É admissível prova testemunhal sobre o facto respeitante a uma convenção adicional ao conteúdo de documentos autênticos e particulares com força probatória plena, se da conjugação dos contratos juntos resultar um princípio de prova escrita que torne verosímil o facto alegado.
Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Supremo Tribunal de Justiça:
a) a declaração judicial de o autor ser dono e legitimo proprietário da fração autónoma designada pelas letras “AG”, destinada a habitação, correspondente ao 11º andar direito frente, da qual fazem parte integrante arrumos e espaço de recolha de viatura na cave, ambos com o nº 111, do prédio urbano em regime de propriedade horizontal sito na Rua ..., da freguesia de ..., concelho ..., descrito na ...ª Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...trinta e três-..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...88da freguesia de ...;
b) a condenação da ré a reconhecer tal direito de propriedade do Autor sobre o prédio identificado da alínea anterior e, consequentemente:
c) ser a ré condenada a desocupar e a restituir ao autor o imóvel mencionado em a), totalmente devoluto de pessoas e bens, e a abster-se da prática de qualquer acto violador do direito de propriedade do autor
d) ser, ainda, a ré condenada a pagar ao autor, a título de indemnização pela ocupação abusiva e ilegítima e consequente privação do uso por parte do autor, o montante mensal de € 1 000,00, desde 15 de Outubro de 2015 até efetiva desocupação e entrega do imóvel – valor que, na data da propositura da acção, o autor liquida na quantia global de € 45 000,00.
Alegou o autor, em súmula, na petição inicial, ser proprietário de determinado imóvel, que a ré ocupa sem título, pretendendo o autor a sua restituição.
A ré contestou invocando a excepção de caso julgado, a actuação do autor em abuso de direito, a nulidade, por simulação, do negócio que o autor invoca como causa jurídica da aquisição do direito de propriedade, bem como a nulidade, por fraude à lei, do negócio pelo qual a aqui ré declarou transmitir a favor de terceiro o direito de propriedade sobre o imóvel em causa nos autos, terceiro a quem posteriormente o autor declarou adquirir o mesmo imóvel.
Concluiu pedindo a improcedência da acção, com a sua consequente absolvição dos pedidos formulados pelo autor.
O autor respondeu, defendendo a improcedência das excepções opostas pela ré,
Foram julgadas improcedentes as excepções de ilegitimidade processual da ré [quanto ao pedido de declaração de nulidade dos diversos negócios invocados na petição inicial] e de caso julgado [relativamente ao decidido no processo nº 5463/16.0...].
Efectuado o julgamento, foi proferida sentença que julgou totalmente improcedente a acção, absolvendo na íntegra a ré da totalidade dos pedidos formulados pelo autor.
Desta decisão veio o autor interpor recurso de apelação pedindo a revogação da decisão recorrida e a sua substituição por outra que julgasse a acção procedente, condenando-se a ré nos pedidos contra ela deduzidos.
No âmbito do recurso, o Autor impugnou a decisão de facto, imputando-lhe a violação das proibições de prova que o recorrente entendia resultarem dos artigos 393º e 394º do Código Civil, em conjugação com o disposto no nº 5 do artigo 607º do CPC, pretendendo, a final, a retirada de determinados pontos de facto e a alteração da redacção de outros, com o fundamento de que a matéria de facto afrontava o disposto no nº 1 do art. 394º do CC recorrendo à utilização indevida de prova testemunhal e ao uso de presunções judiciais ( art. 351º CC).
Porém, a Relação considerou que a prova testemunhal apenas tinha incidido sobre a finalidade e o contexto das contratos celebrados, considerando que a demonstração dessa finalidade não estava limitada pelas proibições de prova consagradas nos art. 393º e 394º do CC em conjugação com o nº 5 do art. 607º do CPC.
Não se conformou o autor que veio interpor recurso de revista, insistindo que a matéria apontada no recurso de apelação não poderia ser sujeita a prova testemunhal nem objecto de presunções judiciais, pedindo, de novo, a rectificação da matéria de facto em conformidade, a par de diversas nulidades que arguiu.
O relator da Relação não admitiu o recurso, com base no disposto no art. 671º, nº 3 do C*C, excluindo a aplicação do art. 629 e 672 do CPC.
No entanto, o recorrente apresentou reclamação, que foi deferida por se ter entendido que “… saber se, ao abrigo do art. 394º, nº 1 do CC, é admissível prova testemunhal que tenha por objecto convenção contrária ou adicional ao conteúdo de documentos, para demonstrar o contexto e a finalidade com que os sucessivos contratos titulados por esses documentos foram celebrados, é matéria que se inscreve na previsão legal do 674º, nº 3, do CPC. Traduz-se, afinal, em saber se existe ou não ofensa de disposição expressa da lei que exige outra espécie de prova (não testemunhal) para a prova dos factos impugnados ( cfr. Ac. STJ de 14.9,2021, proc. 864/18.1T8VFR.P1.S1, em www.dgsi.pt)”.
O recorrente rematou as alegações do recurso de revista com as seguintes conclusões:
“I - O presente recurso vem interposto do douto acórdão do Tribunal da Relação do Porto que, negando provimento ao recurso da apelação apresentado, veio confirmar a decisão recorrida.
II - Entende o Recorrente que a decisão viola a lei processual em vigor, a lei substantiva, por erro de interpretação e aplicação do direito e, bem assim, enferma de diversas nulidades, mormente, aquelas a que se alude nas al. b), c), e d) do n.º 1 do art.º 615º, aplicável ex vi, al. c) do n.º 1 e n.º 3 do art.º 674º, todos do Código de Processo Civil.
III - Mais se considera, com o devido respeito, que efectuada uma correcta interpretação e aplicação da lei substantiva e da lei processual à matéria dos presentes autos e, expurgadas as referidas nulidades, se impunha, como se impõe, a revogação do acórdão, o que se espera.
IV - Pelo que o presente recurso tem por fundamento o estatuído no n.º1 al a),b) e c) e n.º 3 do art.º 674º do Cód. de Proc. Civil e violação dos n.ºs 1 e al. c) e d) do 2 do art.º 662 do mesmo diploma.
V - Foi sobre a decisão de admitir e dar como provada a factualidade que se encontra transcrita supra que o Recorrente se insurgiu no recurso de apelação apresentado.
VI - Considerando aí o Recorrente, posição que mantém e que também aqui invoca para o devidos e legais efeitos, nomeadamente, o estatuído no art.º 674º n.º 3 e 662º n.º 1, ambos do Cód. de Proc. Civil, que ao dar como provados os factos constantes dos pontos 5, 6, 7,17, 20, 26, 27, 31 e a parte inicial, dospontos 8, 18, 21, 24, 28 e 32 - em tudo o que extravasa o teor dos documentos que neles se dão por reproduzidos -sustentando tal decisão em depoimentos testemunhais – conforme resulta expressamente do texto da sentença- “toda a prova produzida, tendo sido absolutamente determinantes o depoimento da testemunha CC e das Testemunhas DD, EE e FF, filhos da Ré e subscritores do contrato de compra e venda celebrados com aquele CC à luz da prova documental coligida nos presentes autos, tendo-nos merecido credibilidade a versão dos factos carreada para os autos pela ré.” (negritos e sublinhados nossos), o Tribunal violou os princípios de apreciação de prova a que estava adstrito e vinculado, por referência à prova documental carreada para os autos – documento particular autenticado e escritura pública de compra e venda - e a força probatória que lhe é conferida por lei (art.º 370º n.º 2, 371º, 377º, 393 n.º 2 e 394º n.º 1 todos do Cód. Civil e 607º n.º 5 do CPC).
VII - Na verdade, entende o Recorrente que, revestindo a matéria vertida nestes concretos pontos natureza de convenções estabelecidas em contradição com o teor dos referidos documentos e/ou sendo-lhe adicionais, não poderia, a mesma, ser sujeita, como o foi, a prova testemunhal (art.º 393º n.º 2 e 394º ambos do CC) e/ou objecto de presunções judiciais. (art.º 351º do Cód. Civil).
VIII - Acresce que também se encontra junto aos autos certidão do teor da inscrição matricial, da qual resulta o histórico da situação registral do imóvel objecto dos presentes autos.
IX - Dessa certidão e nos termos do art.º 7º do Cód de Registo Predial derivam duas presunções: a presunção de existência do direito e, bem assim, a presunção de que este pertence ao titular inscrito.
X- Prova, que tendo conta os documentos carreados para os autos e os factos por ela invocados, não poderia ser efectuada com recurso a depoimento testemunhal, assim como, ao Tribunal, estava vedado alicerçar a decisão sobre os fundamentos invocados em presunções judiciais.
XI - tudo porque, todos os factos invocados pela Ré em sede de excepção e, com recurso aos quais, pretendia ver reconhecida a nulidade dos contratos de compra e venda, constituíam convenções alegadamente estabelecidas pelas partes, contrárias e/ou adicionais ao teor dos ditos documentos.
XII - Ora foi quanto à admissibilidade dos meios de prova enunciados – prova testemunhal e prova por presunção judicial – na qual o Tribunal de 1ª instância alicerçou a sua convicção de dar como assente a matéria vertida nos pontos 5. 6. 7.17. 20. 26. 27. 31 e, nos pontos 8.18. 21.24..28 e 32 , na parte não contida nos documentos aí reproduzidos, dos factos provados e das presunções judiciais dele retirados, que o Recorrente se insurgiu, constituindo tal o fundamento do recurso por si apresentado.
XIII - Considerando, então, tal como agora, sempre salvo o devido respeito, que uma correcta aplicação do direito substantivo e adjectivo teria exigido prolação de decisão em sentido diametralmente oposto da que foi proferida, mormente no que respeita à matéria de facto.
XIV - E consequentemente, ao assim se decidir, impunha-se fossem retirados os referidos factos da matéria assente, ou reformulada a sua redação, nos termos que se elencaram e que aqui se reproduzem (cfr do ponto 34 das conclusões do recurso de apelação):
Ponto 5 – deve ser retirado da matéria de facto dada como provada;
Ponto 6 – deve ser retirado da matéria de facto dada como provada:
Ponto 7. – deve ser retirado da matéria dada como provada;
Ponto 8. – Deve ser retirada a expressão nele contida na sua parte inicial: “Em conformidade com o assim acordado” Iniciando-se o mesmo,
Ponto 17 CC e a Ré, acordaram em prorrogar o prazo de restituição do imóvel.
Ponto 20 - deve ser retirado da matéria de facto dada como provada:
Ponto 21. Por documento particular denominado de “Aditamento a Contrato de Arrendamento de Duração limitada”, outorgado em 21.03.2014, a ré declarou renunciar ao direito de opção de compra aludido em 18., conforme documento de fls. 160 a 160v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
Ponto 26. deve ser retirado da matéria de facto dada como provada;
Ponto 27 – deve ser retirado da matéria de facto dada como provada
Ponto 28 - Deve ser retirada a expressão por isso, iniciando-se a sua redação “em 17.03.2015, as partes outorgaram um documento escrito que denominaram de “Acordo de revogação de Contrato de Arrendamento” mediante o qual declararam revogar o contrato de arrendamento aludido em 19 e que a Ré entregava nessa data o imóvel (…)
Ponto 31. deve ser retirado da matéria de facto dada como provada
Ponto 32. Deve o seu teor ser alterado, retirando-se do mesmo a expressão “Não tendo a ré logrado cumprir com o assim acordado” , passando apenas a constar, que por incumprimento da Ré o autor intentou contra a mesma uma acção declarativa comum, peticionando a cessação do contrato de arrendamento aludido em 29. Por resolução e a condenação da Ré na entrega do locado, no pagamento das rendas vencidas e não pagas até efectiva entrega do locado e no pagamento da indemnização prevista no art.º 1041º, do CC.
XV - Ora expurgada a decisão de uma tal matéria, por constituir convenção contrária e adicional aos documentos quer autênticos, quer autenticados, quer particulares outorgados pelas partes, estes últimos, não impugnados, ao Tribunal impunha-se, com recurso ao remanescente do acervo da matéria provada e da correcta aplicação das normas do ónus da prova, proferir decisão que, reconhecendo o Recorrente como legitimo proprietário, condenasse a Ré na entrega do imóvel.
XVI - Ora face ao referido veio o Recorrente concluir, em sede de recurso de agravo:
1º- A impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto, nos termos das disposições conjugadas dos art.º 371º, 377º, 393º e 394º do Código Civil e n.º 5 do art.º 607 do Código de Processo Civil, por considerar terem sido violadas as proibições de prova daí decorrentes e nos concretos pontos elencados supra e nos precisos termos referidos e;
2º- A nulidade da decisão recorrida, nos termos do art.º 615 n.º 1 al d) do Cód de Processo Civil, por ter conhecido de questões de que não podia conhecer.
XVII - No Tribunal da Relação do Porto foi proferido, pelos Venerando Juízes Desembargadores, decisão que negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
XVIII - E, assim o entendem, por duas ordens de razões que constituem fundamento da decisão proferida e, consequentemente, constituem o objecto do presente recurso:
a) Sustenta este Tribunal a sua decisão na qualificação, da matéria de facto impugnada e cuja reapreciação se pretendia, como “o motivo, a finalidade da contratação”, que no entender sufragado “em nada contraria o conteúdo dos contratos de compra e venda em causa nos autos – aquela antes é pressuposto deste” assim legitimando a prova testemunhal e o recurso às presunções judiciais, que serviram de fundamento à decisão da 1ª instancia de dar como provada a matéria elencada nos pontos 5.6.7.17.20.26.27.31 e na parte que transcende o teor dos documentos que neles se dão por reproduzidos a matéria dos pontos 8.18.21.24.28 e 32. b) Sustenta ainda, que constam dos autos indícios de que existe “uma realidade que transcende a simples compra e venda – ou seja, existem documentos juntos aos autos que constituem fortíssimo princípio de prova da existência de um acordo de maior abrangência no qual se inserem os contratos de compra e venda. Princípio de prova a que os documentos que atestam a sucessiva prorrogação do arrendamento relativo ao imóvel (com opção de compra a favor da arrendatária) trazem consistentíssimo reforço – pontos 18-, 19-, 21-, 24-, 25- e 28- a 30- da matéria de facto provado e foi este contexto, esta finalidade, este acordo mais abrangente(…)”
XIX - Assim afastando as proibições de prova a que, no entender do recorrente, o Juiz se encontra vinculado, por força do n.º 5 do art.º 607 do Cód. de Proc. Civil e art.º 394 n.º 1 do Cód. Civil
XX -Ora adianta-se desde já que uma correcta aplicação da lei substantiva e, bem assim da lei processual impunham ao Tribunal, nos termos das al. a) e b) do art.º 674 do Cód de Proc. Civil e 662 n.º 1 do mesmo normativo, tivesse alterado a decisão proferida sobre a matéria de facto, nos termos exarados o que não fez. Pelo que deve o acórdão ser anulado.
XXI – Entende o aqui Recorrente, em relação ao primeiro dos fundamentos apresentados, que resulta dos documentos -escritura e DPA, do seu teor, e consequentemente, deles se extrai, é que as partes celebraram e quiseram celebrar contratos de compra e venda com as consequências jurídicas que lhes são inerentes, a transferência da propriedade do imóvel objecto do mesmo, mediante o pagamento de um preço.
XXII - Todo e qualquer outro motivo, intenção e ou vontade para além do enunciado – nomeadamente a vontade de celebrar outro qualquer outro tipo de contrato – constitui convenção contrária e ou adicional ao teor do mesmo.
XXIII - Aliás é o próprio Tribunal de primeira instância a qualificar a matéria dos pontos 5.6.7. constante da matéria assente, como convenção anterior à outorga do contrato de compra e venda, que esteve na sua génese e,
XXIV – Pelo que estando a matéria desta convenção em absoluta contradição com o teor dos documentos – pois uma coisa é pretender comprar outra, muito diferente é pretender deter um prédio como garantia de cumprimento de uma obrigação - o Tribunal da Relação, ainda assim, tenha considerado que tais factos não se subsumem na previsão do n.º 1 do art.º 394º e consequentemente, admitem ser demonstrados com recurso a depoimentos testemunhais e a presunção art.º 351º (ambos do CC.)
XXV - Pelo que nesta parte, o acórdão da Relação, ao julgar ser admitir prova testemunhal e por presunção de matéria que contraria o teor de contratos formalizados por escritura pública e a existência de convenções que os contrariam e que lhes adicionais ao seu teor, violou as normas reguladoras dos meios de prova e bem assim das proibições de prova. (art.º 394 n.º 1 e 351º ambos do Cód. Civil), o que se invoca.
XXVI - Enfermando dos, mesmíssimos vícios apontados à sentença de primeira instância, aos quais aderiu, ao admitir à aludida possibilidade, “contaminando” assim a respectiva decisão.
XXVII - E nem se afirme que, do remanescente dos documentos se poderá inferir tais conclusões, pois tal afirmação apenas seria possível por meio de presunções judicias, meio de prova de que ao Tribunal também está vedado socorrer-se, nos termos do art.º 351 do Cód Civil.
XXVIII - Ou por admissão de prova testemunhal e/ou por presunções judiciais de convenções contrárias e adicionais ao remanescente dos documentos particulares – seu teor - que se encontram junto aos autos, assinados pelas partes e que não foram objecto de impugnação– o que também não é admissível nos termos do preceito já invocado, o qual estende a sua previsão a este tipo de documentos (394 n.º 1 do CC).
XXIX - Vícios que devem ser conhecidos por este Tribunal anulando-se o acórdão por violação do estatuído nos art.º 674 n.º 1 al a), b) e n.º 3 todos do CPC, e em consequência, ordenar-se a rectificação da matéria de facto nos termos peticionados, por força do art.º 662 n.º 1 do CPC em respeito com o estatuído do n.º 1 do art.º 394º do CPC, com as demais consequências legais.
XXX - Em relação ao segundo dos fundamentos apresentados, cumpre salientar que, o segundo dos fundamentos invocados, por parte da Relação para a admissibilidade de prova testemunhal que tem por objecto quaisquer convenções contrárias e/ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico, ou particular mencionado nos art.º 373º a 379º do CC, quer as mesmas sejam anteriores, contemporâneas e/ou posteriores, pressupõem a adesão a uma corrente doutrinária e jurisprudencial a que o ora Recorrente não adere por entender que a mesma viola do estatuído nos n.º 2 e 3 do art.º 9, n.º 2 do art.º 8 e art.º 10 todos do Cód Civil, matéria cujo conhecimento, nos termos do art.º 674 n.º 1 al a) do CPC, cabem no âmbito do poderes deste Colendo Tribunal.
XXXI - Ora, na esteira da posição sufragada pelo Cons. Rodrigues Bastos (in “Notas ao Código Civil”, II, 177) também o Recorrente é da opinião que o entendimento flexível colide com o direito legislado.
XXXII - A admissão do recurso à prova testemunhal nos caso a que se alude no n.º1 do art.º 394 CC e, consequentemente, o recurso a presunções judicias (art.º 351 do CC) que aí expressamente se proíbem subsume-se na previsão do n.º 2 do art.º 9 do Cód Civil, onde se proíbe ao intérprete ter em consideração pensamento legislativo que não tenha na lei um mínimo de correspondência – sendo que no caso, não só não correspondência, como lhe é contrária. Ainda que a considere injusta e/ou imoral.
XXXIII - Tanto mais, que no caso, a polémica quanto à admissibilidade ou não, dos ditos meios de prova se debateu aquando da revisão do Código Civil em vigor e não mereceu consagração legal – tendo sido afastada a proposta que a continha.
XXXIV - A interpretação “actualista” da relação, no que a este conspecto respeita, importa no entender do recorrente, uma violação expressa do estatuído no n.º 3 do art.º 9 do CC.
XXXV - Pois só encontra justificação, defendendo-se que o julgador – que havia sido confrontado com a dita problemática – ao não a consagrar, não soube escolher a solução mais acertada e/ou não soube exprimir o seu pensamento. Juízo que como se referiu está vedado ao intérprete, in casu, ao Tribunal da Relação.
XXXVI - Até porque, tal como bem se realça no acórdão recorrido “ Em muitos casos,ainadmissibilidade,estabelecidapelalei, deprovatestemunhal tem como fundamento o juízo do legislador sobre as graves consequências de um testemunho inverídico, dada a especial fiabilidade desse meio probatório. Tais casos de inadmissibilidade têm, porém, natureza excepcional e hão-de ter uma justificação racional” [Miguel Teixeira de Sousa, ob.loc.cit.], e, acima de tudo, deve ser possível referi-los a valores de dignidade constitucional equivalente.
XXXVII - Ora entende o Recorrente que a justificação racional que presidiu à consagração da proibição de prova constante do n.º 1 do art.º 394 doCC é óbvia.
Está em causa a defesa das legitimas expectativas das partes, resultantes de terem celebrado um contrato,aoabrigo de uma liberdade que lhes é reconhecida(art.º405CC), comarespeitoatodos os formalismos legais ejuntodeautoridade detentora de fé pública.
XXXVIII - Legítimas expectativas que merecem tutela do direito e que não deverão ceder quando confrontadas com depoimentos testemunhais que as contrariem, infirmem, ou que delas sejam adicionais.
XXXIX - No entender do recorrente assim o impõe o princípio da segurança jurídica, segundo o qual o Estado deve agir como garante dos direitos dos cidadãos, ou seja deve, por meio de um ordenamento jurídico sólido, garantir a estes a previsibilidade e estabilidade das relações.
XL - Principio esse que, no entender do Recorrente, não é compaginável com a tese defendida no Acórdão da Relação, pelo que e também por este facto deve o acórdão da Relação ser anulado, por violação expressa dos art.º 8, 9 e 10 do Cód. Civil, tudo nos termos do art.º 674º n.º 1 al. a) do CPC, o que se invoca.
Subsidiariamente,
XLI - Caso este colendo Tribunal, assim não considere o que por mera hipótese se concebe sem conceder, sempre se dirá que ainda assim, a fundamentação da Relação, merece reparo e a discordância do recorrente, porquanto, como se deixou expresso supra o Venerando Tribunal da Relação pronuncia-se sobre a existência, junto aos autos, de documentos que qualifica, reconhece e declara, “de fortíssimos princípios de prova da existência de um acordo maior”.
XLI - Ora na tese sufragada no acórdão, à qual como já se deixou expresso se não adere, a qualificação como indícios e o reconhecimento da sua natureza e verificação, terão permitido ao Tribunal a quo admitir a produção de prova testemunhal e recurso às presunções judicias quanto à matéria de facto impugnada, na medida em que, com o recurso a tais meios de prova apenas se limitou o Tribunal a efectuar o enquadramento e contextualização dos contratos.
XLII - Dito de outra forma, neste trecho da douta Decisão, o Tribunal de Recurso mais não fez do que, de forma simplista, se substituir ao Tribunal da primeira instância numa decisão, que a admitir-se a posição sufragada – constituía questão prévia e de pronúncia obrigatória, que ao tribunal de 1ª instância competia ter analisado e resolvido e da qual dependia – mesmo na posição sufragada no acórdão - a validade da decisão proferida, o que não fez.
XLIII - A questão enunciada constituiria fundamento de direito da decisão proferida em primeira instância, sendo que tal omissão importaria a nulidade da sentença nos termos do art.º 615 n.º 1 al b) do Cód de Processo Civil, que ao Tribunal de Recurso, competia ter conhecido, ex oficio, declarando a anulação da decisão recorrida.
XLIV - Pelo que também, por este facto o acórdão do Tribunal da Relação é nulo, nulidade que nos termos do art.º 674 n.º 1 al. b) este Colendo Tribunal pode e deve conhecer.
XLV -Ao invés o Tribunal de recurso proferiu a dita decisão, conhecendo, no entender do Recorrente, matéria que lhe estava vedado conhecer – porquanto, a mesma é condição de admissibilidade do recurso à prova testemunhal – tal decisão constituía pois, fundamento da decisão proferida, tendo a mesma de constar da decisão de 1ª instância, até porque só assim permitiria a sua sindicância.
XLVI- Ao substituir-se como o fez, ao tribunal de primeira instância na fundamentação enunciada, o tribunal da relação não só violou o art.º 662 n.º 2 como e por excesso de pronúncia incorreu na nulidade do art.º 615 n.º 1 al. d) do CPC aplicável ex vi art.º 674º do mesmo diploma.
XLVII – Acresce que, também ainda que se admitisse o que Tribunal de primeira instância, na decisão proferida tenha pretendido lançar mão da posição sufragada pelo Tribunal da Relação e que tem sido defendida por alguma doutrina e Jurisprudência, (o que se desconhece) o certo é que, no caso concreto, aos documentos enunciados, nunca poderia ter sido reconhecida a virtualidade de integrarem o conceito de fortes indícios.
XLVIII - Na verdade os defensores da posição sufragada, fazem depender a admissão da tal prova testemunhal, como um princípio ou começo de prova que crie uma convicção, que as testemunhas podem sedimentar da verificação de duas condições,
a) O princípio de prova consistir num documento, com força e credibilidade;
b) O documento não ser usado como facto, base da presunção judicial;
Ora no caso foram osdocumentosenunciados usadoscomofactoda presunção judicial. Pelo que, também por este motivo, no caso concreto, nunca a posição sufragada poderia, afastar a proibição de prova constante do n.º 1 do art.º 394 do CC.
XLIX – Mais ainda que se admitisse o depoimento testemunhal em geral, o que novamente por mero exercício teórico se concebe, impunha-se, no entender do recorrente, ao tribunal, uma outra análise - a de saber se as concretas pessoas inquiridas na qualidade de testemunhas nos presentes autos e em cujos depoimentos o Tribunal de primeira instancia sustentou a posição firmada, o poderiam ter sido.
L– Entende o recorrente negativamente, pois todas as testemunhas foram intervenientes, na qualidade de outorgantes do documento particular autenticado em que se formalizou a compra e venda a que se alude no ponto 8 da matéria provada, as primeiras duas, na qualidade de compradores, as restantes, na qualidade de proprietários e vendedores.
LI -Ora se é verdade que da redacção do art.º 496 do CPC, parece não resultar qualquer inabilidade legal, porquanto, as referidas testemunhas não são partes nesta concreta acção, a verdade é que, no caso concreto os seus depoimentos revestem natureza de verdadeiras declarações de parte.
LII- Pelo que também por este facto e neste caso concreto, dada a natureza especialíssima da questão, entende a Recorrente que os depoimentos prestados não deveriam ter a virtualidade de afastar a aplicação do n.º 1 do art.º 394 CC, o que se impunha, por força do n.º 1 do art.º 9 do CC.
LIII - Pelo que também quanto a este concreto facto entende o Recorrente que não fez a relação correcta interpretação do art.º 394 n.º 1 do CC e 446º do CPC o que se invoca, nos termos do art.º 674ºdo CPC.
LIV - E ainda a admitir-se que o Tribunal da Relação poderia ter conhecido da questão que justificavam, in casu, a admissibilidade da prova testemunhal – em, substituição ao Tribunal de primeira instância, o que como se referiu, não se aceita, e consequentemente, poderia ter conhecido, como o fez da nulidade do contrato de promessa de compra e venda outorgado a que se alude no ponto 8 da matéria assente, impunha-se que, ex oficio ter no, mais tivesse conhecido não ser a ré, nos termos dos art.º 286 e 287 do CC, interessada e consequentemente, ter reconhecido a sua ilegitimidade no que à impugnação dos negócios estabelecidos a jusante respeita.
LV - Como se referiu supra a Recorrida era titular apenas e tão só de um direito a habitação.
LVI - Ora decretada a nulidade do dito contrato, o direito de habitação da Ré repristinou, ou seja, por força de tal declaração, o direito à habitação regressa à esfera jurídica da Ré, como se tal contrato nunca tivesse sido celebrado, pelo que o seu interesse à acção e a sua legitimidade se extingue, com a declaração de nulidade enunciada.
LVII- E nesta medida – salvaguardado que está o seu direito - importa o reconhecimento da sua ilegitimidade para arguir a nulidade dos contratos celebrados a jusante, porquanto, por força do reconhecimento da dita nulidade a Ré deixou de ser titular de qualquer relação jurídica que de algum modo possa ser afectada pelos efeitos que esses negócios, ainda que nulos, tendiam a produzir.
LVIII- Questão que à relação se impunha conhecer, como corolário lógico da admissibilidade da prova testemunhal e do reconhecimento da nulidade do dito contrato, nos termos do n.º 1 do art.º 662 n.º 1, expurgando a decisão recorrida de todos os factos assentes elencados pela primeira instância em que se apreciem as contratações subsequentes, ou seja os pontos 22 a 33 da decisão.
LIX - Ora ao não proferir tal decisão, para além da violação enunciada, a relação incorreu na nulidade a que se alude no n.º 1 al. c) e d) do art.º 615 do CPC.”
A ré recorrida contra-alegou pugnando pela improcedência do recurso.
Cumpre decidir:
Ficaram provados os seguintes factos:
“1- Na...ª Conservatória do Registo Predial ..., sob o nº ...33/20080416, encontra-se descrita a fracção autónoma, designada pelas letras “AG”, correspondente ao décimo primeiro andar direito, do prédio constituído em propriedade horizontal sito na Rua ..., da freguesia de ..., concelho ..., conforme certidão constante de fls. 68v a 72 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.
2- Consta do histórico do registo predial referente ao dito imóvel, através da apresentação 8 de 1973/03/27, a inscrição do mesmo, a favor de GG, por compra a Sociedade de ..., conforme certidão constante de fls. 68v a 72 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.
3- Consta igualmente do histórico do registo predial referente ao dito imóvel, através da apresentação 3 de 2008/12/3, a inscrição da aquisição do mesmo, por partilha judicial, a favor de HH, DD e de FF, na proporção de 1/3 a cada um, conforme certidão constante de fls. 68v a 72 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.
4- E a inscrição do direito de habitação sobre a aludida fracção autónoma a favor da ré BB, conforme certidão constante de fls. 68v a 72 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
5- No ano de 2012, devido a dificuldades financeiras para solver dívidas, a autora, por indicação de terceiros, acordou com CC que este procederia à entrega à ré da quantia não concretamente apurada, mas não inferior a € 60.00,00 e superior a € 90.000,00, com obrigação da ré restituir a aludida quantia, acrescidas de juros remuneratórios e demais encargos, e para garantir a restituição dessas quantias, os filhos da ré vendiam o imóvel referido em 1- ao aludido CC, com a obrigação de este o revender aqueles quando fossem restituídas as aludidas quantias.
6- Mais acordaram que a ré e o seu agregado familiar poderia continuar a viver no imóvel, como vinha sucedendo há mais de 25 anos.
7- E para justificar tal ocupação, acordaram ainda celebrar um contrato de arrendamento, servindo as rendas aí acordadas para pagamento dos juros acordados para a remuneração do empréstimo.
8- Em conformidade com o assim acordado, em 11.06.2012, por documento particular autenticado denominado “Compra e venda e renúncia do direito de habitação”, HH, DD e de FF declararam vender a CC e II que declararam comprar, pelo preço de € 210.180,00 já recebido, a fracção autónoma identificada em 1-, inscrita na matriz predial sob o artigo 5388 urbano, conforme documento constante de fls. 241v a 245 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
9- Mais consta do documento aludido em 8- que a aqui ré declarou expressamente renunciar ao direito de habitação registado predialmente a seu favor pela Ap. 3 de 2008/12/03, conforme documento constante de fls. 241v a 245 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
10- No mesmo dia, ou seja, em 11.02.2012, por documento particular denominado de “Contrato-Promessa de Compra e Venda”, CC e II declararam prometer vender a HH, DD, FF e à ré (ou a quem estes nomearem) que declararam prometer comprar para si ou terceiros, no prazo máximo de 12 meses, a mesma fracção autónoma, pelo valor de € 90.865,00, ao qual acresceria todas as despesas ordinárias e extraordinárias para a comparticipação do condomínio, já vencidas ou vincendas na vigência daquele contrato, bem como qualquer acerto de IMI a ocorrer durante a vigência do mesmo, assim como a anuidade do IMI referente ao ano de 2012 caso os promitentes compradores não façam as respectivas liquidações, conforme documento de fls. 291 a 295 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
11- Mais declararam os outorgantes do documento aludido em 10- que para efeitos de valor de escritura de compra e venda as partes acordavam que a mesma seria efectuada pelo valor de € 211.500,00, conforme documento de fls. 291 a 295 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
12-Declararam ainda que, em simultâneo com o referido contrato promessa de compra e venda, celebraram um contrato de arrendamento tendo por objecto a mesma fracção autónoma, conforme documento de fls. 291 a 295 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
13-Por documento igualmente outorgado em 11.06.2012, CC e II declararam dar de arrendamento a HH, DD, FF e a ré que declararam tomar de arrendamento a aludida fracção autónoma pelo prazo de 12 meses, destinada a habitação secundária, conforme documento de fls. 285v a 290 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
14-Mais declararam os outorgantes do documento aludido em 13- que durante a vigência do aludido contrato as rendas mensais seriam do valor de € 250,00 e que se os arrendatários viessem a adquirir a fracção autónoma de acordo com o contrato promessa de compra e venda e o contrato de arrendamento tivesse de cessar os seus efeitos antecipadamente, os inquilinos ficavam obrigados a pagar as rendas que fossem devidas até ao termo do décimo segundo mês, conforme documento de fls. 285v a 290 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
15-Consta do histórico do registo predial referente à fracção autónoma aludida em 1-, através da apresentação 2900 de 2012/06/11, a inscrição da aquisição por compra da mesma a favor de CC e de II, conforme certidão constante de fls. 68v a 72 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
16-Bem como, através da apresentação 2901 de 2012/06/11, a inscrição do cancelamento do aludido direito de habitação a favor da ré, conforme certidão constante de fls. 68v a 72 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
17- Não tendo a ré tido condições financeiras de restituir ao referido CC os valores acordados, acordaram estes em prorrogar o prazo de restituição.
18- Assim, por documento particular denominado de “Contrato de Arrendamento de Duração limitada”, outorgado em 8.10.2013, CC declarou dar de arrendamento à ré que declarou tomar de arrendamento a fracção autónoma identificada em 1-, pelo prazo de seis meses e pela renda mensal de € 250,00, conforme documento de fls. 155 a 158 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
19-Mais declararam os outorgantes do documento aludido em 18- que até ao termo do prazo de arrendamento a ré tinha o direito de opção de compra, para si ou para quem viesse a nomear para esse efeito, pelo preço de € 124.734,00, conforme documento de fls. 155 a 158 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
20-Como a ré continuou a não ter condições financeiras para restituir o montante de capital e juros vencidos, o aludido CC acordou com o autor transmitir-lhe a sua posição no aludido empréstimo, o que comunicou à ré.
21-E, como forma de viabilizar a continuidade do empréstimo, por documento particular denominado de “Aditamento a Contrato de Arrendamento de Duração limitada”, outorgado em 21.03.2014, a ré declarou renunciar ao direito de opção de compra aludido em 18-, conforme documento de fls. 160 a 160v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
22-Por título de compra e venda, datado de 4.04.2014, CC e II declararam vender ao autor que declarou comprar pelo preço de € 152.500,00, a fracção autónoma aludida em 1-, conforme certidão de fls. 8v a 10v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
23-Esta aquisição da propriedade de tal imóvel a favor do autor encontra-se inscrita na Conservatória do Registo Predial, através da apresentação 1214 de 2014/04/04, conforme certidão constante de fls. 68v a 72 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.
24-Mantendo o mesmo procedimento que até ali mantinha com o aludido CC, no mesmo dia em que foi celebrada a compra e venda aludida 22-, a ré celebrou com o autor um acordo escrito que denominaram de “Contrato de Arrendamento de Duração Limitada”, mediante o qual o autor declarou dar de arrendamento à ré que declarou tomar de arrendamento a fracção autónoma aludida em 1-, pelo prazo de 12 meses, mediante o pagamento da renda mensal no valor de € 250,00, conforme documento de fls. 63 a 66 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
25-Mais declararam as partes no documento aludido em 24- que, até ao termo do prazo do arrendamento, a ré tinha o direito de opção de compra para si ou para um descendente que venha a nomear para esse efeito, pelo preço de € 183.000,00, conforme documento de fls. 63 a 66 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
26-Tal documento destinou-se a conceder à ré um prazo de 12 meses para a restituição dos valores de capital e juros e demais encargos, bem como a fixar o valor de recompra do imóvel pela ré, sendo a renda ali acordada uma forma de pagamento dos juros remuneratórios acordados.
27-No fim do prazo estipulado para a restituição dos referidos valores, a ré continuava sem condições financeiras para o fazer.
28-Por isso, em 17.03.2015, as partes outorgaram um documento escrito que denominaram de “Acordo de revogação de Contrato de Arrendamento” mediante o qual declararam revogar o contrato de arrendamento aludido em 19- e que a ré entregava nessa data o imóvel livre de pessoas e bens e as chaves do imóvel, conforme documento de fls. 66v a 67v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
29-Porém, no dia 20.03.2015, as partes outorgaram um novo acordo escrito que denominaram de “Contrato de Arrendamento Habitacional com prazo certo”, mediante o qual o autor declarou dar de arrendamento à ré que declarou tomar de arrendamento a fracção autónoma aludida em 1-, pelo prazo de 9 meses, fixando a renda em € 250,00 para o primeiro mês, a renda de € 500,00 para os dois meses seguintes e a renda mensal de € 1.000,00 para os restantes meses, conforme documento de fls. 12v a 15v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.
30-No documento aludido em 29-, as partes declararam ainda que até ao termo do prazo do arrendamento, a ré tinha o direito de opção de compra para si ou para um descendente que viesse a nomear para o efeito, pelo preço de € 200.000,00, conforme documento de fls. 12v a 15v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido para todos os legais efeitos.
31-Tal documento destinou-se a conceder à ré a prorrogação do prazo para a restituição dos valores de capital e juros e demais encargos, bem como a fixar o valor de recompra do imóvel pela ré, sendo novamente a renda ali acordada uma forma de pagamento dos juros remuneratórios acordados.
32-Não tendo a ré logrado cumprir com o assim acordado, o autor intentou contra a mesma uma acção declarativa comum, peticionando a cessação do contrato de arrendamento aludido em 29- por resolução e a condenação da ré na entrega do locado, no pagamento das rendas vencidas e não pagas até efectiva entrega do locado e no pagamento da indemnização prevista no art.º 1041º, do CC, conforme certidão de fls. 162 a 189 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
33-Tal acção que correu termos sob o nº 5463/16.0... no Juízo Local Cível ... – Juiz ... foi julgada totalmente improcedente, por decisão transitada em julgado em 21.05.2018, porquanto os contratos celebrados entre a ré e o autor foram considerados nulos, conforme certidão de fls. 162 a 189 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
34-A fracção autónoma aludida em 1- trata-se uma habitação tipo T4 e tem o valor patrimonial, fixado no ano de 2017, de € 216.520,87, conforme documento de fls. 11v a 12 e cujo teor se dá por integralmente reproduzido.
35-A dita fracção autónoma é composta ainda por garagem e arrumos na cave e situa-se no centro urbano da cidade ..., onde tem todo o tipo de comércio e serviços, incluindo os de saúde e de todos os graus de ensino, transportes públicos à porta, boas acessibilidades, estando junto do nó da VCI com a Via Rápida, tendo a partir daí todas as ligações para norte ou sul do país.
36-O valor comercial da fracção autónoma, à data dos aludidos negócios, correspondia a valor não inferior ao seu valor patrimonial, ou seja, correspondia a valor não inferior a cerca de € 200.000,00 e actualmente o seu valor locativo é de cerca de € 1.400,00 por mês.
Estes os factos provados.
O recorrente, no recuso de apelação, veio impugnar a factualidade, que adiante se assinalará, com o fundamento de que, revestindo a mesma natureza de convenções estabelecidas, especialmente em contradição com o teor de documento particular autenticado e da escritura pública de compra e venda, não poderia ter sido ela sujeita a prova testemunhal ou objecto de presunções judiciais.
Não entendeu, assim, a Relação por entender que “o motivo da contratação, a finalidade visada pelas partes ao outorgar, não se esgotou na mera e típica transferência do direito de propriedade sobre um imóvel mediante o pagamento de um preço, antes reconduziu-se a uma realidade bem mais complexa – a transferência da propriedade como garantia do cumprimento da obrigação de restituir emergente de um contrato de mútuo celebrado entre vendedores-mutuários e comprador-mutuante, mantendo-se a coisa vendida no uso dos vendedores por força de um contrato de arrendamento. E esta realidade, o motivo, a finalidade da contratação, em nada contraria o conteúdo dos contratos de compra e venda em causa nos autos – aquela antes é pressuposto destes.” E porque: “Em segundo lugar, a simples circunstância de, no mesmo dia (11 de Junho de 2012), vendedores e compradores terem reduzido a escrito contrato-promessa de compra e venda, pelo qual os compradores assumiram o compromisso de vender de volta aos vendedores, no prazo de 1 ano, o imóvel que acabavam de adquirir [pontos 10- a 12- da matéria de facto provada], bem como contrato de arrendamento relativo ao mesmo imóvel, pelo qual os compradores declararam dar de arrendamento aos vendedores ainda o mesmo prédio [pontos 13- e 14- da matéria de facto provada], claramente indicia uma realidade que transcende a simples compra e venda – ou seja, existem documentos juntos aos autos que constituem fortíssimo princípio de prova da existência de um acordo de maior abrangência no qual se inserem os contratos de compra e venda. Princípio de prova a que os documentos que atestam a sucessiva prorrogação do arrendamento relativo ao imóvel (com opção de compra a favor da arrendatária) trazem consistentíssimo reforço – pontos 18-, 19-, 21-, 24-, 25-e 28- a 30- da matéria de facto provada. E foi este contexto, esta finalidade, este acordo mais abrangente, que em nada contraria o conteúdo dos contratos referidos nos pontos 8-, 9- e 22- da matéria de facto provada, apenas os enquadrando e contextualizando, que foi concretizado e definido por recurso à prova testemunhal e ao raciocínio fundado em juízos de absoluta normalidade e razoabilidade que constitui a essência da presunção judicial. Tanto assim que, como o próprio recorrente certamente reconhecerá, a improcedência da acção não decorreu da detecção de qualquer vício intrínseco aos negócios de compra e venda, mas antes do reconhecimento da ilegitimidade substantiva do concreto fim com que foram celebrados, casuisticamente aferido no confronto entre os princípios da liberdade contratual e da autonomia privada e as normas de natureza imperativa que os regulam/limitam/concretizam – finalidade que, como se disse, é exterior ao conteúdo dos documentos formalizadores das compras e vendas em causa nos autos, pelo que a sua demonstração não está limitada pelas proibições de prova consagradas nos artigos 393º e 394º do Código Civil. (…) “
Contra esta decisão que negou provimento ao recurso se insurge, de novo, o recorrente por entender que “o acórdão da Relação, ao julgar ser de admitir prova testemunhal e por presunção de matéria que contraria o teor de contratos formalizados por escritura pública e a existência de convenções que os contrariam e que lhes são adicionais ao seu teor, violou as normas reguladoras dos meios de prova e bem assim das proibições de prova. (art.º 394 n.º 1 e 351º ambos do Cód. Civil)". Mais alegando que, ou se considera que, no acórdão recorrido, foram alcançadas conclusões por meio de presunções judiciais de que o Tribunal não podia ter-se socorrido, nos termos do art. 351.º do CC, ou que estas conclusões resultam da "[...] admissão de prova testemunhal e/ou por presunções judiciais de convenções contrárias e adicionais ao remanescente dos documentos particulares – seu teor - que se encontram junto aos autos, assinados pelas partes e que não foram objecto de impugnação– o que também não é admissível nos termos do preceito já invocado, o qual estende a sua previsão a este tipo de documentos (394 n.º 1 do CC).".
Em consequência, requer que seja ordenada "[...] a rectificação da matéria de facto nos termos peticionados, por força do art.º 662 n.º 1 do CPC em respeito com o estatuído do n.º 1 do art.º 394º do CPC, com as demais consequências legais.".
Vejamos.
O objecto do presente recurso, limitado pelo respectivo despacho de admissibilidade, suscita das seguintes questões: a) a de saber se existe convenção contrária ou adicional ao conteúdo dos documentos; b) em caso afirmativo, a de saber se, ao abrigo do art. 394º, nº 1 do CC, é admissível prova testemunhal que tenha por objecto essa convenção contrária ou adicional.
Como resulta da matéria de facto provada, ficaram provados os seguintes contratos:
- o contrato de compra e venda celebrado, em 11 de Junho de 2012, sob a forma escrita, por meio de documento particular autenticado, pelo qual CC e II adquiriram o direito de propriedade do imóvel em questão, declarando a ré, ora recorrida, BB renunciar ao seu direito de habitação sobre o imóvel vendido (contrato referido nos factos 8 e 9 da matéria de facto provada);
- o "Contrato-Promessa de Compra e Venda”, da mesma data por meio do qual CC e II declararam prometer vender a HH, DD, FF e à ré (ou a quem estes nomearem) que declararam prometer comprar para si ou terceiros, no prazo máximo de 12 meses, a mesma fracção autónoma; (facto 10)
- o contrato de arrendamento, igualmente de 11 de Junho de 2012, por meio do qual CC e II declararam dar de arrendamento a HH, DD, FF e à ré que declararam tomar de arrendamento a aludida fracção autónoma pelo prazo de 12 meses, destinada a habitação secundária, conforme documento de fls. 285v a 290; (facto 13)
- o “Contrato de Arrendamento de Duração limitada”, outorgado em 8.10.2013, por meio do qual CC declarou dar de arrendamento à ré, que declarou tomar de arrendamento, a mesma fracção autónoma; (facto 18);
- o “Aditamento a Contrato de Arrendamento de Duração limitada”, outorgado em 21.03.2014, no qual a ré declarou renunciar ao direito de opção de compra que lhe assistia nos termos do “Contrato de Arrendamento de Duração limitada”, outorgado em 8.10.2013; (facto 21);
– um segundo contrato de compra e venda, em 4 de Abril de 2014, sob a forma escrita, por meio de documento autêntico escritura pública) , pelo qual CC e II declararam vender ao autor, agora recorrente, que declarou comprar, pelo preço de € 152 500,00, o mesmo prédio (contrato referido no facto 22- da matéria de facto provada), estando a celebração destes negócios provada nos autos e não tendo os documentos produzidos para sua prova sido reputados de falsos (artigo 372.º do CC).
-o acordo escrito, da mesma data, que o recorrente e a recorrida denominaram de “Contrato de Arrendamento de Duração Limitada”, mediante o qual o recorrente declarou dar de arrendamento à recorrida, que declarou tomar de arrendamento, a mesma fracção autónoma, tendo convencionado que, até ao termo do prazo do arrendamento, a recorrida tinha o direito de opção de compra para si ou para um descendente que venha a nomear para esse efeito; (pontos 24 e 25);
- o “Acordo de revogação de Contrato de Arrendamento” de 17.3.2015 mediante o qual declararam revogar o contrato de arrendamento aludido em 4. e em que a recorrida se obrigou a entregar nessa data o imóvel livre de pessoas e bens e as chaves do imóvel, conforme documento de fls. 66v a 67v; (facto 28);
- o "Contrato de Arrendamento Habitacional com prazo certo” que vieram a celebrar em 20 de Março de 2015, no qual o autor declarou dar de arrendamento à recorrida, que declarou tomar de arrendamento, a mesma fracção autónoma, tendo convencionado que, até ao termo do prazo do arrendamento, a recorrida tinha o direito de opção de compra para si ou para um descendente que venha a nomear para esse efeito. (facto 29).
Porém, provou-se, que antes destes contratos:
“No ano de 2012, devido a dificuldades financeiras para solver dívidas, a autora, por indicação de terceiros, acordou com CC que este procederia à entrega à ré da quantia não concretamente apurada, mas não inferior a € 60.00,00 e superior a € 90.000,00, com obrigação da ré restituir a aludida quantia, acrescidas de juros remuneratórios e demais encargos, e para garantir a restituição dessas quantias, os filhos da ré vendiam o imóvel referido em 1- ao aludido CC, com a obrigação de este o revender aqueles quando fossem restituídas as aludidas quantias.” (factos 5 e, ainda, 6 e 7).
Foi a conjugação dos sucessivos contratos com este acordo prévio que permitiu ao Tribunal de 1.ª instância, depois de abordar a questão da nulidade do negócio em fraude à lei, com fundamento normativo no art. 284º do CC, dizer o seguinte: "[...] os factos apurados integram a figura atípica da venda fiduciária em garantia, que consiste numa venda do bem como garantia do pagamento da quantia mutuada pelo comprador ao vendedor, num contrato de mútuo que pode ser oculto pelos interessados, obrigando-se o comprador mutuante a revender o bem ao vendedor mutuário, depois de estar pago o mútuo, no prazo acordado por ambos." Porém, ponderou que “… deverá ser considerada inválida a venda fiduciária sempre que no caso concreto se revele não só usurária, mas por qualquer forma abusiva e contrária à lei, segundo os critérios dos art.ºs 280º, 282º, 294º e 334º do CC, tendo em atenção que a sua falta de parametrização poderá proporcionar uma situação que estes artigos visam impedir. No presente caso, da factualidade apurada, ressuma que o dito CC e o autor não só tinham conhecimento do endividamento da autora e da fragilidade da sua situação, como claramente disso se quiseram aproveitar, pretendendo ficar com a fracção autónoma transmitida por um preço substancialmente inferior ao seu valor real. Isto porque o valor do prédio vendido que ascendia, à data da celebração do negócio, não era inferior ao seu valor patrimonial, ou seja, a cerca de € 200.000,00 (e cujo valor comercial é actualmente, como é notório, muitíssimo superior), valor este ostensiva e consideravelmente superior ao valor da quantia mutuada (inferior a € 90.000,00) e dos juros que legalmente o autor (e anterior adquirente do bem) poderia cobrar (cfr. art.º 1146º, do CC). “ por isso concluiu que “ que os contratos de compra e venda impugnados não só são usurários, como contrários à lei e, como tal, nulos nos termos do art.º 280º do CC”.
No acórdão, a Relação rejeitou, como se disse, a impugnação de facto, pelos motivos atrás aduzidos, concluindo:“ A propósito do enquadramento jurídico dos factos demonstrados nos autos, o recorrente absolutamente nenhuma questão suscita relativamente ao instituto da fraude à lei (…): . recorrente limita-se a novamente repetir que, na sua perspectiva, o julgamento da matéria de facto mostra-se inquinado por terem sido indevidamente postergadas proibições de prova, com utilização de prova testemunhal e de presunções judiciais na demonstração de factos contrários ao conteúdo de documentos autênticos e autenticados. A este propósito o recorrente até realça que a análise da existência de fraude à lei teria na sua perspectiva sido evitada por «uma correcta aplicação do direito, mormente das regras do ónus da prova, e da força probatória dos documentos (…)”(conclusão 44ª). Ou seja, não saímos da discordância do recorrente quanto à decisão proferida sobre a matéria de facto. Matéria já acima apreciada e decidida, e para onde agora se remete. O recurso improcede na íntegra.”
Como se viu, o enquadramento jurídico dos factos prosseguido pela 1ª instância tem a ver com um negócio fiduciário (que é usurário e em fraude à lei).
A propósito, escreve Pais Vasconcelos que “o negócio fiduciário é um negócio atípico misto, construído geralmente por referência a um tipo negocial conhecido susceptível de ser adaptado a uma finalidade diferente da sua própria, através de uma convenção obrigacional de adaptação (pacto fiduciário )” (Teoria Geral do Direito Civil, Almedina, 9ª edição, pág. 639), convenção obrigacional que parece não estar sujeita a forma escrita (ob. cit., pág. 642).
Escreve o mesmo autor: “ Na fidúcia cum creditore, o credor ou um terceiro são investidos na titularidade de um ou mais bens ou direitos do devedor com vista a assegurar ou facilitar a garantia ou o pagamento do crédito. Trata-se de uma modalidade de fidúcia com tradição milenar: Para assegurar a garantia do pagamento de uma dívida ou do cumprimento da obrigação o devedor transfere para a titularidade, normalmente a propriedade, do credor uma coisa ou um direito. Se houver com cumprimento a coisa ou direito fiduciado são devolvidos; em caso de incumprimento serve de base para que o credor obtenha o sucedâneo do cumprimento ou a base patrimonial para o seu ressarcimento” (pág. 646).
Mais adiante, escreve: “a fidúcia cum creditore não colide com a proibição do pacto comissório embora possa eventualmente ser usurária, caso em que lhe será diretamente aplicável o regime dos artigos 282º e seguintes do Código Civil (pág. 647).
Com interesse, assinala, ainda, o referido autor: “A divergência entre o fim fiduciário e a função típica do tipo negocial utilizado não tem como consequência invalidade mas antes e apenas a diferente qualificação” (pág. 649); …“ Da divergência entre o fim fiduciário da compra e venda e a função económica social típica da compra e venda que é uma transmissão onerosa e definitiva da propriedade, só se pode concluir que o negócio em questão não é afinal qualificável como uma verdadeira compra e venda mas antes como um negócio atípico, de tipo modificado, construído sobre o tipo de referência da compra e venda em relação ao qual as partes estipularam uma modificação consistente precisamente no fim fiduciário (… ) (pág. 650).
Acolhendo estas considerações, pode ver-se os Acs. STJ de 16.3.2011, proc 279/20002.E1.S1 e 28.6.2017, proc. 1626/12.5TBMT.J.L1.S1, ambos em www.dgsi.pt.
Servem estas considerações no plano do enquadramento jurídico para iluminar a questão e assinalar que o que está subjacente à discussão da (in) admissibilidade de prova testemunhal, à face do art. 394º, nº 1 do CC, é, detrás dos contratos celebrados, a possibilidade da existência de um pacto relacionado com um empréstimo.
Mas centremo-nos no objecto do recurso.
Como se sabe, “[é] inadmissível a prova de testemunhas em contrário do conteúdo de documentos autênticos [...]". Isto quer dizer que não é lícito provar, por meio de testemunhas, qualquer acto ou facto que contradiga o que consta do documento (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. IV, Coimbra, 1981, pág. 332).
Mas também não é permitido provar por meio de testemunhas cláusulas adicionais às que o documento contém. “Não pode pretender-se nem contrariar nem completar por via de prova testemunhal o que no documento se declara. As estipulações que vão além do conteúdo de um documento ( que o ultrapassam )distinguem-se das que lhe são contrárias por este critério: obrigado as primeiras são perfeitamente compatíveis com a exatidão do conteúdo ao passo que as segundas são incompatíveis com tal exatidão “ (ob. cit, pág. 332).
Assim, por "convenções adicionais "ou" cláusulas acessórias", nos termos e para os efeitos do n. 1 do art.º 394 do C. Civil, deverá entender-se as "estipulações das partes que nem constituem reprodução desnecessária de normas legais supletivas...nem são elemento fisionómico do tipo negocial em causa; ou seja, cláusulas que, em rigor não são partes integrantes típicas do negócio celebrado, mas que lhe acrescentam ou modificam qualquer coisa.” (Ac. STJ de 16.5.2002, proc. 01B2338)
Porém, deve advertir-se “que o artigo 394 se refere apenas às convenções contrárias ou adicionais ao conteúdo do documento não excluindo por conseguinte a possibilidade de se provar por testemunhas qualquer elemento com o fim o motivo porque a dívida documentada foi contraída (…)” (Pires de Lima e Antunes Varela, CC anotado, Volume I, 3ª edição, pág. 342). Assim, tem-se admitido que o regime instituído pelo art. 394.º não obsta a que se faça prova testemunhal que tenha por objecto o motivo ou o fim do negócio, o qual não é contrário ao conteúdo do documento nem constituiu uma cláusula adicional à declaração (cfr. Ac. STJ de 6.5.2004, no proc. 04B1161, disponível em www.dgsi.pt: "[o] art. 394º C.Civ. não exclui a possibilidade de provar por testemunhas os fins ou motivos do estipulado, e não tem também aplicação à prova dos vícios da vontade que porventura tenham atingido o consentimento dos autores das declarações constantes do documento." (v., também, no mesmo sentido, o Ac. STJ de 4..3.1997, Col. 1997-I- págs.121-125 e Ac. R.C. de 20.1.2015, proc. 2996/12, em www.dgsi.pt, citados por Luís Filipe Pires de Sousa, em Direito Probatório Material, Almedina, 3ª edição, pág. 231).
Por outro lado, a doutrina e jurisprudência vêm admitindo que mesmo a proibição da produção de prova testemunhal prevista pelo artigo 394º, nº 1, não é absoluta, admitindo excepções quando exista um começo ou princípio de prova contrária por escrito. Como afirma Vaz Serra, “[...] se o facto a provar está já tornado verosímil por um começo de prova por escrito, a prova de testemunhas é de admitir, pois não oferece os perigos que teria quando desacompanhada de tal começo de prova (anotação ao Ac. STJ de 4.12.1973, RLJ 107, pág. 312). Também no Ac. STJ de 17.12.2020, proc. 3815/16.4T8AVR.P1, disponível em www.dgsi.pt, se ajuizou que: "VII. Estas estipulações não estão sujeitas ao regime de prova do art. 394.º, n.º 1, do CC, uma vez que não são contrárias (pois não se opõem ao conteúdo do documento) nem adicionais (na medida em que não vão além do conteúdo do documento, nada lhe acrescentando) ao conteúdo de documento autêntico, autenticado ou particular cuja autoria esteja ou venha a ser reconhecida nos termos previstos na lei (arts. 373.º-379.º); VIII. Ainda que se tratasse de estipulações contrárias ou adicionais ao conteúdo de documento autêntico ou de documentos particulares mencionados nos arts. 373.º a 379.º, sendo válidas e eficazes (arts. 221.º e 222.º), pode ser usada prova testemunhal para fazer a sua prova quando exista um início de prova por escrito. Admite-se a prova testemunhal, não como meio de prova por si só suficiente para demonstrar uma convenção contrária ou adicional ao conteúdo do documento, mas como meio de prova complementar de outro meio admissível (que constitua um princípio de prova)." Também no Ac. STJ de 21.3.2019, proc. 2639/13.5TBVCT.G1.S2, em www.dgsi.pt se entendeu que: "Quando há um começo de prova por escrito, que torne verosímil o facto alegado, a prova testemunhal já não é o único meio de prova do facto, justificando-se a excepção, por, então, o perigo da prova testemunhal ser eliminado em grande parte, visto a convicção do tribunal se achar já formada parcialmente com base num documento.". Ainda no Ac. STJ de14.9.2021, proc. 864/18.1T8VFR.P1.S1, se ajuizou que: “Quando houver princípio de prova por escrito, que torne verosímil o facto a provar, contrário à declaração confessória ou a qualquer convenção contrária ou adicional ao conteúdo da escritura, é admissível prova testemunhal para complementar a demonstração, de modo a fazer a prova do facto contrário ao constante dessa declaração, o que decorre da interpretação do art. 394.º do CC.”
Munidos destas prévias considerações, apreciemos, então, se os pontos de facto que se pretendem ver alterados consubstanciam qualquer convenção que vá contra o conteúdo dos documentos ou além deles (e lhes acrescentam algo) (ou se respeitam apenas aos fins ou motivos do estipulado) e, em caso afirmativo, se existe algum começo de prova que permita ultrapassar essa restrição.
O recorrente pretende que se elimine o facto 5:" No ano de 2012, devido a dificuldades financeiras para solver dívidas, a autora, por indicação de terceiros, acordou com CC que este procederia à entrega à ré da quantia não concretamente apurada, mas não inferior a € 60.00,00 e superior a € 90.000,00, com obrigação da ré restituir a aludida quantia, acrescidas de juros remuneratórios e demais encargos, e para garantir a restituição dessas quantias, os filhos da ré vendiam o imóvel referido em 1. ao aludido CC, com a obrigação de este o revender aqueles quando fossem restituídas as aludidas quantias.”
Cremos que o acordo do empréstimo não envolve qualquer convenção contrária ou adicional ao contrato de compra e venda.
Porém, o acordo da venda com obrigação de revenda para servir de garantia ao empréstimo envolve já, em nosso entender, não uma convenção contrária ao conteúdo do contrato de compra e venda, mas uma convenção adicional ao contrato de compra e venda. As partes quiseram efectivamente comprar e vender. Fizeram-no, porém, com a finalidade de servir de garantia de um empréstimo. Não se pode, assim, dizer que o acordo de venda e de revenda, que se destina a garantir a restituição das quantias emprestadas, tem a ver apenas com as circunstâncias ou motivos que o determinaram. Tem a ver também com um acordo adicional e anterior ao da compra e venda, que adaptou a finalidade desse contrato (cfr. Pedro Pais Vasconcelos, loc. cit.; e o Ac. STJ de 16.3.2011, supra citado). O fim, prosseguido com a celebração do contrato de compra e venda, de garantia de um empréstimo, não é, assim, estranho ou exterior ao conteúdo do contrato de compra e venda: introduz-lhe um aditamento juridicamente relevante.
Como assim, e à partida, uma tal convenção adicional não poderia ser provada por testemunhas, à face do disposto no nº 1 do art. 394º do CC.
Todavia, existe um princípio de prova escrito, constituído por vários escritos (Vaz Serra, em “ Provas “, BMJ 112, pág. 221) que permite, a nosso ver, a demonstração dessa convenção adicional por prova testemunhal.
Com efeito, verifica-se que no mesmo dia da compra e venda, a ré e os filhos celebraram com CC e JJ, compradores, o contrato de arrendamento, por 12 meses (facto 12) e um contrato-promessa (facto 10) com vista à recompra da fracção autónoma dentro do prazo de 12 meses, a que se seguiram um “Contrato de Arrendamento de Duração limitada”, outorgado em 8.10.2013, por meio do qual CC declarou dar de arrendamento à ré, que declarou tomar de arrendamento, a mesma fracção autónoma; (facto 18), o “Aditamento a Contrato de Arrendamento de Duração limitada”, outorgado em 21.03.2014, no qual a ré declarou renunciar ao direito de opção de compra que lhe assistia nos termos do “Contrato de Arrendamento de Duração limitada”, (facto 21), um segundo contrato de compra e venda, em 4 de Abril de 2014, sob a forma escrita, por meio de documento autêntico (escritura pública) , pelo qual CC e mulher declararam vender ao autor, agora recorrente, que declarou comprar, pelo preço de € 152 500,00, o mesmo prédio (contrato referido no facto 22 da matéria de facto provada), um Contrato de Arrendamento de Duração Limitada”, da mesma data. mediante o qual o recorrente declarou dar de arrendamento à recorrida, que declarou tomar de arrendamento, a mesma fracção autónoma, tendo convencionado que, até ao termo do prazo do arrendamento, a recorrida tinha o direito de opção de compra para si ou para um descendente que viesse a nomear para esse efeito; (factos 24 e 25), um “Acordo de revogação de Contrato de Arrendamento” de 17.3.2015 mediante o qual declararam revogar o contrato de arrendamento aludido em 4. e em que a recorrida se obrigou a entregar nessa data o imóvel livre de pessoas e bens e as chaves do imóvel, conforme documento de fls. 66v a 67v; (facto 28) e a, ainda, um, "Contrato de Arrendamento Habitacional com prazo certo” que vieram a celebrar em 20 de Março de 2015, no qual o autor declarou dar de arrendamento à recorrida, que declarou tomar de arrendamento, a mesma fracção autónoma, tendo convencionado que, até ao termo do prazo do arrendamento, a recorrida tinha o direito de opção de compra para si ou para um descendente que viesse a nomear para esse efeito (factos 29 e 30). Note-se, aliás, que no novo contrato de arrendamento habitacional, por 9 meses, se estabelece, inusitadamente, uma renda para o primeiro mês, outra para os dois meses seguintes e ainda outra para os restantes 6 meses.
Ao contrário do recorrente, consideramos, assim, que o referido complexo negocial constitui um forte princípio de prova da existência do acordo referido em 5., que é denunciado pelos contratos de compra e venda e pelos documentos subsequentes que contêm a sucessiva prorrogação do arrendamento relativo ao imóvel e a opção de compra a favor da arrendatária.
Como se escreve em “Provas“, Vaz Serram BMJ 112, a pág. 223 “…. o facto estabelecido pelo começo de prova deve tornar à primeira vista verosímil o facto alegado“, sendo que “ a verosimilhança não é a aparência da verdade, mas o que é provável”.
Perante este quadro negocial, cremos que se mostra verosímil que, subjacente, desde logo, ao contrato de compra e venda de 14.6.2012, se encontrava um acordo de empréstimo e de garantia, a que o contrato de arrendamento e o contrato- promessa de compra e venda, da mesma data, visavam também dar corpo (assegurando o pagamento das prestações mutuadas e, também, a restituição da propriedade aos mutuários, em caso de cumprimento da obrigação de restituição das quantias mutuadas).
Alega, ainda, o recorrente que os documentos (que serviram de base ao juízo de verossimilhança de um acordo mais abrangente) não podem ser usados como facto(s) -base de presunção judicial.
Exigia-se, porém, que o recorrente indicasse, com recurso à fundamentação, os concretos factos em relação aos quais foram feitas presunções com recurso aos documentos (que funcionam como princípio da prova )
Não o tendo feito, não pode este Tribunal concluir que as presunções operadas não tiveram origem em factos resultantes da prova testemunhal (que funcionou como prova complementar)e que as presunções não eram admissíveis, à face do disposto no art. 351º do CC.
Entende o recorrente que, ainda que se admitisse a prova testemunhal, não deviam os depoimentos prestados pelas testemunhas (as primeiras duas na qualidade de compradores e as restantes na qualidade de proprietários e vendedores), que revestem a natureza de verdadeiras declarações de parte, ter a virtualidade de afastar a aplicação do nº 1 do art. 394º do CC.
Porém, não existem restrições à prova complementar do começo de prova. O juiz não está inibido de avaliar quaisquer provas, mesmo aquelas que podem revestir a natureza de declarações de parte. O tribunal aprecia livremente as declarações das partes, salvo se as mesmas constituírem confissão (art. 466º, nº 3 do CPC) . Sendo evidente que, neste tipo de prova. a avaliação e ponderação da mesma deve ser feita com a necessária cautela (não estando demonstrado que tenha sido o caso), não se pode pois, e à partida, excluir tal prova adjuvante.
Como assim, o facto 5 deve manter-se. Como se deve manter o facto 6- Mais acordaram que a ré e o seu agregado familiar poderia continuar a viver no imóvel, como vinha sucedendo há mais de 25 anos- que não está, sequer, em colisão com qualquer contrato, designadamente, com o contrato de compra e venda,,
O recorrente pretende, também, a eliminação do facto 7: “ E para justificar tal ocupação, acordaram ainda celebrar um contrato de arrendamento, servindo as rendas aí acordadas para pagamento dos juros acordados para a remuneração do empréstimo”.
As rendas não têm por função normal a remuneração de empréstimos mas a retribuição do gozo do imóvel. Nessa medida, o facto de as rendas servirem para pagamento dos juros acordados para a remuneração do empréstimo representa uma convenção adicional ao contrato de arrendamento referido nos factos 13 e 14..
No entanto, também sobre esta convenção adicional se afigura possível a prova testemunhal, pelas razões já invocadas a propósito do facto 5.
Tendo sido convencionada a remuneração do empréstimo, parece plausível que as rendas possam ter servido para o efeito (o que, aliás, também ressalta, como se disse acima, do estabelecido aumento progressivo das rendas, que consta do facto 29).
E, por isso, se mantém o facto 7.
O recorrente pretende, ainda, que, no facto 8 seja retirada a expressão“ Em conformidade com o assim acordado… “. Porém, tendo-se mantido os factos anteriores (5 a 7), deve o facto 8 subsistir,
Também por decorrência dos factos anteriores, designadamente dos factos 5 a 7, que aludem à existência do empréstimo garantido , se deve manter o facto 17: “Não tendo a ré tido condições financeiras de restituir ao referido CC os valores acordados, acordaram estes em prorrogar o prazo de restituição.”
Igualmente o facto 20- Como a ré continuou a não ter condições financeiras para restituir o montante de capital e juros vencidos, o aludido CC acordou com o autor transmitir-lhe a sua posição no aludido empréstimo, o que comunicou à ré- se mostra em consonância com os factos anteriores, designadamente com o facto 5 e com o facto 17.
Atendendo aos factos anteriores e motivos expostos, também a pretensão do recorrente da supressão do segmento inicial: “E, como forma de viabilizar a continuidade do empréstimo” do facto 21 -E, como forma de viabilizar a continuidade do empréstimo, por documento particular denominado de “Aditamento a Contrato de Arrendamento de Duração limitada”, outorgado em 21.03.2014, a ré declarou renunciar ao direito de opção de compra aludido em 18, conforme documento de fls. 160 a 160v e cujo teor se dá por integralmente reproduzido- se mostra votada à improcedência.
A mesma sorte deve merecer a pretendida eliminação do facto 26: “Tal documento destinou-se a conceder à ré um prazo de 12 meses para a restituição dos valores de capital e juros e demais encargos, bem como a fixar o valor de recompra do imóvel pela ré, sendo a renda ali acordada uma forma de pagamento dos juros remuneratórios acordados.” Subsistem aqui as razões já invocadas em relação ao empréstimo, ao arrendamento e às rendas. Não existem obstáculos à prova testemunhal desta convenção adicional ao documento 24 na parte em que se prova que o documento se destinava a conceder um prazo para a restituição do empréstimo e na parte em que se fixa que a renda acordada era uma forma de pagamento de juros (sendo que a parte da recompra resulta já do facto 25)
Também o facto 27 -No fim do prazo estipulado para a restituição dos referidos valores, a ré continuava sem condições financeiras para o fazer- se mostra em consonância com os factos anteriores e com os fundamentos expostos (para a sua manutenção).
A expressão “por isso” do facto 28 (que se reporta ao acordo de 17.3.2025, de revogação do contrato de arrendamento de 8.10.2013), que se pretende ver eliminada, está de harmonia com os factos precedentes.
O facto 31- Tal documento destinou-se a conceder à ré a prorrogação do prazo para a restituição dos valores de capital e juros e demais encargos, bem como a fixar o valor de recompra do imóvel pela ré, sendo novamente a renda ali acordada uma forma de pagamento dos juros remuneratórios acordados - que se pretende ver erradicado (e que tem a ver com o contrato de arrendamento de 20.3.2015 do facto 29), deve manter-se pelos motivos já referidos a propósito do facto 26.
Finalmente, o recorrente pede, relativamente ao facto 32, a supressão da expressão “Não tendo a ré logrado cumprir com o assim acordado”, que se mostra mencionada como causa da propositura da acção, mas também aqui, e pelas razões sobejamente invocadas, deve manter-se tal facto (que decorre, aliás, dos anteriores dos factos 28 a 31).
Em resumo, não se verifica qualquer ofensa ao disposto no nº 1 do art. 394º do CC, que esteja na origem de qualquer violação do nº 3 do art. 674º do CPC (ou de qualquer nulidade ao abrigo do art. 615º do mesmo Código).
Pelo exposto, acordam os Juízes desta Secção em negar a revista e confirmar o acórdão recorrido.
Custas pelo recorrente.
António Magalhães (Relator)
Jorge Leal
António Domingos Pires Robalo