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INQUÉRITO
ACUSAÇÃO
QUALIFICAÇÃO JURÍDICA DOS FACTOS
OMISSÃO
NULIDADE
Sumário
I – A nulidade da acusação prevista no art. 283º, nº 3, alínea d) do CPP é respeitante ao inquérito, devendo ser invocada até ao encerramento do debate instrutório (art. 120º, 3, al. c), do CPP. II – Para existir tal nulidade, a acusação deve omitir completamente a referência a qualquer disposição legal aplicável à tipificação do(s) crime(s) imputados ao(s) arguido(s) e não por alguma insuficiência dessa menção ou uma errada subsunção legal que, a existirem, podem inclusivamente a ser objeto de alteração nos termos legais em audiência de julgamento, nos termos do disposto no art. 358º, nº 1, do CPP.
(Sumário da responsabilidade do Relator)
Texto Integral
Processo nº 658/23.2T9MAI.P1 Data do acórdão: 2 de Abril de 2025
Desembargador relator: Jorge M. Langweg Desembargador 1º adjunto: José António Rodrigues da Cunha Desembargadora 2ª Adjunta: Cláudia Sofia Rodrigues
Origem:
Tribunal Judicial da Comarca de Aveiro
Juízo Central Criminal de Santa Maria da Feira
Acordam, em conferência e por unanimidade, os juízes acima identificados do Tribunal da Relação do Porto
nos presentes autos, em que figura como recorrente o Ministério Público;
I - RELATÓRIO
1. Em 3 de Julho de 2024 foi proferida a decisão instrutória nos presentes autos, que concluiu, nomeadamente, pela verificação da nulidade prevista no artigo 283.º, n.º 3, al. d) do Código de Processo Penal (CPP), tendo sido por isso declarada a não pronúncia dos arguidos AA, BB, CC, DD e EE (nos termos do artigo 307.º, nºs 1 e 4 do CPP e o consequente arquivamentos dos autos relativamente a eles.
2. Inconformado com tal decisão, o Ministério Público a efetividade da pena de prisão aplicada, a arguida interpôs recurso da decisão, terminando a respetiva motivação com a formulação das seguintes conclusões:
« I. Recorre-se da decisão instrutória proferida em 3.7.2024, na parte em que declarou a nulidade da acusação pública deduzida contra os arguidos AA, BB. CC, DD e EE e a consequente não pronúncia dos mesmos.
II. Nos presentes autos foram os arguidos AA, BB, CC, DD e EE acusados pelo Ministério Público pela prática, dolosamente (artigo 14.°, n.° 1. do Código Penal), em coautoria (artigo 26.° do Código Penal) e na forma consumada, de um (1) crime de burla tributária, p. e p. pelo artigo 87.°, n.° 3. do Regime Geral das Infrações Tributárias (Lei n.° 15/2001, de 05/06); O Ministério Público deduziu ainda acusação contra a sociedade comercial A... - Unipessoal, Lda, imputando-lhe a prática, dolosamente (artigo 14.°, n.° 1, do Código Penal), como autora material (artigo 26.° do Código Penal) e na forma consumada, de um (1) crime de burla tributária, p. e p. pelo artigo 87.°, n.° 3 e artigo 7.°, n.° 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias (Lei n.° 15/2001, de 05/06).).
III. Requerida a abertura de instrução pelo arguido EE. teve lugar o debate instrutório em 25.6.2024. no decurso do qual a defesa do arguido CC suscitou a nulidade da acusação, a coberto do disposto no art. 283° n° 3 d) do CPP. alegando que a acusação era omissa quanto a uma disposição legal - o art. 6º do RGIT.
IV. Foi proferida decisão instrutória, nos seguintes termos, com relevo:
“(…) a afirmação em como é nula toda e qualquer acusação em que não conste, nomeadamente, a indicação das disposições legais aplicáveis (art.0 283.°, n.° 3, al. d) do C. Pr. Penal).
Ora, percorrendo a acusação do M. Público, constata-se que nela se refere "Com as condutas descritas, a arguida A... Unipessoal, Lda. cometeu, dolosamente (artigo 14.° n.° 1, do Código Penal), como autora material (artigo 26.° do Código Penal) e na forma consumada, um (1) crime de burla tributária, p. e p. pelo artigo 87. n.° 3 e artigo 7. ° nº1, do Regime Geral das Infrações Tributárias (Lei n. ° 15/2001.de 05/06).
Os arguidos AA, BB, CC, DD e EE, cometeram, dolosamente (artigo 14.° n.° 1, do Código Penal), em coautoria (artigo 26º do Código Penal) e na forma consumada, um (1) crime de burla tributária, p. e p. pelo artigo 87.°, n.°3, do Regime Geral das Infrações Tributárias (Lei n.° 15/2001, de 05/06). (negrito e sublinhado acrescentados).
Ou seja, se relativamente à pessoa colectiva o M. Público fez expressamente constar da acusação a referência ao art.° 7º do RGIT, já no que concerne aos arguidos AA. BB, CC, DD e EE não faz referência ao artº 6.° do RGIT (...)
Ou seja, verifica-se efectivamente a omissão apontada pela defesa do arguido nessa acusação, com a correspondente nulidade.
Tratando-se de nulidade sanável (art.° 119 do C. Pr. Penal), foi tempestivamente arguida por quem de direito (art.º 120.°, n° 3, al. c) do C. Pr. Penal).
E ainda que se pudesse sustentar que essa omissão em nada diminuiu as garantias de defesa dos arguidos ou que de algum modo impedisse ou dificultasse a realização dessa mesma defesa, a lei é inexorável: nulidade da acusação.
Por outro lado, ainda que, conforme referido, seja sanável tal nulidade, entende-se estar vedado ao juiz de instrução devolver os autos ao M. Público para a expurgar.
Por conseguinte, verificada que está a nulidade prevista no art. ° 283. n. ° 3, al. d) do C. Pr. Penal, nada mais resta senão declarar a não pronúncia dos arguidos AA, BB, CC, DD e EE (nos termos do art. ° 307.°, n°s 1 e 4 do C. Pr. Penal), com o consequente arquivamentos dos autos relativamente a eles.
V. Salvo o devido respeito pelo douto despacho, o Ministério Público não pode conformar-se com o mesmo, pelos fundamentos que explanaremos.
VI. E o seguinte o texto do despacho de acusação deduzida para julgamento em Processo Comum, perante Tribunal Coletivo, no que à matéria do presente recurso respeita e releva: (... )Com as condutas descritas, A arguida A... - Unipessoal, Lda. cometeu, dolosamente (artigo 14.°, n.° 1, do Código Penal), como autora material (artigo 26° do Código Penal) e na forma consumada, um (1) crime de burla tributária, p. e p. pelo artigo 87.°, n.°3 e artigo 7.°, n.° 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias (Lei n. ° 15/2001, de 05/06). Os arguidos AA, BB, CC, DD e EE, cometeram, dolosamente (artigo 14°, n.° 1, do Código Penal), em coautoria (artigo 26.° do Código Penal) e na forma consumada, um (1) crime de burla tributária, p. e p. pelo artigo 87.°, n.° 3, do Regime Geral das Infrações Tributárias (Lei n.° 15/2001, de 05/06)"
VII. Percorrido o despacho de acusação, não se antevê que tenha ocorrido qualquer nulidade e, concretamente, a nulidade apontada na decisão recorrida, prevista no art. 283° n° 3 d) do CPP, nos seguintes termos "A acusação contém, sob pena de nulidade: (...) d) A indicação das disposições legais aplicáveis".
VIII. Juntamente com as demais exigências legais impostas para o despacho de acusação e cuja falta é cominada com a nulidade, trata-se de uma emanação clara do principio do acusatório consagrado no n.° 5 do artigo 32° da CRP, sendo o despacho de acusação uma condição e limite do julgamento.
IX. As garantias de defesa, a que se refere o art. 32° n°1 da CRP. impõem a necessidade de o arguido conhecer, na sua real dimensão, os factos de que é acusado e os crimes que lhe sao imputados, para que deles se possa defender.
X. Perante os termos em que se mostra redigida, manifesta resulta a inexistência da invocada nulidade, uma vez que a acusação cumpre todos os requisitos consagrados no art. 283° n° 3 do CPP.
XI. A acusação em apreço contém, no que ao caso releva, em termos factuais, a descrição da conduta dos arguidos pessoas singulares, seja ao nível dos elementos objectivos do crime, seja ao nível dos elementos subjetivos; mais contém a descrição da materialidade em que se traduziu a decisão e execução conjunta do crime, em termos que permitem enquadrar a conduta dos arguidos na figura da co-autoria. Nessa sequência, é-lhes imputada, na incriminação, a prática, "em coautoria (artigo 26° do Código Penal) e na forma consumada, um (1) crime de burla tributária, p. e p. pelo artigo 87.°, n.° 3, do Regime Geral das Infrações Tributárias (Lei n.° 15/2001, de 05/06)."
XII. É certo que o art. 283° n° 3 d) do CPP estabelece a obrigatoriedade de, na acusação, independentemente da eventual referência ao nome do crime imputado, se fazer, de forma expressa, a indicação da respectiva norma incriminadora.
XIII. Tal exigência decorre da circunstância de ser a acusação que define o objecto do processo e de este integrar, não só os factos, mas também a incriminação, de forma a que o arguido tenha conhecimento do concreto tipo legal de crime e da correspondente moldura penal aplicável.
XIV. Neste contexto, a nulidade prevista na citada norma refere-se apenas às situações de falta absoluta ou integral de indicação das disposições legais aplicáveis e, concretamente, à omissão de indicação do tipo incriminador, e não das demais normas do Código Penal, existentes na Parte Geral, Titulo II (Do facto). Capítulo I (Pressupostos da punição), Capítulo II (Formas do crime) e Capítulo III (Causas que excluem a ilicitude e a culpa), ou de outras de idêntica natureza existentes em legislação avulsa.
XV. Visto o caso em apreço, constata-se que o normativo que o Mmº Juiz entende estar em falta na acusação é o art. 6o do RGIT "Actuação em nome de outrem", norma que se insere no RGIT - PARTE I - Princípios gerais - CAPÍTULO I - Disposições comuns e que possui equivalência com o art. 12° do Código Penal "Actuação em nome de outrem".
XVI. Não se trata de normas incriminadoras ou que tenham repercussão na moldura penal aplicável, como, por ex. os arts. 23°, 75° ou 79° do Código Penal; trata-se de uma norma da parte geral do regime legal aplicável e que, a par de muitas outras, fundamentam a responsabilização das pessoas singulares e cuja indicação na acusação não é necessária ou exigível.
XVII. Levado ao extremo o entendimento sufragado, sempre se poderia afirmar que as acusações (e as pronúncias, sentenças e acórdãos) são na generalidade omissas quanto a inúmeras disposições legais que estão subjacentes à responsabilização criminal das pessoas singulares e que constam Parte Geral do Código Penal, Titulo II (Do facto), Capítulo I (Pressupostos da punição), Capítulo II (Formas do crime) e Capítulo III (Causas que excluem a ilicitude e a culpa) ou de legislação penal avulsa.
XVIII. Esta exigência conduziria a que os despachos de acusação se transformassem, na sua parte final, num elenco de normas, verdadeiramente dispensáveis e redundantes, que especificassem, a título meramente exemplificativo, que o agente actuou por acção (art. 10°), com dolo (art. 14°), sem erro sobre as circunstâncias do facto ou sobre a ilicitude (art. 16° e 17°), que era imputável (art. 19°), que o procedimento criminal não estava prescrito (art. 118o), entre outros fundamentos de que depende e em que assenta a responsabilização criminal das pessoas singulares.
XIX: Situação distinta será, no nosso entendimento, a menção expressa ao art. 7º n° 1 do RGIT e ao art. 11º do Código Penal, que cremos ser necessária, quando o crime é imputado a uma pessoa coletiva, uma vez que a responsabilização criminal das pessoas coletivas é excepcional e dependente da verificação de pressupostos específicos, previstos nas diversas alíneas do n° 2 do art. 11ºe nos n°s subsequentes.
XX. No caso em análise, contendo a acusação a indicação expressa do tipo legal de crime, cometido sob a forma de co-autoria, conjugado com a menção dos correspondentes preceitos legais aplicáveis, ainda que sem menção ao art. 6o do RGIT, a mesma cumpre em pleno a sua função de delimitação do objeto do processo, satisfazendo os interesses de índole material e os princípios inerentes ao processo penal, assegurando integralmente as garantias de defesa do arguido.
XXI. Tais princípios estruturantes do processo penal não exigem que na acusação seja feita alusão, na incriminação, a normativos meramente conceptuais, como o referido art. 6o do RGIT, disposição legal que contempla a definição da figura "Actuação em nome de outrem", e cuja omissão em nada coloca em causa a posição do arguido, porquanto não afecta o seu direito de defesa, não traduz a existência de qualquer dúvida quanto aos factos que lhe são imputados e quanto ao grau de participação nos mesmos, mostrando-se clara e completa a qualificação jurídica dos factos que lhe são imputados.
XXII. A nulidade cominada no art. 283° n° 3 d) do CPP tem apenas aplicação a situações em que a falta de indicação das disposições legais aplicáveis se apresenta como estruturante e de relevante dimensão formal, passível de afetar os direitos de defesa do arguido, por não ser possível descortinar qual o tipo legal de crime que é imputado, grau de participação do agente e moldura penal abstrata que lhe corresponde, o que não se verifica, manifestamente, no caso dos autos.
XXIII. Sem prescindir, contudo, sempre se dirá que a invocada falta de indicação da norma legal do art. 6º do RGIT poderá, quando muito, consubstanciar uma irregularidade, da previsão do art. 123° do CPP. que não foi invocada no prazo legal de 3 dias e que em nada afeta o valor do acto. pelo que deverá ser tida como sanada.
XXIV. Ainda sem prescindir, caso assim não se entenda, refira-se que, a ter-se como nulidade sanável a omissão da indicação do art. 6º do RGIT, tal como foi entendido na decisão recorrida, impunha-se que a mesma fosse sanada, seja acrescentando-se a apontada norma no final da decisão de pronúncia, seja determinando-se a devolução dos autos (ou de certidão mandada extrair) ao Ministério Público para o efeito.
XXV. A situação em análise nestes autos não possui qualquer equivalência ou similitude com as invocadas na decisão recorrida, apreciadas nos Acórdãos do TRL no Processo n.° 10221/2006-5 e do TRG de 6.FEV.24 no Processo 277/2015, porquanto os arestos em causa se debruçaram sobre acusações com escassez de factos e cuja nulidade se enquadrava na alínea b) do n° 3 do art. 283° do CPP.
XXVI. Neste contexto, deveria o Mm° Juiz de Instrução ter extraído da declarada nulidade as legais consequências, decorrentes do art. 122° do CPP. o que não fez. XXVII. A decisão de declarar nula a acusação de forma irremediável e definitiva e de não pronunciar os arguidos AA. BB. CC. DD e EE violou assim o disposto nos arts. 118°, 120°, 121° e 122° n° 2 e 3 do CPP.
XXVIII. Atendendo às considerações supra tecidas, entendemos que o despacho de acusação não enferma de qualquer vício (nulidade ou irregularidade), pelo que a decisão recorrida violou o disposto no art. 283° n° 3 d) do CPP, e nos arts. 118°, 120°, 121°. 122° n° 2 e 3 e 308° do CPP, devendo consequentemente ser revogada e substituída por outra que pronuncie os arguidos AA, BB, CC, DD e EE nos precisos termos em que se mostram acusados.»
3. O recurso foi liminarmente admitido no tribunal a quo, com o efeito e regime de subida legais.
4. Os arguidos apresentaram respostas ao recurso, concluindo, no essencial, o seguinte:
«(…) Ao contrário do sufragado pelo Ministério Público, a acusação padece sim da nulidade prevista no artigo 283.°, n.° 3, alínea d) do Código de Processo Penal, pois outro entendimento seria sempre tido como leviano.
VI. Desde logo, o artigo 6º do RGIT é precisamente o artigo que permite imputar aos Arguidos o crime de que vinham publicamente acusados, "como titular de um órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou de mera associação de facto, ou ainda em representação legal ou voluntária de outrem" não se tratando de uma mera norma, sendo, antes, necessária e exigível.»
Tanto assim é que, como bem se fundamente na decisão recorrida, quanto à Arguida A... Unipessoal, Lda, o Ministério Público fez expressamente constar da acusação o artigo 7° do RGIT, por ser precisamente o artigo que prevê a responsabilidade criminal das pessoas coletivas.
VIII. Aliás, o próprio relatório final elaborado pela Segurança Social aponta para a dedução de acusação contra os Arguidos nos termos do disposto no artigo 6.° do RGIT.
IX. Pelo que, não constando da acusação pública a indicação dessa disposição legal, só podemos ter por verificada a nulidade da acusação prevista na alínea d) do n.° 3 do artigo 283.° do Código de Processo Penal.
X. Em segundo lugar, o Ministério Público, sem prescindir, vem alegar que a omissão da norma
em causa apenas consubstanciaria uma irregularidade, nos termos do disposto no artigo 123.° do Código de Processo Penal e, por isso, sujeita ao prazo de arguição legal de 3 dias, o que também não se pode aceitar.
XI. Como muito bem entendeu o Meritíssimo Juiz a quo, a nulidade em causa trata-se, inequivocamente, de uma nulidade sanável, nos termos do disposto no artigo 119.°, a contrario senso, do Código de Processo Penal (Nesse sentido, a título de exemplo, vide o Acórdão desta Relação, de 19-10-2022, processo n.° 192/20.2T9MCN.P1, disponível em www.dgsi.pt).
XII. Por último, defende ainda o Ministério Público que a ser considerada como nulidade sanável a omissão, na acusação, da indicação do artigo 6.° do RGIT, a mesma deveria ter sido sanada, fosse pelo Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal, fosse através da devolução dos autos ao Ministério Público, o que, novamente, não se pode aceitar.
XIII. Para tanto, invoca que a fundamentação avançada pelo Meritíssimo Juiz a quo não tem aplicação ao caso concreto, pois "os arestos em causa se debruçam sobre acusações com escassez de factos e cuja nulidade se enquadrava na alínea b) do n.° 3 do art.0 283.° do CPP".
XIV. Não obstante as alíneas serem, de facto, diferentes, a verdade é que a fundamentação utilizada tem aplicação ipsis verbis ao caso dos autos.
XV. Com efeito, a estrutura acusatória do processo penal português, constitucionalmente consagrada no artigo 32.°, n.° 5 da nossa Constituição da República, veda ao Meritíssimo Juiz a quo a possibilidade de efetuar recomendações ao Ministério Público, ou convidá-lo para aperfeiçoamentos e, como não podia deixar de ser, de ordenar-lhe que corrija, complete ou altere a acusação que proferiu, sob pena de se subverter todo o sistema penal em vigor.
XVI. Daí que, não restasse outra solução jurídica ao Tribunal a quo que não a efetivamente adotada, ou seja, a de declarar nula a acusação pública deduzida e, consequentemente, declarar a não pronúncia dos Arguidos em questão.
XVII. Entendimento diverso teria como desfecho uma clara e inequívoca violação do princípio do acusatório, previsto e consagrado no artigo 32.°, n.° 5 da Constituição da República Portuguesa.
XVIII. A decisão proferida pelo Tribunal recorrido não poderia ter sido outra.
(…)
Existe uma omissão na Acusação Pública de todas as disposições legais aplicáveis, que a lei sanciona com a nulidade, nos termos do disposto no 283.º, n.º 3, al. d, do CPP.
Assim decidiu, doutamente, o Meritíssimo Juiz a quo, ao declarar verificada a nulidade suscitada pelo Arguido e aplicando a legal consequência para essa aludida nulidade – declaração de não pronúncia dos Arguidos.
5. O Ministério Público, junto deste Tribunal, emitiu parecer, do qual se extraem as seguintes passagens:
"(…) Sufragamos, na íntegra, a posição defendida pelo nosso Exm.º Colega, bem como os argumentos que expende, isto no tocante à alegação de que a situação dos autos não se enquadra na situação prevista pela alínea d) do n.º 3 do art.º 283.º do CPP.
Com efeito, para que a mesma se verifique será mister que a acusação seja omissa quanto à indicação das normas jurídicas violadas pelo arguido, bem como quanto às normas que estabelecem a respectiva punição, ou seja, a espécie e a medida das sanções aplicáveis.
Na verdade, o legislador apenas pretendeu ferir de nulidade aqueles casos em que as garantias de Defesa do arguido sejam colocadas em causa por a acusação não lhe ser facultado o conhecimento do exacto conteúdo jurídico-criminal da acusação, a saber, qual a incriminação, e a precisa dimensão das respectivas respostas punitivas, pois só assim o arguido poderá preparar e organizar a sua defesa de forma adequada.
Ou seja, o vício em causa apenas se verificará quando ao arguido seja dado conhecimento preciso de todas disposições legais que irão ser aplicadas.
Ora o artigo 6.º do RGIT aqui em causa, referindo-se à “Actuação em nome de outrem”, dispõe que:
“1 - Quem agir voluntariamente como titular de um órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou de mera associação de facto, ou ainda em representação legal ou voluntária de outrem, será punido mesmo quando o tipo legal de crime exija:
a) Determinados elementos pessoais e estes só se verifiquem na pessoa do representado;
b) Que o agente pratique o facto no seu próprio interesse e o representante actue no interesse do representado.
2 - O disposto no número anterior vale ainda que seja ineficaz o acto jurídico fonte dos respectivos poderes.”
Ora, basta proceder à leitura da factualidade que consta descrita na acusação para se perceber que, mesmo a inexistir a disposição legal aqui em causa, sempre tal factualidade era idónea a preencher o tipo legal do crime de fraude fiscal imputada aos arguidos.
Tal sucede, justamente, por que o legislador não exige o preenchimento de quaisquer elementos pessoais para que seja preenchido o tipo legal do crime de fraude fiscal, nem exige que o respectivo agente pratique o facto no seu próprio interesse, nem que o representante actue no interesse do representado, ou seja, a imputação da prática do crime de fraude fiscal a uma pessoa singular não depende da verificação de qualquer das situações indicadas no art.º 6.º do RGIT, antes se bastando com a comissão da factualidade idónea ao preenchimento dos elementos previstos no respectivo tipo legal de crime.
Assim, qualquer pessoa singular pode incorrer na prática do crime em causa, mesmo uma pessoa sem qualquer ligação funcional com a pessoa colectiva responsável pelo pagamento do imposto, tal como sucede nos casos de fraude fiscal quando se acha em causa a utilização de facturação falsa, caso em que os emitentes das facturas falsas são co-autores do crime, a par daqueles que, por banda da pessoa coletiva, dão as indicações necessárias à feitura das facturas e empregam depois as mesmas para enganar a autoridade tributária.
Argumentar que, no caso da imputação do crime à pessoa coletiva já se recorreu à indicação do artigo 7.º do RGIT, não constituiu qualquer argumento válido, a nosso ver.
Na verdade, e como é consabido, a regra geral é que a responsabilidade criminal apenas caiba às pessoas singulares, sendo a responsabilização criminal das pessoas colectivas a excepção, tendo apenas cabimento nos casos, e nas condições, previstas pelo legislador.
Deste modo, percebe-se que seja mencionado o art.º 7.º do RGIT quando se pretenda responsabilizar criminalmente uma pessoa colectiva por crime de fraude fiscal, e que não seja já mencionado o art.º 6.º, quando em causa se ache uma pessoa singular.
Termos em que entendemos que deverá ser dado provimento ao recurso do MP, revogando-se a decisão instrutória na parte recorrida, ordenando-se devolução dos autos à 1.ª instância a fim de ali ser proferida nova decisão instrutória.”
6. Os arguidos BB e DD apresentaram uma resposta ao parecer, na qual deram por reproduzida a sua resposta ao recurso, pugnando pela improcedência do recurso.
7. Não tendo sido requerida audiência, o processo foi à conferência, após os vistos legais, respeitando as formalidades legais [artigos 417º, 7 e 9, 418º, 1 e 419º, 1 e 3, c), todos, ainda do mesmo texto legal].
Questão a decidir Do «thema decidendum» do recurso:
Para definir o âmbito dos recursos, a doutrina [1] e a jurisprudência [2] são pacíficas em considerar, à luz do disposto no artigo 412º, nº 1, do Código de Processo Penal, que o mesmo é definido pelas conclusões que o recorrente extraiu da sua motivação, sem prejuízo, forçosamente, do conhecimento das questões de conhecimento oficioso.
A função do tribunal de recurso perante o objeto do recurso, quando possa conhecer de mérito, é a de proferir decisão que dê resposta cabal a todo o "thema decidendum" que foi colocado à apreciação do tribunal "ad quem", mediante a formulação de um juízo de mérito.
Atento o teor do relatório atrás produzido, importa decidir, apenas, se a decisão instrutória incorreu em erro em matéria de direito, ao considerar a acusação pública nula, no segmento em que não indicou relativamente aos arguidos AA. BB, CC, DD e EE o artº 6.° do RGIT, por força do disposto no artigo 283. n. ° 3, al. d) do CPP. Cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
A acusação pública termina com a imputação dos seguintes crimes aos arguidos:
“Com as condutas descritas,
- A arguida A... – Unipessoal, Lda. cometeu, dolosamente (artigo 14.º, n.º 1, do Código Penal), como autora material (artigo 26.º do Código Penal) e na forma consumada, um (1) crime de burla tributária, p. e p. pelo artigo 87.º, n.º 3 e artigo 7.º, n.º 1, do Regime Geral das Infrações Tributárias (Lei n.º 15/2001, de 05/06).
- Os arguidos AA, BB, CC, DD e EE, cometeram, dolosamente (artigo 14.º, n.º 1, do Código Penal), em coautoria (artigo 26.º do Código Penal) e na forma consumada, um (1) crime de burla tributária, p. e p. pelo artigo 87.º, n.º 3, do Regime Geral das Infrações Tributárias (Lei n.º 15/2001, de 05/06).
No decurso do debate instrutório, o arguido CC suscitou a questão da nulidade da acusação deduzida contra si e outros pelo Ministério Público - no que foi secundado pelas defesas dos restantes arguidos – por, em seu entender, não constar dessa acusação, como é exigido pelo art.º 283.º, n.º 3, al. d) do Cõdigo de Processo Penal, a indicação de uma disposição legal aplicável.
Concretamente, a defesa desse arguido alega que da acusação em apreço não consta a indicação do art.º 6.º da Lei 15/01, de 5 de Junho (Regime Geral das Infracções Tributárias), que estabelece a responsabilização de todos aqueles que tenham voluntariamente agido como titulares de um órgão, membro ou representante de uma pessoa colectiva, sociedade, ainda que irregularmente constituída, ou de mera associação de facto, ou ainda em representação legal ou voluntária de outrem; por isso, prossegue a sua defesa, não constando da acusação a indicação desse preceito legal, a mesma deve ser havida como nula, nos termos do art.º 283.º, n.º 3 do C. Pr. Penal, com a consequente não pronúncia dele.
Apreciando e decidindo tal arguição de nulidade, o tribunal “a quo” declarou a acusação nula, por falta de indicação das disposições legais aplicáveis, nos termos do disposto no artigo 283.º, n.º 3, al. d) do Código de Processo Penal, relativamente aos arguidos AA, BB, CC, DD e EE e, em consequência foi proferida uma decisão de não pronúncia quanto aos mesmos.
Cumpre apreciar e decidir.
A solução da questão jurídica suscitada no recurso é de uma manifesta simplicidade.
A – Do conhecimento da nulidade
A lei comina com a nulidade tipificada no art. 283º, nº 3, alínea d), do CPP “A indicação das disposições legais aplicáveis” na acusação.
Porém, qualquer nulidade que não esteja prevista em qualquer uma das alíneas do artigo 119º do Código de Processo Penal, nem seja considerada insanável noutro artigo do mesmo Código, fica sujeita à disciplina dos artigos 120º e 121º do mesmo Código.
Por conseguinte, tratando-se de nulidade respeitante ao inquérito, a nulidade devia ter sido arguida até ao encerramento do debate instrutório (art. 120º, 3, al. c), do CPP).
Ora, o juiz de instrução criminal encontrava-se em pleno debate instrutório, quando foi confrontado com tal arguição de nulidade da acusação, relativamente aos arguidos pessoas singulares, razão pela qual a arguição da mesma foi tempestiva.
B – Da alegada nulidade da acusação
Como já foi referido, a nulidade que resultou na declaração de nulidade (parcial) da acusação encontra-se prevista no art. 283º, nº 3, alínea d) do CPP: “A indicação das disposições legais aplicáveis”.
O legislador, ao obrigar o titular da ação penal a incluir a indicação das disposições legais aplicáveis, fê-lo no intuito de densificar o princípio do acusatório e a garantia do contraditório dos arguidos.
Para existir tal nulidade, a acusação deve omitir completamente a referência a qualquer disposição legal aplicável à tipificação do(s) crime(s) imputados ao(s) arguido(s) e não, como entendido pela decisão recorrida e pelos arguidos recorridos, por alguma insuficiência dessa menção, ou uma errada subsunção legal que, a existirem, podem inclusivamente a ser objeto de alteração nos termos legais em audiência de julgamento, nos termos do disposto no art. 358º, nº 1, do CPP.
Para aferir a existência da alegada nulidade, não se deve aferir o mérito substancial da invocação das disposições legais constantes da acusação, mas apenas verificar se a omissão é, ou não, total.
Por conseguinte, a acusação pública não é nula por omissão de indicação das disposições legais aplicáveis, à luz do disposto no art. 283º, nº 3, al. d), do CPP, revogando-se nessa parte a decisão recorrida, que deverá ser substituída pelo tribunal “a quo” por outra decisão instrutória, partindo do princípio que a acusação é válida àluz do estatuído na alínea d) do nº 3 do artigo 283º do CPP.
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Das custas:
Sendo o recurso do Ministério Público julgado provido, mesmo com oposição de arguidos, não há lugar a custas (à luz da ratio legis do art. 513º, 1, do Código de Processo Penal). Iii – DECISÃO Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam em conferência e por unanimidade os juízes do Tribunal da Relação do Porto, ora subscritores, em julgar provido o recurso do Ministério Público e, em consequência: - decidem que a acusação pública não é nula por “omissão de indicação das disposições legais”, revogando-se nessa parte a decisão recorrida, que deverá ser substituída pelo tribunal “a quo” por outra decisão instrutória, partindo do princípio que a acusação é válida à luz do estatuído na alínea d) do nº 3 do artigo 283º do CPP.. Sem custas.
Nos termos do disposto no art. 94º, 2, do Código de Processo Penal, aplicável por força do art. 97º, 3, do mesmo texto legal, certifica-se que o acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo relator.
Porto, em 2 de Abril de 2025. Jorge Langweg José António Rodrigues da Cunha Cláudia Rodrigues
_____________ [1] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, V. [2] Como decorre já de jurisprudência datada do século passado, cujo teor se tem mantido atual, sendo seguido de forma uniforme por todos os tribunais superiores portugueses, até ao presente: entre muitos, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, de 19 de Outubro de 1995 (acórdão de fixação de jurisprudência obrigatória), publicado no Diário da República 1ª-A Série, de 28 de Dezembro de 1995, de 13 de Maio de 1998, in B.M.J., 477º,-263, de 25 de Junho de 1998, in B.M.J., 478º,- 242 e de 3 de Fevereiro de 1999, in B.M.J., 477º,-271 e, mais recentemente, de 16 de Maio de 2012, relatado pelo Juiz-Conselheiro Pires da Graça no processo nº30/09.7GCCLD.L1.S1.