Não obsta ao efeito da “dupla conforme” previsto no art.º 671.º n.º 3 do CPC, como obstáculo à revista proposta pela executada, a circunstância de o tribunal da Relação, na apreciação do recurso de apelação, em que se questionava a decisão recorrida quanto ao julgamento de não ocorrência de prescrição do crédito reclamado contra a executada/recorrente (contribuições devidas à Segurança Social), ter invocado argumentos coadjuvantes da fundamentação da não prescrição (para além da ocorrência de factos interruptivos da prescrição, consubstanciados na instauração de execuções e de notificações para pagamento, invocados pela 1.ª instância, a executada havia reconhecido o crédito, tendo apresentado e aceitado propostas de pagamento em prestações) e, face ao regime considerado aplicável por ambas as instâncias, ter ajuizado que a contribuição mais antiga se encontrava prescrita, nessa parte julgando a apelação parcialmente procedente.
Reclamação (art.º 643.º do CPC)
Acordam, em conferência, os Juízes no Supremo Tribunal de Justiça
I. RELATÓRIO
1. Por apenso à execução que corre termos sob o n.º 1315/18.7T8PBL e em que é executada AA, foi apresentada reclamação de créditos pelo Instituto de Segurança Social IP –referente a contribuições vencidas e não pagas e juros de mora, no valor total de € 34 162,31.
2. A executada impugnou a reclamação de créditos, sustentando, em síntese, que a reclamação era legalmente inadmissível e, em todo o caso, as contribuições anteriores a 19 de setembro de 2018 encontravam-se prescritas.
3. O credor reclamante respondeu à matéria de exceção invocada, defendendo a sua inexistência.
4. Seguiram os autos os seus termos, tendo sido proferida sentença na qual foi proferido o seguinte dispositivo:
“Com os fundamentos de facto e de direito expostos:
a. Julgar improcedente a exceção de prescrição;
b. Julgar reconhecido o crédito reclamado, nos termos que constam da fundamentação de facto;
c. Graduação
i. Pelo produto da fração autónoma designada pela letra E composta de segundo andar direito, tipo T Três e arrecadação no sótão, a segunda a contar do vão da escada para a direita do prédio urbano sito em Rua..., freguesia e concelho de ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º ...97.º e descrito na competente Conservatória do Registo Predial de ... sob a ficha ...25/19871012-E:
1º lugar: o crédito do Exequente, no que tange a capital e juros desde o incumprimento até três anos, incluindo sobretaxa e despesas;
2.º lugar: havendo remanescente do pagamento referido em 1º lugar, o crédito do credor Reclamante;
3.º lugar: havendo remanescente do pagamento referido em 2º lugar, o remanescente do crédito do exequente;
A imputação do produto da venda terá de seguir a regra prevista no artigo 785.º, n.º 1 do Código Civil, sem prejuízo do n.º 2 do mesmo normativo.
As custas da execução, seus apensos e respetiva ação declarativa saem precípuas do produto dos bens penhorados – artigo 541º do Código Processo Civil.
Custas pelos Reclamado, sendo a taxa de justiça de acordo com a tabela II anexa e 7º, nº 4 do Regulamento das Custas Processuais.
Valor da causa: o já fixado”.
5. A reclamada/executada apelou da aludida sentença, tendo, em 24.9.2024, a Relação de Coimbra proferido acórdão com o seguinte dispositivo:
“Termos em que se acorda julgar o recurso procedente apenas no atinente à prestação de novembro de 2006, declarando-se que em relação à mesma já decorreu o prazo de caducidade, com a legal consequência; no mais se mantendo a sentença.
Custas na proporção da presente sucumbência”.
6. A reclamada/executada interpôs revista ordinária e, subsidiariamente, revista excecional, do dito acórdão, rematando com as seguintes conclusões:
“I. Mediante o presente recurso pretende a recorrente impugnar a douta decisão proferida pelo Tribunal da Relação que julgou parcialmente procedente a apelação, com invocação de fundamento jurídico diferente do manuseado pela sentença.
II. Sendo substancialmente diferente o percurso ou o raciocínio jurídico da decisão da Relação e o da 1.ª instância, estaremos perante fundamentação essencialmente diferente, para efeitos do disposto no artigo 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
III. A desconformidade entre a decisão proferida pelo Tribunal de 2.ª instância e a do Tribunal de 1.ª instância, decorrente da alteração, ainda que parcial da mesma, obsta ao funcionamento da limitação recursória resultante da chamada dupla conforme.
IV. Caso se entenda que a desconformidade entre as decisões não obsta ao funcionamento da limitação recursória decorrente da dupla conforme, sempre será admissível a revista excecional, requerida a título subsidiário, justificada pela necessidade de tutelar interesses de ordem social e jurídica, ligados à melhor aplicação do direito, à segurança e estabilidade na interpretação normativa.
V. A relação contributiva tem uma natureza tributária, pois estabelece-se entre, de um lado, pessoas singulares e coletivas (os contribuintes) e, do outro, a administração tributária, pois o Instituto da Segurança Social, I.P. é uma entidade pública.
VI. A Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, que definiu as bases gerais em que assenta o sistema da Segurança Social, estabelece no artigo 60.º o prazo de prescrição de 5 (cinco) anos.
VII. O Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16 de setembro, manteve quer o prazo quer as causas interruptivas da prescrição no seu artigo 187.º.
VIII. Como estabelecem os n.os 3 e 4 do artigo 60.º da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, o prazo de prescrição conta-se a partir da data em que aquela contribuição devia ter sido cumprida, e interrompe-se pela realização de qualquer diligência administrativa, realizada com conhecimento do responsável pelo pagamento, conducente à liquidação ou cobrança da dívida.
IX. Para esse efeito, “diligências administrativas” serão todas as que ocorram nos processos administrativos de liquidação e nos processos de execução fiscal, conducentes à liquidação e cobrança da dívida, de que venha a ser dado conhecimento ao devedor.
X. No que não está especialmente regulado quanto ao prazo de prescrição serão de aplicar as regras dos artigos 48.º e 49.º da Lei Geral Tributária.
XI. O prazo de prescrição conta-se a partir da data em que o facto tributário ocorreu, ou seja, a partir da data em que a obrigação deveria ter sido cumprida, que no caso de contribuições para a Segurança Social é o dia 15 do mês seguinte a que respeita (artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 199/99, de 8 de junho).
XII. A interrupção tem lugar uma única vez, com o facto que se verificar em primeiro lugar (artigo 49.º, n.º 3, da Lei Geral Tributária).
XIII. Os efeitos de uma causa interruptiva são instantâneos e determinam a abertura de um novo prazo de prescrição.
XIV. Esta é a solução constitucionalmente mais adequada e a única que acautela as razões de certeza, segurança e paz jurídica em que radica a prescrição das obrigações tributárias.
XV. Quando o Instituto da Segurança Social, I.P., notificou a recorrente em 29 de dezembro 2011 da existência da dívida, de 9.835,49 €uros, referente às contribuições de novembro de 2006 a novembro de 2011, (já) estava prescrita a contribuição de novembro de 2006, cuja obrigação deveria ter sido cumprida no dia 15 do mês seguinte.
XVI. E quando foi citada em: 26 de novembro de 2015, para pagamento das contribuições dos meses de novembro de 2014 a fevereiro de 2015; 16 de janeiro de 2017, para pagamento das contribuições dos meses de março de 2015 a julho de 2017; e 29 de novembro de 2018, para pagamento das contribuições dos meses de agosto de 2017 a junho de 2018 – não estavam (ainda) prescritas tais dívidas.
XVII. Considerando, no entanto, que nos termos previstos no artigo 49.º, n.º 3, da Lei Geral Tributária, a interrupção tem lugar uma única vez, com o facto que se verificar em primeiro lugar e que os factos interruptivos da prescrição (neste caso, a notificação da dívida e a citação) já ocorreram, as citações realizadas não são suscetíveis de desencadear uma nova interrupção do prazo de prescrição.
XVIII. Tendo-se iniciado um novo prazo de prescrição, em 19 de setembro de 2023 (já) estavam prescritas as dívidas exequendas referentes aos meses de outubro de 2007 a outubro de 2012; de janeiro de 2013 a junho de 2015; de setembro de 2015 a julho de 2016; e de dezembro de 2016 a agosto de 2018.
XIX. O Acórdão recorrido fez uma errada interpretação da lei, descurando os diversos fatores hermenêuticos dos quais deve lançar mão o intérprete para desvendar o verdadeiro sentido e alcance dos textos legais, violando, entre mais, o artigo 49.º, n.º 3, da Lei Geral Tributária.
Termos em que, e no mais de Direito que Vossas Excelências, Venerandos Juízes Conselheiros, doutamente suprirão, deve o presente recurso ser admitido e, julgada a questão controvertida no sentido propugnado pela recorrente, revogando o Acórdão recorrido e substituído por outro que reconheça a prescrição das contribuições em dívida anteriores a setembro de 2018, com as legais consequências.
Assim se espera, confiadamente, na certeza de que Vossas Excelências, Venerandos Juízes Conselheiros, farão a costumada Justiça”.
7. Não se evidencia nos autos que tenha havido resposta à revista.
8. Por despacho de 11.12.2024 (do Exm.º relator na Relação) a revista ordinária não foi recebida, nos seguintes termos, que se transcrevem:
“Recurso da reclamada.
O recurso não pode ser interposto e admitido como revista «normal», pois que, como já expectável pela recorrente, a tal impede o disposto no artº 671º nº3 do CPC.
Efetivamente, existiu, na parte confirmada, dupla conforme, pois que o acórdão foi proferido por unanimidade e, ademais, nele inexiste fundamentação essencialmente diferente da aduzida em 1ª instância.
Na verdade, apenas existe fundamentação essencialmente diferente quando no acórdão da Relação se adotou :
«…solução jurídica …inovatória…ancorada em preceitos, interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros que fundamentaram a sentença, sendo irrelevantes discordâncias que não encerrem um enquadramento jurídico alternativo» - Ac. STJ de 29.09.2022, p. 19864/15.7T8LSB.L1-A.S1, in dgsi.pt.
Sendo que:
«O aditamento de um fundamento jurídico que não tenha sido considerado ou o reforço da decisão recorrida através do recurso a outros argumentos, sem pôr em causa a fundamentação usada pelo tribunal de l.a instância, não descaracterizam a dupla conforme.» - Ac. STJ de 07.07.2022, p. 2672/12.4TBPDLL1 -A.S1.
Ou, numa outa nuance ou perspetiva:
«Não existe diversidade essencial da fundamentação quando a Relação mesmo quando os fundamentos de direito mudam em relação à 1.ª instância mas, apesar disso, tal não apresenta consequências necessárias nos efeitos qualitativos ou quantitativos da parte dispositiva uma vez que a desconformidade de fundamentos não muda a qualidade ou extensão do efeito material da decisão, não apresentando centralidade na construção do silogismo judicial conducente ao resultado decisório» - Ac. STJ de 15.06.2023, p. 2444/20.2T8STB.E1.S1.
No caso vertente o aludido no 1º aresto não aconteceu, e o mencionado no 2º, verificou-se.
Por um lado, este tribunal ad quem limitou-se a desatender o argumento fulcral da recorrente – ponto I do sumário.
Por banda outra, confirmou o argumento da sentença recorrida que considerou interrompida a prescrição por virtude, como nela se expendeu, das «diligências administrativas consideradas provadas e que são do conhecimento da Reclamada que interveio, ativamente, nos processos de execução fiscal onde as mesmas (diligências administrativas) tiveram lugar – tudo, cfr. pontos h) a r) da fundamentação de facto –» ; tudo como dimana dos pontos II e III do sumário.
Pelo exposto:
Não admito tal revista.
9. A recorrente reclamou deste despacho, ao abrigo do disposto no art.º 643.º do CPC, tendo formulado as seguintes conclusões:
“I. Por Despacho do Relator da Relação, o recurso de revista normal foi rejeitado, não obstante estarem verificados os pressupostos gerais de admissibilidade, com fundamento na existência da figura de dupla conforme que se encontra plasmada no n.º 3 do artigo 671.º do Código de Processo Civil.
II. Na presente ação a ora reclamante impugnou a reclamação de créditos, sustentando que, em síntese, esta seria legalmente inadmissível e que, em todo o caso, as contribuições anteriores a 19 de setembro de 2018 encontravam-se prescritas.
III. O Tribunal de 1.ª instância entendeu que os créditos reclamados pelo Instituto da Segurança Social não estavam prescritos, atendendo à interrupção da prescrição desencadeada pelas diligências administrativas efetuadas nos processos de execução fiscal onde as mesmas tiveram lugar, sendo que, para este efeito, convocou a aplicação do artigo 60.º, n.os 3 e 4, da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro.
IV. Por seu turno, a fundamentação do Tribunal de 2.ª instância incide sobre a (in)aplicabilidade do artigo 49.º, da Lei Geral Tributária, a título subsidiário. Para tal afirma que, no caso concreto, não se verifica a existência de qualquer lacuna na Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, devendo entender-se que, a falta de previsão legal de preceito idêntico ao artigo 49.º, da LGT, decorre da vontade do legislador.
V. Acrescenta que, caso assim não se entendesse, a integração da lacuna por analogia não seria exequível, visto que, do confronto entre a Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro e o Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de dezembro, se extraí que «as suas dissemelhanças relevantes ultrapassam as semelhanças que nelas possam existir.»
VI. Salienta ainda que, face à aceitação do artigo 49.º, n.º 3, da LGT pela reclamante, esta também teria de aceitar que, perante a taxatividade fixada na matéria da prescrição prevista nos artigos 48.º e 49.º, da LGT, «tal não obsta a que não se possa recorrer à lei civil quando a lei tributária é insuficiente.», para o qual convoca, assim, os artigos 325.º, n.º 1, 326.º, n.º 1, e 327.º, n.º 1, todos do Código Civil.
VII. A solução jurídica do pleito prevalecente na Relação assentou, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas perfeitamente diversas e autónomas do que havia justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, o acórdão se estribou decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1.ª instância.
VIII. Sendo substancialmente diferente o percurso ou o raciocínio jurídico da Relação e o da 1.ª instância, estaremos perante fundamentação essencialmente diferente, para efeitos do disposto artigo 671.º, n.º 3, do Código de Processo Civil.
IX. A desconformidade entre as decisões, circunscritas à matéria de direito, obsta ao funcionamento da limitação recursória decorrente da chamada dupla conforme, razão pela qual foi interposto recurso de revista regra, a título principal.
X. Como argumento adicional, refira-se que inexiste identidade integral ou absoluta, qualitativa e quantitativa, das duas decisões.
XI. Do cotejo da decisão de 1.ª instância e do deliberado pela Relação verifica-se que não ocorreu confirmação irrestrita por esta, do julgado por aquela.
XII. O Tribunal de 2.ª instância julgou parcialmente procedente o recurso e, em consequência, julgou prescrita a prestação de novembro de 2006.
XIII. Não tendo a Relação confirmado, tal qual, o julgado pela 1.ª instância, antes o alterando/ revogando, inexiste a dupla conformidade.
XIV. Pelo que, o Senhor Juiz Desembargador Relator devia ter admitido o recurso como revista – regra.
XV. O Despacho recorrido violou desta forma o dispositivo legal previsto no artigo 671.º, n.os 1 e 3, do Código de Processo Civil.
Atento o supra exposto se vem requerer a Vossa Excelência, Venerando Conselheiro, se digne receber a presente reclamação, fazendo recair sobre a matéria de que esta versa Decisão que admita o recurso de revista normal interposto a título principal.
Assim se fazendo a habitual, inteira e sã Justiça”.
10. Não houve resposta à reclamação.
11. Neste STJ, por despacho do relator datado de 24.02.2025, a reclamação foi julgada improcedente.
12. Deste despacho reclamou a reclamante, para a conferência, tendo rematado com as seguintes conclusões:
“I. Por Decisão Singular do Venerando Conselheiro Relator, foi decidido que o caso em apreço encerra uma situação de dupla conforme.
II. A interpretação seguida não apresenta correspondência com o espírito da lei nem tão pouco com a letra da lei, porquanto a fundamentação da Relação é radicalmente diversa à da 1.ª instância. Mais: é bom de ver que a decisão do Tribunal de 2.ª instância não confirma a primeira.
III. O Tribunal de 1.ª instância entendeu que os créditos reclamados pelo Instituto da Segurança Social não estavam prescritos, atendendo à interrupção da prescrição desencadeada pelas diligências administrativas efetuadas nos processos de execução fiscal onde as mesmas tiveram lugar, sendo que, para este efeito, convocou a aplicação do artigo 60.º, n.os 3 e 4, da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro.
IV. Por seu turno, a fundamentação do Tribunal da Relação incide sobre a (in)aplicabilidade do artigo 49.º, da Lei Geral Tributária, a título subsidiário. Para tal afirma que, no caso concreto, não se verifica a existência de qualquer lacuna na Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, devendo entender-se que, a falta de previsão legal de preceito idêntico ao artigo 49.º, da Lei Geral Tributária, decorre da vontade do legislador.
V. Acrescenta que, a integração da lacuna por analogia não seria exequível, visto que, do confronto entre a Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro e o Decreto-Lei n.º 398/98, de 17 de dezembro, se extraí que «as suas dissemelhanças relevantes ultrapassam as semelhanças que nelas possam existir.»
VI. Salienta também que, face à aceitação do artigo 49.º, n.º 3, da Lei Geral Tributária pela reclamante, esta também teria de aceitar que, perante a taxatividade fixada na matéria da prescrição prevista nos artigos 48.º e 49.º, da Lei Geral Tributária, «tal não obsta a que não se possa recorrer à lei civil quando a lei tributária é insuficiente», para o qual convoca, assim, os artigos 325.º, n.º 1, 326.º, n.º 1, e 327.º, n.º 1, do Código Civil.
VII. Sabendo que, o sumário do Acórdão do Tribunal da Relação consubstancia uma síntese do que fundamentalmente foi apreciado, e que o mesmo acomoda a menção dos artigos 325.º e 327.º, n.º 1, do Código Civil, tal convocação demonstra, por si só, a imprescindibilidade da referida fundamentação, enquanto linha de apoio na qual o Tribunal se alicerçou a fim de proferir o dito acórdão.
VIII. Pelo que, a presente enunciação configura uma fundamentação essencial e primordial.
IX. Posto isto, a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação assentou assim, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas perfeitamente diversas e autónomas do que havia justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, o acórdão se estribou decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico diverso e diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1.ª instância.
X. Sendo substancialmente diferente o percurso ou o raciocínio jurídico da decisão da Relação e o da 1.ª instância, estaremos perante fundamentação essencialmente diferente, para efeitos do disposto no artigo 671.º, n.º 3, não se verificando assim o requisito objetivo exigido para a existência de dupla conforme – conformidade essencial de fundamentação.
XI. Também falta, a nosso ver, o requisito objetivo da conformidade decisória. Parece-nos que confirmar é dizer que a decisão da 1.ª instância está correta, é dizer que está bem tal e qual como está; não é dizer que está correta em parte, que está aqui, mas não está ali…
XII. Confirmar a decisão é confirmar a parte decisória da sentença na sua totalidade, independentemente do fundamento, o que in casu não se verifica.
XIII. Outrossim, não parece serem de incluir na delimitação do âmbito da conformidade considerações de benefício para a reclamante. Não é por causa da decisão da Relação se revelar mais favorável a esta, importando uma procedência parcial do recurso, que impede a revista; é sim porque a decisão ficou a mesma. Não é a posição da reclamante que conta; é o sentido da decisão.
XIV. Por isso, o Senhor Juiz Conselheiro Relator devia ter feito apelo à letra e espírito do n.º 3 do artigo 671.º, cuja aplicação tornaria incontroversa a admissibilidade do recurso de revista normal, face à inexistência de dupla conforme e cumpridos que estão os demais pressupostos recursórios.
Atento o supra exposto se vem requerer a Vossas Excelências, Venerandos Conselheiros, se dignem receber a presente impugnação da Decisão Singular, fazendo recair sobre a matéria de que esta versa o competente Acórdão em que se admita o recurso de revista normal, interposto a título principal, julgando-o procedente como se pede. Assim se fazendo a habitual, inteira e sã Justiça”.
13. Não houve resposta à reclamação.
14. Dispensados os vistos, cumpre apreciar a reclamação, em conferência.
II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Cabe ao Supremo Tribunal de Justiça, no âmbito da reclamação para a conferência deduzida nos termos dos artigos 643.º n.º 4, parte final, e 652.º, n.º 3, do CPC, avaliar se deve ou não ser mantida a decisão do relator que confirmou o despacho da Relação que rejeitou a revista ordinária deduzida pela reclamante/recorrente.
Na análise dessa questão reiterar-se-á o aduzido na decisão singular pelo relator, que não merece a discordância deste coletivo.
A decisão reclamada arredou a recorribilidade do acórdão proferido pela Relação com base na dupla conforme, obstáculo ao recurso que considerou verificar-se.
É nesta perspetiva que iremos averiguar do bem fundado do indeferimento do recurso.
Recorde-se, também, que em sede da reclamação prevista no art.º 643.º não cabe apreciar o mérito do recurso.
2. O factualismo relevante a levar em consideração é o supra exposto no Relatório (I).
3. O Direito
Dúvidas não existem quanto à admissibilidade geral da revista, quanto ao seu objeto, valor e sucumbência (artigos 671.º n.º 1 e 629.º n.º 1 do CPC).
É sabido, porém, que o n.º 3 do art.º 671.º do CPC consagra o obstáculo à revista comummente designado de “dupla conforme”:
“Sem prejuízo dos casos em que o recurso é sempre admissível, não é admitida revista do acórdão da Relação que confirme, sem voto de vencido e sem fundamentação essencialmente diferente, a decisão proferida na 1.ª instância, salvo nos casos previstos no artigo seguinte”.
A jurisprudência do STJ tem densificado o conceito da dupla conforme no sentido de que apenas inexiste dupla conforme quando se esteja perante “uma fundamentação essencialmente diferente quando a solução jurídica do pleito prevalecente na Relação tenha assentado, de modo radicalmente ou profundamente inovatório, em normas, interpretações normativas ou institutos jurídicos perfeitamente diversos e autónomos dos que haviam justificado e fundamentado a decisão proferida na sentença apelada – ou seja, quando tal acórdão se estribe decisivamente no inovatório apelo a um enquadramento jurídico perfeitamente diverso e radicalmente diferenciado daquele em que assentara a sentença proferida em 1ª instância” (acórdão do STJ de 19.02.2015, processo n.º 302913/11.6YIPRT.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt,– sublinhados nossos).
Isto significa que a verificação de fundamentação essencialmente diferente, “não se basta com qualquer modificação ou alteração da fundamentação, sendo antes indispensável que o âmago fundamental do enquadramento jurídico seguido pela Relação seja completamente diverso daquele que foi seguido pela 1.ª instância.” Ou seja, só deixa de existir dupla conforme “quando a solução jurídica prevalecente na Relação seja inovatória, esteja ancorada em preceitos, interpretações normativas ou institutos jurídicos diversos e autónomos daqueloutros que fundamentaram a sentença apelada, sendo irrelevantes discordâncias que não encerrem um enquadramento jurídico alternativo, ou, pura e simplesmente, seja o reforço argumentativo aduzido pela Relação para sustentar a solução alcançada” (acórdão do STJ, de 31.3.2022, processo n.º 14992/19.2T8LSB.L1.S1). Por isso, como se diz no mesmo acórdão (STJ, de 31.3.2022), citando-se Abrantes Geraldes, “a alusão à natureza essencial da diversidade da fundamentação claramente nos induz a desconsiderar, para o mesmo efeito, discrepâncias marginais, secundárias, periféricas, que não representa, efetivamente um percurso jurídico diverso. O mesmo se diga quando a diversidade de fundamentação se traduza apenas na recusa, pela Relação, de uma das vias trilhadas para atingir o mesmo resultado ou, do lado inverso, no aditamento de outro fundamento jurídico que não tenha sido considerado ou que não tenha sido admitido, ou no reforço da decisão recorrida através do recurso a outros argumentos, sem pôr em causa a fundamentação usada pelo tribunal de 1.ª instância”.
Expostas estas premissas, vejamos então o caso a que se reporta esta reclamação.
Tanto a 1.ª instância, como a Relação, se debruçaram sobre a questão, suscitada pela executada, da prescrição das contribuições para a segurança social reclamadas pelo ISS.
A 1.ª instância considerou improcedente a alegada prescrição, com a seguinte fundamentação:
“Sobre o prazo geral de prescrição reza o artigo 309.º do Código Civil. Porém, a matéria da prescrição das prestações à segurança social goza de regime específico que, no que ao caso releva, se consubstancia no Decreto-Lei n.º 103/80 de 9 de maio, posteriormente, na Lei n.º 17/2000 de 8 de agosto e agora na Lei n.º 4/2007 de 16 de janeiro que aprovou as bases gerais do sistema de solidariedade e de segurança social (entre tanto alterado pela Lei n.º 83-A/2013 de 30 de dezembro).
Consequentemente, a existência de um prazo especial de prescrição, afasta a aplicação, às dívidas exequendas, do prazo de prescrição ordinário de 20 anos previsto no artigo 309.º do Código Civil.
Assim é, pois lex specialis derrogat lex generalis e o prazo previsto nesta disposição legal funciona como prazo supletivo, uma vez que só será aplicável se o caso concreto não for abrangido por um dos prazos especiais, consagrados pelo legislador.
Temos então que considerar os prazos estabelecidos nas mencionadas leis.
De acordo com o disposto no artigo 60.º n.º 3 da mencionada Lei 4/2007 a obrigação de pagamento das quotizações e das contribuições prescreve no prazo de cinco anos a contar da data em que aquela obrigação deveria ter sido cumprida.
Acrescenta o n.º 4 do mesmo preceito: a prescrição interrompe-se por qualquer diligência administrativa, realizada com conhecimento do responsável pelo pagamento, conducente à liquidação ou à cobrança da dívida.
Com estes pressupostos temos que as diligências administrativas consideradas provadas e que são do conhecimento da Reclamada que interveio, ativamente, nos processos de execução fiscal onde as mesmas (diligências administrativas) tiveram lugar – tudo, cfr. pontos h) a r) da fundamentação de facto –, interromperam-se a prescrição. Pelo que, os créditos reclamados não estão prescritos.
O mesmo se diga quanto aos juros de mora peticionados referentes ao mesmo período.
Em face do exposto, julgo improcedente a invocada exceção de prescrição”.
Assim, verifica-se que a 1.ª instância considerou que à situação prescricional em causa se aplicavam os n.ºs 3 e 4 do art.º 60.º da Lei n.º 4/2007, de 16.01, dos quais resultava que o prazo prescricional era de cinco anos, contado a partir da data em que a contribuição em causa deveria ser paga, e que o prazo de prescrição se interrompia com qualquer diligência administrativa, realizada com conhecimento do responsável pelo pagamento, conducente à liquidação ou à cobrança da dívida.
Na sua apelação, a executada concluiu pela seguinte forma:
“I. A Sentença recorrida julgou improcedente a exceção de prescrição da dívida reclamada pelo Instituto da Segurança Social, I.P. – Centro Distrital de ..., não reconhecendo a inexigibilidade dos períodos contributivos anteriores a setembro de 2018 em dívida.
II. A relação contributiva tem uma natureza tributária, pois estabelece-se entre, de um lado, pessoas singulares e coletivas (os contribuintes) e, do outro, a administração tributária, pois o Instituto da Segurança Social, I.P. é uma entidade pública.
III. A Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, que definiu as bases gerais em que assenta o sistema da Segurança Social, estabelece no seu artigo 60.º o prazo de prescrição de 5 (cinco) anos.
IV. O Código dos Regimes Contributivos do Sistema Previdencial de Segurança Social, aprovado pela Lei n.º 110/2009, de 16 de setembro, manteve quer o prazo quer as causas interruptivas da prescrição no seu artigo 187.º.
V. Como estabelecem os n.os 3 e 4 do artigo 60.° da Lei n.º 4/2007, de 16 de janeiro, o prazo de prescrição conta-se a partir da data em que aquela contribuição devia ter sido cumprida, e interrompe-se pela realização de qualquer diligência administrativa, realizada com conhecimento do responsável pelo pagamento, conducente à liquidação ou cobrança da dívida.
VI. Para este efeito, “diligências administrativas” serão todas as que ocorram nos processos administrativos de liquidação e nos processos de execução fiscal, conducentes à liquidação e cobrança da dívida, de que venha a ser dado conhecimento ao devedor.
VII. No que não está especialmente regulado quanto ao prazo de prescrição serão de aplicar as regras dos artigos 48.º e 49.º da LGT.
VIII. O prazo de prescrição conta-se, in casu, a partir da data em que o facto tributário ocorreu, ou seja, a partir da data em que a obrigação deveria ter sido cumprida, que no caso de contribuições para a Segurança Social é o dia 15 do mês seguinte a que respeita (artigo 10.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 199/99, de 8 de junho).
IX. A interrupção tem lugar uma única vez, com o facto que se verificar em primeiro lugar (artigo 49.º, n.º 3, da LGT).
X. Os efeitos de uma causa interruptiva são instantâneos e determinam a abertura de um novo prazo de prescrição, sendo esta a solução constitucionalmente adequada e a única que acautela as razões de certeza, segurança e paz jurídicas em que radica a prescrição das obrigações tributárias.
XI. Quando o Instituto da Segurança Social, I.P., notificou a reclamante em 29.12.2011 da existência da dívida, de 9.835,49 €uros, referente às contribuições de novembro de 2006 a novembro de 2011, (já) estava prescrita a contribuição de novembro de 2006, cuja obrigação deveria ter sido cumprida no dia 15 do mês seguinte.
XII. E quando foi citada em: 26.11.2015, para pagamento das contribuições dos meses de novembro de 2014 a fevereiro de 2015; 16.01.2017, para pagamento das contribuições dos meses de março de 2015 a julho de 2017; e 29.11.2018, para pagamento das contribuições dos meses de agosto de 2017 a junho de 2018 - não estavam (ainda) prescritas tais dívidas.
XIII. Considerando, no entanto, que nos termos previstos no art. 49.º, n.º 3, da LGT, a interrupção tem lugar uma única vez, com o facto que se verificar em primeiro lugar e que os factos interruptivos da prescrição (neste caso, a notificação da dívida e a citação) já ocorreram, as citações realizadas não são suscetíveis de desencadear uma nova interrupção do prazo de prescrição.
XIV. Desta forma, tendo-se iniciado um novo prazo de prescrição, em 19.09.2023 (já) estavam prescritas as dívidas exequendas referentes aos meses de outubro de 2007 a outubro de 2012; de janeiro de 2013 a junho de 2015; de setembro de 2015 a julho de 2016; e de dezembro de 2016 a agosto de 2018.
XV. A Sentença recorrida fez uma errada interpretação da lei, violando, entre mais, o artigo 49.º, n.º 3, da LGT.
Nestes termos e nos melhores de Direito, e sempre com o Douto Suprimento de Vossas Excelências, deve a sentença recorrida que determinou a exigibilidade do crédito reclamado ser revogada e substituída por outra que reconheça a prescrição das contribuições em dívida anteriores a setembro de 2018.”
Em suma, a recorrente, em primeiro lugar, faz notar que quando ocorreu, em 29.12.2011, a primeira diligência que, nos termos do n.º 4 do artigo 60.° da Lei n.º 4/2007, faria interromper a prescrição da obrigação contributiva, já estava prescrita a contribuição de novembro de 2006. Por outro lado, a recorrente invoca que à relação de dívida em causa são aplicáveis as regras da Lei Geral Tributária, em especial o art.º 49.º, n.º 3, da LGT, do qual resultaria que “a interrupção tem lugar uma única vez, com o facto que se verificar em primeiro lugar”, pelo que as citações posteriores não desencadeavam nova interrupção.
No seu acórdão, a Relação, por a tal a obrigar o conteúdo da apelação, começou por se pronunciar acerca da questão da aplicabilidade ao caso do disposto na Lei Geral Tributária, concluindo pela negativa. Consequentemente, a Relação entendeu, tal como a 1.ª instância, que ao caso se aplicava a Lei n.º 4/2007, de 16.01 e que, tal como se ajuizou na sentença, a prescrição interrompia-se mais do que uma vez, por cada citação, notificação ou ato equiparado. Além disso, no que é tão só um argumento coadjuvante do que fora sentenciado, a Relação aduziu que se a interrupção resultasse de citação, notificação ou ato equiparado, ou de compromisso arbitral, o novo prazo de prescrição não começaria a correr enquanto não passasse em julgado a decisão que pusesse termo ao processo, tudo por aplicação do art.º 327.º n.º 1 do Código Civil. E, também como elemento adjuvante e de reforço da fundamentação da sentença, no acórdão recorrido notou-se que, tal como ficara provado na sentença, a recorrente/executada havia reconhecido a dívida em causa, tendo peticionado, entre os anos de 2013 e 2016, o pagamento da dívida em prestações, o que constituía também fundamento para a interrupção da prescrição, nos termos do disposto no art.º 325.º n.º 1 do Código Civil. Finalmente, a Relação considerou, nesta parte concordando com a recorrente, que a contribuição que devia ter sido paga em 15 de novembro de 2006 já se encontrava prescrita, pois haviam decorrido mais de cinco anos aquando da primeira notificação da Segurança Social para o pagamento de contribuições, ocorrida em 29.12.2011.
Por conseguinte, excecionada a procedência da apelação no que concerne à contribuição vencida em novembro de 2006 (segmento do acórdão em relação ao qual, obviamente, a executada não tem legitimidade para recorrer, pois quanto a esse segmento obteve vencimento – cfr. art.º 631.º do CPC), no mais a Relação de Lisboa confirmou a sentença recorrida, com fundamentação essencialmente idêntica à desta.
Sendo irrelevante, face ao acima exposto, que o relator do acórdão proferido na Relação tenha inserido, no sumário previsto no art.º 663.º n.º 7 do CPC, proposições atinentes a todos estes argumentos (temos aqui em atenção a conclusão VII da reclamação para a conferência).
Ocorre, pois, a dupla conforme, obstativa da revista ordinária, nos termos do art.º 671.º n.º 3 do CPC.
Pelo exposto, a reclamação improcede.
III. DECISÃO
Pelo exposto julga-se a reclamação improcedente e consequentemente mantém-se o despacho reclamado.
As custas da reclamação são a cargo da reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 1,5 UC (art.º 7.º n.º 4 do Regulamento das Custas Processuais, tabela II).
Lx, 08.4.2025
Jorge Leal (Relator)
António Pires Robalo
António Magalhães