduo em causa é imputável.
Por isso, não logrando o arguido demonstrar a existência de erro de julgamento, por força da conjugação entre a prova pericial e a demais prova, quer documental, quer testemunhal, meios de prova este que aquele sequer questiona, improcede esta questão recursiva.
- da violação do princípio in dúbio pro reo.
No seguimento da antecedente questão, defende o recorrente que à falta de melhor prova deveria prevalecer o princípio geral in dubio pro reo.
Ora, conforme supra se aflorou, a dúvida espelhada na perícia realizada não conduz inevitavelmente a uma dúvida insanável por parte do tribunal, determinante do apelo ao princípio in dubio pro reo, como já tivemos o ensejo de explicitar. Nessa medida, não se mostram beliscados quer o princípio da livre apreciação da prova (art. 127º do CPP) quer o da presunção de inocência constante do nº 2 do art. 32º da Constituição da Republica Portuguesa.
Com efeito, o convocado princípio in dubio pro reo, emanação da injunção constitucional da presunção da inocência do arguido, na vertente de prova, constitui um limite do princípio da livre apreciação da prova na medida em que impõe nos casos de dúvida fundada sobre os factos que o Tribunal decida a favor do arguido.
Trata-se, portanto, de uma imposição dirigida ao julgador no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido, quando não tiver certeza sobre os factos decisivos para a resolução da causa.
Daqui se retira que a sua preterição exige que o julgador tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido.
Em consonância, se produzida a prova, no espírito do juiz subsiste um estado de incerteza, objectiva, razoável e intransponível, sobre a verificação, ou não, de determinado facto ou complexo factual, impõe-se uma decisão favorável ao arguido. Se, pelo contrário, a incerteza não existe, se a convicção do julgador foi alcançada para além de toda a dúvida razoável, não há lugar à aplicação do princípio.
A demonstração da violação do principio em apreço passa não só pela sua notoriedade, face aos termos da decisão, isto é, tem que resultar clara e inequivocamente do texto da decisão que o juiz, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto desfavorável ao agente, o considerou provado ou, inversamente, tendo ficado na dúvida sobre a verificação de determinado facto favorável ao agente, o considerou não provado, como ainda da concreta análise à prova realizada.
Ora, olhando ao texto da decisão recorrida, facilmente se percebe que, no caso dos autos, não há evidência de que o tribunal a quo tenha sido confrontado com qualquer dúvida razoável e insanável acerca da imputabilidade do arguido, que deva ser valorada a seu favor, contrariamente ao que o mesmo sugere, nem tal dúvida se vislumbra da análise da prova aqui sindicada nos moldes sobreditos.
Donde, carece igualmente de fundamento a invocação de violação do princípio in dubio pro reo, já que não existe o mínimo indício de o tribunal ter ficado na dúvida em relação ao aludido circunstancialismo fáctico, ou seja, sobre a possibilidade de o arguido ser inimputável por anomalia psíquica ou imputável diminuído, e que, nesse estado de dúvida, haja decidido contra o mesmo.
Nesta decorrência carece de fundamento a invocação de violação do antedito princípio.
Improcede, por isso, a pretensão recursiva
Donde se nega provimento ao recurso e confirma a sentença recorrida.
3. Decisão.
Pelo exposto, acordam os juízes desta Segunda Secção Criminal do Tribunal da Relação do Porto em negar provimento ao recurso interposto pelo arguido AA, em consequência do que, decidem confirmar integralmente a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC.
*
Notifique.
(Elaborado e revisto pela relatora – art. 94º, nº 2, do CPP – e assinado digitalmente).
Porto, 02 de abril de 2025
Cláudia Rodrigues
Isabel Matos Namora
Maria dos Prazeres Silva