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MARCA
REGISTO
CADUCIDADE
Sumário
I - O art. 268.º, n.º 1, do CPI, tem subjacente a ideia que a marca serve para ser utilizada, ou seja, que tem de servir, de modo efectivo, para assinalar no mercado os produtos ou os serviços para que foi registada. II - Muito embora se preveja, como regra, a caducidade do registo da marca quando não tenha sido utilizada, de modo sério, durante cinco anos consecutivos, a lei admite que a caducidade fique afastada quando, por um lado, exista “justo motivo” para o não uso ou quando, por outro lado, tenha sido estabelecido ou restabelecido o seu uso sério antes de ser requerida a declaração de caducidade do registo. III - A lei não define, nem estabelece critérios para delimitar o conceito indeterminado de “justo motivo”, que, não obstante, aparece associado, como decorre do texto da lei, a circunstâncias externas, que tenham impossibilitado o titular da marca de a utilizar, por motivos alheios à sua vontade, durante cinco anos consecutivos, para assinalar os produtos ou os serviços para que foi registada.
Texto Integral
Acordam os juízes que integram a secção da propriedade intelectual, concorrência, regulação e supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa
I - RELATÓRIO:
“A …, SPA”, melhor identificada nos autos, veio interpor recurso da sentença proferida nestes autos, no dia 11-04-2024, pelo Tribunal da Propriedade Intelectual - Juiz 3, que revogou o despacho proferido pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial, que declarou a caducidade do registo da marca nacional n.º 509282, com o sinal a favor da empresa “B …, Ltda.”
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A recorrente “A …, SPA” apresentou as seguintes conclusões: “I. O presente recurso de apelação vem interposto da sentença proferida pelo Tribunal a quo em 11-04-2024, que revogou o despacho INPI que declarou a caducidade, por falta de uso, do registo da marca nacional n.º 509282 II. É evidente que, ao contrário do que se concluiu na sentença, a marca em crise não foi objeto de uso sério no período relevante, nem daí demonstrado nenhum justo motivo para o não uso, com bem concluiu o INPI. III. É assente que o registo da marca n.º 509282 foi concedido em 29-01-2013 e que o pedido de declaração de caducidade do registo dessa marca foi apresentado no INPI em 17-06-2022; IV. Os cinco anos que precedem a apresentação do pedido de caducidade consubstanciam o designado período de referência, o qual se conta retroativamente, desde a data da apresentação do pedido até se perfazer cinco anos imediatamente anteriores, isto é, entre 17-06-2022 e 17-06-2017, conforme resulta do art. 269.º, n.º 1 do CPI; V. Na sentença recorrida, concluiu-se acertadamente que “nenhum dos atos materiais praticados desde o registo da marca (2013) até ao pedido de caducidade (2022), enquadra uma venda efetiva de produtos sob a marca “DAVENE” em território português” e que “a existência de atos meramente preparatórios não permite concluir pela verificação do uso sério da marca, na medida em que só o uso efetivo desta no mercado e não apenas no seio da empresa interessada permitirá qualificar o uso como sério.”; VI. No entanto, o Tribunal a quo acabou depois por perfilhar o entendimento genérico de que a necessidade de cumprimento de requisitos regulatórios que constituem um pressuposto da introdução de determinados bens num mercado pode constituir um motivo justificado para o não uso; VII. afigura-se óbvio que não foi demonstrado pela Apelada qualquer motivo justificado para o não uso da marca; VIII. Preliminarmente, enfatiza-se que a sentença em crise parece não ter apreendido que marca objeto do presente pedido de caducidade não é uma marca meramente nominativa “DAVENE” mas uma marca composta por elementos gráfico-figurativos IX. Sucede que, em parte alguma da fundamentação de facto se dá como assente que aquela marca tivesse sido objeto de qualquer tipo ação por parte da sua titular que se pudesse qualificar como uso dessa marca e, muito menos, qualquer ação tendente aolançamento de produtos com essa marca; X. A sentença em crise não dedica uma única linha a esta marca, a qual é a única marca objeto do despacho do INPI e, bem assim, do presente recurso, pronunciando-se apenas quanto a uma marca identificada tão somente, ora como como “DAVENE”, ora como “DAVENES” (página 26), em qualquer dos casos, sem qualquer referência ao elemento figurativo da marca em crise, não lhe atribuindo o mínimo de relevância; XI. O art. 267.º, n.º 1, al. a), do CPI determina que “Considera-se uso sério da marca o uso da marca tal como está registada ou que dela não difira senão em elementos que não alterem o seu caráter distintivo, de harmonia com o disposto no art. 255.º, feito pelo titular do registo, ou por seu licenciado, com licença devidamente averbada”. XII. Na sentença em crise não se deu como assente que conste dos autos um único documento referente à marca,pelo que sendoomissa quanto a este respeito, está a mesma ferida de nulidade, nos termos do disposto no art. 615.º, n.º 1, als. c) e d) do CPC; XIII. Por outro lado, no art. 268.º, n.º 1, doCPI, determina-se que “A caducidade do registo deve ser declarada se a marca não tiver sido objeto de uso sério durante cinco anos consecutivos para os produtos ou serviços para que foi registada, salvo justo motivo”; XIV. O Tribunal considerou que, na data em que o pedido de declaração de caducidade da marca foi apresentado, i.e. em 17-06-2022, a Apelada já tinha encetado um conjunto de ações tendentes à obtenção de autorização administrativa para comercializar os seus produtos na União Europeia, o que, na opinião daquele Tribunal justificaria o não uso da marca em crise, na medida em que tais procedimentos ainda não se encontravam concluídos, o que inibiria a Apelada de usar a marca por razões alheias à sua vontade; XV. O raciocínio e a conclusão do Tribunal a quo estão errados; XVI. Tendo o registo da marca n.º 509282 sido concedido em 29-01-2013 e o pedido de declaração de caducidade do registo dessa marca apresentado no INPI em 17-06-2022, verifica-se um período de aproximadamente 9 (nove) anos entre a data do registo da marca em crise e a data em que a ora Apelante requereu que fosse declarada a caducidade; XVII. O art. 268.º, n.º 1, do CPI dispõe que ao fim de 5 (cinco) a contar da data em que o registo daquela marca foi concedido, sob a Apelada passa a recair o ónus de usar a marca, sob pena de poder ser declarada a caducidade do respetivo registo a qualquer momento; XVIII. Em suma, a partir de 29-01-2018 (decorridos 5 anos após a data do registo) a Apelada passou ater plena consciência de que, caso não usasse a marca, o registo dessa marca ficaria vulnerável a caducidade por falta de uso; XIX. Estando ciente de que necessitava de permissões administrativas quanto ao lançamento desses produtos em Portugal, a Apelada demonstrou ter iniciado qualquer processo administrativo destinado à obtenção dessas permissões durante o referido período de 5 (cinco) anos “de graça” subsequentes à data da concessão do registo da marca; XX. Só depois de decorridos 3 anos após o fim do período de graça, em 2021, é que a Apelada decidiu então (alegadamente) iniciar um processo administrativo tendente ao lançamento de produtos “DAVENE” na UE; XXI. Não existiu, nem tal foi sequer alegado, qualquer fator exógeno ou alheio à vontade da Apelada que a impedisse de lançar em Portugal os produtos com a marca em crise em data anterior à apresentação do pedido de caducidade em 2022; XXII. Sendo que apenas fatores alheios ou para além da vontade do titular da marca poderia eventualmente constituir causa justificada do não uso da marca. XXIII. De Acordo com a jurisprudência de EU “De acordo com a jurisprudência comunitária dominante:“the mere fact that an obstacle to the use of a trade mark exists, such as the requirement to comply with legislation in order to market the goods covered by that mark, does not suffice to justify the non-use of that mark (see, to that effect, judgment 8-6-2017, Kaane American International Tobacco v EUIPO – Global Tobacco (GOLD MOUNT), T 294/16, not published, EU:T:2017:382, paragraph 42). (…) Complying with legislation is within the trade mark proprietor’s sphere of influence and responsibility, and does not constitute an obstacle independent of its will. It is clear that any commercial activity must be carried out in accordance with specific legislation. The applicant cannot therefore invoke the existence of a specific regulatory framework, the purpose of which is to protect consumers, in order to justify the non-use of a trade mark which it has consciously registered for a wide range of good.” – cf. Acórdão do Tribunal Geral de 12-01-2022 - Laboratorios Ern/EUIPO - Malpricht (APIRETAL), Processo T-160/21. XXIV. Também de acordo com o art. 19.º, nº 1, do Acordo TRIPS do qual Portugal é signatário determina que “Se sua manutenção requer o uso da marca, um registro só poderá ser cancelado após transcorrido um prazo ininterrupto de pelo menos três anos de não-uso, a menos que o titular da marca demonstre motivos válidos, baseados na existência de obstáculos a esse uso. Serão reconhecidos como motivos válidos para o não-uso circunstâncias alheias à vontade do titular da marca, que constituam um obstáculo ao uso da mesma, tais como restrições à importação ou outros requisitos oficiais relativos aos bens e serviços protegidos pela marca.” XXV. A estratégia quanto à data do lançamento dos produtos com a marca em crise em Portugal foi exclusivamente determinada pela Apelada, porque a mesma assim o desejou, bem sabendo que sob a mesma recaia o ónus de usar a marca a partir de 29-01-2018, sob pena de caducidade do registo da marca, e perfeitamente ciente dos “timings” relativos à obtenção das permissões administrativas quanto ao lançamento desses produtos. XXVI. Em suma, o registo da marca nacional n.º 509282 foi concedido em 10-04-2013, pelo que o facto de a Apelada ter (alegadamente) iniciado atos preparatórios tendentes ao uso da marca somente em 2021, isto é, praticamente 9 (nove) anos após a concessão damarca é lhe única e exclusivamente imputável e não pode ser considerado como um motivo justificativo do não uso da marca, nos termos do art. 19.º do Acordo TRIPS; XXVII. In casu, estamos perante a situação inversa: a Apelada podia-devia ter requerido as autorizações e efetuado as notificações às entidades reguladoras em causa logo após a concessão do registo da marca em crise, em 2013, não o tendo feito, por vontade própria e motivo a si única e exclusivamente imputável, durante mais de 8 (oito) anos, até 2021; XXVIII. Do mesmo modo, o contrato de representação legal e a nomeação e responsável de 11-02-2021, o packing list dos produtos de 22-04-2021, o envio da mercadoria por avião em 18-06-2021, as notificações à entidade reguladora em 03-08-2021 e o plano de negócios de 07-04-2022, são atos que podiam, obviamente, ter sido praticados pela Apelada em data muito anterior caso a mesma tivesse a intenção de usar a marca; XXIX. Por conseguinte, é evidente que a marca objeto do registo n.º 509282 não foi objeto de uso sério, para os produtos assinalados, no período e território relevantes – conforme decidiu, e bem, a sentença recorrida; XXX. E é também igualmente evidente que não foi demonstrada pela Apelada a existência de qualquer justo motivo externo, alheio à sua vontade e não imputável à sua responsabilidade, que justificasse o não uso da marca; XXXI. Antes pelo contrário, o não uso da marca em crise, deve-se apenas e comprovadamente à inércia, passividade e falta de diligência da Apelada, a qual lhe é exclusivamente imputável. XXXII. Pelo que, andou muitíssimo mal a sentença recorrida ao decidir como decidiu, devendo ser revogada e confirmado o despacho do INPI que declarou da caducidade da marca nacional n.º 509282 da Apelada, o que se requerer com todas as consequências legais. XXXIII. Por fim, verifica-se que o Tribunal a quo decidiu, e bem, que a existência de atos meramente preparatórios não permite concluir pela verificação do uso sério da marca, na medida em que só o uso efetivo desta no mercado e não apenas no seio da empresa interessada permitirá qualificar o uso como sério; XXXIV. Razão pela qual, à semelhança do INPI, o Tribunal a quo não considera que os documentos juntos pela Apelada consubstanciem provas do uso da marca em crise. E tal conclusão é acertada. Senão vejamos; XXXV. Os Docs. n.ºs 2, 3 e 10, são descritos pela Apelada como fatura e documento auxiliar de nota fiscal eletrónica e são alegadamente relativos ao fornecimento deprodutos assinalados no registo de marca nacional n.º 509282, porém, uma análise desses documentos revela que não é assim; XXXVI. Tais documentos são relativos à mesma exata e única transação, não refletem nem demonstram um efetivo uso comercial no mercado português, indicam apenas 15 (quinze) caixas de sabonetes, o que é manifestamente uma quantidade muito baixa para um produto de grande consumo como são os produtos de higiene pessoal, e no campo referente ao pagamento diz expressamente “free of charge”, o que indica que os produtos objeto da fatura foram oferta, e não vendidos em troca do pagamento de um preço como seria expectável numa transação comercial; XXXVII. Acresce que, a empresa portuguesa “C …, Lda.” que, segundo o Doc. n.º 2“ adquiriu” os produtos a custo zero, não está no negócio de comércio de sabonetes e produtos cosméticos; XXXVIII. Assim, resulta que a “transação” refletida nos Docs. n.ºs 2, 3 e 10 se refere quando muito ao envio de algumas (poucas) unidades de produtos para a empresa “C …, Lda.” para que esta pudesse analisar esses produtos no contexto dos serviços de consultoria que presta na área dos cosméticos; XXXIX. Os Docs. n.ºs 2, 3 e 10 foram emitidos por uma empresa “D …,Ltda.”, não pela Apelada, não tendo sido junto nenhum comprovativo de que aquela sociedade fosse sua parceira comercial, nem de que a mesma estaria encarregue de usar a marca nacional n.º 509282, prova essa que lhe era exigível no prazo estabelecido pelo n.º 1 do art. 267.º do CPI; XL. Porém, volvidos quase 10 (dez) meses depois da apresentação do pedido de caducidade e mais de 6 (seis) meses depois da sua primeira resposta, a Apelada lembrou-se de alegar que, entretanto, tinha celebrado um “acordo de licenciamento de marcas” com a sociedade “D … Ltda.”, cujo averbamento foi requerido junto do INPI em 09-02-2023; XLI.O Doc. n.º 4 corresponde ao suposto contrato de licenciamento de uso de marcas e outras avenças, celebrado com a “D …, Ltda.”, o qual nada de útil acrescentado ao caso, pois encontra-se datado de 18-01-2023, data muito posterior ao período relevante e não se encontra assinado; XLII. Os Docs. n.ºs 5 a 9 visam alegadamente demonstrar que em 2020 a Apelada contratou serviços de consultadoria de “C …, Lda.”, com vista a cumprir os requisitos necessários para a introdução dos produtos no mercado; XLIII. Porém, os Documentos n.ºs 5 a 9 são meros emails e propostas contratuais trocadas entre a Apelada e aquela empresa terceira, os quais provariam quando muito atos meramente preparatórios da contratação de serviçospela Apelada à “C …, Lda.” e, nessa medida, o eventual uso da marca “Pharmilab” em serviços de consultadoria; XLIV. os Docs n.ºs 11 e 12, trata-se de dois comprovativos do transporte de produtos pela “TAP Transportes Aéreos Portugueses, S.A.” em 18-06-2021, com origem na “D …, Ltda.” e na “E …, Ltda.” e com destinado à “C …, Lda.”e à “Vabix Airfreight Amsterdam”; XLV. Nenhum daqueles documentos contém qualquer referência à marca em crise, e resulta apenas informação de que 15 (quinze) “personal hygiene products” foram enviados do Aeroporto de Garulhos no Brasil para Amsterdão, isto é sempre fora do território português; XLVI. O Documento n.º 13 corresponde a meros requerimentos referentes à apresentação de notificações com vista à introdução no mercado de produtos cosméticos junto da entidade da UE competente para o efeito; XLVII. As notificações com vista à introdução no traduzem meros atos regulatórios preparatórios da comercialização dos produtos, mas não demonstram que essa comercialização tenha efetivamente ocorrido, relativamente aos quais já foram acima tecidas as devidas alegações; XLVIII. Em suma, os documentos apresentados pela Apelada não indiciam um uso com fins comerciais ou, sequer, um uso público de consistentes com a função distintiva da marca, conforme conclui o Tribunal a quo; XLIX. Assim, andou mal o Tribunal a quo ao decidir como decidiu, devendo a sentença recorrida ser revogada e confirmado o despacho do INPI na íntegra, mantendo-se a declaração da caducidade da marca nacional n.º 509282, o que se requerer com todas as consequências legais.”
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A recorrida “B …, Ltda.” respondeu ao recurso, que terminou com a apresentação das seguintes conclusões: “1. As presentes alegações de recursos são apresentas como resposta e no âmbito do recurso de Apelação interposto pela A …, S.P.A., ora Apelante. 2. No âmbito das alegações apresentadas, foi por demais evidente que não assiste qualquer razão à Apelante, não merecendo a sentença qualquer censura, porquanto procedeu, com bastante apuro qualitativo, a uma correta e fundamentada aplicação do instituto do uso sério e do respetivo regime de caducidade. 3. Diga-se, a propósito, que tão pouco seria necessário ao tribunal a quo fundamentar a sua decisão na existência de “justo(s) motivo(s)” para o não uso. 4. De facto, a montante já existiram motivos para determinar uma decisão favorável à Apelada, pois, devido a razões exógenas, determinadas por lei, o prazo de uso da marca foi suspenso durante mais de um ano, pelo ainda não se completou os 5 anos consecutivos, como é legalmente exigível. 5. Nos termos do art. 268.º e 269.º, a marca deve ser alvo de “uso sério”; caso não haja “uso sério” da marca durante 5 anos consecutivos, este poderá caducar, a não ser que: (i) se verificar um “justo motivo” para o não uso sério; (ii) se, antes de ser requerida a declaração de caducidade, já tiver sido iniciado ou reatado o uso sério da marca, desde que não seja nos três meses imediatamente anteriores à apresentação de um pedido de caducidade. 6. Atendendo às consequências da caducidade da marca por falta de uso, o mesmo não pode ser aplicado de ânimo leve, quase como se fosse um mero requisito procedimental. 7. A marca constitui um direito de propriedade industrial; é um direito subjetivo absoluto, com carácter erga omnes, que faz parte do património de um agente económico, cuja tutela constitucional é encontrada, igualmente, no art. 62.º da Constituição da República Portuguesa (Direito de propriedade privada). 8. Antes de entrar no mérito substantivo, deve-se ressaltar, em primeiro lugar, que, sendo o recurso interposto tanto de facto, como de Direito, a Apelante em nenhum momento alude, claramente, aos segmentos da sentença que considera viciados por erro de julgamento, nem suportando em quaisquer documentos ou outro meio de prova para alteração da matéria de facto, nomeadamente quanto ao período de referência dado como assente no tribunal a quo ou aos atos preparatórios, limitando-se a criticar a apreciação do julgador. 9. Nestes termos, não tendo o ónus da Apelante sido preenchido, a impugnação da matéria de facto deve ser rejeitada, dando-se como assente os factos dados como provados na sentença. 10. De igual modo, não tem qualquer adesão com a realidade a alegação por parte da Apelada no sentido da nulidade da sentença por não se pronunciar sobre a marca em crise, porquanto o tribunal a quo, ao longo da sua decisão, refere por diversas vezes a marca em causa, representando-a na sua configuração mista (inter alia, vide fls. 1, 9, 22, 27), referindo-se, amiúde, a “Davene”, na sua forma nominativa, apenas por razões de discurso. 11. Em termos materiais, não podem existir quaisquer dúvidas de que, como a própria Apelante está de acordo, que o período de referência deve ser estabelecido entre 17-06-2017 e 17-06-2022, não podendo ser requerida qualquer prova de uso anterior. 12. A definição de um período de referência, seja em que matéria for, constitui sempre uma etapa anterior à determinação da existência ou não de um facto suspensivo ou interruptivo que afetou esse mesmo período. 13. A existência de um período de suspensão originado pela pandemia da Covid-19 e estatuído por lei, não pode, no entanto, deixar de ter consequências legais. 14. Havendo um período que teve efeitos no hiato temporal a levar em consideração, os cincos anos necessários de não uso, temos dois caminhos: (i) Ou se entende que a suspensão ditada pela Covid 19 interrompe o prazo, inutilizando o prazo anterior e fazendo correr um novo; (ii) ou, por outro lado, assume-se que o período de suspensão legalmente declarado suspende a contagem do período de 5 anos, o que significa que o período de não utilização justificada não é tido em conta para o cálculo do período de carência de 5 anos. 15. As normas especiais que ditaram a suspensão dos prazos na pandemia de Covid-19 parecem indicar que se trata de uma suspensão, sendo tal entendimento corroborado pela doutrina e jurisprudência da EUIPO. 16. Assim, o prazo de suspensão, decorrente da medida excecional, perdurou por 1 ano e 18 dias, pelo que o entendimento, parece-nos, seria alargá-lo pelo período correspondente à vigência. 17. Por conseguinte, o entendimento correto será estabelecer o período de referência até 05-07-2023. 18. Ora, isto significa que, no momento que a Apelante deu entrada do pedido de caducidade, os cinco anos consecutivos ainda não tinham sido ultrapassados, não podendo, assim, sequer, conjeturar-se a análise sobre o uso sério da marca. 19. Embora o tribunal a quo não se tenha pronunciado sobre este aspeto, ele é deveras significativo, dado que, por economia de meios, evita que o presente tribunal ad quem se tenha de debruçar sobre as restantes matérias controvertidas, designadamente (i) prova de uso sério da marca; (ii) preparatórios para a entrada no mercado; e (iii) existência de justo motivo. 20. Seja como for, bem esteve o tribunal a quo a reconhecer a existência de justos motivos para o não uso suficiente da marca em crise. 21. Por força do art. 268.º, n.º 1, e 5, do CPI, independentemente da falta de uso sério da marca, o registo não caduca se, inter alia, existir justo motivo para o não uso. 22. O objetivo desta disposição é permitir que o titular da marca justifique a falta ou a insuficiente utilização da mesma, desde que possa comprovar que existem obstáculos legítimos e externos que impedem seu uso adequado. 23. A este título, como o tribunal a quo reconheceu, a Apelada demonstra dois conjuntos de factos relevantes que se enquadram na disposição referida. 24. Em primeiro lugar, durante o período de referência para a análise do uso sério da marca, como é facto notório, ocorreram restrições alfandegárias, de distribuição e comerciais, decorrentes da Pandemia Covid-19, o que levou o próprio INPI chegou a suspender os prazos INPI, suspensão essa que durou mais de um ano. 25. Se a pandemia da Covid-19 já afetou as empresas que operam internamente, mais ainda afetou as empresas exportadoras, como a Apelada, que durante esse período enfrentou dificuldades em manter as operações comerciais normais, incluindo a exportação de produtos para outros países. 26. No âmbito do conceito de “justo motivo” estarão várias situações independentes da vontade do titular da marca, onde se incluem, nomeadamente, restrições à importação e casos de força maior como pandemias. 27. Havendo “justo motivo” para o não uso (ou uso insuficiente) da marca, por força do n.º 1, do art. 268.º, do CPI, não deve a marca ser declarada caduca. 28. Outrossim, no âmbito do conceito de “justo motivo” encontram-se ainda requisitos legais sobre a comercialização, id est, burocracia regulatória e de comercialização, porquanto se trata de produtos cosméticos. 29. tal como foi dado como provado pelo tribunal, dentre as fases de um procedimento de exportação, a Apelada estabeleceu um contrato de Licença com a empresa parceira comercial e responsável pela distribuição dos produtos em Portugal, celebrou um contrato de consultoria com a C …, Lda., estabeleceu o responsável pela comercialização dos produtos, a sociedade comercial D …, LTDA, que também celebrou um acordo comercial com a C …, Lda. (Pharmilab), para continuidade do procedimento regulatório de importação em 2021, no mesmo ano enviou os produtos para análise e obtenção das licenças regulatórias de importação, conforme se demonstrou através do Packing List, Doc. de carga, liberação alfandegária e informações gerais de cada produto da lista. 30. No âmbito dos presentes atos burocráticos, apenas em 2021 foi possível enviar os primeiros produtos para análise e obtenção das licenças regulatórias de importação, conforme se demonstrou através do Packing List, Doc. de carga, libertação alfandegária e informações gerais de cada produto da lista, apto à importação 31. Atenta à prova, a sentença do tribunal a quo reconhece corretamente que tais pressupostos para introdução no mercado constituam justo motivo para o não uso, ao afirmar (fls. 26 da Sentença), referindo o seguinte: “De facto, à data em que o pedido de caducidade foi apresentado – 17-06-2022 – a Recorrente já vinha encetando um conjunto de ações tendentes à obtenção de autorização para comercialização dos seus produtos no território da União Europeia (nomeadamente, Portugal), já tinha nomeado a pessoa responsável à luz do Regulamento (CE) n.º 1223/2009, de 30 de novembro de 2009 (art. 4.º), já tinha diligenciado por enviar amostras de produtos para análise ao departamento responsável na União Europeia e já havia começado a planificar comercialmente a introdução dos produtos no mercado”. 32. E concluindo, em conformidade, que “O cumprimento das exigências regulatórias já havia, de resto, sido iniciado antes do período de três meses que antecedeu a apresentação do presente pedido de caducidade, afastando assim qualquer possibilidade de a iniciativa tomada visar apenas a manutenção formal da marca. Por estes motivos, consideramos que existiram motivos justificados para a não exploração comercial da marca no período de cinco anos que antecedeu a apresentação do presente pedido de caducidade.” 33. Não merece, pois, qualquer reparo a fundamentação da sentença a quo, porquanto, além de no período de referência ter tido lugar uma pandemia, que restringiu significativamente o espaço de manobra de quaisquer exportações, ficou, ainda, inequivocamente demonstrando, que dentro do hiato temporal referido, a Apelada procedeu com as diligências regulatórias necessárias à introdução dos produtos marcados no mercado. 34. É bom relembrar que os produtos assinalados pela marca em crise constituem cosméticos, que estão sujeitos a várias regulamentações e burocracias para sua exportação e introdução no mercado, que incluem uma combinação de requisitos legais, documentações específicas e conformidade com normas de saúde e segurança. 35. Outrossim, tendo conhecimento desta realidade, a Apelante limita-se a mencionar jurisprudência das câmaras de recurso da EUIPO ou do Tribunal Geral, e que, ou são irrelevantes para o presente caso ou são retiradas do seu devido contexto factual e normativo. 36. E, ao contrário do que alega a Apelante, os documentos juntos demonstram inequivocamente os atos preparatórios de introdução da marca no mercado 37. Aliás, na pendência da instância e como facto novo, é importante referir que todos os processos burocráticos foram concluídos, encontrando-se, neste momento, os produtos em comercialização no mercado português. 38. Foi, assim, com toda a propriedade que o tribunal a quo que, à luz do art. 268.º, n.º 1, do CPI, reconheceu existirem justos motivos para o não uso, declarando que mesma não poderia ser considerada caduca. 39. Nestes termos e nos mais de Direito, e sempre com o mui douto suprimento de V. Exa., deve o recurso ser julgado IMPROCEDENTE, mantendo-se a sentença recorrida que revogou o despacho que declarou a caducidade do registo da marca nacional nº 50928 -“.
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Admitido o recurso e colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO:
a) Factos provados:
A primeira instância considerou como provados os seguintes factos: “1. Em 29-01-2013, B …, LTDA apresentou no Instituto Nacional da Propriedade Industrial, I.P. o pedido de registo da marca para assinalar os produtos «cosméticos em geral», inseridos na classe 03, segundo a Classificação Internacional, de produtos e de serviços, do Acordo de Nice de 1957 (cf. proc. administrativo INPI) 2. Ao pedido foi atribuído o n.º 509282, o qual foi publicado a páginas 34 do Boletim da Propriedade Industrial n.º 025/2013 de 05-02-2013, para apresentação de eventuais reclamações de terceiros interessados. (cf. proc. administrativo INPI) 3. Em 10-04-2013, o INPI pronunciou-se no sentido da concessão da marca por considerar cumpridas todas as formalidades legais e inexistentes os motivos absolutos e relativos de recusa. (cf. proc. administrativo INPI) 4. Do despacho de concessão, publicado a páginas 79 do BPI n.º 072/2013 de 15-04-2013, foi a titular, devidamente notificada. (cf. proc. administrativo INPI) 5. Em 17-06-2022, A …, S.P.A. apresentou um pedido de declaração de caducidade do registo da marca nacional por considerar que: (i) Tinha interesse direto e legitimidade para apresentar o pedido de declaração de caducidade, uma vez que a manutenção em vigor da marca nacional n.º 509282 era suscetível de prejudicar os seus interesses e de interferir na sua estratégia comercial; (ii) Do que tinha apurado, a marca caducanda não tinha sido objeto de uso sério, no mercado português, nos últimos cinco anos, para os produtos que assinalava. (cf. proc. administrativo INPI) 6. Em 22-08-2022, a titular apresentou uma resposta ao referido pedido, na qual argumentou que a marca ora em crise vinha sendo usada no mercado português, nos últimos cinco anos. (cf. proc. administrativo INPI) 7. Em 09-09-2022, a requerente apresentou uma exposição suplementar, na qual argumentou que a documentação apresentada pela titular não podia ser considerada relevante para a prova do uso sério da marca caducanda. (cf. proc. administrativo INPI) 8. Em 16-02-2023, a titular apresentou uma exposição suplementar, na qual argumentou que, ao contrário do alegado pela requerente, a sociedade comercial D …, LTDA, era sua parceira comercial e, com vista a comprovar essa realidade, tinha requerido o averbamento da licença de exploração que incluía o registo da marca nacional caducanda, conforme já constava da base de dados do INPI. (cf. proc. administrativo INPI) 9. Ademais, defendia que o período relevante para apresentação de provas de uso, tinha compreendido um período conturbado e atípico devido à pandemia Covid-19, que se tinha prolongado no tempo e cujos efeitos e entraves tinham perdurado e obstado ao normal desenvolvimento das relações comerciais entre empresas e bem assim à respetiva atuação no mercado, o que constituía um facto público e notório. (cf. proc. administrativo INPI) 10. Em 14-03-2022, a requerente apresentou novamente uma exposição suplementar. (cf. proc. administrativo INPI) 11. Para prova do uso sério, a Recorrente B …, LTDA apresentou os seguintes documentos: (cf. proc. administrativo INPI) A. Documento intitulado “Packing List”, datado de 22-04-2021, elaborado por D …, LTDA, por referência a uma transação com a sociedade importadora C …, Lda, com sede em Coimbra, contendo a descrição dos seguintes produtos: 904001 - LA FLORE SABONETE PEONIA DAVENE 36X180G 1 6,872 6,480 0,013 2 904004 - LA FLORE SABONETE VANILA DAVENE 36X180G 1 6,872 6,48 0,013 3 904005 -LA FLORE SABONETE MARACUJA DAVENE 36X180G 1 6,872 6,48 0,013 4 904006 - LA FLORE SABONETE LAVANDA DAVENE 36X180G 1 6,872 6,48 0,013 5 904007 LA FLORE SABONETE ERVA DOCE DAVENE 36X180G 1 6,872 6,48 0,013 6 904008 - LA FLORE SABONETE CEREJA DAVENE 36X180G 1 6,872 6,48 0,013 7 905002 - LA FRUTA SABONETE UVA ROXA DAVENE 36X180G 1 6,872 6,48 0,003 8 905003 - LA FRUTA SABONETE MACA DAVENE 36X180G 1 6,872 6,48 0,003 9 905004 - LA FRUTA SABONETE LICHIA DAVENE 36X180G 1 6,872 6,48 0,010 10 905007 - LA FRUTA SABONETE MANDARINA DAVENE 36X180G 1 6,872 6,48 0,010 11 905008 - LA FRUTA SABONETE MORANGO DAVENE 36X180G 1 6,872 6,48 0,010 12 904002 - LA FLORE SABONETE ANTIBAC GENGIBRE DAVENE 36X180G 1 6,872 6,48 0,013 13 904003 - LA FLORE SABONETE ANTIBAC ALECRIM DAVENE 36X180G 1 6,872 6,48 0,013 14 905005 - LA FRUTA SABONETE ANTIBAC CRANBERRY DAVENE 36X180G 1 6,872 6,48 0,013 15 905006 - LA FRUTA SABONETE ANTIBAC LIMAO SICILIANO DAVENE 36X180G 1 6,872 6,48 0,013 - Cf. doc. n.º 1 com a resposta remetida ao INPI em 22.08.2022 e doc. n.º 2 junto com as alegações de recurso B. Fatura emitida por D …, LTDA referente à encomenda referida em A), com data de 10.06.2021, no valor de 1 566, com a natureza de “outra saída de mercadoria ou prestação de serviço não simplificado” – cf. junta como doc. nº 2 com a resposta remetida ao INPI em 22-08-2022 e doc. nº 3 junta com as alegações de recurso. C. Contrato de transporte celebrado com a TAP com vista ao envio de produtos descritos em A) para Portugal, junto como doc. nº 11 com as alegações de recurso. D. Documento de controlo aduaneiro datado de 17-06-2021 junto como doc. n.º 12 com as alegações de recurso, cujo teor se dá por reproduzido. E. Emails de 01-10-2020, 16-10-2020 e 07-04-2022 trocados entre responsáveis da Pharmilb e da Davene, nos termos que constam dos docs nº 5, 6 e 7 juntos com as alegações de recurso, cujo teor se dá por reproduzido. F. Documento intitulado “Cotação”, datado de 25-05-2021, elaborado por Pharmilab para Davene, conforme doc. nº 8 junto com as alegações de recurso, cujo teor se dá por reproduzido. G. Acordo intitulado “Contrato de Representação Legal na UE”, celebrado entre D …, Lda. produtos de higiene, Lda e C …, Lda, em 12-02-2021, junto como documento nº 9, cujo teor se dá por reproduzido. H. Notificações com vista à introdução no mercado de produtos cosméticos junto da entidade da UE datadas de 03.08.2021 – cf. documento nº 13 junto com as alegações de recurso, cujo teor se dá por reproduzido (e que, segundo a recorrente, correspondem aos documentos 3 a 10 juntos com a Resposta em sede de processo administrativo). 12. Em ordem a cumprir com exigências legais e cumprimento de licença e restrições para importação de produtos para a UE, conforme dispõe o Guia para Importação de Produtos disponibilizado pela Comissão Europeia, em 2020 a Recorrente iniciou o processo de consultoria com a C …, LDA (Pharmilab) (cf. docs. n.º 5 e 6 juntos com as alegações de recurso, cujo teor se dá por reproduzido. 13. A empresa responsável pela comercialização dos produtos é a sociedade comercial D …, LTDA, que também estabeleceu um acordo comercial com a C …, Lda. (Pharmilab), para continuidade do procedimento regulatório de importação em 2021 (conforme doc. nº 9 junto com as alegações de recurso, cujo teor se dá por reproduzido). 14. No âmbito do processo de importação, somente em 2021 foi possível enviar os primeiros produtos para análise e obtenção das licenças regulatórias de importação, conforme se comprova pelo Doc. 10, 11 e ainda pelo Doc. 13, e que correspondem ao Packing List, Documento de carga, nota alfandegária e informações gerais de cada produto da lista, apto à importação. 15. Por acordo escrito designado CONTRATO PARTICULAR DE LICENCIAMENTO DE USO DE MARCAS E OUTRAS AVENÇAS celebrado em 18.01.2023, em Osasco, São Paulo, B …, LTDA, cedeu a D …, LTDA o direito de uso e exploração da marca referida em 1º. com caráter não exclusivo, com o fim específico de produzir, comercializar, distribuir e utilizar seusprodutos, durante a vigência do contrato. - (cf. proc. administrativo INPI; req. 09.02.2023) 16. A Requerente A …, S.P.A é titular dos seguintes registos da marca deste 2000 (facto assente por acordo das partes – cf. art. 19.º do recurso): Nº 001670835 , com data de pedido de 23-05-2000; Nº 004405858 , com data de pedido em 20-05-2005; Nº 011375086 , com data de pedido em 26-11-2012.”
Para além dos que acima ficaram descritos, o tribunal de primeira instância não considerou como provados quaisquer outros factos.
b) Enquadramento jurídico dos factos:
Como decorre do disposto nos arts. 635.º, n.º 3, e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC, as conclusões do recorrente delimitam o recurso apresentado, estando vedado ao tribunal hierarquicamente superior àquele que proferiu a decisão recorrida conhecer de questões ou de matérias que não tenham sido suscitadas, com excepção daquelas que sejam de conhecimento oficioso.
Deste modo, compete à parte que se mostra inconformada com a decisão judicial proferida indicar, nas conclusões do recurso que interpôs, que segmento ou que segmentos decisórios pretende ver reapreciado(s), delimitando o recurso quanto aos seus sujeitos e/ou quanto ao seu objecto.
A delimitação (objectiva e/ou subjectiva) do recurso condiciona a intervenção do tribunal hierarquicamente superior, que se deve cingir à apreciação e à decisão das matérias indicadas pela parte recorrente, com excepção de eventuais questões que se revelem de conhecimento oficioso.
Isto significa que está vedado ao tribunal de recurso proceder a uma reapreciação de questões ou de matérias que não tenham sido suscitadas e, por consequência, que os seus poderes de cognição se encontram delimitados pelo recurso interposto no âmbito de um processo da iniciativa das partes.
A iniciativa das partes condiciona a intervenção do tribunal de recurso e delimita os seus poderes de cognição, sem prejuízo do caso julgado já formado e de eventuais questões que possam ser apreciadas a título oficioso.
Nulidade da sentença recorrida:
A recorrente “A …, SPA” veio alegar que a sentença recorrida se encontra ferida de nulidade, nos termos do disposto no art. 615.º, n.º 1, als. c) e d), do CPC, em virtude de não dedicar uma única linha à marca registada , pronunciando-se sobre uma marca identificada tão somente como “Davene”, sem qualquer referência ao elemento figurativo da marca em crise.
Por seu turno, a recorrida “B …, Ltda.” veio defender, a este propósito, que a sentença refere, por diversas vezes, a marca em causa, que a representou na sua configuração mista e que se refere, a amiúde, a “Davene”, na sua forma nominativa, apenas por razões de discurso.
Apreciando e decidindo:
Estabelece o art. 615.º, n.º 1, al. c), do CPC, sob a epígrafe de “causas da nulidade da sentença”, que a sentença é nula quando “(…) os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou quando ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (…)”.
Conforme decorre do no n.º 4 do art. 615.º do CPC, esta nulidade pode ser conhecida, enquanto fundamento de recurso, caso venha a ser suscitada pela parte que não se conforma com a decisão judicial proferida.
Como se deixou assinalado, a propósito desta questão, no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-12-2021, proferido no Proc. n.º 7129/18.7T8BRG.G1.S1 (acessível em www.dgsi.pt): “ (…) Os vícios da nulidade do acórdão correspondem aos casos de irregularidades que põem em causa a sua autenticidade (falta de assinatura do juiz), ou a ininteligibilidade do discurso decisório por ausência total de explicação da razão por que decide de determinada maneira (falta de fundamentação), quer porque essa explicação conduz, logicamente, a resultado oposto do adotado (contradição entre os fundamentos e a decisão), ou ocorra alguma ambiguidade, permitindo duas ou mais interpretações (ambiguidade), ou quando não é possível saber com certeza, qual o pensamento exposto na sentença (obscuridade)”.
Em anotação a este dispositivo, Lebre de Freitas doutrina que “(…) entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta; quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante um erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência (…)” – in “Código de Processo Civil Anotado”, págs. 736 e 737.
No caso vertente, não se verifica qualquer inconciliabilidade entre a fundamentação e a decisão proferida pelo Tribunal da Propriedade Industrial, antes pelo contrário, a revogação da decisão do Instituto Nacional de Propriedade Industrial, que declarou a caducidade desta marca, surge como a consequência lógica da fundamentação anteriormente apresentada.
Com particular destaque, o tribunal a quo, em sede de “fundamentação de direito”, entendeu que “(…) a Recorrente já vinha encetando um conjunto de ações tendentes à obtenção de autorização para comercialização dos seus produtos no território da União Europeia (nomeadamente, Portugal), já tinha nomeado a pessoa responsável à luz do Regulamento (CE) nº 1223/2009, de 30-11-2009 (art. 4.º), já tinha diligenciado por enviar amostras de produtos para análise ao departamento responsável na União Europeia e já havia começado a planificar comercialmente a introdução dos produtos no mercado (…)”.
Em conformidade com a fundamentação encontrada, julgou o recurso procedente e, em consequência, revogou “(…) a decisão recorrida que declarou a caducidade do registo da marca nacionaln.º 509282, com o sinala favor da recorrente B …, LTDA (…)”.
Segundo o recurso interposto pela empresa “A …, SPA”, o tribunal recorrido lavrou em erro por não se ter apercebido que a marca objecto do presente pedido de caducidade não era a marca meramente nominativa “Davene”, mas a marca composta , sem que se tenha dado como assente qualquer acção tendente ao lançamento de produtos com esta marca.
Como se viu, em sede dos vícios da sentença, não cumpre apreciar se o tribunal interpretou convenientemente (ou não) as normas jurídicas aplicáveis (muito em particular, o art. 267.º, n.º 1, al. a), do CPI), nem tão-pouco se ocorreu (ou não) erro na subsunção dos factos apurados ao direito.
De igual modo, não se vislumbra que a sentença recorrida padeça de ambiguidade ou de obscuridade, antes pelo contrário, mostra-se perfeitamente inteligível, compreendem-se, de pleno, os motivos que levaram o tribunal a quo a revogar a decisão do Instituto Nacional de Propriedade Industrial, independentemente do mérito da solução jurídica encontrada.
Em face do exposto, inexiste fundamento para que se venha a declarar a nulidade da sentença recorrida, ao abrigo do disposto na al. c) do n.º 1 do art. 615.º do CPC, seja por oposição entre a fundamentação e a decisão, seja por comportar ambiguidade ou de obscuridade que a tornem ininteligível.
Prosseguindo:
Estabelece a al. d) do n.º 1 do art. 615.º do CPC, que a sentença é nula quando “(…) o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (…)”.
Este dispositivo, respeitante aos vícios da sentença, comina com nulidade, quer a omissão de pronúncia (o tribunal não apreciou questões que devia ter conhecido), quer o excesso de pronúncia (o tribunal apreciou questões que não podia ter conhecido).
Conforme jurisprudência, que se considera unânime dos tribunais portugueses, a omissão de pronúncia abrange a falta de apreciação por parte do juiz de “questões” que devia ter conhecido, excluindo-se deste vício a falta de tomada de posição sobre simples alegações ou sobre meros argumentos.
As “questões” a resolver (art. 608.º, n.º 2, do CPC), que são delimitadas pela causa de pedir e pelo pedido formulado, não se confundem com os argumentos que são apresentados pelas partes, com vista a convencer o julgador da bondade da posição jurídica por si sustentada.
Deste modo, não é nula, por omissão de pronúncia, a sentença que aprecia as questões suscitadas pelas partes, ainda que não tome posição sobre todos os argumentos ou fundamentos que por elas são invocados.
Conforme se deixou escrito no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11-10-2022, proferido no âmbito do Proc. n.º 602/15.0T8AGH.L1-A.S1 (acessível em www.dgsi.pt): “(…) A nulidade de sentença/acórdão, por omissão de pronúncia, só ocorre quando o julgador deixe de resolver questões que tenham sido submetidas à sua apreciação pelas partes, a não ser que esse conhecimento fique prejudicado pela solução a outras questões antes apreciadas. O conceito de “questão”, deve ser aferido em função direta do pedido e da causa de pedir aduzidos pelas partes ou da matéria de exceção capaz de conduzir à inconcludência/improcedência da pretensão para a qual se visa obter tutela judicial, dele sendo excluídos os argumentos ou motivos de fundamentação jurídica esgrimidos/aduzidos pelas partes (…)”.
Acrescenta-se nesse acórdão que “(…) Na apreciação da nulidade por omissão de pronúncia, prevista no art. 615.º, n.º 1, al. d), do CPC, importa não confundir questões colocadas ao tribunal para decidir e fundamentos ou argumentação, sendo que o tribunal apenas se encontra vinculado às questões invocadas pelas partes, já não aos fundamentos/argumentações invocados (…)”.
A questão jurídica suscitada pela decisão proferida pelo Instituto Nacional de Propriedade Industrial e pelo recurso, dessa decisão, interposto pela empresa “B …, Ltda.”, prende-se com a caducidade do registo da marca nacional n.º 509282, com o sinal .
Da decisão proferida resulta, de modo incontornável, que o tribunal de primeira instância apreciou e decidiu a questão jurídica acima mencionada, na medida em que, após ter concluído pela existência de um motivo justificado para o seu não uso, decidiu revogar a decisão administrativa, que, como se viu, tinha declarado a caducidade do registo da marca nacional n.º 509282.
Independentemente da bondade da fundamentação jurídica utilizada ou de ter esgotado a apreciação de todos os argumentos oferecidos pelas partes, não subsistem quaisquer dúvidas que o tribunal de primeira instância emitiu pronúncia sobre o objecto do presente processo.
Deste modo, como se pronunciou sobre a questão jurídica que constituía o objecto do presente processo (grosso modo, a caducidade do registo da marca nacional em causa por falta de uso sério), inexiste fundamento para que se venha a declarar a nulidade da sentença, ao abrigo do disposto na al. d) do n.º 1 do art. 615.º do CPC, por omissão de pronúncia.
Em face do exposto, sem necessidade de outras considerações, improcede o recurso apresentado pela empresa recorrente “A …, SPA”, na parte em que defende que a sentença recorrida padece do vício da nulidade, nos termos do disposto no art. 615.º, n.º 1, als. c) e d), do CPC.
Caducidade do registo da marca por falta de uso sério:
A recorrente “A …, SPA” veio alegar, com particular destaque, que não existiu e que nem sequer foi alegado qualquer factor exógeno ou alheio à vontade da recorrida “B …, Ltda.” que a tenha impedido de lançar em Portugal os produtos com a marca em causa.
Acrescentou ainda, a este propósito, que o registo da marca nacional n.º 509282 foi concedido no dia 10-04-2013 e que a recorrida “B …, Ltda.” somente iniciou actos preparatórios tendentes ao uso da marca em 2021, ou seja, praticamente 9 anos após a concessão da marca, o que lhe é única e exclusivamente imputável e que não pode ser considerado como um motivo justificado do não uso da marca.
Por seu turno, a recorrida “B …, Ltda.” veio alegar, muito em síntese, que ocorreram restrições alfandegárias, de distribuição e comerciais decorrentes da pandemia de covid 19, que durante esse período enfrentou dificuldades em manter as operações comerciais normais, incluindo a exportação de produtos para outros países e que, no âmbito do justo motivo para o não uso da marca, encontram-se situações independentes da vontade do titular, como, por exemplo, as pandemias.
Acrescentou ainda que os produtos assinalados pela marca constituem cosméticos, que estão sujeitos a várias regulamentações e burocracias para a sua importação e introdução no mercado, que incluem uma combinação de requisitos legais, documentações específicas e conformidade com normas de saúde e de segurança, o que constitui justo motivo para o não uso da marca.
Apreciando e decidindo:
De acordo com o art. 208.º do CPI, a “marca” pode ser constituída por um sinal ou por um conjunto de sinais que se mostrem susceptíveis de representação gráfica (v.g. nominativa, figurativa, sonora ou mista), assim como por um sinal ou por um conjunto de sinais que, de modo claro e preciso, sejam adequados a distinguir determinados produtos ou serviços.
A “marca” é caracterizada por ser um sinal distintivo, ou seja, por ser um sinal adequado a diferenciar junto dos consumidores os produtos ou os serviços de uma determinada empresa de outros existentes no mercado.
Conforme resulta da matéria de facto provada (vide máxime factos 1.º, 2.º, 3.º e 4.º), a recorrida “B …, Ltda.” é titular da marca nacional n.º 509282, concedida por despacho de 10-04-2013 do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, publicada no Boletim da Propriedade Industrial de 15-04-2013 e que se destina a assinalar cosméticos em geral, inseridos na classe 3 da Classificação Internacional de Nice.
A empresa “A …, SPA” pretende que seja declarada a caducidade do registo da marca acima mencionada, com fundamento na falta de uso sério para os produtos que se destinava a assinalar (cosméticos em geral).
Estabelece o art. 268.º, n.º 1, do CPI, sob a epígrafe “caducidade”, que “(…) para além do que se dispõe no artigo 36.º, a caducidade do registo deve ser declarada se a marca não tiver sido objeto de uso sério durante cinco anos consecutivos para os produtos ou serviços para que foi registada, salvo justo motivo e sem prejuízo do disposto no n.º 4 e no artigo anterior (…)”.
Deste artigo resulta que, para além de outras causas de caducidade (v.g. por falta de falta de pagamento de taxas, por ter expirado o prazo de duração, por estar extinta a pessoa colectiva titular da marca ou por estar a ser utilizada de modo contrário aos seus fins), pode ser declarada a caducidade do registo de uma marca quando não tenha sido usada de modo sério, durante cinco anos consecutivos, para os produtos ou serviços para que foi registada.
O art. 268.º, n.º 1, do CPI, tem subjacente a ideia que a marca serve para ser utilizada, ou seja, que tem de servir, de modo efectivo, para assinalar no mercado os produtos ou os serviços para que foi registada.
Deste modo, pode ser declarada a caducidade do seu registo, caso não seja utilizada, com essa finalidade, durante cinco anos consecutivos, a contar da data do registo da marca, conforme decorre do n.º 5 deste artigo.
As marcas, enquanto sinais distintivos dos produtos ou de serviços que determinaram o seu registo, somente cumprem a sua função caso sejam utilizadas, de modo efectivo, pelo seu titular no âmbito do mercado.
Considera-se que a marca é usada de modo sério, de acordo com o art. 267.º do CPI, quando é utilizada tal como está registada ou quando os elementos divergentes não alterem o carácter distintivo da marca registada.
Segundo o art. 267.º, n.º 1, als. a) a c), do CPI, uma marca considera-se usada de modo sério quando, grosso modo, seja utilizada pelo seu titular ou por terceiros com o seu consentimento, mantendo-se inalterada, enquanto sinal distintivo dos produtos ou dos serviços para os quais foi registada.
Muito embora se preveja, como regra, a caducidade do registo da marca quando não tenha sido utilizada, de modo sério, durante cinco anos consecutivos, a lei admite que a caducidade fique afastada quando, por um lado, exista “justo motivo” para o não uso ou quando, por outro lado, tenha sido estabelecido ou restabelecido o seu uso sério antes de ter sido requerida a declaração de caducidade do seu registo.
A lei não define, nem estabelece critérios para delimitar o conceito indeterminado de “justo motivo”, que, não obstante, aparece associado, como decorre do texto da lei, a circunstâncias externas, que tenham impossibilitado o titular da marca de a utilizar, por motivos alheios à sua vontade, durante cinco anos consecutivos, para assinalar os produtos para que foi registada.
Deste modo, existe “justo motivo”, que exclui a caducidade do registo da marca, nos termos do n.º 1 do art. 268.º do CPI, quando o seu titular tenha estado impedido de a utilizar por motivos alheios à sua vontade.
De acordo com o disposto no n.º 5 do art. 269.º do CPI, incumbia à recorrida “B …, Ltda.”, enquanto titular, fazer prova do uso sério da marca nacional n.º 509282, para os produtos de “cosméticos em geral”, inseridos na classe 3 da Classificação Internacional de Nice.
Na realidade, dispõe este preceito, a respeito dos pedidos de declaração da caducidade, que “(…) cumpre ao titular do registo ou a seu licenciado, se o houver, provar o uso da marca, sem o que esta se presume não usada (…)”
No caso vertente, a empresa “B …, Ltda.” não logrou demonstrar que tenha utilizado, de modo sério, a marca com o n.º 509282, muito em particular para a comercialização no mercado de produtos que a marca pretendia assinalar (como se viu, “cosméticos em geral”, que estão inseridos na classe 3 da Classificação Internacional de Nice).
Da matéria de facto não resultou provado que a marca nacional n.º 509282, com o sinal , tenha sido usada no mercado, por alguma vez, para assinalar produtos de cosmética, que tenham sido comercializados ou cedidos, de alguma forma, pela empresa recorrida “B …, Ltda.”, nem tão-pouco por terceiros com o seu consentimento.
Deste modo, concorda-se com a sentença proferida pelo Tribunal da Propriedade Intelectual quando afirma, a dado momento, que “(…) nenhum dos actos materiais praticados desde o registo da marca (2013) até ao pedido de caducidade (2022), enquadra uma venda efectiva de produtos sob a marca “Davene” em território nacional (…)” e que “(…) a existência de actos meramente preparatórios não permite concluir pela verificação do uso sério da marca, na medida em que só o uso efectivo desta no mercado e não apenas no seio da empresa interessada permitirá qualificar o uso como sério (…)”.
Apenas resultou apurado que, sobretudo em meados de 2021, a recorrida “B …, Ltda.” concretizou diligências com vista à introdução do mercado de produtos de cosmética da marca “Davene”, que se traduziram, essencialmente, na importação, por via aérea, de mercadorias no valor de € 1 566 e na notificação para o efeito dos serviços da União Europeia (vide máxime art. 11.º dos factos provados).
Todavia, essas diligências não consubstanciam um uso sério da marca para assinalar esses produtos de cosmética no mercado, antes traduzem actos preparatórios ou prévios à sua comercialização por parte da “B …, Ltda.” ou por terceiros com o seu consentimento.
Isto significa que não resultou provado que a titular da marca registada a tenha utilizado no mercado para assinalar cosméticos, muito menos que o tenha feito de forma contínua ou ininterrupta, durante algum período de tempo, desde o registo até à data de apresentação do pedido de caducidade.
Ainda que se suscitassem dúvidas, o tribunal deve presumir, de acordo com a parte final do n.º 5 do art. 269.º CPI, o não uso (sério) da marca, quando o titular não o consiga demonstrar de forma cabal e inequívoca.
Não tendo sido feita prova do uso sério da marca, importa, de seguida, verificar se os motivos apresentados pela empresa titular podem justificar a sua não utilização no mercado desde a data da sua concessão em 2013.
A este propósito, empresa “B …, Ltda.” apresenta como motivos para o não uso da marca nacional n.º 509282, por um lado, a situação pandémica verificada em 2020 e 2021, e, por outro lado, a burocracia regulatória relativa à comercialização dos produtos cosméticos.
Da sentença recorrida não resulta que a situação pandémica tenha impedido ou impossibilitado a empresa titular de fazer uso da marca para a comercialização dos produtos de cosmética para que foi registada.
Ainda que os factos apurados sejam pouco esclarecedores a este propósito, não se mostra possível estabelecer uma relação de causalidade entre a pandemia e o não uso sério da marca, por forma a que se consiga afirmar que foi aquela circunstância a provocar este resultado.
Antes do periódico pandémico, durante longos meses, a marca nunca foi utilizada no mercado para assinalar produtos de cosmética, sem que surja qualquer explicação para o sucedido, apenas resultando da matéria de facto apurada, sem mais, os actos relativos ao registo da marca no decurso de 2013 (vide máxime arts. 1.º, 2.º, 3.º e 4.º dos factos provados).
Acresce que, somente mais tarde, mais propriamente no dia 03-08-2021, a União Europeia foi notificada, em conformidade com o Regulamento n.º 1223/2009, de 30-09, com vista à sua introdução no mercado dos mencionados produtos de cosmética (vide art. 11.º dos factos provados).
Como estes produtos de cosmética não tinham ainda sido notificados à União Europeia, com vista à sua introdução no mercado, não se consegue afirmar, conforme alega a recorrida “B …, Ltda.”, que o não uso da marca possa ter sido causado por “restrições alfandegárias, de distribuição e comerciais, decorrentes da pandemia de covid 19” ou por “dificuldades em manter as operações comerciais normais”.
Como antes da pandemia, essas restrições nunca existiram, surge sem qualquer explicação a não utilização da marca no mercado em momento anterior a 2020 ou a 2021, ou seja, permanecem desconhecidos os motivos pelos quais a empresa titular não fez, então, um uso sério da marca.
Mesmo que essas restrições se tenham verificado devido à situação pandémica, a empresa recorrida “B …, Ltda.” nunca poderia fazer uso da marca em causa para comercializar os aludidos produtos de cosmética, na medida em que não tinha ainda, nessa altura, procedido à sua notificação junto dos competentes organismos da União Europeia.
Deste modo, não se consegue afirmar que a situação pandémica tenha constituído “justo motivo” para a não utilização da marca, ou seja, que tenham sido esses motivos de saúde pública que tenham impedido a empresa titular de fazer uso no mercado da marca que tinha registado uns anos antes.
Antes da pandemia, por motivos que se desconhecem, a marca não foi utilizada para assinalar produtos de cosmética, nem tão-pouco a União Europeia tinha sido notificada para que esses artigos viessem a ser introduzidos no mercado, o que apenas veio a suceder no dia 03-08-2021.
Deste modo, conforme se escreveu na decisão do Instituto Nacional da Propriedade Industrial, “(…) sempre seria expectável que satisfizesse a exigência de prova do uso desde o início do período pertinente - 17-06-2017 – até ao início desse evento (…)”, ou seja, da situação pandémica.
O reconhecimento de “justo motivo” para o não uso sério da marca pressupõe que o seu titular tenha estado impedido de a utilizar por motivos alheios à sua vontade, ou seja, que tenham ocorrido circunstâncias alheias ou externas, que não lhe possam ser imputadas, a impossibilitar o seu uso sério.
A empresa recorrida “B …, Ltda.” veio também invocar como motivo justificativo para o não uso sério da marca em causa a burocracia regulatória relativa à comercialização dos produtos de cosmética, pelo que, apenas em 2021, foi possível enviar os primeiros produtos para análise com vista à obtenção das licenças regulatórias de importação.
Nesta perspectiva, importará averiguar se a marca não foi utilizada, de modo sério, no mercado, para assinalar produtos de cosmética, devido às exigências que a empresa titular teve de cumprir, muito em particular relacionadas com o cumprimento do Regulamento n.º 1223/2009, o que implicou a notificação dos serviços da União Europeia no dia 03-08-2021.
Como se disse, muito embora os factos não se mostrem completamente esclarecedores, são representativos de falta de empenho ou de diligência por parte da recorrida “B …, Ltda.”, que, aparentemente, assumiu um comportamento omissivo durante diversos anos, ainda antes do início da situação pandémica, nada tendo feito, de acordo com os factos provados, com vista à introdução no mercado dos produtos de cosmética.
Apurou-se que a marca ficou registado em 2013 e que, até meados de 2021, nada, de concreto, se terá feito, na medida em que somente, nessa altura, a “B …, Ltda.” concretizou algumas diligências com vista à introdução do mercado de produtos de cosmética da marca “Davene”, que se traduziram, essencialmente, na importação de mercadorias no valor de € 1 566 e na notificação da União Europeia no dia 03-08-2021.
Até essa altura, singelamente, iniciou um processo de consultadoria com a empresa “C …, Lda.” (art. 12.º dos factos provados), nada tendo sido alegado e demonstrado, relativo aos anos de 2017, 2018, 2019 e até 2020 (se não durante, pelo menos, até ao início da pandemia), que tenha impedido ou dificultado extraordinariamente a empresa “B …, Ltda.” de cumprir as exigências burocráticas e de fazer um uso sério da marca em causa no mercado.
Não se encontra provado que tenham sido as exigências regulatórias (por exemplo, um processo especialmente complexo, exigente ou demorado) ou qualquer outra circunstância exógena e alheia à sua vontade, que tenha impedido a empresa “B …, Ltda.” de começar a utilizar a marca registada no mercado para assinalar produtos de cosmética, tanto mais que nenhuma explicação é oferecida para a falta do seu uso sério e para não ter cumprido as exigências regulatórias durante diversos anos.
Deste modo, não se consegue afirmar que tenham sido acontecimentos exógenos e alheios à vontade da titular (seja a pandemia, seja a burocracia regulatória) a impedir o uso sério da marca durante cinco anos ininterruptos, que esteja demonstrado um “justo motivo” para a sua não utilização por parte da empresa “B …, Ltda.”, que dos factos apurados resulte que tenham sido as exigências regulatórias ou a pandemia a impedir ou a dificultar extraordinariamente a utilização no mercado na marca.
Ainda que essas circunstâncias possam ser apontadas, em termos gerais, como motivos justificativos para o não uso sério de uma marca, não podem ser olvidadas as particularidades deste caso, muito em particular a aparente falta de diligência ou de empenho, durante anos, por parte da empresa titular “B …, Ltda.”, que, conhecendo as exigências resultantes do Regulamento n.º 1223/2009 e por motivos que permanecem desconhecidos, somente notificou os serviços da União Europeia no dia 03-08-2021, ou seja, após estar ultrapassada a crise pandémica, com vista a proceder à introdução no mercado dos produtos de cosmética.
Do quadro factual traçado pelo tribunal de primeira instância não resulta que a marca não tenha sido usada, de modo sério, durante cinco anos consecutivos, devido à situação pandémica ou devido às exigências regulatórias decorrentes do mencionado Regulamento n.º 1223/2009.
Tudo aponta no sentido que a não utilização da marca se ficou a dever ao comportamento pouco diligente e empenhado da “B …, Ltda.”, que fez tardar, para meados de 2021, as diligências necessárias à introdução no mercado dos produtos de cosmética, ao mesmo tempo em que nada se apurou, de relevante, relativamente ao período anterior.
Acresce que também nada se provou sobre o tempo de resposta da União Europeia à notificação de 03-08-2021, ou seja, se a recorrida “B …, Ltda.” poderia (ou não) ter passado a comercializar estes produtos até à data da apresentação do pedido de declaração de caducidade do registo da marca, apenas se sabendo, daquilo que se mostra alegado na resposta ao recurso, que os “processos burocráticos foram concluídos”.
Em face do exposto, entende-se que não se encontra comprovada, de acordo com a matéria de facto fixada pelo tribunal a quo, a existência de um “justo motivo” que tenha impedido a recorrida “B …, Ltda.”, por desígnios alheios à sua vontade e que não lhe sejam imputáveis, de fazer um uso sério da marca em causa durante cinco anos consecutivos.
Por conseguinte, concorda-se com a empresa “A …, SPA” quando alega, no recurso interposto, que não existiu “(…) qualquer fator exógeno ou alheio à vontade da Apelada que a impedisse de lançar em Portugal os produtos com a marca em crise em data anterior à apresentação do pedido de caducidade em 2022 (…)”e que“(…)apenas fatores alheios ou para além da vontade do titular da marca poderia eventualmente constituir causa justificada do não uso da marca (…)”.
A recorrida “B …, Ltda.” veio também invocar o art. 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, de 13-03, para defender que o período da pandemia Covid 19 interrompeu ou suspendeu a contagem do prazo de caducidade de cinco anos consecutivos, que ainda não tinha sido ultrapassado quando a recorrente “A …, SPA” apresentou o pedido de caducidade.
Acrescentou que essas medidas permaneceram com plena vigência até ao dia 06-04-2021, data em que foram extintas pela Lei n.º 13-B/2021, de 05-04, pelo que o prazo de suspensão perdurou durante 1 ano e 18 dias.
Estabelecia o art. 7.º, n.ºs 3 e 4, da Lei n.º 1-A/2020, sob a epígrafe “prazos e diligências”, que “(…) a situação excecional constitui igualmente causa de suspensão dos prazos de prescrição e de caducidade relativos a todos os tipos de processos e procedimentos (…)” e que “(…) o disposto no número anterior prevalece sobre quaisquer regimes que estabeleçam prazos máximos imperativos de prescrição ou caducidade, sendo os mesmos alargados pelo período de tempo em que vigorar a situação excecional (…)”.
Esta secção do Tribunal da Relação de Lisboa entendeu que o prazo de interposição do recurso judicial, previsto pelos arts. 38.º e 41.º do CPI, se suspendeu, por força do disposto no art. 6.º-B, n.ºs 3 e 4, da Lei 1-A/2020, na redacção introduzida pela Lei n.º 4-B/2021, de 01-02 (medidas excepcionais de resposta à situação epidemiológica provocada pelo coronavírus) – vide acórdão de 12-04-2023, proferido no Proc. n.º 203/21.4YHLSB.L2.
Também o acórdão desta secção de 07-04-2022, proferido no âmbito do Proc. n.º 265/21.4YHLSB.L1, entendeu que o prazo previsto no art. 41.º do CPI é um prazo relativo à instauração de um processo judicial e que, portanto, estava coberto pela previsão do art. 6.º-B, n.ºs 3 e 4, da Lei 1-A/2020, de 13-03, com a redacção introduzida pela Lei 4-B/2021, de 01-02.
Todavia, in casu, durante o período de vigência do mencionado dispositivo legal, não estava a decorrer qualquer prazo relativo a “processos e procedimentos”, pendente ou que estivesse prestes a ser instaurado.
Como se viu, a recorrente “A …, SPA” somente veio a apresentar, mais tarde (mais propriamente no dia 17-06-2022), o pedido de declaração de caducidade do registo da marca nacional n.º 509282, quando, inclusive, a redacção desta norma já tinha sido revogada, conforme, aliás, reconhece a empresa recorrida “B …, Ltda.”.
Nessa altura, encontrava-se a decorrer o prazo de caducidade do direito, para que a empresa titular viesse a iniciar o uso sério da marca que tinha registado, que, todavia, não respeitava a quaisquer “processos e procedimentos”, justificativo da sua suspensão ou da sua interrupção, por força das medidas excepcionais de resposta à situação pandémica.
Desta feita, não se descortina fundamento para que viesse a ser declarado suspenso ou interrompido o prazo de caducidade previsto pelo art. 268.º, n.º 1, do CPI, que, à data da vigência da citada redacção do art. 7.º da Lei n.º 1-A/2020, não respeita a qualquer processo ou procedimento.
Por último:
A “B …, Ltda.” veio ainda alegar, como “facto novo”, que os “processos burocráticos foram concluídos” e que, neste momento, os produtos estão em comercialização no mercado português.
Mesmo admitindo a veracidade daquilo que se mostra alegado no sentido que os produtos se encontram, neste momento, a ser comercializados no mercado português, após a conclusão dos correspondentes processos burocráticos, estas circunstâncias afiguram-se anódinas para efeitos de apreciação do pedido apresentado pela recorrente “A …, SPA”, na medida em que, conforme resulta do disposto no n.º 4 do art. 268.º do CPI, o registo somente não caducará quando o uso sério da marca se tiver iniciado ou reiniciado antes de ter sido requerida a declaração de caducidade.
Isto significa que para a apreciação deste pedido importará atender ao uso sério da marca, antes de ter sido requerida a declaração de caducidade, sendo irrelevantes, para o efeito, todas as circunstâncias supervenientes.
Em face do exposto, este Tribunal da Relação de Lisboa considera que deverá ser revogada a sentença proferida pelo Tribunal de Propriedade Intelectual – Juiz 3 e que deverá ser julgado procedente o recurso apresentado pela empresa “A …, SPA” e, por consequência, confirmado o despacho do “Instituto Nacional de Propriedade Industrial”, que declarou a caducidade da marca nacional n.º 509282.
III – DECISÃO:
Em face do exposto, acordam os juízes que integram a secção da propriedade intelectual, concorrência, regulação e supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa em revogar a sentença de dia 11-04-2024 do Tribunal de Propriedade Intelectual – Juiz 3 e, em consequência, confirmar o despacho do “Instituto Nacional de Propriedade Industrial”, que declarou a caducidade da marca nacional n.º 509282, com o sinal , para os produtos ou serviços inseridos na classe 3 da Classificação Internacional de Nice.
Custas a cargo da recorrida “B …, Ltda.”.
Lisboa, 09 de Abril de 2025
Paulo Registo
Carlos M.G. de Melo Marinho
Armando Cordeiro