- Tendo o autor vindo aos autos, a pretexto da mera ampliação do pedido, apresentar um articulado superveniente em que pretende igualmente ampliar a causa de pedir, compete ao mesmo concretizar os factos em que baseia a sua pretensão, indicar o momento em que ocorreram ou que deles teve conhecimento e, se necessário for provar o conhecimento superveniente;
- A perda do interesse do credor ou a recusa do cumprimento do contrato-promessa prevista no artigo 808.º, do Código Civil, assentam na mora do devedor;
- Subsistindo uma divergência quanto à área edificada do prédio prometido vender, com relevo para o promitente comprador e para o banco que iria financiar a compra, e disponibilizando-se aquele a ajudar o promitente-vendedor a harmonizar as descrições, a recusa deste em eliminar prontamente tal divergência consubstancia um impedimento válido à marcação e outorga da escritura;
- Tendo sido notada a relevância quanto à divergência documental da área edificada do prédio, o promitente-vendedor não pode impor ao promitente comprador e/ou à entidade que financia o negócio que assumam os riscos, incómodos, despesas ou transtornos resultantes dessa mesma divergência;
- Não incorre em mora o promitente-comprador que, não tendo recebido do promitente-vendedor a documentação que comprova o cancelamento de uma anterior penhora e a rectificação da divergência quanto à área edificada do prédio, não procede à marcação da escritura no prazo inicialmente acordado;
- A interpelação admonitória prevista no artigo 808.º, n.º 1, do Código Civil, concede ao credor a faculdade de fixar um prazo razoável dentro do qual o devedor poderá ainda cumprir, sob cominação de a mora se converter em incumprimento definitivo com a consequente resolução do contrato;
- A adequação ou razoabilidade do prazo para o devedor cumprir deverá atender às circunstâncias do caso concreto, particularmente a circunstância dos outorgantes do contrato-promessa terem logo acordado que seria dado conhecimento da marcação da escritura de compra e venda, através de carta registada, expedida com 15 dias úteis de antecedência;
- Insurgindo-se a apelada contra a circunstância do apelante ser possuidor de uma moradia no concelho de Cascais e que, por força do contrato de promessa, recebeu um milhão de euros, mas continua a litigar com o benefício do apoio judiciário, porque omitiu todos esses factos aquando da apresentação do respectivo pedido junto da Segurança Social, declarando ainda uma residência que não é mais do que um escritório de advogados, deverá ser dado conhecimento ao Ministério Público, a quem caberá decidir da pertinência dos factos provados para instaurar a acção para cobrança das custas, taxa e encargos devidos pelo autor, nos termos do disposto no art.º 13.º, n.º 1, do Regime de Acesso ao Direito e aos Tribunais.
29. A carta registada com aviso de recepção foi enviada para a morada da Ré indicada no contrato promessa de compra e venda, porém, a missiva foi devolvida com a indicação de que a morada “não existe”, conforme Documentos n.º 5 e 6 juntos com a PI.
30. A missiva foi devolvida porquanto a morada que consta no contrato promessa de compra e venda como sendo da Ré – “...Lisboa” – não estava correcta e completa quanto ao n.º de porta e andar, e a essa data era sita na ...Lisboa, conforme comprovativos juntos como Docs n.º 7 e 8 juntos com a PI.
31. A comunicação foi novamente remetida a 17 de Outubro de 2022, conforme comprovativos que se juntam como Documentos n.º 9 e 10.
32. A carta de interpelação foi levantada a 20 de Outubro de 2022, na loja dos CTT do Restelo, como decorre do Documento n.º 11.
33. Não obstante a ultrapassagem da data prevista no contrato promessa para a realização da escritura definitiva de compra e venda e do prazo para a marcação da escritura concedido na carta de 30/09/2022 pelo A. à R., ambas as partes mantiveram o interesse na realização do contrato prometido de compra e venda mediante a outorga da escritura pública.
34. A R. contactou um consultor fiscal para explicar ao A. o que e como devia fazer junto do Serviço de Finanças para resolver a divergência de áreas referida em 25 a 27.
35. O A. e o gerente da R. deslocaram-se juntos, em 12/11/2022, ao Montijo, onde reuniram com o Dr. F, consultor fiscal.
36. Em tal reunião o Dr. F explicou ao A. como poderia, do seu ponto de vista, ser resolvida a divergência de áreas cobertas.
37. Tal solução passaria pela entrega de um impresso mod.1 com o pedido de alteração da área coberta.
38. Na referida reunião o Dr. F disponibilizou-se para fazer o pedido de retificação da área coberta do prédio cuja venda foi prometida, desde que o A. lhe facultasse a senha de acesso.
39. Ou em alternativa, o Dr. F dispôs-se a acompanhar o A. ao Serviço de Finanças para tratar da alteração.
40. Em 22/11/2022, o gerente da R. enviou ao A. uma mensagem por WhatsApp às 20h20 com o seguinte teor: “Quanto ao seu acesso em IRS, falei com o F ontem e ele disse-me que o ideal é fazer como sugeriu. O Sr. A muda a password agora, dá-nos acesso e depois dele colocar o pedido de alteração da área nas finanças, muda novamente a password para a antiga”. – cfr. doc.1.
41. E repetiu tal mensagem ao A. em 04/12/2022, doc. 1.
42. O gerente da R. nesse dia 04/12/2022 avisou o A., pela mesma via, de que lhe iria mandar uma carta a marcar a escritura e a perguntar ao A. se queria que lhe entregasse a carta também em mão.
43. E o A. respondeu “entregue também uma à parte a informar as compensações”.
44. Nesse mesmo dia, pelas 21h41 o gerente da R. enviou ao A. uma mensagem via WhatsApp com o seguinte teor: “Não lhe liguei, pois, depois da nossa conversa telefónica fiquei perturbado e não queria mais confusões - cada um tem de resolver as coisas que respeitam a si. Boa noite (se quiser que lhe entregue a carta em mão diga.” – cfr. doc.1. 45. O A. respondeu “perturbado??? A conversa correu tão bem… só pode ser mais uma desculpa e bem esfarrapada. Mande dizer primeiro as compensações. A conserva até terminou a se falar no suv…. Está confundido só pode…”. – cfr. doc.1 junto com a contestação.
46. Em 05/12/2022 o gerente da R. enviou ao A. para o seu domicílio, sito na Rua (…), em Alcabideche, a carta que havia avisado no dia anterior que lhe ia ser remetida - cfr. doc.4, 9 e 10 juntos com a contestação.
47. Em tal carta a R. comunicou que marcou a escritura de compra e venda para o dia 22 de dezembro de 2022 pelas 11h30 no Cartório Notarial de Lisboa da Notária Adelaide Josefa de Campos Videira.
48. É o seguinte o teor da carta:
49. A carta enviada pela R. não foi recebida pelo A., tendo o distribuidor postal deixado aviso em 06/12/2022 que estava disponível para levantamento na estação dos CTT. – cfr. doc.9 junto com a contestação.
50. O A. não foi levantar a carta enviada pela R. no prazo constante do aviso, tendo a mesma sido devolvida à R. por não reclamada em 19/12/2022– cfr. doc. 9 junto com a contestação.
51. A escritura, no dia e hora marcados pela R. não foi realizada por falta de comparência do A. cfr. doc. 10 junto com a contestação.
52. A R. compareceu no cartório notarial referido na carta no dia e hora da escritura.
53. O “Certificado” emitido pelo Cartório Notarial de Lisboa a 22.12.2022 junto como doc. 10 com a contestação, refere que “À hora marcada estava presente neste cartório, para o efeito, o representante da sociedade supra “AA, Unipessoal, Lda.”, com toda a documentação disponível para a outorga do contrato de compra e venda. A escritura de compra e venda todavia não se realizou por falta de comparência do comprador”.
54. Em Maio de 2022, o Autor entregou uma cópia das chaves da moradia implantada no imóvel e do comando do portão do imóvel à Ré, na pessoa do gerente da empresa de construção civil contratada pela R. - G, para efeito de realização das obras no imóvel, referidas na Cláusula Quarta do contrato promessa (cfr. Documento n.º 3 junto com a PI).
55. Na sequência da entrega das chaves do prédio pelo A. à R., o A. passou a residir na Rua (…), em Alcabideche. – cfr. doc.7 e 8 juntos com a contestação.
56. A feitura das obras implicava a retirada pelo A. dos móveis do imóvel.
57. A R. iniciou obras no imóvel, após lhe terem sido entregues as chaves pelo A., tendo contratado a empresa de construção civil “...DD, Lda.” para a realização das obras.
58. As obras já realizadas correspondem à demolição de um corpo anexo ao edifício principal, à remoção de paredes divisórias interiores, revestimentos, caixilharias, sanitários e instalações técnicas, demolição e enterramento da piscina.
59. Foram abertos e alargados vãos exteriores e interiores da moradia com colocação de novas cantarias em peitoris, montadas tubagens e caixas para instalação eléctrica e alarme. Foram introduzidos perfis metálicos em diversos locais de forma a reforçar a estrutura resistente do imóvel em função da nova compartimentação e mapa de vãos e compensar as fragilidades estruturais originais. Foi realizada uma intervenção na cobertura de forma a melhorar o seu desempenho.
60. As obras realizadas pela R. no imóvel do A., até 30/11/2022, altura em que foram suspensas pela R., correspondem às descritas no auto junto como doc. 11 com a contestação, ascendendo o seu valor a € 166.208€.
61. O A. encontra-se a residir em permanência na Rua (…) Alcabideche, em imóvel adquirido com o valor do sinal que lhe foi pago pela R. .
*
2.2. Foi julgado não provado que:
a. Ao disponibilizar a chave do imóvel para feitura da obra, o Autor ficou privado do acesso ao mesmo, uma vez que a fechadura foi trocada.
b. O imóvel é a casa de morada de família do A. e o impedimento de gozo está a causar-lhe transtorno considerável.
c. A R. tinha já, há meses, tendo por referência a data de 14/07/2022, a aprovação do crédito bancário necessário para pagar o preço remanescente da aquisição do imóvel.
d. A R. diligenciou para marcar a escritura de compra e venda no Cartório Notarial de Cascais a cargo do Dr. H para o início de agosto.
e. Só que, após o Cartório analisar a documentação entregue, informou que não havia condições para se realizar a escritura uma vez que se verificavam as divergências das áreas já acima detalhadas.
f. A R. perdeu o interesse na celebração do contrato prometido face ao comportamento do A. [infra eliminado].
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2.3. A questão prévia da ampliação do pedido e da causa de pedir, com base em factos supervenientes.
O autor tinha inicialmente peticionado a condenação da ré a restituição o imóvel daquele. Porém, invocando a confissão pelo réu na audiência e a realização de perícia, referiu que estão “em causa factos novos trazidos ao conhecimento do Autor, [e] revela-se imperativo ampliar o pedido apresentado” – cfr. o aludido requerimento de 10/1/2024 (Ref.ª 47615480).
A formulada ampliação, que foi expressamente apresentada “nos termos e para os efeitos do artigo 265.º, n.º 2, do Código de Processo Civil”, consiste no seguinte:
- Seja a Ré condenada a eliminar as obras e alterações efectuadas ao imóvel, que extravasem o conceito de “manutenção e reparação”;
- Seja a Ré condenada a entregar o imóvel no estado em que o recebeu;
A decisão recorrida considerou que “no caso dos autos a R. não deu o seu acordo, nem confessou que as obras extravasão o autorizado no contrato promessa, nem nos pedidos formulados na petição inicial vem peticionado algo relativamente a obras, não sendo por isso a ampliação do pedido desenvolvimento nem consequência do pedido primitivo, pelo que não se admite a ampliação do pedido”.
O apelante sustenta que a ampliação do pedido “deu origem a um pedido diverso, mas que é inequivocamente um desenvolvimento do pedido primitivo, que resulta do incumprimento de cláusula contratual do CPCV em discussão nos presentes autos, do qual o Apelante só teve conhecimento superveniente – sublinhando que as chaves do imóvel estavam na posse do legal representante da Apelada e o Apelante não tinha acesso ao imóvel”, que a “causa de pedir na acção primitiva foi o incumprimento reiterado do CPCV por parte da Apelada, o que causou danos patrimoniais e não patrimoniais graves ao Apelante” e que “A realização de obras não permitidas pelo CPCV outorgado pelas partes também configura incumprimento contratual” – conclusões T), U) e V).
Como já foi salientado na decisão recorrida, o processo civil está subordinado ao princípio da estabilidade da instância consagrado no art.º 260.º, do Código de Processo Civil, pelo que as alterações quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, apenas terão lugar nos termos consignados na lei.
No seu requerimento, o autor explicitamente invoca o disposto no artigo 265.º, n.º 2, do Código de Processo Civil, que dispõe o seguinte: “O autor pode, em qualquer altura, reduzir o pedido e pode ampliá-lo até ao encerramento da discussão em 1.ª instância se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo”. Ou seja, de acordo com o autor, estaremos apenas perante uma mera ampliação do pedido primitivo.
Miguel Teixeira de Sousa, em anotação a este artigo 265.º, do Código de Processo Civil, refere que:
“(a) A alteração da causa de pedir ocorre quando a causa de pedir passa a ser outra. P. ex.: (i) modifica-se o título de aquisição da propriedade de compra e venda para usucapião; (ii) modifica-se o fundamento do pedido de enriquecimento sem causa para facto ilícito. (b) A alteração da qualificação jurídica dos factos alegados como causa de pedir não implica nenhuma alteração desta causa petendi. 6 (a) A consideração pelo tribunal de factos complementares ou concretizadores que não tenham sido alegados pelo autor (→art.º 5.º, n.º 2, al. b)) não implica nenhuma alteração da causa de pedir (assim expressamente § 264, n.º 1, ZPO).
(…)
A ampliação (cumulativa) também é válida quando é uma consequência do pedido inicial. P. ex.: (i) o autor formulou o pedido de realização de uma prestação de facto infungível; pode cumular o pedido de aplicação de uma sanção pecuniária compulsória (n.º 4); (ii) o autor formulou um pedido de reivindicação de um prédio; pode cumular o pedido de entrega dos rendimentos do prédio (AR Com III (1946), 93); (iii) o autor pediu inicialmente a restituição da posse; pode cumular o pedido de indemnização dos danos causados pelo esbulho (AR Com III (1946), 93); (iv) o autor formulou inicialmente o pedido de limpeza de um terreno; pode cumular o pedido de indemnização pelos danos decorrentes da impossibilidade de cultivar o terreno (RC 26/1/2021 (5362/18))” – in CPC Online, Versão de 2022.12, pág.s 7 e 10.
Importa saber se os novos pedidos são “consequência” ou “desenvolvimento” do pedido primitivo. A propósito desta questão, José Alberto dos Reis destacava o seguinte: “Limite de qualidade e de nexo: a ampliação há-de ser o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo, quere dizer, a ampliação há-de estar contida virtualmente no pedido inicial.
(…)
Para se distinguir nitidamente a espécie “cumulação” da espécie “ampliação” há que relacionar o pedido com a causa de pedir. A ampliação pressupõe que, dentro da mesma causa de pedir, a pretensão primitiva se modifica para mais; a cumulação dá-se quando a um pedido, fundado em determinado ato ou facto, se junta outro, fundado em ato ou facto diverso” – in Comentário ao Código de Processo Civil”, Coimbra, 1946, Volume III, pág. 93 e 94.
O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18/2/2020, salientou ainda que: “todos os exemplos de ampliação do pedido, que não se sustentem na superveniência objetiva de factos novos em que assentam, traduzem-se em pretensões que poderiam ser formuladas logo na data da propositura da ação. Ora, nunca semelhante dúvida sobre a interpretação do Art.º 265.º n.º 2 do C.P.C. assolou o espírito de ninguém, quando se admitia sem pestanejo a ampliação do pedido de pagamento em quantia certa, numa ação de dívida, por forma a passar a compreender também a condenação em juros de mora. É que, neste caso, como é evidente, o novo pedido só não foi formulado logo na petição inicial por “mero esquecimento” da parte peticionante.
Salvaguardadas eventuais situações manifestamente dolosas ou de negligência grave, não se justifica uma interpretação restritiva do Art.º 265.º n.º 2 do C.P.C. apenas para sancionar uma parte, dado não existir nenhum princípio geral que justifique semelhante penalização em face do facto de o mencionado preceito fixar a preclusão do direito de ampliação do pedido no momento do «encerramento da discussão em 1.ª instância».
Como já referimos atrás, o que está em causa é a consonância do princípio da estabilidade da instância com o princípio da economia processual, dando-se prevalência a este último na estrita medida em que se verificam reais vantagens na solução definitiva num único processo do conflito existentes entre as mesmas partes, desde que a relação controvertida seja essencialmente a mesma, assente virtualmente na mesma causa de pedir. Sendo que, no caso, a ampliação do pedido compreende-se claramente na previsão do Art.º 265.º n.º 2 do C.P.C., por ser o desenvolvimento do pedido primitivo.
Acresce que não estamos perante um suscitar de qualquer situação de facto nova, que tenha sido propositadamente ocultada e que represente uma verdadeira surpresa, completamente inesperada para a R. e relativamente à qual não pudesse legitimamente estar a contar. Aliás, no caso concreto, a R. limitou-se a repetir quanto a este pedido ampliado a mesma defesa que já anteriormente havia apresentado” – nosso sublinhado, disponível na base de dados da DGSI; processo n.º 37/19.6TNLSB-A.L1-7.
Tal aresto mereceu um comentário sucinto de Miguel Teixeira de Sousa, mas que se afigura igualmente com pertinência para o presente caso, ao afirmar que: “A RL tem razão ao defender que o desenvolvimento do pedido inicial a que se refere o art.º 265.º, n.º 2, CPC não tem de ser algo que não pudesse ter sido logo pedido na petição inicial.
É precisamente por isso que não se justifica aplicar o preceito quando -- como sucede no caso concreto -- o autor alega factos supervenientes e, em função deles, aumenta o valor do pedido inicial. A bem dizer, a questão que a RL deveria ter resolvido era apenas a da admissibilidade do articulado superveniente nos termos do art.º 588.º, n.º 1 a 4, CPC. Aliás, a própria RL refere várias vezes que o autor apresentou um articulado superveniente, e não um requerimento de alteração do pedido” – nosso sublinhado, disponível no Blog do IPPC, em https://blogippc.blogspot.com/2020/07/jurisprudencia-2020-35.html.
Segundo o apelante, estamos perante um desenvolvimento do pedido primitivo – conclusão W). O pedido primitivo era simplesmente a condenação da ré a restituir o imóvel ao autor. Aparentemente, os novos pedidos parecem ser a consequência do pedido primitivo, pois tratar-se-á apenas da condenação da ré a eliminar as obras e alterações efectuadas ao imóvel, que extravasem o conceito de “manutenção e reparação” e na entrega o imóvel no estado em que o recebeu. No entanto, o requerimento em causa manifesta-se de forma equívoca logo no respectivo introito quando o autor anuncia de forma muito simples que: “vem, nos termos e para os efeitos do artigo 265.º, n.º 2 do Código de Processo Civil expor e requerer…”. Na realidade, o autor veio fazer muito mais do que ampliar o pedido primitivo, pois teve que assumir a existência de factos novos e que não são o desenvolvimento dos que alegara na petição inicial para fundamentar a sua pretensão.
Recordemos que a petição inicial limitou-se a invocar singelamente que: “a 15 de Abril de 2022, o Autor entregou uma cópia das chaves do imóvel à 1.ª Ré, para efeito de obras de manutenção e reparação do imóvel, não podendo o mesmo ser ocupado para habitação” e que “ao disponibilizar a chave do imóvel, o Autor ficou privado do acesso à mesma, uma vez que a fechadura foi trocada” – cfr. art.ºs 16.º e 18.º.
No requerimento em causa, o autor invoca que “foi confessado pelo Réu que foram realizadas obras ao imóvel que é propriedade do Autor” e que “por estarem em causa factos novos trazidos ao conhecimento do Autor, revela-se imperativo ampliar o pedido apresentado pelo Autor na sua petição inicial, porquanto o Autor pretende a eliminação/reposição das alterações ao imóvel que extrapolem o âmbito das autorizadas no contrato-promessa, por forma reaver o mesmo no estado em que o entregou”.
Os novos factos são as obras realizadas pela ré (mas que o autor não concretiza…). Como é evidente, os novos pedidos terão necessariamente que assentar em novos factos, pois a petição inicial é completamente omissa quanto às obras realizadas pela ré (apesar de terem sido acordadas com o autor …). A condenação da ré a eliminar as obras e as alterações efectuadas ao imóvel necessariamente terá que assentar na alegação e conhecimento de determinados factos novos, como por exemplo:
a) Em que exacto estado se encontrava o imóvel no momento da entrega das chaves à ré?
b) Em que consistiu o acordo para as obras de “manutenção e reparação” que motivaram a entrega das chaves do autor à ré? e,
c) Quais foram exactamente as alterações introduzidas pela ré que extrapolam o âmbito das autorizadas no contrato-promessa?
Sem conhecer estes factos não é possível conhecer dos novos pedidos, pois a petição inicial omite por completo este circunstancialismo. Por conseguinte, o requerimento em causa terá que ser visto, antes de mais, como um articulado superveniente apresentado depois da marcação da audiência final – art.ºs 588.º e 589.º, do Código de Processo Civil. São estes novos factos que fundamentam os novos pedidos. E os novos factos, como é fácil de ver, convocam já o disposto no n.º 1 e não apenas o n.º 2, do artigo 265.º, do Código de Processo Civil.
A alegada violação pela ré do acordo quanto à realização de obras extravasa a causa de pedir inicialmente invocada pelo autor, que não abordara de todo essa problemática, nem as questões acima referidas. Tratar-se-iam de novos factos, conexos com o negócio da prometida compra e venda do imóvel.
A evidência quanto à verdadeira natureza e função do articulado superveniente acabou por ser reconhecida pelo próprio apelante na conclusão W) das doutas alegações de recurso: “estão reunidos todos os requisitos para que a ampliação do pedido requerida seja deferida, tanto por se tratarem de factos supervenientes aos articulados (…).
Vejamos, então, se os factos supervenientes invocados pelo autor (e que hão-de suportar a consequente ampliação dos pedidos) podem ser admitidos.
O art.º 588.º, do Código de Processo Civil, preceitua que:
1 - Os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que forem supervenientes podem ser deduzidos em articulado posterior ou em novo articulado, pela parte a quem aproveitem, até ao encerramento da discussão.
2 - Dizem-se supervenientes tanto os factos ocorridos posteriormente ao termo dos prazos marcados nos artigos precedentes como os factos anteriores de que a parte só tenha conhecimento depois de findarem esses prazos, devendo neste caso produzir-se prova da superveniência.
3 - O novo articulado em que se aleguem factos supervenientes é oferecido:
a) Na audiência prévia, quando os factos hajam ocorrido ou sido conhecidos até ao respetivo encerramento;
b) Nos 10 dias posteriores à notificação da data designada para a realização da audiência final, quando não se tenha realizado a audiência prévia;
c) Na audiência final, se os factos ocorreram ou a parte deles teve conhecimento em data posterior às referidas nas alíneas anteriores.
4 - O juiz profere despacho liminar sobre a admissão do articulado superveniente, rejeitando-o quando, por culpa da parte, for apresentado fora de tempo, ou quando for manifesto que os factos não interessam à boa decisão da causa; ou ordenando a notificação da parte contrária para responder em 10 dias, observando-se, quanto à resposta, o disposto no artigo anterior.
5 - As provas são oferecidas com o articulado e com a resposta.
6 - Os factos articulados que interessem à decisão da causa constituem tema da prova nos termos do disposto no artigo 596.º.
Posto isto, há que perguntar se os “factos” a que se reporta o autor são supervenientes? A questão é que se desconhece quando é que os factos ocorreram, nomeadamente se foi antes ou depois do termo dos articulados ou quando é que a parte deles teve conhecimento. Na verdade, o autor não concretizou nesse requerimento quais eram os factos supervenientes, limitando-se a referir que em sede de audiência de discussão e julgamento foi confessado pelo Réu que foram realizadas obras ao imóvel. O autor teria que concretizar todos os factos supervenientes que pretendia submeter à apreciação do tribunal e facultar o contraditório à parte contrária – cfr. art.ºs 3.º e 5.º, do Código de Processo Civil. A realização de obras pela ré é algo de inócuo em face da circunstância do autor ter inicialmente alegado que existia um acordo para a sua realização e do pedido de condenação na eliminação das obras e alterações efectuadas ao imóvel, que extravasem o conceito de “manutenção e reparação”.
Além disso, as alegações de recurso do autor acabaram por ser o meio para a tardia e indevida concretização dos factos essenciais que foram anteriormente omitidos, nomeadamente ao só agora referirem que:
J) Já após a entrada da petição inicial, o Apelante deslocou-se à Rua (…), em Cascais, e verificou que as obras realizadas na propriedade do Apelante (aparentavam vistas de fora da propriedade) extravasavam largamente os conceitos de “manutenção” e de “reparação”.
L) Foi demolido um anexo do edifício principal, foram removidas várias paredes divisórias interiores, a piscina foi entulhada, foram removidos revestimentos, caixilharias e instalações técnicas. Ou seja, remodelação total e estrutural. Só com a apresentação das alegações de recurso é que o autor introduziu os factos relevantes!
Como é evidente, tais factos não foram submetidos à consideração do tribunal a quo, porque o autor nisso não viu então interesse. Tão pouco cuidou o autor de indicar quando ocorreram os factos ou quando teve conhecimento dos mesmos e de oferecer prova da superveniência, como é expressamente exigido pelo art.º 588.º, n.º 2, do Código de Processo Civil.
Restou ao autor a invocação de que “Em sede de audiência de discussão e julgamento foi confessado pelo Réu que foram realizadas obras ao imóvel que é propriedade do Autor e que deu origem aos presentes autos”. Quanto a esta questão, importa salientar que a circunstância da ré trazer aos autos um facto aquando da prestação de depoimento não é sinónimo da contraparte só ter conhecimento desse facto aquando da prestação desse depoimento. O autor poderá estar conhecedor dos factos relatados pelo legal representante da ré muito tempo antes da apresentação desse relato em tribunal. Logo, sobre o autor continua a incidir o ónus de alegar e demonstrar a superveniência dos factos. O que não foi feito.
Por outro lado, o autor também não pode invocar a “confissão” da ré para fundamentar o seu requerimento à luz do disposto no artigo 265.º, n.º 1, do Código de Processo Civil: “Na falta de acordo, a causa de pedir só pode ser alterada ou ampliada em consequência de confissão feita pelo réu e aceita pelo autor, devendo a alteração ou ampliação ser feita no prazo de 10 dias a contar da aceitação”. Desde logo, porque o legal representante da ré não podia confessar o que não tinha sido alegado. O legal representante da ré ofereceu-se a prestar declarações de parte e estas são livremente apreciadas pelo tribunal, salvo se as mesmas constituírem confissão – art.º 466.º, n.º 3, do Código de Processo Civil. No momento em que o legal representante da ré prestou declarações não estava em causa - pois ainda não tinha sido alegada ou equacionada - qualquer violação do acordo entre as partes relativamente à acordada realização das obras. Faltam, assim, os pressupostos para a ampliação da causa de pedir, nos termos do disposto no art.º 265.º, n.º 1, do Código de Processo Civil. Ampliação da causa do pedir que, aliás, o autor nunca assumiu ou sequer concretizou perante o tribunal a quo.
Por conseguinte, nas evidenciadas circunstâncias, não é de admitir o articulado superveniente do autor, nem a ampliação do pedido, pois esta dependeria necessariamente da ampliação da causa de pedir, alicerçada em novos e relevantes factos.
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2.4. Impugnação da matéria de facto:
O artigo 640.º, do Código de Processo Civil, impõe ao recorrente o dever de obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 13/1/2022 sintetizou a orientação jurisprudencial aí seguida, ao referir que: “No que diz respeito ao enquadramento processual da rejeição da impugnação da decisão relativa à matéria de facto, o Supremo Tribunal de Justiça considerou no acórdão de 3/12/2015, proferido no processo n.º 3217/12.1 TTLSB.L1.S1 (Revista-4.ª Secção), que se o Tribunal da Relação decide não conhecer da reapreciação da matéria de facto fixada na 1.ª instância, invocando o incumprimento das exigências de natureza formal decorrentes do artigo 640.º do Código de Processo Civil, tal procedimento não configura uma situação de omissão de pronúncia.
No mesmo acórdão refere-se que o art.º 640.º, do Código de Processo Civil exige ao recorrente a concretização dos pontos de facto a alterar, assim como dos meios de prova que permitem pôr em causa o sentido da decisão da primeira instância e justificam a alteração da mesma e, ainda, a decisão que, no seu entender deve ser proferida sobre os pontos de facto impugnados.
Acrescenta-se que este conjunto de exigências se reporta especificamente à fundamentação do recurso não se impondo ao recorrente que, nas suas conclusões, reproduza tudo o que alegou acerca dos requisitos enunciados no art.º 640.º, n.ºs 1e 2 do CPC.
Por fim, conclui-se que versando o recurso sobre a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, importa que nas conclusões se proceda à indicação dos pontos de facto incorretamente julgados e que se pretende ver modificados.
A propósito do conteúdo das conclusões, o acórdão de 11-02-2016, proferido no processo n.º 157/12.8 TUGMR.G1.S1 (Revista) – 4.ª Secção, refere que tendo a recorrente identificado no corpo alegatório os concretos meios de prova que impunham uma decisão de facto em sentido diverso, não tem que fazê-lo nas conclusões do recurso, desde que identifique os concretos pontos da matéria de facto que impugna (Cfr. no mesmo sentido acórdãos de 18/02/2016, proferido no processo n.º 558/12.1TTCBR.C1.S1, de 03/03/2016, proferido no processo n.º 861/13.3TTVIS.C1.S1, de 12/05/2016, proferido no processo n.º 324/10.9 TTALM.L1.S1 e de 13/10/2016, proferido no processo n.º 98/12.9TTGMR.G1.S1, todos da 4.ª Secção).
No que diz respeito à exigência prevista na alínea b), do n.º 1, do art.º 640.º do Código de Processo Civil, o acórdão de 20-12-2017, proferido no processo n.º 299/13.2 TTVRL.C1.S2 (Revista) - 4ª Secção, afirma com muita clareza que quando se exige que o recorrente especifique «os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida», impõe-se que esta concretização seja feita relativamente a cada um daqueles factos e com indicação dos respetivos meios de prova, documental e/ou testemunhal e das passagens de cada um dos depoimentos” – disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 417/18.4T8PNF.P1.S1.
Porém, não há que conhecer da impugnação da matéria de facto, quando a mesma se mostra prejudicada por outras questões que logicamente a precedem. Como refere o acórdão desta Relação de 11-5-2023: “a reapreciação da matéria de facto não constitui um fim em si mesma, mas um meio para atingir um determinado objetivo, que é a alteração da decisão da causa, pelo que sempre que se conclua que a reapreciação pretendida é inútil – seja porque a decisão sobre matéria de facto proferida pela primeira instância já permite sustentar a interpretação do direito aplicável ao caso nos termos sustentados pelo recorrente, seja porque ainda que proceda a impugnação da matéria de facto, nos termos requeridos, a decisão da causa não deixará de ser a mesma – a reapreciação sobre matéria de facto não deve ter lugar, por constituir um ato absolutamente inútil, contrariando os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2.º, n.º 1, 137.º, e 138.º do CPC)” – disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 8312/19.3T8ALM.L1-2.
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2.5. Idem.
O inconformismo do apelante manifesta-se logo quanto ao facto julgado provado sob o # 25 que refere o seguinte: “O Banco Millenniumbcp veio a detectar que havia uma divergência entre a certidão predial e a caderneta predial, tendo E do Millenniumbcp enviado ao gerente da R. em 03/08/2022 um email com o seguinte teor “…existe uma divergência de áreas nos documentos do imóvel, que impedem avançarmos para o agendamento de escritura. Envio-lhe abaixo a informação do nosso departamento de análise de documentos: «5. verificamos divergência de área de implantação do imóvel, sendo de 190m2 na caderneta predial e de apenas 157.19m2 na certidão predial. As áreas deverão ser actualizadas…» …” cfr. doc. 5 junto com a contestação”.
O apelante sustenta que tal alegação é totalmente falsa, conforme prova documental junta aos autos, e até da própria lei que não vê tal impedimento, e o comprador tinha a posse do imóvel, pelo que conhecia bem as áreas - cfr. conclusão BB).
Porém, a argumentação do apelante confunde a questão de facto com a questão de direito. Tal ponto da matéria controvertida referência vários factos, nomeadamente que:
- Existe uma divergência de áreas nos documentos do imóvel (entre a certidão predial e a caderneta predial);
- Tal divergência foi apontada pelo Banco Millenniumbcp; e,
- O Banco Millenniumbcp, na pessoa de E, considerou tal divergência era motivo impeditivo para avançarem para o agendamento de escritura.
Tais factos evidenciam-se do teor do aludido documento n.º 5 que exprime o entendimento do Banco Millenniumbcp, para além do teor da certidão predial e a caderneta predial. A questão de saber se a apontada divergência consubstancia ou não consubstancia um impedimento à realização da escritura é já uma questão de direito, cuja resolução não passa pela cómoda e fácil eliminação do facto em causa, pelo que se julga improcedente a sua impugnação.
Relativamente aos factos provados # 49 e 50, novamente se nota que o apelante não visa realmente questionar a sua demonstração, mas apenas fazer o seu “enquadramento” ou reinterpretação – cfr. conclusão Z).
Tais pontos da matéria de facto referem unicamente que:
49. A carta enviada pela R. não foi recebida pelo A., tendo o distribuidor postal deixado aviso em 06/12/2022 que estava disponível para levantamento na estação dos CTT. – cfr. doc.9 junto com a contestação
50. O A. não foi levantar a carta enviada pela R. no prazo constante do aviso, tendo a mesma sido devolvida à R. por não reclamada em 19/12/2022– cfr. doc.9 junto com a contestação.
Tratam-se de factos que se evidenciam pelo próprio documento em causa e nada foi indicado para abalar o percurso postal da carta envida pela ré ao autor. As considerações em como o gerente da apelada não tem interesse em prosseguir com a celebração do negócio final são inócuas para abalar a convicção sobre o envio da carta. Não foram apontados os concretos meios probatórios que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida – art.º 640.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil. Os meios probatórios que foram indicados aludem apenas ao desinteresse da ré na realização do prometido negócio. Sucede que essa argumentação nada tem a ver com a demonstração sobre o envio da aludida carta. De qualquer forna, o tribunal já percebeu que, subjectivamente, a ré não tem grande interesse no negócio, a julgar pelo pedido reconvencional. E o mesmo se dirá quanto ao interesse do autor, em face do pedido da acção.
Por conseguinte, vai desatendida a impugnação destes factos.
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2.6. Idem, ainda o recurso principal e o mais que motiva o recurso subordinado.
O apelante concluiu também que o tribunal a quo considerou incorrectamente como facto não provado o ponto f. – conclusão TT). E, para que não haja dúvida, reitera que “In casu, houve claro erro na apreciação da prova” – conclusão XX). Afigura-se que há um erro manifesto, mas interessa saber quem é que está errado.
A posição do apelante não deixa de ser insólita, pelo seu conteúdo, que é meramente instrumentalizado e convenientemente deturpado. Na verdade, nada resulta em como o autor quererá que se considere ter havido perda do interesse da ré, mas apenas culpabilizar esta pela inconclusão do prometido negócio. São ideias próximas, mas que assentam em distintos pressupostos.
O insólito da posição do apelante evidencia-se pela circunstância da questão em análise resultar do que foi alegado na contestação, particularmente no seu art.º 160.º. E do autor ter veemente rebatido e impugnado essa questão na réplica, entre outros, no seu art.º 38.º, onde afirmou que a alegada perda de interesse da ré não releva para os autos e deverá ser considerada totalmente improcedente… Ou seja, para o autor, a perda do interesse da ré tanto é irrelevante e improcedente, como é relevante e foi incorrectamente considerada como não provada pelo tribunal a quo.
Mas a apelada também impugna a matéria de facto julgada não provada, designadamente a matéria da alínea f): “Por força da não comparência do A. na escritura marcada pela R. para 22/12/2022 e face ao tempo entretanto corrido, a R. perdeu o interesse na celebração do contrato prometido face ao comportamento do A.”.
Ou seja, ambas as partes estão – momentaneamente – de acordo em como a matéria da alínea f) foi incorrectamente julgada não provada.
Relativamente ao “estado de espírito” da ré sociedade (ou do seu representante legal), já se aludiu que a dedução do pedido reconvencional consubstancia a apreciação subjectiva do interesse na celebração do contrato prometido. Porém, a perda do interesse na prestação é apreciada objectivamente – art.º 808.º, n.º 2, do Código Civil.
E quando a lei alude à apreciação objectiva está a remeter para o conhecimento de factos concretos. Em face dos factos concretos que forem alegados, seguir-se-á o exercício de subsunção jurídica. Como refere Menezes Cordeiro, “a perda objectiva do interesse, referida no artigo 808.º/2, implica o recurso ao padrão da pessoa normal, funcionando in concreto: o promitente fiel perde o interesse na celebração do contrato definitivo quando o promitente normal, colocado no preciso condicionalismo em que ele se encontrasse, o perca, segundo critérios de uma gestão prudente e de bom senso” – in Estudos de Direito Civil, Almedina, 1987, Volume I, pág. 55.
Não obstante, a referida alínea f) consubstancia apenas uma conclusão ou um juízo de valor. A questão da perda de interesse há-de ser apreciada em função dos factos concretamente alegados e demonstrados e não da opinião subjectiva sobre uma vontade hipotética.
Por conseguinte, é de desatender a pretensão da apelada quanto à modificação desta resposta, sendo que tal alínea deverá ser considerada não escrita. Apesar do actual do Código de Processo Civil já não conter expressamente esse remédio – ao contrário do que estava estabelecido no art.º 646.º, n.º 4, 1.ª parte, do anterior Código de Processo Civil –, é de seguir a mesma solução, que se extraí do artigo 607.º, n.º 4, do Código de Processo Civil em vigor – cfr. acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 1/10/2019, disponível na base de dados da DGSI; processo n.º 109/17.1T8ACB.C1.S1.
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2.7. A questão do incumprimento definitivo e da resolução do contrato promessa.
O apelante peticionou que seja declarado o incumprimento definitivo da ré e a resolução do negócio com perda do sinal. Na presente apelação, o mesmo argumenta que foi assumido pelo representante da apelada que cessara o seu interesse na celebração do negócio final e cumprimento das demais obrigações advenientes, provando-se assim o incumprimento definitivo – conclusão AAA).
Afigura-se que o argumento se revela falacioso e assenta na deturpação da vontade manifestada pela ré. Convém recordar que a questão da perda do interesse da ré não foi sequer alegada como causa de pedir pelo autor. Segundo este, existiria incumprimento definitivo porque a ré não procedeu à marcação da escritura para a realização da prometida compra e venda no prazo estabelecido pelas partes e porque prestou informações essenciais (morada e número de pessoa colectiva) que eram erradas. O autor considera que a omissão (?) foi culposa e a quebra de confiança inviabiliza a celebração do negócio final. Referiu ainda que interpelou a ré para fazer cessar a mora e marcar data para celebração da escritura de compra e venda, sob pena de se considerar o incumprimento definitivo, mas a ré não deu resposta e não marcou data para a realização da escritura de compra e venda.
Na réplica, o autor veio impugnar, lastimar e deplorar a posição da ré e afirmar que “o meio adequado para justificar objectivamente a perda de interesse é através da interpelação admonitória, que contém os elementos necessários para apreciação objectiva da perda de interesse” (art.º 18.º) e que “a alegada perda de interesse da Ré não releva para os autos e deverá ser considerada totalmente improcedente”.
Agora, o autor apela para a “confissão” da ré, olvidando por completo que a confissão é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária – art.º 352.º, do Código Civil – e que, se a declaração confessória, judicial ou extrajudicial, for acompanhada da narração de outros factos ou circunstâncias tendentes a infirmar a eficácia do facto confessado ou a modificar ou extinguir os seus efeitos, a parte que dela quiser aproveitar-se como prova plena tem de aceitar também como verdadeiros os outros factos ou circunstâncias, salvo se provar a sua inexactidão – art.º 360.º, do Código Civil. Ou seja, se o autor quisesse realmente aproveitar a confissão da ré teria igualmente que provar a inexactidão dos factos que esta igualmente alegou. Questão que não mostrou qualquer interesse em abordar.
O autor pretende exercer o direito à resolução do contrato, a qual apenas é admitida quando fundada na lei ou em convenção e é equiparada, quanto aos seus efeitos, à nulidade ou anulabilidade do negócio, com algumas ressalvas – cfr. art.ºs 432.º e 433.º, do Código Civil. O artigo 436.º, do Código Civil, estipula ainda que:
1. A resolução do contrato pode fazer-se mediante declaração à outra parte.
2. Não havendo prazo convencionado para a resolução do contrato, pode a outra parte fixar ao titular do direito de resolução um prazo razoável para que o exerça, sob pena de caducidade.
E o artigo 801.º, do Código Civil, preceitua que:
1. Tornando-se impossível a prestação por causa imputável ao devedor, é este responsável como se faltasse culposamente ao cumprimento da obrigação.
2. Tendo a obrigação por fonte um contrato bilateral, o credor, independentemente do direito à indemnização, pode resolver o contrato e, se já tiver realizado a sua prestação, exigir a restituição dela por inteiro.
Compulsado o contrato celebrado pelas partes, constata-se que a prometida compra e venda do imóvel não foi realizada no prazo que ambas estipularam (30/6/2022 – cfr. facto # 9). O apelante censura a apelada por não ter procedido à marcação da escritura, conforme tinha sido estipulado no contrato promessa. A apelada sustenta que existiam circunstâncias que impediam a realização da escritura de compra e venda, nomeadamente porque o promitente vendedor não lhe entregou todos os documentos necessários para a assinatura do título definitivo de compra, conforme tinha assumido contratualmente. A questão que inviabilizaria a assinatura do contrato seria a subsistência de uma penhora e a discrepância nas áreas cobertas e de construção do imóvel, que constam do registo predial e do cadastro. A ré salientou ainda que seria necessário um crédito bancário para pagar o preço remanescente da aquisição do imóvel.
Relativamente à subsistência do registo de uma penhora sobre o imóvel, constata-se que apenas em 16/07/2022 (ou seja após o decurso do prazo acordado inicialmente para a celebração do contrato definitivo) a R. recebeu do A. a certidão de registo predial sem o registo de qualquer penhora – cfr. facto # 24. O A. comprometeu-se a vender o imóvel livre de ónus ou encargos, pelo que formalmente até poderia comprovar que expurgou a penhora do registo predial no próprio acto da venda. No entanto, uma vez que as partes devem proceder de boa fé (art.º 762.º, do Código Civil), é de considerar que o autor deveria comprovar o registo do acto de cancelamento com uma antecedência razoável, nomeadamente em termos de marcação da escritura, na medida em que o comprador e o banco que irá financiar o negócio também terão justificado interesse em analisar e verificar diligentemente a situação jurídica do imóvel.
A exigência da apresentação desse comprovativo com antecedência é igualmente patente em face da cláusula 1.ª, § 2, do contrato-promessa que previa o dia 25/3/2022 como a data para o autor fazer prova do cancelamento das penhoras.
Logo, em decorrência deste facto, não é de censurar a ré por não ter procedido à marcação da escritura até ao dia 30/6/2022, porque se encontrava a aguardar que o autor comprovasse o cancelamento da penhora que incidia sobre o prédio.
Além disso, também se nota que a certidão do registo predial evidenciava que o prédio cuja venda foi prometida tinha uma área total de 1392,5 m², uma área coberta de 157,19 m² e uma área descoberta de 1235,31 m² - cfr. facto # 26. E a caderneta predial menciona que o prédio tem uma área total de 1392,5 m², uma área de implantação de edifício de 190 m², uma área bruta de construção de 492,5 m², uma área bruta dependente de 185,5 m² e uma área bruta privativa de 307 m² - cfr. facto # 27. Há, assim, uma divergência quanto à área edificada do prédio. Qual é a relevância desta divergência sobre as áreas? A divergência sobre as áreas poderá ter relevância em função de vários actos e da vontade dos contraentes, devendo destacar-se o seguinte:
Em primeiro lugar, a área dos imóveis tem relevância jurídica, designadamente em termos da determinação do valor patrimonial tributário – cfr. art.º 38.º a 40.º, do Código do Imposto Municipal sobre Imóveis.
Em segundo lugar, a área dos imóveis tem relevância jurídica, designadamente em termos de averbamento de actos perante o registo predial, na medida em que o art.º 28.º, n.º 1, do Código de Registo Predial, estipula que deve haver harmonização quanto à localização, à área e ao artigo da matriz, entre a descrição e a inscrição matricial ou o pedido de retificação ou alteração desta.
Em terceiro lugar, a área do imóvel e suas edificações poderá ter interesse para o comprador, em termos de viabilizar a decisão sobre a compra e sobre o preço.
Em quarto lugar, a área dos imóveis e suas edificações poderá ter interesse para o banco, a quem a ré recorreu para financiar o negócio e aquele informou esta em como “…existe uma divergência de áreas nos documentos do imóvel, que impedem avançarmos para o agendamento de escritura” que, eventualmente, terá que avaliar com rigor o bem e/ou promover o registo de alguma hipoteca – cfr. facto # 25.
O autor resolve todas as possíveis implicações, incómodos e desvantagens em face da constatada divergência com a lapidar afirmação em que não há qualquer impedimento na marcação da escritura, conforme informação prestada pela Conservadora de Registos, a solicitação do próprio. Sucede que a relevância da divergência nada tem a ver com a marcação da escritura, mas sim com a sua realização e seus subsequentes efeitos. O autor formulou a questão nos moldes que muito bem entendeu, perante quem quis e obteve uma resposta em conformidade. De qualquer forma, o autor deveria ter lido a lapidar introdução da Sra. Conservadora que consta do documento referenciado na alínea KK) das suas doutas alegações: “A Conservatória é um serviço cujas funções se enquadram na qualificação de pedidos de registos no termos do artigo 68º, não se encontrando no âmbito das suas funções emitir pareceres conforme solicitado”. Ou seja, o autor convoca em defesa da sua argumentação sobre a viabilidade da realização de uma escritura a opinião de quem não celebra escrituras…
Além disso, ao contrário do que é sustentado pelo autor, afigura-se que há uma enraizada prática por parte dos serviços de Registo Predial de recusa de actos sem a “prévia alteração matricial para deferimento da modificação da descrição constante do registo”, com o beneplácito concordante dos tribunais – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 23/2/2021, disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 37/20.3T8LOU.P1.
Por conseguinte, afigura-se que o entendimento em como não há qualquer problema com a divergência sobre as áreas do imóvel prometido vender assenta numa apreciação subjectiva e apenas na perspectiva do autor. Para a ré compradora, para o banco financiador e para a Administração Pública, a divergência sobre as áreas do imóvel é uma circunstância relevante. E o autor não pode transferir todas as incertezas, dúvidas, incómodos e possíveis despesas ou encargos sobre uma circunstância relevante do negócio para a esfera jurídica da ré. Como vendedor, competia ao autor resolver tal divergência e harmonizar as descrições, até porque o problema se perfila de fácil resolução e a ré manifestou inicialmente interesse na sua pronta resolução – cfr. factos # 33 a 39.
As regras da boa fé que regem a conclusão do contrato de compra e venda impunham ao promitente vendedor que diligenciasse pela harmonização das descrições do prédio – cfr. art.º 227.º, n.º 1, do Código Civil. E não apenas que recebesse o preço e assinasse a escritura. O comprador não tem que assumir as incertezas e os possíveis encargos que possam decorrer da alteração da descrição do prédio. E, compreensivelmente, o banco não vai querer financiar o negócio quando subsistem dúvidas sobre a área de construção, o respectivo valor ou as vicissitudes que poderão advir dessa divergência (sendo de admitir a possibilidade de condicionar o financiamento à prestação de garantia por hipoteca).
Não tendo o autor previamente diligenciado pela harmonização da descrição do imóvel, apesar de estar conhecedor da mesma e das insistências da ré, conclui-se que está justificada a falta de marcação da escritura por parte da promitente compradora, não lhe podendo ser apontada qualquer culpa pela não realização do negócio até ao momento.
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2.8. Idem, a interpelação promovida pelo autor.
O apelante também invoca, em termos de objecto do presente recurso, a circunstância de, em Outubro de 2022, ter remetido interpelação admonitória, fixando um prazo razoável para cumprimento da obrigação, tendo a apelada incumprido novamente – conclusão DDD).
Nos termos do disposto no art.º 804.º, n.º 2, do Código Civil, o devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação, ainda possível, não foi efectuada no tempo devido.
A mora consubstancia um atraso ilícito e culposo no cumprimento da obrigação. A prestação é possível, mas não é realizada no tempo devido. Como refere o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 22/1/2008: “Evidentemente que o retardamento na realização da prestação não equivale ao incumprimento do contrato. “Na grande massa dos casos, o não cumprimento da obrigação assenta na falta da acção (prestação positiva) exigida pelo devedor. Mas também pode consistir na prática do acto que o obrigado deveria não realizar, nos casos menos vulgares em que a obrigação tem por objecto uma prestação negativa” (in Das Obrigações em Geral, Prof. Antunes Varela, II Volume, 7ª edição, pág. 61). Em sintonia com este entendimento estabelece o art.º 762º nº 1 que “o devedor cumpre a obrigação quando realiza a prestação a que está vinculado”, prestação que, como se viu, pode ser positiva (facere), como negativa (non facere).
O retardamento da prestação origina a mora. “O devedor incorre em mora, quando por causa que lhe seja imputável, não realiza a prestação no tempo devido, continuando a prestação a ser ainda possível” (Prof. Antunes Varela, obra citada, pág. 114). Estabelece a este propósito o art.º 805º nº 2 que “o devedor considera-se constituído em mora quando, por causa que lhe seja imputável, a prestação ainda possível, não foi efectuada no tempo devido”. Portanto, sendo a prestação ainda possível, o devedor que não cumpre a obrigação no prazo convencionado, por causa que lhe seja imputável, incorre em mora” – disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 07A4060.
Como já se apontou na sentença recorrida, a mora do devedor não faculta imediatamente ao credor a resolução do contrato do qual emerge a obrigação que não foi pontualmente cumprida.
E como refere o citado aresto do Supremo Tribunal de Justiça: “O credor não pode resolver o contrato em razão da mora do devedor. Poderá tão só, em caso de mora, exigir o cumprimento da obrigação e indemnização pelos danos causados (art.º 804º). Todavia, perante esse art.º 808º, o credor pode transformar a mora em incumprimento definitivo. Esta conversão tanto poderá suceder pela perda de interesse na prestação por banda do credor, como pela não realização da prestação no prazo que for, razoavelmente, fixado pelo credor.
A perda do interesse na prestação (o que se sucederá quando esta, apesar de ser fisicamente concretizável, deixou de ter oportunidade), é apreciada objectivamente, razão por que eventuais subjectivismos, serão de afastar. “Não basta que o credor diga, mesmo convictamente, que a prestação já lhe não interessa, há que ver, em face das circunstâncias, se a perda de interesse corresponde à realidade dos factos” (Prof. Galvão Telles, Obrigações, 7ª edição, pág. 311). Isto é, a perda do interesse deve ser justificado segundo um critério de razoabilidade entendido pela generalidade das pessoas”.
O autor convoca o disposto no artigo 808.º, do Código Civil, que estipula o seguinte:
1. Se o credor, em consequência da mora, perder o interesse que tinha na prestação, ou esta não for realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado pelo credor, considera-se para todos os efeitos não cumprida a obrigação.
2. A perda do interesse na prestação é apreciada objectivamente.
O autor propôs a realização da prestação ou tentou provocar a recusa do cumprimento por parte da ré mediante as cartas que lhe dirigiu com data de 30/9/2022 e de 17/10/2022 – cfr. factos # 28 e 31.
Como refere Brandão Proença: “no tocante ao prazo de cumprimento do contrato-promessa, e em caso de lacuna contratual, cada promitente tem legitimidade para interpelar a sua contraparte de modo a fixar a data, hora e local da celebração do contrato definitivo. Diga-se, contudo, que essa marcação não pode ser arbitrária, podendo levar a um controlo judicial por força do art.º 777.º, 2. Existindo uma cláusula de termo, há que ver se se trata de um termo incerto (por ex., outorga da escritura logo que o promitente-vendedor tiver em ordem a respectiva documentação) ou de um termo certo e, neste caso, se estamos perante um prazo essencial (negócio fixo absoluto) ou não. Como, em regra, o incumprimento no prazo está relacionado com um negócio fixo relativo, a circunstância de, por ex., o contrato definitivo não ser realizado no prazo máximo de dois meses após a celebração da promessa, pode não inviabilizar um pedido de cumprimento para lá do prazo fixado” – in Lições de Cumprimento e Não Cumprimento das Obrigações, Coimbra, 2011, pág. 329 e 330.
Entende-se que a conduta do autor não se revelou idónea para provocar a recusa do cumprimento, na medida em que o mesmo só poderia lançar mão do disposto no artigo 808.º, n.º 1, do Código Civil, em consequência da mora, como aí é taxativamente referido. Ora, a mora terá que ser do devedor e não do credor. E, como vimos, a frustração da marcação da escritura de compra e venda relativamente ao prazo estipulado no contrato-promessa resultou do próprio autor, que não promoveu a harmonização da descrição do prédio, como era sua obrigação. Além disso, resultou provado que, não obstante a ultrapassagem da data prevista no contrato promessa para a realização da escritura definitiva de compra e venda e do prazo para a marcação da escritura concedido na carta de 30/09/2022 pelo A. à R., ambas as partes mantiveram o interesse na realização do contrato prometido de compra e venda mediante a outorga da escritura pública – cfr. facto # 33. E empreenderam conjuntamente uma reunião no dia 12/11/2022 com um consultor fiscal, no sentido de resolver a divergência de áreas cobertas – cfr. factos # 35 e 36. Tais actos praticados pelas partes no dia 12/11/2022 são incompatíveis com a ideia do autor em como “deve considerar-se que a interpelação admonitória foi validamente efectuada e a mora da Apelada convertida em incumprimento definitivo” – conclusão III). O próprio autor continuou a discutir a realização do negócio com o representante da ré até Dezembro de 2022, de uma forma totalmente incompatível com o invocado incumprimento definitivo – cfr. factos # 40 a 43.
Também a invocação pelo autor das obras realizadas pela ré no imóvel não permite fundamentar a pretendida resolução do negócio, na medida em que não consubstanciam a causa de pedir invocada na petição inicial. E a argumentação do autor apenas reforça o entendimento acima expresso em como o requerimento de “ampliação do pedido” era, na realidade, um articulado que pretendia invocar novos factos e ampliar a causa de pedir – cfr. supra 2.3.
Ademais, a argumentação do autor não faz qualquer sentido, nomeadamente quando refere que “não foram de conservação e reparação, alteraram a arquitectura do imóvel, quando essa alteração não era admitida nos termos do clausulado do CPCV e esse incumprimento tem de ser valorado no contexto da acção, porque tem implicações directas sobre o imóvel objecto do negócio prometido e influi no interesse (ou perda dele) na celebração do negócio final” – conclusão LLL).
Como é evidente, não são as obras realizadas pelo promitente comprador que vão provocar o desinteresse do promitente vendedor no cumprimento da prestação. Bem pelo contrário: se o promitente vendedor não gosta das obras ou entende que as mesmas são prejudiciais, maior será o seu interesse na realização da prestação (venda do imóvel)! O interesse do promitente vendedor na prestação é inversamente proporcional ao interesse nas obras.
Logo, a realização das obras pela ré não pode ser sequer conhecida para fundamentar o pedido de resolução do contrato promessa e os demais pedidos que dele dependem.
A afirmação final do apelante em como não tem interesse no negócio é irrelevante, na medida em que tal questão é apreciada objectivamente e não em função do seu interesse subjectivo e pessoal.
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2.9. O recurso subordinado. A questão da interpelação do autor promovida pela ré.
Em vista do que acima ficou exposto, é de reconhecer validade à argumentação da ré quanto à 4.ª conclusão das doutas contra-alegações, pois o autor não cumpriu integral e diligentemente com a obrigação que assumiu na cláusula 2.ª do contrato promessa, nomeadamente regularizando e apresentando os documentos relativos ao imóvel.
A ré pugnou, em sede reconvencional, no sentido de ser declarado o incumprimento definitivo do A.. O recurso subordinado volta a assentar na 6.ª conclusão: “A interpelação para a realização da escritura feita pela recorrente, através de uma carta de 05/12/2022, é válida e o recorrido deve considerar-se validamente notificado para a data, hora e local onde a escritura se deveria realizar”.
A argumentação da ré convoca igualmente a aplicação do disposto no citado artigo 808.º, do Código Civil, nomeadamente quanto à interpelação admonitória do devedor. Esta interpelação deve conter três elementos:
a) a intimação para o cumprimento;
b) a fixação de um termo peremptório para o cumprimento;
c) admonição ou a cominação (declaração admonitória) de que a obrigação se terá por definitivamente não cumprida se não se verificar o cumprimento dentro daquele prazo – cfr. Batista Machado, in Pressupostos da Resolução por Incumprimento, Obra Dispersa, Volume I, Scientia Jurídica, Braga, 1991, pág.s 164 e 165, e acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/6/2022, disponível na base de dados da DGSI, processo n.º 831/19.8T8PVZ.P1.S1.
A ré decidiu intimar o autor para que este realizasse a sua prestação, ou seja para outorgar da escritura de venda do imóvel. Recordamos que a cláusula 3.ª, § 2, do contrato promessa, previa que seria dado conhecimento da marcação da escritura de compra e venda, através de carta registada, expedida com 15 dias úteis de antecedência para a morada do autor, salvo se outra forma de comunicação fosse acordada entre ambos.
Para o efeito, no dia 5/12/2022 o gerente da R. enviou ao A. para o seu domicílio, sito na Rua (…), em Alcabideche, uma carta em que comunicava a marcação da escritura de compra e venda para o dia 22 de dezembro de 2022 pelas 11h30 no Cartório Notarial – cfr. factos # 46 e 47. O autor, que já tinha sido avisado por meio de mensagem na aplicação “Whatsapp” do eminente envio dessa carta, não a recebeu, nem a foi levantar, apesar de avisado pelo distribuidor postal, e não compareceu no dia e hora marcados pela R. para a outorga da escritura – cfr. factos # 44 a 51. No entanto, as partes não acordaram em substituir a comunicação através de carta registada por meio de mensagem nessa plataforma electrónica.
A sentença já considerou que “não ser razoável a data fixada para a escritura atenta a data do envio da carta (05/12), a data do aviso e a data da devolução da carta à R. (19/12), quando a escritura estava marcada para 22/12. Impunha-se à R. em face da devolução da carta, ainda que nos termos do contrato promessa se considerava a notificação realizada, porém, sem respeito pela antecedência prevista na clausula terceira (15 dias úteis) porquanto foram contabilizados o feriado e fins de semana”.
Entende-se que a ré, em face da mora do autor em diligenciar pela regularização da documentação, podia interpelar o devedor para este realizar a prestação dentro de um prazo razoável. Nota-se que a função da interpelação admonitória prevista no artigo 808.º, n.º 1, do Código Civil, é a de permitir que a prestação seja iniciada ou completada. Tal preceito não pode ser instrumentalizado pelo credor para forçar o incumprimento definito da prestação pelo devedor, nomeadamente por meio da imposição de um prazo irrazoável.
Como refere o aludido acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/6/2022: “Uma intimação para cumprir que não contenha um termo preciso, mas se reporte apenas a um prazo «breve» ou «brevíssimo», ou a um prazo «razoável», não pode valer para o efeito. E muito menos vale para o efeito a interpelação em que o credor se limite a ameaçar o devedor com a compra de uma cobertura ou o convide a declarar-se pronto a cumprir dentro do prazo fixado».
Com efeito, como é sabido, o atraso no cumprimento do contrato-promessa constitui em mora o promitente faltoso.
Para falar-se de mora é, porém, necessário que por parte do credor não tenha desaparecido ou cessado (objectivamente) o interesse na execução do contrato-promessa.
É também necessário que a prestação, embora retardada, seja ainda possível.
Não se estando perante o caso de perda do interesse (apreciada objectivamente), nem de impossibilidade de conclusão do negócio, perante um atraso do outro promitente, ou um provisório incumprimento, ou por recusa de cumprimento da promessa, o promitente não faltoso (nos contratos‑promessa de compra e venda de fracção autónoma de prédio urbano) tem a faculdade de recorrer à execução específica do contrato e, por outro lado, pode optar por fixar um prazo razoável dentro do qual o devedor poderá ainda cumprir, sob cominação de a mora se converter em incumprimento definitivo com a consequente resolução do contrato (a designada interpelação admonitória). Ou seja, para transformar a mora em incumprimento pode ser necessária a fixação de um prazo suplementar cominatório, sendo que essa interpelação admonitória é, na feliz expressão de ANTUNES VARELA, “uma ponte obrigatória de passagem para o não cumprimento (definitivo) da obrigação”.
Nuno Pinto de Oliveira salienta que “O aplicador do direito deverá apreciar a adequação ou razoabilidade do prazo atendendo às circunstâncias do caso concreto – designadamente: 1.º ao conteúdo da relação contratual; 2.º à dificuldade da prestação; 3.º aos interesses do credor e do devedor; 4.º à causa do não cumprimento; 5.º à gravidade do não cumprimento; 6.º na hipótese de o devedor não ter realizado prestação nenhuma, à gravidade do atraso; 7.º na hipótese de o devedor ter realizado uma prestação defeituosa, imperfeita ou inexacta, à gravidade do defeito; 8.º à frequência com que o devedor foi interpelado; 9.º à intensidade com que o devedor foi interpelado; 10.º aos prejuízos que o atraso causa ao credor; e (sobretudo) – 11.º ao risco de que a prestação se torne inútil para o credor” - in Princípios de Direito dos Contratos, Coimbra, 2011, pág.s 816 e 817.
Ora, no presente caso, a definição do prazo razoável para a realização da prestação deve assentar especialmente no conteúdo da relação contratual, nomeadamente na referida cláusula 3.ª, § 2, do contrato promessa, ao prever que será dado conhecimento da marcação da escritura de compra e venda, através de carta registada, expedida com 15 dias úteis de antecedência para a morada do autor, salvo se outra forma de comunicação fosse acordada entre ambos. Note-se que, na lógica do contrato promessa, no momento da marcação da escritura, a ré já deveria ter recebido todos os documentos necessários à elaboração da mesma. Por conseguinte, ao remeter a interpelação admonitória para o autor no dia 5/12/2022, para este outorgar a escritura no dia 22/12/2022, a ré encurtou o prazo para a realização da prestação para dez dias úteis. Se as partes tinham anteriormente acordado na expedição da comunicação da data da realização da escritura com uma antecedência de quinze dias úteis, afigura-se que o subsequente encurtamento pela ré desse prazo para dez dias úteis não se revela adequado e razoável, pois ambas as situações pressupunham a mesma conduta por parte do autor: comparecer e outorgar a escritura.
Também cumpre ainda notar que, como a ré expressamente reconheceu na missiva enviada ao autor, este ainda teria que entregar a documentação necessária no cartório notarial até 5 dias antes. Sabendo que o autor ainda tinha que diligenciar pela documentação em falta – o que dependia de alguma forma da actuação da Administração Pública nos moldes que a ré sugeriu na contestação – o encurtamento do prazo pela ré é irrazoável. A não ser que a ré tivesse actuado desta forma para dificultar o cumprimento da prestação ou forçar o incumprimento…
Por conseguinte, não se tem o autor por validamente interpelado, nem é de considerar que o mesmo incumpriu definitivamente na prestação quando faltou à realização da escritura.
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2.10. A propositura da presente acção judicial.
A ré considerou ainda que, por força da propositura de acção judicial por parte do autor, se deve considerar o contrato como incumprido definitivamente por facto imputável ao apelante.
A argumentação das partes não colhe, na medida em que ambas vieram aos autos comunicar que, subjectivamente, não tem interesse na realização da prestação. A dedução dos pedidos da acção e da reconvenção espelham a vontade de cada uma das partes. Tais declarações são inoperantes, na medida em que a perda do interesse na prestação é apreciada objectivamente, como já se aludiu anteriormente.
Por outro lado, o incumprimento definitivo também pode resultar da circunstância do próprio devedor declarar, em termos sérios e definitivos, que não irá cumprir (declaração de não cumprimento) e o credor, em consequência disso, considerar a obrigação definitivamente incumprida.
Nesse caso, como defendeu Calvão da Silva “Não há, portanto, razão para manter o credor vinculado, até ao vencimento, a uma relação jurídica que, em virtude de declaração séria, certa e segura, ante diem, de não cumprir do devedor, perdeu a força originária e desapareceu como vínculo em cuja actualidade final o sujeito activo possa confiar para satisfação plena e integral do seu interesse, razão existencial da obrigação. É exacto, por isso, configurar a declaração antecipada de não cumprir (ou o comportamento inequívoco demonstrativo da vontade de não cumprir, ou da impossibilidade antes do tempo de cumprir) como incumprimento (antes do termo), pressuposto suficiente de consequências jurídicas imediatas, como a exigibilidade do cumprimento e a execução especifica do contrato-promessa, se o credor nisso ainda tiver interesse, ou a própria resolução do contrato e, em geral, todos os remédios ou sanções previstos contra o incumprimento” – in Sinal e Contrato-Promessa, Coimbra, 1995, pág. 104.
Porém, nenhuma das partes veio declarar, em termos sérios e definitivos, que não quer cumprir. Pelo contrário, cada uma invoca que perdeu o interesse na prestação por culpa da outra. Ora, esta recriminação recíproca não consubstancia uma declaração antecipada de não cumprir, nem pode fundamentar a consequente declaração de incumprimento definitivo do primeiro pedido reconvencional ou dos demais que dele dependem.
Em suma, improcede igualmente o recurso subordinado.
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2.11. A questão das custas e do apoio judiciário.
Autor e ré saem vencidos no recurso principal e no recurso subordinado, respectivamente. Em face do disposto no artigo 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil, cada uma das partes suportará as custas pelo decaimento no respectivo recurso, sendo que o autor comprovou a concessão do benefício de apoio judiciário na modalidade de dispensa do pagamento de taxa de justiça e demais encargos, com vista a propor procedimento cautelar(?), conforme requerimento que apresentou no dia 17/11/2023. O requerimento que juntou com a petição inicial aludia à propositura de providência cautelar e acção declarativa de condenação, mas não foi apresentado o comprovativo do seu recebimento, pelo que não é possível verificar se diz respeito àquela decisão.
O requerimento que o autor apresentou com a petição inicial não indica qualquer rendimento, nomeadamente o recebimento de um milhão de euros relativo à prometida venda da casa. Relativamente à situação económica do requerente, o autor omitiu a resposta à pergunta (sim/não) sobre propriedade de bens imóveis. Escreveu “casa de morada de família” no respectivo quadro, mas sem apresentar os dados que são perguntados, nomeadamente a identificação, o proprietário ou o valor de aquisição dessa casa.
A ré referiu na contestação que o autor está a residir, a título permanente, na morada indicada na p.i., tendo aliás adquirido outra moradia no concelho de Cascais, local onde se encontra a residir com permanência – na Rua (…), em Alcabideche.
Nas doutas contra-alegações, a ré refere o seguinte: “O Recorrente usa e abusa da justiça depois tendo sido provado que é possuidor de uma moradia no concelho de Cascais e que, por força do contrato de promessa junto com a PI, recebeu 1.000.000 (um milhão) de Euros, continua a litigar com o benefício do apoio judiciário, porque omitiu todos esses factos aquando da apresentação do respectivo pedido junto da Segurança Social, declarando ainda uma residência que não é mais do que um escritório de advogados”.
O tribunal desconhece os pressupostos da decisão do Instituto da Segurança Social que concedeu o referido apoio judiciário ao autor, nomeadamente se considerou o recebimento da quantia que foi demonstrada nesta acção ou se tal informação e outras relevantes foram desconsideradas; porque razão não foram consideradas; ou porque razão, eventualmente, não terão sido pedidos esclarecimentos adicionais ao autor, nomeadamente em face da forma como foi preenchido o formulário.
Mas o tribunal sabe que a situação que a ré lastima só pode ser concebida em face do desinteresse ou conivência da mesma, na medida em que o art.º 26.º, n.º 5, do Regime de Acesso ao Direito e aos Tribunais, lhe confere legitimidade para impugnar a decisão e a ré decidiu ficar-se pelas invetivas ao autor.
Não obstante, nos termos do disposto no art.º 13.º, n.º 1, do Regime de Acesso ao Direito e aos Tribunais, “caso se verifique que o requerente de protecção jurídica possuía, à data do pedido, ou adquiriu no decurso da causa ou no prazo de quatro anos após o seu termo, meios económicos suficientes para pagar honorários, despesas, custas, imposto, emolumentos, taxas e quaisquer outros encargos de cujo pagamento haja sido declarado isento, é instaurada acção para cobrança das respectivas importâncias pelo Ministério Público ou por qualquer outro interessado”.
Assim, considerando que a questão se enquadra nos poderes oficiosos do tribunal, determina-se que os autos, logo que voltem à primeira instância, sejam continuados com vista ao Ministério Público, a quem caberá decidir da pertinência dos factos provados para instaurar a acção para cobrança das custas, taxa e encargos devidos pelo autor.
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3. Decisão:
3.1. Pelo exposto, acordam em julgar improcedentes o recurso principal e o recurso subordinado, e em confirmar a sentença.
3.2. As custas são a suportar pela apelante e pela apelada, respectivamente no recurso principal e no recurso subordinado, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário do autor.
3.3. Mais se determina que, os autos, logo que voltem à primeira instância, sejam continuados com vista ao Ministério Público para os fins referidos em 2.11.
3.4. Notifique.
Lisboa, 10 de Abril de 2025
Nuno Gonçalves
Elsa Melo
Gabriela de Fátima Marques