RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE RELAÇÃO LABORAL
PRESUNÇÃO LEGAL / ARTIGO 12.º DO CT
PLATAFORMA DIGITAL
ESTAFETA
Sumário

I - A qualificação de um contrato como de trabalho deve ter por base a totalidade dos elementos de informação disponíveis, a partir de uma maior ou menor correspondência com o conceito-tipo.
II - Não é de qualificar como laboral a relação entre a detentora/administradora de plataforma digital e o prestador de actividade no âmbito da mesma, quando o mesmo pode definir o valor mínimo a receber pela sua actividade, pode escolher quando presta a actividade, e onde, pode rejeitar as ofertas que lhe são feitas, e mesmo cancelar as já aceites, desde que ainda não tenha recolhido o produto a entregar, pode fazer-se substituir, por outros prestadores inscritos na mesma aplicação, e pode na mesma altura prestar a sua actividade a terceiros, nomeadamente a plataformas digitais concorrentes.

Texto Integral

Processo: 9755/23.3T8VNG.P1

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação do Porto

I. Relatório
O Ministério Público, veio intentar a presente acção especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho de AA, residente na Rua ..., Porto, contra A... Portugal, Unipessoal, Lda., com sede na Avenida ..., ..., Lisboa.
Alega em síntese que: Na sequência de uma ação inspetiva levada a cabo pela ACT em 31/08/2023, pelas 11h55, no estabelecimento comercial denominado “B...”, situado na Rua ..., foi constatado que AA prestava atividade como estafeta por conta/benefício da ré em condições correspondentes às do contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital; notificada a ré, apresentou resposta alegando, em suma, que o vínculo contratual consubstancia uma prestação de serviços; a ré não regularizou a situação.
Regularmente citada, veio a ré contestar, alegando em síntese: na Plataforma A..., os prestadores de atividade, são livres para exercer a sua atividade quando querem e pelo tempo que quiserem, onde quiserem, e como quiserem, sendo que o modelo de relação contratual estabelecida entre as partes parte sempre deste pressuposto de absoluta flexibilidade e autonomia do prestador de atividade na gestão do seu tempo e da forma como se organiza; neste sentido, é impossível reconhecer a existência de um contrato de trabalho entre os prestadores de atividade (como o aqui visado) e a ré. Invoca a desaplicação da norma constante do artigo 32º, nº 3 da Lei nº 13/2023, de 3 de Abril, por inconstitucionalidade da norma que a materializa; invoca a violação pela ACT do direito ao contraditório da ré, na medida em que, em apenas 4 dias, emitiu de mais de 200 autos de inadequação do vínculo que titula a prestação de atividade no âmbito de plataforma digital, o que resulta na anulabilidade da participação efetuada pela ACT aos Serviços do Ministério Público, por vício de violação de lei (artigo 163º, nº 1, do Código do Procedimento Administrativo), que constitui uma exceção dilatória atípica.
O Ministério Público respondeu à questão da constitucionalidade e da excepção.
Foi proferido despacho no qual se negou a inconstitucionalidade invocada e improcedente a excepção.
Procedeu-se a julgamento, com gravação da prova pessoal nele produzida.
Ministério Público e ré alegaram por escrito.
Foi proferida sentença, na qual se decidiu a final: “julgo a presente ação improcedente, por não provada, e absolvo a Ré A... Portugal, Unipessoal, Lda., do pedido contra si deduzido.”
Fixou-se à acção o valor de € 2.000,00.
Inconformado interpôs o Ministério Público o presente recurso de apelação, concluindo:
1. O presente recurso é interposto da sentença que julgou improcedente a ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, estando em apreciação o vínculo contratual estabelecido entre a Ré “A... Portugal Unipessoal, Lda.” e o prestador de atividade/Estafeta AA.
2. Analisada a prova produzida em audiência, conclui-se que o Tribunal cometeu um erro de julgamento, ou seja, violou regras de experiência quando apreciou tal prova e decidiu dar como não provados determinados factos relativos à execução da atividade de AA que resultaram demonstrados.
3. Impugna-se, assim, o julgamento da matéria de facto.
4. Entende-se, antes de mais, como incorretamente julgados os seguintes pontos de facto, incluídos pelo tribunal na materialidade dada como não provada (cfr. artigo 640º, nº 1, al. a), do Código de Processo Civil):
“e) Para lá dos momentos referidos em 14) a Ré exige, por via da sua plataforma, que AA mantenha ativa a sua ligação à plataforma e o sistema de geolocalização existente na aplicação, designadamente ao longo do percurso entre recolha e entrega dos produtos.
f) Quando AA acede ou faz login na aplicação, a Ré ficar a saber qual a sua localização geográfica e acompanha toda a sua movimentação, em tempo real e de forma permanente, desde o momento em que aceita um pedido até à sua entrega ao cliente.
g) Controlando o tempo que AA demora a entregar os pedidos e o percurso que efetua.
h) Se AA não avançar no percurso definido até à morada do cliente final, receberá uma interpelação quer da Ré, na respetiva plataforma, quer do cliente, para justificar a paragem e/ou o atraso na entrega.
m) Não existe qualquer negociação entre AA e a Ré quanto aos critérios para definição dos montantes a receber e que integram a distância (número de quilómetros entre o ponto de recolha e o ponto de entrega), o tempo necessário para efetuar a entrega ao cliente e o horário (em que os de maior afluência de pedidos serão mais bem pagos).
p) AA está abrangido por seguro, contratado e disponibilizado pela Ré como Apólice de Proteção para Parceiros de Entrega da A... Portugal, titulado pela C..., com a apólice nº ....
q) No caso de acidente, AA deve reportar a situação na plataforma da A..., na parte dos sinistros.
r) AA exerce a atividade de estafeta através da App A... cerca de 8 horas por dia.
s) AA não presta atividade para nenhuma outra entidade ou plataforma, dependendo o seu rendimento mensal exclusivamente do serviço prestado em benefício da Ré”.
5. Ora, contrariamente à decisão do Tribunal, entendemos que a prova produzida em audiência de julgamento impunha que se desse também como assente tal factualidade, em conjunto com a restante materialidade elencada sob os números 1) a 37).
6. Quanto aos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada (artigo 640º, nº 1, al. b) do Código de Processo Civil), deverá atender-se, quanto ao facto elencado sob a alínea e), desde logo ao que foi assumido pela própria Ré no seu articulado de contestação, junto aos autos em 25-01-2024 (ref. citius 37952744);
7. Nos artigos 247º a 263º e 269º a 270º da contestação, a Ré assume que a indicação dada aso estafetas é a de permanecerem ativos quer na aplicação (app A...) quer quanto ao sinal de GPS.
8. A acrescer ao alegado/assumido na contestação, a prova dos referidos pontos de facto decorre também dos termos e condições do “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”, junto com a contestação, dos quais também se retira a vinculação do estafeta à ligação permanente à aplicação e à geolocalização, mais concretamente o Ponto 4. alíneas g., i. e m..
9. A prova desse facto resulta ainda do depoimento prestado na audiência de julgamento de 14-06-2024 pelo prestador de atividade AA, conforme as passagens da gravação áudio 20240614095627_16577339_287 1616, aos minutos 44:48 a 45:10, 45:27 a 47:12, 01:24:10 a 01:25:36 e 01:57:10 a 01:57:54.
10. Quanto aos pontos de facto elencados sob as alíneas f) e g), a prova dos mesmos decorre do ponto 4. alíneas i) e m).
11. Conforme resulta desse documento, aquando da celebração do contrato, o prestador autoriza a plataforma a recolher e a dispor dessas informações relativas à sua localização, que a mesma fornece aos clientes finais da plataforma, permitindo-lhes acompanhar, em permanência, a progressão da entrega, sabendo, em cada momento, em que local se encontra o prestador/estafeta responsável pela entrega do pedido.
12. Para a prova do referido ponto de facto também se indica o depoimento do prestador de atividade (passagem da gravação áudio 01:26:36).
13. Quanto ao facto elencado sob a alínea h), a sua prova decorre da verificação dos pontos f) e g), sendo que o mesmo deve ser dado como provado, mas nos seguintes termos: “Se AA não avançar no percurso definido até à morada do cliente final poderá ser interpelado pelo cliente final da plataforma, para justificar a paragem e/ou o atraso na entrega”.
14. Para a prova desse facto indica-se o depoimento de AA, sobretudo, nas passagens da gravação áudio situadas entre 01:34:00 e 01:34:07).
15. Quanto ao facto elencado sob a alínea m), a sua prova resulta, desde logo, dos termos e condições do “contrato de parceiro de entregas independente”, no seu ponto 6., alíneas c. a e., que prevê unicamente a possibilidade de o prestador ajustar a taxa de entrega mínima por quilómetro.
16. Para além do referido documento, indica-se também o depoimento do prestador de atividade AA, na parte em que descreveu o modo como acede ao valor de cada pedido, qual o critério para a definição desse montante e a possibilidade de incrementar os ganhos, aproveitando os momentos em que surge o “dinâmico” na aplicação: passagens da gravação áudio 42:43 a 49:06, 57:34 a 59:26, 01:00:52 a 01:01:54, 01:02:09 a 01:02:43 e 01:02:56 a 01:03:26).
17. O ponto de facto elencado sob a alínea p) não foi objeto de impugnação pela Ré na contestação que ofereceu, resultando dos artigos 231º e 232º desse articulado uma admissão da existência do alegado Seguro Partner da C....
18. Para a prova desse facto indica-se também os termos e condições do contrato de parceiro de entregas independente, no ponto 13. al. g), onde se prevê a celebração desse seguro, bem como as regras de experiência comum quanto ao procedimento a seguir em caso de sinistro sendo beneficiário de um seguro subscrito através da aplicação.
19. E indica-se também o depoimento de AA que, em audiência de julgamento, fazendo consulta autorizada da aplicação A..., instalada no seu smartphone, confirmou ser beneficiário desse seguro (passagens da gravação áudio 01:29:22 a 01:29:28 e 01:29:37 a 01:29:43).
20. O ponto de facto descrito sob a alínea r) encontra demonstração no depoimento de AA, que se afigurou espontâneo e genuíno, tendo descrito as horas escolhidas para o exercício da atividade e o dia de descanso que gozava, o que resulta, sobretudo, das passagens da gravação áudio 30:05 a 31:58, 34:02 a 35:00.
21. Sendo que tal depoimento deve ser conjugado com o histórico dos recibos semanais emitidos entre 01-08-2023 e 31-10-2023, junto com a participação a ACT e com a relação de pagamentos semanais efetuados ao prestador pela Ré entre janeiro de 2023 e fevereiro de 2024.
22. O ponto de facto descrito sob a alínea s) resulta demonstrado pelo depoimento prestado em audiência por AA, sobretudo, nas passagens da gravação áudio 31:04 a 31:17.
23. Também se impugna a decisão sobre matéria de Direito.
24. Entendemos ter sido errado o entendimento do Tribunal no sentido de não ser aplicável à situação em apreço o disposto no artigo 12º-A do Código do Trabalho.
25. A nosso ver, o disposto no artigo 35º, nº 1, da Lei nº 13/2023 de 03-04, permite a aplicação desse normativo na situação em apreço, porquanto o que está em discussão é a qualificação do contrato celebrado entre o prestador de atividade/estafeta e a Plataforma e não uma alteração dos elementos constitutivos desse contrato.
26. Atenta a aplicação nos autos do disposto nos artigos 12º e 12º-A do Código do Trabalho, considera-se estarem verificadas, desde logo, as características que fazem presumir a existência de contrato de trabalho previstas no artigo 12º, nº 1, als. a) e b), do Código do Trabalho.
27. Quanto à alínea a), a mesma decorre do facto provado sob o nº 23), que refere as restrições/limitações quanto à escolha e alteração da área geográfica para o desenvolvimento da atividade do estafeta, o que confere à Ré um poder definidor que afasta a autonomia na definição dessa área de atuação.
28. Quanto à alínea b) do mesmo preceito legal, a mesma tem-se por verificada, porquanto o instrumento principal da atividade desenvolvida pelo estafeta é efetivamente a aplicação informática (app A...) pertencente à Ré e disponibilizada ao prestador de atividade;
29. Quanto às características previstas no artigo 12º-A do Código do Trabalho, para além das previstas nas alíneas b), d), e) e f) que o Tribunal também entendeu verificadas, é nosso parecer que também resultaram provadas aquelas previstas nas alíneas a) e c).
30. Quanto à verificação da alínea a), a mesma decorre dos factos assentes sob os números 18) e 20), ou seja, que é a Ré que fixa a retribuição, através da definição do preço de cada entrega, inexistindo qualquer verdadeira negociação entre a Ré e o prestador quanto aos critérios para a definição dos montantes a receber pelo mesmo.
31. Também a característica prevista na alínea c) se encontra, a nosso ver, verificada, por força do ponto de facto assente sob o número 17), quanto à exigência de identificação facial que corresponde a um controlo biométrico efetuado pela Ré.
32. Bem como a geolocalização corresponde, tratando-se de um Estafeta, a um controlo da atividade, porquanto permite verificar a sua localização espacial e se existe ou não progressão na marcha.
33. Na situação em apreço, a Ré não logrou demonstrar uma factualidade que comprovasse a real e verdadeira autonomia do prestador de atividade/estafeta na realização da sua atividade, afastando a subordinação jurídica pressuposta pelo contrato de trabalho.
34. A Ré não conseguiu, a nosso ver, ilidir a presunção da existência de um contrato de trabalho.
35. Pelo contrário, o que resultou de toda a factualidade demonstrada em audiência de julgamento foi a inserção (mediante a celebração de um contrato tipo ou de adesão) do prestador de atividade AA numa estrutura organizativa que lhe é alheia e para a qual o mesmo contribui, com caráter regular, com uma obrigação de meios e não de resultado, e de forma subordinada, estado o mesmo dependente economicamente dessa estrutura.
36. Por tal motivo, é nosso parecer que o Tribunal errou ao julgar improcedente a ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, tendo violado o disposto nos arts. 11º, 12º, nº 1, als. a) e b) e 12º-A, nº 1, als. a) a f), e nº 4, este último a contrario, do Código do Trabalho.
37. Daí que a decisão recorrida deva ser alterada, concluindo-se pelo reconhecimento da existência do contrato de trabalho, a vincular a Ré e AA desde janeiro de 2023.
A ré alegou concluindo:
1) Como se evidencia em virtude das presentes contra-alegações, o Recorrente apresentou recurso tanto da matéria de facto, como da matéria de direito.
2) Ainda assim, salvo o devido e merecido respeito, as doutas alegações de recurso apresentadas pelo Recorrente terão, necessariamente, de improceder, porquanto, ainda que se altere a matéria de facto nos termos peticionados pelo mesmo, a restante matéria de facto (que não foi impugnada pelo ora Recorrente) que resultou provada nos presentes autos não permite alcançar uma decisão distinta daquela que foi proferida pelo douto Tribunal a quo, independentemente da presunção aplicável ao caso concreto.
3) Antes de mais, cabe frisar que o ora Recorrente, sob o artigo 12º da petição inicial, alegou que o prestador de atividade visado “(...) em janeiro de 2023, (...) efetuou o seu registo na Plataforma A... (...)”, facto dado como provado por via do ponto 9 dos Factos Provados da sentença recorrida.
4) Por ter sido dado como provada a referida data de registo, concluiu o Tribunal a quo, em linha com a jurisprudência unânime do Supremo Tribunal de Justiça, que a presunção de laboralidade consagrada sob o artigo 12º-A, nº 1, do Código do Trabalho não é aplicável ao caso concreto, tendo em conta as normas de aplicação da lei no tempo que regem a sua aplicação.
5) Na subsunção dos factos provados aos indícios previstos no artigo 12º, nº 1, do Código do Trabalho, concluiu o Tribunal a quo que “(...) existindo apenas o preenchimento duma das hipóteses previstas no art. 12º, nº 1 do Código do Trabalho, não se pode ao abrigo do mesmo presumir a existência dum contrato de trabalho – tal demandaria o preenchimento de pelo menos duas das hipóteses ali previstas”, o que resultou na improcedência da ação apresentada pelo ora Recorrente.
6) Não obstante, considerou o Tribunal a quo que, ainda que não se aplique ao caso concreto, o facto de a presunção de laboralidade consagrada sob o artigo 12º-A do Código do Trabalho ser operante no caso concreto não determina a existência de contrato de trabalho entre as partes, já que, no que toca à forma como o prestador de atividade visado presta a sua atividade, “[e]stas liberdades e autonomias impressivas não encontram paralelo em qualquer situação de vínculo laboral. / E levam, a nosso ver, a afastar uma situação de subordinação de AA à Ré”, na medida em que foram comprovados factos que permitiram a ilisão da presunção prevista no artigo 12º-A, nº 1, do Código do Trabalho, caso a mesma fosse aplicável.
7) E assim, sem prejuízo de a aplicação do artigo 12º-A não ser legalmente admissível no caso concreto, a conclusão final do Tribunal a quo na sentença ora recorrida é cristalina no que toca à natureza da relação contratual estabelecida entre a ora Recorrida e o prestador de atividade visado: independentemente de se aplicar a presunção consagrada no artigo 12º ou a prevista no artigo 12º-A, ambos do Código do Trabalho, nenhuma delas determina a existência de um contrato de trabalho entre a ora Recorrida e o prestador de atividade visado nos presentes autos.
8) Alega o Recorrente que os pontos e), f), g), h), m), p), q), r) e s) dos Factos Não Provados deveriam ter sido dados como provados, ainda que, tal como demonstrado acima, tal não tenha resultado da prova produzida, seja incompatível com a factualidade produzida e/ou tais alegações assentem noutras alegações infundadas e conclusões inalcançáveis.
9) Relativamente à eventual aplicação da presunção de laboralidade prevista no artigo 12º-A do Código do Trabalho, defende o Recorrente que as respetivas normas de aplicação da lei no tempo devem ser interpretadas de forma diferente da que ficou vertida sentença recorrida e, portanto, o artigo 12º-A do Código do Trabalho deve ser aplicado retroativamente.
10) Salvo o devido respeito, a aplicação da lei no tempo de presunções legais não é um tema novo, nem muito menos um tema que esteja aberto à discussão, visto que o artigo 12º, nº 2, do Código Civil, há muito que proíbe a aplicação retroativa de presunções legais.
11) De acordo com o disposto 35º, nº 1 da Lei nº 13/2023, de 3 de abril, que estabeleceu o artigo 12º-A do Código do Trabalho, “Ficam sujeitos ao regime do Código do Trabalho, com a redação dada pela presente lei, os contratos de trabalho celebrados antes da entrada em vigor desta lei, salvo quanto a condições de validade e a efeitos de factos ou situações anteriores àquele momento.”
12) A regra estabelecida no artigo 35º da lei acima referida é idêntica à do artigo 8º, nº 1, da Lei nº 99/2003 que aprovou e publicou o Código do Trabalho (de 2003), que estabeleceu pela primeira vez uma presunção de existência de contrato de trabalho na legislação laboral, e corresponde, ipsis verbis, ao artigo 7º, nº 1 da Lei nº 7/2009, de 12 de fevereiro que aprovou e publicou o atual Código do Trabalho (de 2009), e que introduziu a presunção geral do contrato de trabalho atualmente em vigor, do artigo 12º (em 2009).
13) Com base nestas disposições relativas à aplicação da lei no tempo, e segundo o entendimento jurisprudencial reiteradamente expresso pelo Supremo Tribunal de Justiça, estando em causa uma relação jurídica cuja execução perdura ininterruptamente durante certo período, e não havendo mudança na configuração dessa relação, aplica-se, no toca à sua qualificação, a lei laboral vigente à data do seu início.
14) A aplicação das presunções de laboralidade no tempo não é um tema que esteja aberto à discussão e à divergência doutrinária, como o Recorrente admite. Na verdade, é uma regra clara e de aplicação direta decorrente do artigo 12º, nº 2, do Código Civil.
15) Tal como ensina BAPTISTA MACHADO, o artigo 12º, nº 2, do Código Civil comporta uma regra clara no que toca à aplicação da lei no tempo de presunções legais, incluindo a prevista no artigo 12º-A do Código do Trabalho, na medida em que “(...) é em face da lei antiga que devem ser decididas as questões de saber se uma situação jurídica concreta se constituiu ou não, se ela se constituiu regularmente ou padece de quaisquer vícios na sua formação – isto é, todas as questões relativas à validade ou invalidade dos respetivos atos constitutivos. (...) As presunções não podem, pois, aplicar-se retroativamente para caracterizarem situações jurídicas existentes na data em que as mesmas entraram no sistema jurídico, aplicando-se deste modo e apenas relativamente às situações jurídicas constituídas na vigência destas normas. / Importa, aliás, que também se tenha presente que por detrás da problemática de sucessão de leis no tempo estão princípios fundamentais do direito como o princípio da confiança, a exigir a estabilidade de situações jurídicas, como base da vida social e o princípio da autonomia da vontade, com reflexo direto no respeito pela vontade das partes na modelação das suas relações, especialmente aquelas que têm base contratual. / Em suma, a aplicação das presunções de laboralidade a uma situação jurídica constituída antes da entrada em vigor da lei que as estabelece implicaria a aplicação retroativa dos efeitos jurídicos dessas 
presunções à caracterização do facto de que emerge a situação jurídica em causa, o que contraria o direito do facto, a lei em vigor no momento em que se constitui, e, por tal motivo, violaria frontalmente o disposto no artigo 12º, nº 2 do Código Civil, bem como o princípio da autonomia da vontade das partes na modelação das suas relações jurídicas”.
16) Atenta a data de início da relação contratual estabelecida entre a Recorrida e o prestador de atividade visado nos presentes autos, a saber, 13 de janeiro de 2023 (Ponto 9 dos Factos Provados), não será aplicável o regime decorrente do indicado artigo 12º-A do Código do Trabalho (na redação dada pela Lei nº 13/2023, de 03 de Abril, que entrou em vigor em 01 de maio de 2023), mas apenas o que decorre do artigo 12º do mesmo diploma, ou seja, há que aplicar o regime jurídico em vigor na data em que se estabeleceu a relação jurídica entre as partes.
17) Nesta matéria, estamos perante posição uniforme e consolidada do Supremo Tribunal de Justiça, conforme se pode ler, designadamente, no sumário do acórdão datado de 04 de julho de 2018, processo nº 1272/16.4T8SNT.L1.S1 (disponível em www.dgsi.pt), “a jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça está consolidada de forma uniforme no sentido de que, estando em causa a qualificação de uma relação jurídica estabelecida entre as partes antes da entrada em vigor das alterações legislativas que estabeleceram o regime da presunção de laboralidade, e não se extraindo da matéria de facto provada que tenha ocorrido uma mudança na configuração dessa relação, há que aplicar o regime jurídico em vigor na data em que se estabeleceu a relação jurídica entre as partes”.
18) Posição esta que tem sido seguida pelos Tribunais da Relação que já decidiram recursos de ações de reconhecimento da existência de contrato de trabalho derivadas das alterações legislativas introduzidas por via da Lei nº 13/2023, de 3 de abril, nomeadamente o Tribunal da Relação de Évora e o Tribunal da Relação de Guimarães.
19) Assim, mais uma vez se destaca a boa decisão do Tribunal a quo, não existindo necessidade, ao contrário do peticionado pelo Recorrente, de alterar a sentença no que toca ao direito aplicável ao caso concreto.
20) No que toca à aplicação da presunção prevista no artigo 12º do Código do Trabalho ao caso concreto, concluiu o Tribunal a quo que a referida presunção é inoperante no caso concreto, porquanto, percorrendo os factos provados e não provados, concluiu que apenas se verificava o preenchimento da característica previstas na alínea b) do nº 1 do referido artigo 12º esteja verificada.
21) Não se provou que a atividade era ou é realizada em local pertencente à Recorrente ou por ela determinado (a área geográfica onde o prestador de atividade faz as entregas é escolhida por si, tendo este escolhido a área de Vila Nova de Gaia e do Porto, podendo, ainda, alterar a sua área de atuação, mediante comunicação) (Ponto 23 dos Factos Provados).
22) Não se provou que os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam à Recorrida; neste ponto, cremos que seja de frisar que o software não pode ter-se como um utensílio nos mesmos moldes que um hardware (um bem corpóreo), pois entender em sentido divergente deste seria entrar num raciocínio tautológico ou metalinguístico, absorvendo-se a própria plataforma digital no conceito de equipamento ou utensílio de trabalho, com a consequente desvirtuação de conceitos. Neste sentido já concluiu o Tribunal da Relação de Évora no acórdão proferido no âmbito do processo nº 3842/23.5T8PTM.E1 (João Luís Nunes), datado de 12 de setembro de 2024. No mais, ficou provado que os efetivos instrumentos/equipamentos, tal como o veículo (mota ou bicicleta), o telemóvel e a mochila térmica de transporte, que o prestador de atividade utiliza foram por si adquiridos (Ponto 16 dos Factos Provados).
23) Não se provou que o prestador de atividade observe horas de início ou termo da sua atividade determinadas pela Recorrida, antes pelo contrário, uma vez que resultou provado que é o próprio que escolhe os dias e horas em que pretende ligar-se à plataforma A... (Ponto 28 dos Factos Provados).
24) Não se provou que a Recorrida pague uma quantia certa com periodicidade ao prestador de atividade, uma vez que o mesmo recebe ao pedido e tem total liberdade para aceitar e recusar os pedidos apresentados (Pontos 18 e 27 dos Factos Provados). A este propósito, resultou igualmente provado, desde logo, que o mesmo pode decidir quando quer ser pago (Ponto 26 dos Factos Provados). Para além disso, ficou provado que o prestador de atividade tem a faculdade de determinar a sua taxa mínima por quilómetros, ficando a Recorrida condicionada à determinação do prestador de atividade (Ponto 24 dos Factos Provados).
25) Por fim, não se provou (nem sequer se alegou) que o prestador de atividade desempenhe quaisquer funções de direção ou chefia na estrutura orgânica da Recorrida, tal como concluiu o Tribunal a quo.
26) Ora, sem prejuízo de a presunção consagrada sob o artigo 12º-A do Código do Trabalho não ser aplicável ao caso concreto, é forçoso concluir que nenhum dos indícios previstos no referido preceito se mostrou preenchido face à prova produzida, ao contrário do que o Recorrente alega, a saber, que os indícios previstos na alíneas a), b), c), d), e) e f) do nº 1 do artigo 12º-A do Código do Trabalho se encontram verificados.
27) No que concerne ao indício previsto no artigo 12º-A, nº 1, alínea a), do Código do Trabalho, entende o Recorrente que “(...) é a Ré que fixa a retribuição, através da definição do preço de cada entrega, resultando tal retribuição do somatório das entregas aceites e finalizadas”, nada dizendo, no entanto, relativamente à possibilidade de os prestador de atividade visado ter a possibilidade de determinar o seu valor mínimo por quilómetro (ponto 24 dos Factos Provados), nem quanto ao direito de recusar toda e qualquer oferta de entrega que lhe for apresentada (ponto 27 dos Factos Provados), o que, só por si, já afastaria o preenchimento do indício previsto no artigo 12º-A, nº 1, alínea a), do Código do Trabalho, em linha com o decidido pelo Tribunal a quo.
28) Em contraste, bem andou o Tribunal a quo ao constatar que antes de mais, a redação da disposição, “(...) à semelhança de outras deste artigo, descreve infelizmente duma forma conclusiva os pressupostos necessários – que devem de ser de facto – para alcançar uma determinada conclusão de direito – a presunção de existência dum contrato de trabalho”, passando, depois, a concluir que “(...) a Ré não fixa a AA as quantias que lhe devem ser pagas em qualquer período temporal”, uma vez que as quantias pagas ao prestador de atividade visado, para além de dependerem inteiramente das entregas que o mesmo aceitou completar, não se enquadram no conceito laboral de retribuição, previsto no artigo 258º do Código do Trabalho.
29) Assim, para além de o prestador de atividade ser livre de recusar qualquer oferta de entrega que lhe seja apresentada e de determinar quando quer ser pago, a definição da taxa mínima por quilómetro por parte do prestador de atividade é uma faculdade atribuída ao mesmo, o qual é livre de definir o valor mínimo a partir do qual pretende receber ofertas, ou seja, é o próprio prestador de atividade que tem a faculdade de definir o preço mínimo a partir do qual aceita prestar a sua atividade. Para além disso, também é livre de não definir qual o valor mínimo por quilómetro e prestar a sua atividade de acordo com as suas preferências instantâneas relativamente às propostas que são lhe apresentadas – a liberdade é, também nesta matéria, total.
30) Acresce que a alínea a) do nº 1 do artigo 12º-A do Código do Trabalho se refere a “retribuição” e não a taxa de entrega ou preço do serviço de entrega. Trata-se de um conceito definido no Código do Trabalho, no artigo 258º, e que consiste numa contrapartida pelo trabalho/atividade prestada.
31) De facto, não só a Recorrida não fixa unilateralmente a retribuição, como não determina limites mínimos e máximos da taxa de entrega. O elemento copulativo “e” inserido pelo legislador na alínea a) reconduz-nos à convicção de que pretendeu que tal pressuposto se baseasse na inflexibilidade da componente remuneração, ou seja, que esta fosse fixada com a intervenção exclusiva da plataforma, pelo menos em termos de moldura de retribuição, e não numa flexibilidade mitigada, em que o estafeta tem o poder de impor limites mínimos, como sucede na relação em apreço.
32) Os prestadores de atividade têm sempre a possibilidade de recusar as propostas que lhe são apresentadas, o que não seria possível se os mesmos não tivessem qualquer palavra a dizer relativamente ao preço que é proposto. De facto, a possibilidade expressa de recusar as propostas apresentadas, independentemente do motivo e sem que qualquer consequência negativa daí advenha, não pode deixar de ser vista como uma forma de negociação, na medida em que, com essa recusa, o prestador da atividade não está a aceitar o preço proposto e, assim, está a sinalizar que só faz a entrega por um preço mais elevado, por não concordar com o preço originalmente proposto.
33) A retribuição por cada serviço não é, pois, fixada unilateralmente pela Recorrida, antes é proposta por esta ao prestador da atividade, que pode recusá-la, incluindo pelo simples – e legítimo – motivo de não concordar com o preço proposto. Trata-se de uma proposta de serviço, não de uma imposição da sua prática.
34) Assim, dificilmente se poderá concluir pela fixação da retribuição – como aconteceria se o pagamento do serviço fosse apresentado depois de ele ser realizado ou se o estafeta não pudesse recusar a sua realização com a inerente imposição do seu pagamento. Podendo o estafeta recusar o serviço (incluindo, reitere-se, pelo simples motivo de não concordar com o preço proposto) já se está no domínio da possibilidade de uma negociação e, portanto, não se pode concluir que a Recorrida fixe a retribuição.
35) A propósito da remuneração, e ainda que tendo por base a presunção do artigo 12º do CT, não deixa de ser pertinente citar o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 9 de setembro de 2015, proferido no âmbito do proc. 3292/13.1TTLSB.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt, onde é sustentado que: “O tipo de remuneração é bastante elucidativo. Se a retribuição for determinada por tempo de trabalho, em função do período de tempo durante o qual se exerce e desempenha a actividade, será de pressupor que se está perante um contrato de trabalho; porém, se o pagamento for feito em função da tarefa, do resultado, e fixado à hora ou em função do tempo utilizado na execução da tarefa, será um contrato de prestação de serviço; E como reforço do critério que antecede temos que quando são pagos os subsídios de férias e de Natal normalmente o contrato é de trabalho e não de prestação de serviço”.
36) Neste sentido, vai também o Tribunal da Relação de Coimbra, o qual no acórdão proferido no âmbito do proc. 725/14.3TTCBR.C1, datado de dia 21 de maio de 20215, disponível em dgsi.pt, esclarece que ainda que se prove existir uma periodicidade habitual do pagamento, tem ainda de se provar “(...) que com a mesma periodicidade o pagamento fosse em quantia certa (todos os meses)”. O referido caso decidido pelo Tribunal da Relação de Coimbra, embora relativo a uma enfermeira, é análogo ao caso sub judice no que toca à forma de cálculo dos valores a pagar, apenas se alterando o coeficiente das entregas concluídas para as horas trabalhadas. Assim, “(...) o resultado do somatório dos tempos de actividade prestada em todos os turnos praticados pela enfermeira em cada mês, com os eventuais acréscimos percentuais acima indicados, são calculados a partir dos seus registos de logon e logoff no sistema informático, o que induz mesmo que o pagamento mensal não fosse feito em quantia certa”.
37) Nesta medida, não se pode enquadrar os montantes recebidos pelo prestador de atividade visado nos presentes autos no conceito de retribuição (laboral), seja porque: (i) os mesmos não são determinados pela ora Recorrida, na medida em que é o prestador de atividade que decide quais ofertas aceita e, ainda, porque tem a possibilidade de determinar a sua Taxa Mínima por Quilómetro; (ii) não existe regularidade nos valores, já que o valor mensal está dependente da quantidade de entregas efetuadas e de cada uma das entregas individualmente consideradas; e (iii) não existe periodicidade determinada, podendo o prestador de atividade escolher ser pago quando quiser.
38) O prestador de atividade é remunerado pelo resultado (e tendo sempre em conta o preço mínimo que o próprio define), ou seja, é remunerado pela tarefa (que nem sequer é obrigado a aceitar), pela entrega do produto do comerciante ao cliente, e não pelo tempo que demora a concluir a entrega ou ainda pelo tempo que se encontra ligado à Plataforma, o que é incompatível com a conclusão de que ocorre uma fixação da retribuição.
39) No que concerne ao indício previsto no artigo 12º-A, nº 1, alínea b), do Código do Trabalho, alega o Recorrente que as circunstâncias de “(...) a Ré impor a apresentação de determinados documentos para registo da conta e início de atividade com recurso à plataforma digital A... e exigir a utilização de determinados equipamentos para o exercício da atividade de estafeta, como uma mochila com determinadas dimensões e telemóvel com geolocalização ativa para recolha e entrega de pedidos” implicam necessariamente a verificação do indício previsto no artigo 12º-A, nº 1, alínea b), do Código do Trabalho.
40) É de notar que a alínea b) do nº 1 do art. 12º-A do Código do Trabalho se refere expressamente a “regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade” e não a regras específicas para o acesso à prestação da atividade na plataforma, diferença que pode passar despercebida numa leitura menos atenta e que deve, por isso, ser salientada.
41) Por conseguinte, assumir a definição de regras para registo na plataforma como uma regra específica quanto à prestação da atividade não pode deixar de ser vista como uma interpretação demasiado extensiva, sem qualquer base legal ou interpretativa que o sustente.
42) Assim, não se pode considerar que a submissão de documentos pelo prestador de atividade no momento do registo, nem a adesão aos termos e condições da plataforma ou qualquer outra etapa do processo de registo na aplicação, constitui uma manifestação do poder de direção ou uma regra específica quanto à prestação da atividade.
43) Na verdade, os documentos submetidos, como ficou provado, servem um único propósito: a demonstração, por parte do prestador de atividade, do cumprimento das obrigações legais para a prestação de qualquer atividade independente em Portugal.
44) Já no que toca à adesão aos termos e condições aplicáveis, cabe ter em consideração que tal constitui uma prática recorrente às plataformas digitais, sejam elas de prestação de serviços ou serviços de streaming ou meras redes sociais.
45) A adesão a termos e condições é uma prática recorrente no que toca às plataformas digitais. Qualquer rede social (por exemplo, Facebook ou Instagram), marketplace (por exemplo, D... ou E...) ou serviço de streaming (por exemplo, F... ou G...) tem os seus termos e condições.
46) A criação e utilização da conta criada constitui um passo essencial para a utilização e acesso a qualquer tipo de plataforma digital. Não se percebe como se pode considerar que o registo na plataforma A... releva para a qualificação da relação contratual estabelecida entre a Recorrida e o prestador de atividade visado nos presentes autos, elevando este ato ao cumprimento de um dever laboral, em nada contribuindo a alegação de tal facto por parte do Recorrente para o preenchimento do indício previsto no artigo 12º-A, nº 1, alínea b), do Código do Trabalho.
47) Já no que toca à necessária utilização de uma mochila térmica para a prestação da atividade, a sua utilização deve-se à necessidade de serem adotadas boas práticas de higiene e de segurança alimentar, para além de permitirem que o estafeta possa transportar os produtos no veículo por si utilizado. Ou seja, constitui uma exigência de segurança alimentar, transversal a todo o setor de transporte de produtos alimentares, não sendo, portanto, uma exigência da Recorrida, mas sim de segurança alimentar determinada pelo setor da restauração.
48) Neste ponto, tem ainda cabimento a jurisprudência do Tribunal da Relação de Évora, na medida em que não relevam para o preenchimento dos indícios previstos no artigo 12º do Código do Trabalho os factos que resultem do cumprimento da lei.
49) A utilização de uma mochila isotérmica prende-se com exigências de segurança alimentar, ditadas pela AHRESP, as quais foram determinadas em cumprimento dos artigos 7º a 9º do Regulamento (CE) nº 852/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 29 de abril de 2004, relativo à higiene dos géneros alimentícios, tal exigência decorre, ainda, do Capítulo IV do Anexo II desse mesmo regulamento europeu.
50) Quanto à necessidade de utilizar um telemóvel com geolocalização ativa, cabe referir que nos encontramos no âmbito digital, onde a única forma de aceder à plataforma é via internet, ou seja, será sempre necessário, pela natureza da atividade, que o prestador de atividade recorra a um qualquer dispositivo com a acesso à internet.
51) Ora, tendo em conta que a atividade prestada pelo prestador de atividade visado, o telemóvel mostra-se como sendo o bem mais adequado para o prestador de atividade visado aceder à plataforma.
52) Todos nós, prestadores de atividade através de uma plataforma digital ou não, recorremos aos nossos telemóveis para aceder às mais variadas plataformas e serviços digitais. Será que podemos dizer que essas mesmas plataformas e serviços digitais nos impuseram que utilizássemos um telemóvel? Diremos que a resposta é negativa. Antes, tal necessidade prende-se com a natureza virtual das plataformas e serviços, que apenas existem no mundo virtual, e, portanto, é necessário utilizarmos um dispositivo adequado que nos permita aceder aos mesmos.
53) Neste sentido, imperioso se mostra concluir que a utilização de telemóvel não pode ser tida como uma regra relativa à prestação de atividade, na medida em que não resulta de uma determinação da Recorrida, mas tão só da natureza digital da plataforma utilizada pelo prestador de atividade visado.
54) No que toca ao indício previsto na alínea c) do nº 1 do artigo 12º-A do Código do Trabalho, o Recorrente considera que o sistema de controlo de identidade e a utilização, por parte da Recorrida, dos dados de geolocalização do prestador de atividade visado permitem o preenchimento do mesmo.
55) Não obstante, em linha com a sentença recorrida, cabe destacar que, em linha com a decisão do Tribunal a quo, não ficou provado que a Recorrida utilize o sinal de GPS do prestador de atividade para controlar a prestação da atividade.
56) É de notar que o legislador não quis estabelecer a verificação do indício com a simples existência de um sistema de geolocalização, sendo que do elenco dos factos provados não constam sequer factos que permitam concluir que o prestador de atividade visado foi alguma vez sujeito a controlo e supervisão através do GPS, antes pelo contrário. Assim, o indício previsto no artigo 12º-A, nº 1, alínea c), do Código do Trabalho, não se basta com a utilização “(...) de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica”.
57) Antes, prevê que o controlo e a supervisão da prestação da atividade ou a verificação da qualidade da atividade prestada pode ser efetuada com recurso a esse tipo de instrumentos. O que releva é a prova da existência de controlo/supervisão da prestação da atividade ou de controlo da qualidade da atividade prestada, não a utilização de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica para qualquer fim.
58) Mais se refira que, no entendimento do Supremo Tribunal de Justiça, “(...) o GPS apenas permite a localização de veículos em tempo real, referenciando--os em determinado espaço geográfico. Não se dirigindo diretamente à vigilância do campo de ação dos trabalhadores, não permite saber o que fazem os respectivos condutores, mas, tão somente, onde se encontram e se estão parados ou em circulação”.
59) No que toca ao sistema de reconhecimento facial, o mesmo prende-se com a necessidade de a Recorrida cumprir com a obrigação prevista no artigo 3º, nº 5, do Regulamento (EU) 2019/1150 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, o apelidado Regulamento P2B.
60) De forma a cumprir com a obrigação prevista na referida disposição do apelidado Regulamento P2B, a Recorrida pede aos estafetas, com periodicidade aleatória, que procedam ao reconhecimento facial, de forma a comprovar que quem se encontra a utilizar a conta registada na plataforma A... corresponde ao respetivo titular.
61) Neste sentido, cabe relembrar que, seguindo o entendimento do Tribunal da Relação de Évora, não relevam para o preenchimento dos indícios previstos no artigo 12º do Código do Trabalho os factos que resultem do cumprimento da lei, na medida em que não cabe ao beneficiário da atividade determinar os moldes em que se presta determinada atividade quando a mesma “(...) se encontra fortemente condicionada pela legislação em vigor, razão pela qual quem a exerça, a título de autonomia ou por conta de outrem, sempre terá de respeitar tal legislação e, dessa forma, atuar de forma condicionada”.
62) No que toca ao indício previsto no artigo 12º-A, nº 1, alínea d), do Código do Trabalho, considera o Recorrente que o facto de a Recorrida ter o direito de desativar a conta do prestador de atividade visado constitui uma forma de restringir a autonomia do mesmo quanto à organização do trabalho.
63) Salvo o devido respeito, uma leitura atenta do indício de laboralidade em causa permite concluir que tal facto não se subsume nesta disposição, já que o mesmo respeita à forma como o prestador de atividade presta a sua atividade, nomeadamente quanto ao grau de autonomia com que o faz, tal como indica o catálogo atípico das características de uma atividade que deve ser considerada autónoma consagradas no referido indício.
64) Para além disso, a considerar-se que a desativação da conta se subsume no indício previsto no artigo 12º-A, nº 1, alínea d), do Código do Trabalho, necessariamente se verificará uma sobreposição com o indício previsto na alínea e) do mesmo preceito. Isto porque, se se considerar que a desativação da conta equivale simultaneamente a uma restrição da autonomia do prestador de atividade e “a exclusão de futuras atividades na plataforma através da desativação de conta”, ambas as alíneas se preencherão automaticamente mediante a verificação de um único facto, o que nos parece levar necessariamente à conclusão de que tal interpretação destes princípios não deverá ser feita nestes moldes.
65) Já no que toca às circunstâncias que, salvo melhor entendimento, poderiam ser subsumidas no indício em causa, diríamos que, da prova produzida, inexistem quaisquer restrições à autonomia do prestador de atividade visado na determinação de como, quando, onde e durante quanto tempo presta a sua atividade, cumpre ainda realçar que, com relevância relativamente ao indício previsto no artigo 12º-A, nº 1, alínea d), do Código do Trabalho, na medida em que resultou provado que os prestadores de atividade registados na plataforma A...:
(i) Podem, livremente, escolher quando ligam ou desligam a aplicação, ou seja, têm total controlo no que toca à definição do período em que pretendem realizar a atividade, sem qualquer influência da Recorrida (em linha com o ponto 28 dos Factos Provados);
(ii) Escolhem a zona e os locais onde pretendem desempenhar a sua atividade (segundo os ponto 23 dos Factos Provados);
(iii) Podem livremente aceitar, ignorar ou recusar tarefas, sem qualquer consequência associada (tal como resulta do pontos 27 e 33 dos Factos Provados);
(iv) Podem substituir-se (de acordo com o ponto 34 dos Factos Provados);
(v) Podem inclusivamente escolher não receber propostas de entrega de clientes e comerciantes específicos sem ter de dar qualquer justificação à Recorrida (em linha com o ponto 29 dos Factos Provados);
(vi) Podem ainda, livremente, prestar a mesma atividade para plataformas concorrentes ou diretamente para os estabelecimentos comerciais registados na plataforma A... (em linha com o ponto 31 dos Factos Provados); e
(vii) São ainda livres de, no desempenho dos seus serviços, seguir as rotas que desejarem, bem como de utilizar os sistemas de navegação GPS que preferirem ou até mesmo de não recorrerem a nenhum sistema de navegação GPS (tal como resulta do ponto 32 dos Factos Provados).
66) No que toca ao indício previsto no artigo 12º-A, nº 1, alínea e), do Código do Trabalho, à semelhança do alegado relativamente ao indício previsto na alínea d) do mesmo preceito, alega o Recorrente que a circunstância de a Recorrida ter o direito de desativar a conta do prestador de atividade visado é suficiente para preencher o primeiro dos indícios referidos, ou seja, considera o Recorrente que o direito da ora Recorrida desativar a conta do prestador de atividade em causa constitui uma manifestação do poder laboral disciplinar.
67) Contrariamente ao alegado pelo Recorrente, cabe esclarecer que as situações em que a ora Recorrida se encontra legitimada para desativar a conta de qualquer prestador de atividade registado na plataforma A..., constantes dos termos e condições aplicáveis juntos aos presentes autos, não constituem situações de violação de deveres laborais.
68) Por contraposição com os deveres laborais previstos no artigo 128º, nº 1, do Código do Trabalho, que nenhuma das obrigações previstas nos termos e condições aplicáveis constitui um dever laboral. Assim, não se poderá considerar que a resolução do contrato celebrado entre a ora Recorrida e o prestador de atividade visado nos presentes autos pode cessar pelo incumprimento de deveres laborais.
69) Num segundo momento, é também de atentar que a circunstância de o contrato celebrado entre a ora Recorrida e o prestador de atividade visado nos presentes autos poder ser cessado por incumprimento por parte do prestador de atividade não implica necessariamente a existência de poder disciplinar laboral.
70) O direito de resolução contratual é um direito geral a qualquer tipo de contrato, tendo suporte legal e constituindo um direito negocial quando assim convencionado pelas partes, não constituindo necessariamente uma manifestação ou sequer um indício da existência de poder disciplinar laboral.
71) Adicionalmente, a possibilidade de o respetivo operador excluir sujeitos da plataforma digital que opera encontra-se expressamente prevista no artigo 4º do apelidado Regulamento P2B (Regulamento (UE) 2019/1150 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019). Em disposição alguma do Regulamento P2B se verifica a referência a “relação laboral”, “entidade empregadora”, “trabalhador” ou “poder disciplinar”. A razão para tal é simples: a desativação de contas, enquanto forma de reação a, por exemplo, uma situação de incumprimento dos termos e condições da plataforma, não é necessariamente, ao contrário do que o Tribunal a quo entendeu, uma manifestação do poder disciplinar.
72) Não se vislumbra, assim, como é que a Recorrida exerce poderes laborais, nomeadamente o poder disciplinar, já que, como ficou demonstrado, a desativação de contas (i) não constitui uma manifestação do poder disciplinar, (ii) não é exercida como forma de orientar comportamentos e (iii) é reconhecida pelo Direito da União Europeia como sendo uma prerrogativa das plataformas digitais perante profissionais independentes.
73) Neste sentido, bem andou o Tribunal a quo ao decidir que o indício previsto no artigo 12º-A, nº 1, alínea e), do Código do Trabalho, face à factualidade provada, não se encontra preenchido.
74) Por fim, alega o Recorrente que o indício previsto na alínea f) do nº 1 do artigo 12º-A do Código do Trabalho também deve ser considerado preenchido, na medida em que a aplicação constitui um instrumento de trabalho do prestador de atividade visado.
75) Tal como referido a propósito do indício previsto no artigo 12º, nº 1, alínea b) do Código do Trabalho, entender que uma aplicação informática (um software) é um instrumento de trabalho é entrar num raciocínio tautológico ou metalinguístico, absorvendo-se a própria plataforma digital no conceito de equipamento ou utensílio de trabalho, com a consequente desvirtuação de conceitos.
76) Como é do mais elementar bom senso, um software não pode ter-se como um utensílio nos mesmos moldes que um hardware (um bem corpóreo), ou seja, o equipamento de trabalho é o telemóvel onde é instalada a aplicação informática e não esta (da mesma forma que o instrumento de trabalho de um advogado é o computador que utiliza, não o software “word” onde escreve as suas peças processuais ou o software “adobe reader” com o qual abre as notificações do tribunal em formato pdf).
77) Para além disso, sempre se diga que, também de um ponto de vista interpretativo, não foi essa a intenção do legislador. E tal conclusão vai em linha com a jurisprudência do Tribunal da Relação de Évora no acórdão proferido no âmbito do processo nº 3842/23.5T8PTM.E1 (João Luís Nunes), datado de 12 de setembro de 2024, segundo a qual “[é] certo que a presunção de laboralidade do artigo 12º-A se encontra adaptada e visa precisamente situações de trabalho nas plataformas digitais, pelo que em tais situações terá que existir, necessariamente, uma aplicação informática/plataforma digital para o exercício da atividade. / Porém, afigura-se que para que se verifique a característica em análise exige-se mais, exige-se que alguns equipamentos/ instrumentos de trabalho pertençam à ré, pois de outro modo, ou seja, se fosse suficiente para a verificação da característica que a ré gerisse uma aplicação informática, então seria redundante a existência desta característica, pois a própria atividade em causa, trabalho em plataforma digital, já conteria o requisito/caraterística da alínea f). / Por consequência, entende-se não se verificar a característica prevista na alínea f)”.
78) Interpretação contrária, para além de absolutamente ilógica, terá o seguinte resultado prático: a alínea f) do artigo 12º-A do Código do Trabalho estará sempre automaticamente verificada, sem necessidade de quaisquer indagações por parte do Tribunal, uma vez que o recurso ao artigo 12º-A pressupõe sempre o recurso a uma plataforma digital (uma aplicação informática, um software) pelo prestador de atividade.
79) Em face do exposto, imperioso se torna concluir que também não se verifica o indício previsto sob a alínea f) do nº 1 do artigo 12º-A do Código do Trabalho, mantendo-se, portanto, a sentença proferida pelo Tribunal a quo.
80) In casu, não se verifica, como se viu, qualquer dos indícios presentes nos artigos 12º (aplicável ao caso concreto) ou 12º-A (não aplicável ao caso concreto) do Código do Trabalho, não podendo, por isso, presumir-se a existência de um contrato de trabalho.
81) No entanto, caso o Tribunal ad quem assim não entenda e conclua pelo preenchimento de alguns dos pressupostos de aplicação da presunção de laboralidade consagrada no artigo 12º (aplicável ao caso concreto) ou 12º-A do Código do Trabalho, o que apenas por mero dever de patrocínio se concebe, é certo que a Recorrida ilidiu tal presunção, pois demonstrou, sem margem para dúvidas, que o prestador de atividade visado nos presentes autos presta a sua atividade com efetiva autonomia, sem estar sujeito ao poder de direção, ao poder disciplinar, ao poder de supervisão ou ao poder regulamentar da ora Recorrida, pelo que não existe subordinação jurídica e, consequentemente, não mantém com o prestador de atividade qualquer relação de natureza laboral.
82) Neste sentido decidiu o Tribunal a quo, o qual concluiu que “(...) olhada a definição legal do que é um contrato de trabalho, e verificados os concretos factos provados, o modo como AA exercia a sua atividade detém demasiadas caraterísticas de autonomia e liberdade, como já fomos apontando”. Isto porque o prestador de atividade visado “(...) é absolutamente livre de escolher as horas e dias em que realiza entregas, sem quaisquer penalizações se não se ligar à App. E é absolutamente livre de escolher se quer ou não prestar atividade para determinado parceiro comercial ou cliente, sendo absolutamente livre de rejeitar propostas de entrega de produtos que lhe sejam dirigidas, sem qualquer consequência no caso de aceitação ou recusa das mesmas. / Certo é igualmente que, existindo algumas regras para o exercício da sua atividade, as mesmas são de caráter bastante ligeiro, gozando este estafeta de ampla autonomia na forma como exerce a sua atividade. Pode acondicionar os produtos como quiser, deslocar-se por onde e durante o tempo que quiser para proceder à entrega dos produtos, e não tem qualquer ditame da forma como se deve apresentar ou comportar”.
83) Tal conclusão resulta expressa e claramente da análise dos seguintes factos:
- Os prestadores de atividade que se registem na aplicação não estão obrigados a fazer quaisquer entregas utilizando a aplicação; têm apenas a possibilidade de o fazer. O prestador de atividade não está, por isso, obrigado a realizar qualquer número mínimo de entregas, a permanecer conectado na aplicação ou, estando conectado, a aceitar qualquer pedido, sendo certo que tem ainda liberdade para estabelecer um valor mínimo por quilómetro abaixo do qual não efetua entregas, como já referido e especificado;
- O prestador de atividade não está sujeito a qualquer tipo de exclusividade, que resulta da possibilidade de prestar o mesmo serviço para as empresas que diretamente concorrem no mercado com a Recorrida ou até mesmo a título individual em concorrência com a Recorrida ou exercer qualquer outra atividade remunerada, já que a disponibilidade para estar a executar a prestação destes serviços apenas depende do próprio;
- O prestador de atividade é livre para definir o seu horário de trabalho e o local de exercício da sua atividade. A Recorrida não restringe a autonomia dos estafetas quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho, dos períodos de ausência e à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas ou do local de exercício da atividade;
- Quando presta a sua atividade, o prestador de atividade pode seguir as rotas que desejar, bem como utilizar os sistemas de navegação GPS que preferir utilizar ou até mesmo de não utilizar nenhum sistema de navegação GPS, pelo que não há qualquer controlo por parte da Recorrida na forma como os estafetas se apresentam ou como prestam a sua atividade;
- O prestador de atividade tem a possibilidade de designar outras pessoas para substituição no exercício da atividade, o que demonstra que o que interessa à Recorrente não é a atividade em si mesma, elemento inerente a um contrato de trabalho que é celebrado intuitu personae, mas antes o resultado da sua atividade, característica do contrato de prestação de serviços;
- O prestador de atividade é livre de recusar qualquer serviço proposto, sem qualquer consequência, incluindo recusar já depois de aceitar, e inclusivamente de decidir não receber propostas de entrega de determinados clientes e/ou comerciantes, igualmente sem qualquer consequência, o que corresponde, como é bom de ver, prova da inexistência de qualquer subordinação. Não se vislumbra que tipo de relação laboral poderia resistir existindo a possibilidade de o prestador da atividade se poder recusar, injustificadamente e a seu bel-prazer, a prestá-la;
- A remuneração auferida é variável e por entrega, e não fixa em função do tempo despendido na realização da atividade, podendo os estafetas receber a todo e qualquer momento;
- Por fim, todos os instrumentos utilizados no desempenho da atividade pertencem ao próprio prestador de atividade e não à Recorrente.
84) Este conjunto de elementos aponta no sentido da efetiva autonomia do prestador de atividade e da inexistência de uma relação com carácter de subordinação jurídica, pelo que, nos termos do artigo 12º-A, nº 4, do Código do Trabalho e artigo 350º, nº 2, do Código Civil, resulta ilidida qualquer presunção de laboralidade que eventualmente se verificasse.
85) Para além de serem autónomos na fixação do tempo e local de prestação da sua atividade, os prestadores de atividade registados na plataforma A... têm uma profunda liberdade para definir que tarefas aceitam ou não prestar, uma vez que inexistem limites ou consequências para a não aceitação – aqui reside uma característica que se afigura de difícil compatibilização com a ordenação típica da relação laboral, o que, aliás, foi já apreciado e assim concluído, pelo colendo Supremo Tribunal de Justiça, designadamente no acórdão de 9 de janeiro de 2019, no processo nº 1376/16.3T8CSC.L1.S1.
86) Para além disso, foi essa independência que fundou a decisão do Tribunal Justiça da União Europeia proferido no Caso B/Yodel Delivery Network, onde se pode ler, com especial pertinência, o seguinte: “A Diretiva 2003/88/CE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 4 de novembro de 2003, relativa a determinados aspetos da organização do tempo de trabalho, deve ser interpretada no sentido de que se opõe a que uma pessoa, contratada pelo seu empregador presumido ao abrigo de um acordo de serviços no qual se indica que é empresária independente, seja qualificada de «trabalhador» na aceção desta diretiva, quando essa pessoa dispõe da faculdade de:
- recorrer a subcontratantes ou a substitutos para efetuar o serviço que se comprometeu a fornecer;
- aceitar ou não aceitar as diferentes tarefas propostas pelo seu empregador presumido, ou fixar unilateralmente um número máximo das mesmas;
- fornecer os seus serviços a quaisquer terceiros, incluindo a concorrentes diretos do empregador presumido, e
- fixar as suas próprias horas de «trabalho» dentro de certos parâmetros, bem como organizar o seu tempo a fim de se adaptar à sua conveniência pessoal em vez de unicamente aos interesses do empregador presumido, uma vez que, por um lado, a independência dessa pessoa não se afigura fictícia e, por outro, não é permitido estabelecer a existência de um vínculo de subordinação entre a referida pessoa e o seu empregador presumido.”
87) Em sentido convergente, o Supremo Tribunal de Justiça do Reino Unido, em decisão recente, de 21 de novembro de 2023, decidiu que os estafetas que prestam atividade (no caso, para a plataforma Deliveroo) não podem ser considerados trabalhadores subordinados, uma vez que são “livres de rejeitar ofertas de trabalho, de se tornarem indisponíveis e de realizarem trabalhos para concorrentes”, concluindo que “estas características são fundamentalmente inconsistentes com qualquer noção de relação de trabalho”(tradução nossa).
88) Cumpre ainda recordar dois acórdãos do nosso Supremo Tribunal de Justiça, nos quais foi decidido que o facto de prestador de atividade poder escolher o próprio horário, não exercer a atividade em regime de exclusividade, ter a possibilidade de aceitar ou rejeitar serviços, ter a possibilidade de se fazer substituir e a possibilidade de agendar férias sem ser pago durante esse período e ser o titular dos instrumentos de trabalho permite ilidir a presunção do artigo 12º do Código do Trabalho ou distinguir uma prestação de serviços de um contrato de trabalho, não obstante, nestes casos concretos ser evidente que os prestadores de atividade não têm uma estrutura organizativa própria, não são empresários e não têm os seus próprios clientes.
89) Todas estas decisões contêm factos relevantes e semelhantes àqueles que foram provados pela Recorrida, factos esses que apontam no sentido de uma relação jurídica autónoma e não juridicamente subordinada.
90) Do elenco da factualidade efetivamente provada nos presentes autos é possível concluir que os prestadores de atividade não têm qualquer compromisso, mínimo que seja, de regularidade, pontualidade ou assiduidade na prestação de atividade, podendo desaparecer e não prestar atividade durante dias, semanas ou até mesmo meses.
91) A Recorrida não tem qualquer ascendente disciplinar sobre os estafetas.
92) Não ficou provado que o GPS funcionasse para controlo ou sequer monitorização da atividade desenvolvida pelos prestadores de atividade, antes sim para o bom e regular funcionamento da aplicação, com o respeito pela lei.
93) Para a Recorrida é absolutamente indiferente (desde que cumpram os requisitos mínimos previstos nos seus termos e condições) quem exerce a função de estafeta, não detendo com os mesmos qualquer relação de confiança ou de dependência jurídica.
94) Não se demonstrou, pela factualidade provada, que lhes sejam dadas instruções, ordens ou quaisquer regras de como cumprir as suas tarefas, bastando que, caso aceitem a entrega proposta, a entreguem no local determinado pelo cliente.
95) A subordinação jurídica fica totalmente arredada pois a Recorrida não exerce qualquer controlo, nem sobre os equipamentos utilizados, nem sobre a forma como os estafetas cumprem os seus serviços, nem quanto ao número de pedidos aceites ou rejeitados, nem mesmo quanto ao número de horas que disponibilizam para esta atividade, concluindo-se que, no caso concreto, o prestador de atividade visado organiza o seu plano de prestação de atividade como bem entender, sem ter que o justificar seja a quem for.
96) Por fim, provou-se que o prestador de atividade visado nos presentes autos pode prestar a sua atividade de entregas através de plataformas digitais concorrentes.
97) Enquanto nos contratos de trabalho, o trabalhador está obrigado a estar disponível para cumprir quaisquer tarefas que o empregador lhe atribua, nos contratos de prestação de serviços, o prestador da atividade apenas se compromete a alcançar um determinado resultado. É o que acontece no caso sub judice.
98) Ao concluir o registo na plataforma e concordar com os termos e condições aplicáveis, os prestadores de atividade não se comprometem a prestar qualquer atividade em nome da Recorrida, apenas passam a ter a possibilidade fazê-lo.
99) Não se pode considerar que os prestadores de atividade fazem parte da organização produtiva da Recorrida se esta nem consegue determinar quantos prestadores de atividade se encontrarão disponíveis em determinada área geográfica num período de tempo específico e se estes sequer vão aceitar as ofertas de entrega que lhes são disponibilizadas.
100) Uma organização produtiva pressupõe, isso mesmo, organização, o que implica planeamento e disponibilidade de mão-de-obra para o efeito.
101) Sucede que, conforme já várias vezes referido nas presentes conclusões, a Recorrida não organiza a atividade dos prestadores de atividade de maneira alguma, pois estes são livres para escolher o seu horário, ligarem e desligarem-se da plataforma, e decidir durante quanto tempo permanecem ligados, sendo ainda livres para rejeitarem e aceitarem a ofertas de entrega que entenderem, conforme decorre dos termos e condições aplicáveis e corroborado pela prova produzida.
102) Tudo isto resulta na impossibilidade prática de a Recorrida saber quantos prestadores de atividade estarão com sessão iniciada na plataforma em determinada altura, quantos deles se manterão conectados (e por quanto tempo) e, por fim, quantos aceitarão as propostas de entrega disponibilizadas. Tal como se provou nos presentes autos, por vezes existem entregas que não são realizadas “(...) por não existirem estafetas com sessão iniciada na Plataforma ou por nenhum estafeta aceitar uma determinada oferta de entrega”, o que comprova que a ora Recorrida não organiza a atividade prestada pelos estafetas registados na plataforma A....
103) Não se pode, assim, concluir que a Recorrida disponha de uma organização de prestação de serviços de entrega, contrariamente ao que o Recorrente alega.
104) Nestes termos, deve a sentença recorrida ser mantida, ao contrário do alegado pelo Recorrente, julgando-se a ação totalmente improcedente, não reconhecendo qualquer contrato de trabalho entre a Recorrida e o prestador de atividade AA.
A Magistrada do Ministério Público junto deste Tribunal teve vista nos autos, não tendo emitido parecer em virtude de a acção ter sido intentada pelo Ministério Público.
Admitido o recurso e colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
Como se sabe, o âmbito objectivo dos recursos é definido pelas conclusões do recorrente (artigos 635º, nº 4, e 639º, nº 1, do CPC, por remissão do art. 87º, nº 1, do CPT), importando assim decidir quais as questões naquelas colocadas.
Importa conhecer das seguintes questões: (I) do invocado erro na apreciação da matéria de facto e (II) da pretensa incorrecta aplicação do direito aos factos.

II. Fundamentação de facto
Em primeira instância foi considerada provada e não provada a seguinte matéria de facto:
A – Factos provados:
1. Ré é uma sociedade comercial por quotas, que disponibiliza serviços à distância, através de meios eletrónicos, através da aplicação informática A... Driver (APP ou aplicação), de sua propriedade, a pedido de utilizadores, no local indicado no sítio (..., a pedido de utilizadores.
2. Na plataforma digital da Ré são registados os clientes consumidores finais e os estabelecimentos aderentes designados de parceiros.
3. O cliente consumidor final acede à aplicação informática A..., pertencente à Ré, e efetua o registo do seu pedido, constituído pela entrega de um certo produto, designadamente refeições, que é fornecido por determinado estabelecimento, por exemplo restaurantes.
4. Tal pedido é encaminhado, através da plataforma da Ré, para o estabelecimento aderente ou parceiro que diligenciará pela resposta ao pedido.
5. Também através da plataforma da Ré, o pedido é por vezes comunicado a estafetas que procederão, contra o pagamento de taxa de entrega, à recolha do pedido junto do estabelecimento aderente e à sua entrega ao cliente final da Plataforma.
6. Os estafetas que desenvolvem a sua atividade na Plataforma diretamente são designados por “Parceiros de Entregas Independentes”.
7. Os estafetas que desenvolvem a sua atividade na Plataforma através de um intermediário são designados por “Parceiros de Entregas do Parceiro de Frota”.
8. Os intermediários são designados por “Parceiros de Frota”.
9. Em 13-1-2023 AA efetuou o seu registo na Plataforma Digital A..., como parceiro de entrega de parceiro de frota, associado ao parceiro de frota “BB”, registo que se manteve até 14-3-2023.
10. De 15-3-2023 a 11-7-2023 registou-se como parceiro de entrega de parceiro de frota, de “CC”.
11. A partir de 11-7-2023 até 14-5-2024 registou-se como parceiro de entregas independente, tendo a partir de tal data retomado uma associação a um parceiro de frota, designado “Questão Deslumbrante, Unipessoal, Lda”.
12. Para realização de tais registos na plataforma da Ré, AA teve de apresentar documentos relativos a seguro de responsabilidade civil de motociclo, do seu registo criminal e da declaração de inexistência de dívidas da Autoridade Tributária e Segurança Social.
13. AA iniciou a sua atividade como estafeta utilizando a App A... em janeiro de 2023.
14. Nos momentos de recolha e entrega dos produtos que aceita transportar, AA tem de manter ativa a sua ligação à plataforma da Ré e o sistema de geolocalização existente em tal aplicação.
15. Tal ativação e geolocalização determina a atribuição das propostas de entrega dos pedidos dos clientes aos estafetas e o cálculo da quantia paga pela entrega.
16. Para a prestação da atividade, a Ré exige a AA que disponha de um smartphone com ligação à internet e duma mochila térmica apta para transporte dos pedidos A...,
17. É periodicamente solicitada a AA através da App A... a sua identificação facial para confirmar a titularidade da conta (controlo biométrico).
18. O valor a receber por AA por serviços de estafeta é indicado no momento em que surge o pedido para aceitar ou não na App A....
19. Nos períodos em que AA trabalhou como parceiro de entregas independente a Ré pagou os montantes devidos por atividade como estafeta com periodicidade semanal, através de transferência bancária.
20. Entre 29-08-2023 e 31-10-2023, AA auferiu entre €105,97 e € 334,29, por semana, no exercício da sua atividade de estafeta em benefício da Ré.
21. A App/Plataforma da Ré contém um sistema de avaliação, no qual os utilizadores do serviço (clientes finais) inscrevem a sua avaliação da recolha e entrega dos pedidos efetuada pelos estafetas, nomeadamente, por AA.
22. A Ré pode restringir o acesso de AA à aplicação ou desativar definitivamente a sua conta se o mesmo permitir a utilização da conta por terceiras pessoas ou se for efetuada queixa contra o mesmo relacionada com fraude.
23. AA presta a sua atividade habitualmente nas zonas de Vila Nova de Gaia e Porto, sendo a área de abrangência escolhida pelo próprio, limitando a plataforma a possibilidade de alteração de zona de abrangência com uma imposição dum número de entregas prévia na zona anterior escolhida.
24. A taxa de entrega mínima por quilómetro por si percorrido pode ser ajustada por AA a qualquer momento nos termos da cláusula 6.c. dos termos e condições acordados.
25. E dispõe de uma ferramenta que lhes permite visualizar outras ofertas de entrega disponíveis na sua área e que são pagas abaixo da sua taxa mínima por quilómetro, sem necessidade de alterar a que escolheu, e selecioná-las para entrega, se assim o desejar, através da ferramenta “Radar de Viagens”.
26. AA pode escolher, quando exerce atividade como parceiro de entrega independente, a periodicidade dos pagamentos devidos por serviços prestados através da App A..., através da ferramenta ....
27. AA pode aceitar, ignorar ou rejeitar livremente quaisquer propostas de entrega na plataforma da Ré.
28. AA é livre para escolher o seu horário de atividade e decidir quando se liga e desliga da Plataforma.
29. E pode bloquear clientes e estabelecimentos na Plataforma.
30. Pode prestar atividade a terceiros, incluindo via outras plataformas digitais.
31. E não está adstrito a qualquer obrigação de exclusividade.
32. A Plataforma da Ré não faz qualquer controlo sobre a rota que AA faz para concluir as entregas acordadas, podendo efetuar rotas diversas das indicadas pelo GPS.
33. As escolhas adotadas por AA em conformidade com o exposto em 23) a 32) não importam qualquer penalização por parte da Ré.
34. Os estafetas podem fazer-se substituir por outro estafeta registado na Ré.
35. As situações de partilha de contas/registo podem colocar em causa a segurança dos clientes, bem como o cumprimento das leis fiscais e tributárias e de imigração por parte daqueles que se façam passar por prestadores de atividade.
36. Há entregas que não são realizadas por não haver estafetas ligados, ou nenhum pedido ser aceite pelos estafetas.
37. Para se registarem na Plataforma, os estafetas não estão sujeitos a qualquer tipo de processo de recrutamento, no sentido de não haver análise de CV, entrevistas ou qualquer tipo de processo de seleção.
38. Consta do nº 4, al. m), do “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”, o seguinte: “O Parceiro de Entregas Independente reconhece que as suas informações de localização têm de ser fornecidas à A... para prestar Serviços de Entrega. Reconhece e concorda que: (a) as suas informações de localização podem ser obtidas pela A... enquanto a App está em funcionamento; e (b) a sua localização aproximada será exibida ao Comerciante e ao Cliente antes e durante a prestação de Serviços de Entrega. Além disso, a A... e as suas afiliadas podem aceder e partilhar com terceiros as informações de localização obtidas pela App para efeitos de proteção, segurança e técnicos.” Facto aditado, conforme decidido abaixo.
39. Consta do nº 15, al. g), do “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”, o seguinte: “A A... poderá manter um seguro relacionado com a prestação de Serviços de Entrega pelo Parceiro de Entregas Independente, tal como venha a determinar discricionariamente. Caso a A... venha a contratar um seguro relativo à sua prestação de Serviços de Entrega, a A... pode alterar os termos, ou cancelar, essa apólice, por sua única e exclusiva determinação e a qualquer momento. Se a A... adquirir um seguro relacionado com a prestação de Serviços de Entrega por parte do Parceiro de Entregas Independente e este desejar receber tal seguro, o Parceiro de Entregas Independente deverá cumprir os termos e condições aplicáveis a tal seguro. Se a A... adquirir um seguro no âmbito da sua prestação de Serviços de Entrega, a A..., a H... e/ou as suas afiliadas não serão responsáveis seja de que forma for, se o seguro recusar pagar por qualquer perda.” Facto aditado, conforme decidido abaixo.
40. Consta do nº 4, al. j), do “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”, o seguinte: O Parceiro de Entregas Independente será responsável por escolher a forma mais eficaz e segura de chegar ao destino. Uma vez aceite uma proposta de Serviços de Entrega, ainda pode cancelar. Facto aditado, conforme decidido abaixo.
41. Consta do nº 5, al. c), do “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”, o seguinte: Está obrigado a cumprir este Contrato e se não o fizer, aceita e reconhece que a A... reserva o direito, a qualquer momento, fazer cessar este Contrato e, ao fazê-lo, restringir o Seu acesso à App. Se a A... restringir por qualquer forma o acesso ou utilização da App pelos referidos motivos, Cláusulas 11, 16 e 17 deste Contrato serão aplicáveis. Facto aditado, conforme decidido abaixo.
42. Consta do nº 11, al. b), do “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”, o seguinte: No caso de uma alegada violação das obrigações do Parceiro de Entregas Independente (Cláusula 5, supra), incluindo quando recebemos uma reclamação de segurança ou potencial incumprimento das leis e regulamentos aplicáveis, bem como dos costumes locais e boas práticas, ou sempre que necessário para a proteção de terceiros, ou cumprimento da legislação aplicável, ou decorrente de ordem judicial ou administrativa, temos o direito de restringir o Seu acesso à, e utilização da App. Se o fizermos, será notificado por escrito das razões para tal restrição. Podem existir circunstâncias em que não lhe poderemos facultar informação sobre denúncias no decurso de uma investigação (quer seja uma investigação nossa ou de terceiros, como as autoridades policiais. Facto aditado, conforme decidido abaixo.
43. Consta do nº 16, al. b), do “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”, o seguinte: Podemos resolver o presente Contrato, a qualquer momento, mediante notificação prévia, por escrito, com 30 (trinta) dias de antecedência, salvo nas seguintes situações, nas quais, este período de aviso prévio não se aplica: (i) se estivermos sujeitos a uma obrigação legal ou regulamentar que nos obrigue a terminar a sua utilização da App ou dos nossos serviços em prazo inferior a 30 (trinta) dias; (ii) se o Parceiro de Entregas Independente tiver infringido o presente Contrato; ou (iii) mediante denúncia de que o Parceiro de Entregas Independente tenha agido de forma não segura ou violou este Contrato ou legislação em conexão com a prestação de serviços de entrega; (iv) teve um comportamento fraudulento (atividade fraudulenta pode incluir, mas não está limitada a, as seguintes ações: partilhar sua conta com terceiros não autorizados; aceitar propostas sem intenção de as entregar; induzir utilizadores a cancelar os Seus pedidos; criar contas falsas para fins fraudulentos; solicitar reembolso de taxas não geradas; solicitar, executar ou confirmar intencionalmente a disponibilidade de propostas fraudulentas; interromper o funcionamento das aplicações e do GPS da A..., como alterar as configurações do telefone; fazer uso indevido de promoções ou para fins diferentes dos pretendidos; contestar cobranças por motivos fraudulentos ou ilegítimos; criar contas duplicadas; fornecer informações falsas ou documentos falsificados); ou (iv) se estivermos a exercer um direito de resolução por um motivo imperativo nos termos da lei aplicável, que pode incluir situações em que o Parceiro de Entregas Independente já não se qualifique, nos termos deste Contrato, da lei e regulamentos aplicáveis ou das normas e políticas da A... e das suas Afiliadas, para prestar Serviços de Entrega ou para operar o Seu Meio de Transporte. Facto aditado, conforme decidido abaixo.
B – Factos não provados:
a) A Ré procede ao transporte e entrega de mercadorias, fixando o preço e as condições de pagamento do serviço.
b) O referido em 5) suceda em todos os pedidos apresentados na plataforma digital da Ré.
c) Atendendo a que então ainda lhe faltava apresentar documentação exigida pela Ré, referente ao registo de atividade na Autoridade Tributária com o código de atividade ..., a conta de AA na plataforma da Ré apenas ficou ativa em julho de 2023.
d) O início de atividade referido em 13) tenha ocorrido em julho de 2023.
e) Para lá dos momentos referidos em 14) a Ré exige, por via da sua plataforma, que AA mantenha ativa a sua ligação à plataforma e o sistema de geolocalização existente na aplicação, designadamente ao longo do percurso entre recolha e entrega dos produtos.
f) Quando AA acede ou faz login na aplicação, a Ré ficar a saber qual a sua localização geográfica e acompanha toda a sua movimentação, em tempo real e de forma permanente, desde o momento em que aceita um pedido até à sua entrega ao cliente.
g) Controlando o tempo que AA demora a entregar os pedidos e o percurso que efetua.
h) Se AA não avançar no percurso definido até à morada do cliente final, receberá uma interpelação quer da Ré, na respetiva plataforma, quer do cliente, para justificar a paragem e/ou o atraso na entrega.
i) A Ré exige a AA que o smartphone por si utilizado tenha 10 gigas de internet, e que o mesmo disponha de joelheiras e cotoveleiras.
j) A Ré exige que AA garanta uma boa apresentação e paute a sua conduta por critérios de boa educação e urbanidade.
k) A qualidade da atividade prestada por AA é igualmente controlada pela Ré, através da mencionada App/Plataforma.
l) Pela prestação da sua atividade de estafeta, AA aufere valores que são prévia e unilateralmente fixados pela Ré na App A....
m) Não existe qualquer negociação entre AA e a Ré quanto aos critérios para definição dos montantes a receber e que integram a distância (número de quilómetros entre o ponto de recolha e o ponto de entrega), o tempo necessário para 
efetuar a entrega ao cliente e o horário (em que os de maior afluência de pedidos serão mais bem pagos).
n) Essa retribuição é composta por uma taxa (fixa) de entrega/base de 1,10€, por entrega, a que acresce uma taxa de 0,66€ por quilómetro percorrido, sendo que, por vezes e sem justificação, a Ré paga um valor superior pelos quilómetros.
o) Nos momentos em que AA exerceu a atividade de estafeta através da App A... como parceiro de entrega de parceiro de frota a Ré procedeu ao pagamento dos serviços por si prestados, e fazia-o com periodicidade semanal.
p) AA está abrangido por seguro, contratado e disponibilizado pela Ré como Apólice de Proteção para Parceiros de Entrega da A... Portugal, titulado pela C..., com a apólice nº ....
q) No caso de acidente, AA deve reportar a situação na plataforma da A..., na parte dos sinistros.
r) AA exerce a atividade de estafeta através da App A... cerca de 8 horas por dia.
s) AA não presta atividade para nenhuma outra entidade ou plataforma, dependendo o seu rendimento mensal exclusivamente do serviço prestado em benefício da Ré.
t) Atualmente a pontuação de AA é de 100%.
u) Os montantes máximo e mínimo auferidos semanalmente por AA tenham sido distintos dos referidos em 20).

III. O Direito
1. Impugnação da decisão relativa à matéria de facto
O recorrente pretende ver alterada a decisão relativa à matéria als. e), f), g), h), m), p), q), r) e s) da matéria de facto considerada como não provada, entendendo que a mesma deve ser dada como provada.
Foi dado cumprimento do disposto no art. 640º do CPC, pelo que importa conhecer da impugnação.
Al. e), com a seguinte redacção: Para lá dos momentos referidos em 14) a Ré exige, por via da sua plataforma, que AA mantenha ativa a sua ligação à plataforma e o sistema de geolocalização existente na aplicação, designadamente ao longo do percurso entre recolha e entrega dos produtos.
Alega o recorrente: “no que respeita aos pontos de facto elencados sob as alíneas e), f), g) e h), todos eles relativos à exigência de manter ativa a ligação à plataforma (permanecer online na aplicação – App A...) e às consequências, em termos de controlo de localização do estafeta e dos tempos de realização das tarefas, os mesmos decorrem, desde logo, do que é assumido pela própria Ré no seu articulado de contestação.” “mais concretamente nos artigos 247º a 263º e 269º a 270º” da contestação. Mais invocando nas conclusões 8 e 9, “os termos e condições do “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”, Ponto 4. alíneas g., i. e m., e o depoimento prestado do prestador de atividade AA.
A recorrida entende haver contradição de tal matéria com o que consta dos factos provados 32 e 33 e que a mesma não foi confessada na contestação, e invoca o depoimento da testemunha DD, bem como o do prestador de atividade.
Consta da sentença, relativamente à motivação da decisão: “No tocante aos factos provados 14) e 15), conjugou o Tribunal o referido por AA, com os esclarecimentos a este respeito prestado por DD. Embora AA tenha inicialmente referido ser necessária uma ligação constante à App, acabou depois por esclarecer que tal não era efetivamente necessário. O que foi ainda melhor explicado por DD, frisando de forma credível que aquilo que é essencial e exigido pela App é que a geolocalização esteja ativa nos momentos de recolha e entrega dos produtos, o que é necessário para a atribuição das propostas de entrega – que podem depois ser aceites, ignoradas ou recusadas pelo estafeta quando são apresentadas – e para a aferição da conclusão do serviço acordado (e seu posterior pagamento). Do referido resultou que no decurso do percurso de entrega a geolocalização pode ser desligada, o que determinou o concreto teor do facto 14) e o teor do facto não provado e).”
Desde logo, como referido pela recorrida, existe uma contradição entre a matéria da al. e) dos factos não provados e o facto provado 32, do qual consta que “A Plataforma da Ré não faz qualquer controlo sobre a rota que AA faz para concluir as entregas acordadas”. Ora, não tendo sido impugnada a decisão relativamente este facto, logo fica condicionada a apreciação da impugnação relativamente à aludida al. e).
Analisando o teor dos artigoss da contestação invocados, não resulta dos mesmos o reconhecimento de que “a Ré exige, por via da sua plataforma, que AA mantenha ativa a sua ligação à plataforma e o sistema de geolocalização existente na aplicação, designadamente ao longo do percurso entre recolha e entrega dos produtos”. O que consta dos arts. 247º a 252º, 256º e 269º e 270º, refere-se ao momento da atribuição do serviço ao estafeta, sendo necessário que se conheça a localização deste para se aferir da possibilidade de o mesmo recolher a encomenda em tempo útil; no entanto, também resulta dos arts. 253º a geolocalização do estafeta é essencial para o funcionamento da plataforma, porque só desse modo é possível ao cliente final acompanhar o percurso do mesmo, funcionalidade importante do uso da plataforma (arts. 262º e 263º); ainda que este possa escolher o percurso que entender através de outras aplicações de GPS, mas com ligação à plataforma, porque só assim se o cliente final pode seguir o percurso do mesmo (arts. 254º a 256º e 258º a 261º).
Isto é também o que resulta do depoimento do prestador da actividade AA e da testemunha DD, gestora de operações da ré, sendo certo que ambos confirmaram ser possível a entregas das “ofertas” aos clientes sem o sistema estar ligado, nomeadamente por ocorrer uma avaria ou por descarregar a bateria do telemóvel do prestador da actividade, ao qual será depois solicitada a confirmação da entrega, logo que volte a ligar-se à plataforma.
Assim, resulta da demais prova produzida o que já constava do “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”, nº 4, al. m), “O Parceiro de Entregas Independente reconhece que as suas informações de localização têm de ser fornecidas à A... para prestar Serviços de Entrega. Reconhece e concorda que: (a) as suas informações de localização podem ser obtidas pela A... enquanto a App está em funcionamento; e (b) a sua localização aproximada será exibida ao Comerciante e ao Cliente antes e durante a prestação de Serviços de Entrega. Além disso, a A... e as suas afiliadas podem aceder e partilhar com terceiros as informações de localização obtidas pela App para efeitos de proteção, segurança e técnicos.”
Face ao exposto, acrescenta-se um ponto à matéria de facto provada, com o teor da referida alínea.
Al. f), com a seguinte redacção: Quando AA acede ou faz login na aplicação, a Ré ficar a saber qual a sua localização geográfica e acompanha toda a sua movimentação, em tempo real e de forma permanente, desde o momento em que aceita um pedido até à sua entrega ao cliente.
Invoca o recorrente, em conjunto com a al. g), o ponto 4, als. i) e m), do “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”, e o depoimento do prestador da actividade AA.
A recorrida, igualmente referindo-se em conjunto sobre a matéria da alínea seguinte, sustenta a decisão relativamente à questão.
Consta da sentença: “Note-se ainda que nenhuma prova contundente se fez de que a Ré – e a Ré é uma entidade distinta da plataforma que explora – controla a localização dos estafetas, o tempo que demoram a fazer entregas, ou que lhes peçam quaisquer satisfações pelos tempos realizados em tais entregas. Não há ninguém nas instalações da Ré que o controle, face ao relatado, nem qualquer prova testemunhal ou documental apontou minimamente para esse controlo efetivo. Daí decorrendo o teor dos factos não provados f) a h).”
Não nos merece censura a decisão. A parte inicial da matéria já consta do pontos 14 a 16 da matéria de facto provada, sendo a restante a que se apreciou já na análise da alínea anterior. Assim, nenhuma alteração há que fazer quanto a esta matéria.
Al. g), com a seguinte redacção: Controlando o tempo que AA demora a entregar os pedidos e o percurso que efetua.
Esta matéria não resultou directamente provada, quer por confissão da ré, quer por via do “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”, que pelo depoimento das pessoas inquiridas em audiência. Na parte que constitui mera conclusão dos restantes factos, a alteração não é admissível. Por isso, igualmente se mantém a decisão quanto a esta alínea.
Al. h), com a seguinte redacção: Se AA não avançar no percurso definido até à morada do cliente final, receberá uma interpelação quer da Ré, na respetiva plataforma, quer do cliente, para justificar a paragem e/ou o atraso na entrega. Pretende o recorrente que seja dado como provado, nos seguintes termos: Se AA não avançar no percurso definido até à morada do cliente final poderá ser interpelado pelo cliente final da plataforma, para justificar a paragem e/ou o atraso na entrega.
Invoca o depoimento do prestador da actividade.
Respondeu a recorrida que a redacção proposta se trata de um facto novo, não alegado por qualquer das partes, diverso do constante do ponto h) dos factos não provados.
A redacção proposta refere-se a uma mera eventualidade, a que a recorrida será alheia, pelo que é irrelevante para a apreciação do mérito da acção.
Assim, indefere-se a impugnação quanto a esta alínea.
Al. m), com a seguinte redacção: Não existe qualquer negociação entre AA e a Ré quanto aos critérios para definição dos montantes a receber e que integram a distância (número de quilómetros entre o ponto de recolha e o ponto de entrega), o tempo necessário para efetuar a entrega ao cliente e o horário (em que os de maior afluência de pedidos serão mais bem pagos).
Alega o recorrente que “a possibilidade concedida pela Plataforma ao prestador/Estafeta de ajustar essa taxa para um valor abaixo do qual não pretende receber ofertas de entregas, configura uma benesse que pouca expressão assume na atividade diária e rendimento do prestador, porquanto a escolha de uma taxa superior (àquela supletivamente atendida pela Plataforma), determinará necessariamente um menor número de ofertas de entregas recebidas pelo prestador na sua aplicação, o que, quase invariavelmente, determinará um menor rendimento obtido no final do dia de atividade. Assim, para além da Plataforma continuar a deter o domínio e a iniciativa da definição dos critérios para a determinação da retribuição auferida pelo prestador, a possibilidade de este último poder interferir no montante dessa retribuição é muito limitada e de efeito prático muito reduzido.” Invoca o depoimento de AA.
A recorrida sustenta a sentença, invocando as “cláusulas 4.c. e 6.a. dos termos e condições aplicáveis”, e acrescentando que “o ponto m) dos Factos Não Provados não compreende qualquer facto, mas sim uma conclusão, não podendo, portanto, ser alvo de qualquer prova”.
Consta da sentença: “A forma como AA escolhe prestar ou não atividade acaba por determinar os montantes que acabam por lhe ser pagos, ou não, pelas entregas por si realizadas. Assim, ao poder recusar todas as propostas que lhe sejam apresentadas, se tal entender, ou poder aceitar todas as propostas, ao invés, acaba por delimitar os valores máximos e mínimos que pode receber ao longo dos tempos, influenciando, com a recusa ou aceitação de propostas, conjuntamente com outros estafetas, os valores que irá auferir posteriormente junto do parceiro de frota. O referido em 24) – atestado pelos termos e condições e o admitido pelo próprio AA – acaba também por corresponder a uma forma de negociar com a Ré o valor a receber pelas entregas, e determinar os montantes que irá receber com a atividade por si desempenhada. Assim, se foi coincidente a menção ao reportado em 19) – que assim se prova – e se é certo que o vertido em 20) encontra-se atestado pela documentação junta a 22-7-2024 (valores todavia diferentes dos elencados na petição inicial, determinando o facto não provado u), a verdade é que a prova produzida acaba por afastar, ou não atestar convincentemente, o vertido em l) a n).”
Não deixamos de concordar com a recorrida quando invoca a natureza conclusiva do termo “negociação”. Efectivamente, sendo seguro que não pode conversar directamente com a plataforma para acertar o preço da sua prestação, também é seguro que a apresentação e aceitação de uma proposta consubstancia um acordo. Assim, podendo entender-se que a matéria em causa é conclusiva em relação ao que consta do ponto 24 da matéria de facto provada, pelo que improcede aqui a impugnação.
Al. p), com a seguinte redacção: AA está abrangido por seguro, contratado e disponibilizado pela Ré como Apólice de Proteção para Parceiros de Entrega da A... Portugal, titulado 
pela C..., com a apólice nº ....
Considerou-se na sentença que “por insuficiência clara de elementos instrutórios para o efeito não se comprovou o vertido em p) e q) – afigurando-se que a prova dos mesmos se teria de realizar com a junção de pertinente apólice ou outra prova documental, o que não foi feito.”
Alega o recorrente que a matéria em questão foi alegada no art. 49º da petição inicial, não tendo sido impugnada na contestação, nomeadamente nos arts. 231º e 232º, resultando ainda do ponto 13.g), do “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”, e resultando do depoimento do prestador de actividade, o qual, na audiência de julgamento, “fazendo uso autorizado do seu smartphone, acedeu à aplicação da A... e descreveu o que nessa aplicação constava a propósito do seguro de que o próprio era beneficiário, tendo identificado o tipo de seguro e a entidade seguradora”. Acrescentando que, se o tribunal assim entendesse, poderia fazer uso do disposto nos arts. 186º-O, nº 5, e 72º do CPT.
Respondeu a recorrida que impugnou genericamente tal facto nos arts. 95º e 96º da contestação, sendo certo que nunca admitiu tal matéria. Analisada a contestação, não existe uma impugnação especificada da matéria alegada no art. 49º da petição inicial, do qual consta a que está em questão. Porém, resulta do “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”, que esse seguro não existia em todas as situações (ponto 15.g), sendo ainda certo que não se apurou a que tipo de seguro se referiu o prestador da actividade, o qual apenas referiu que na aplicação se pode verificar a referência a um seguro “acidental, medical e funeral”, o que não permite comprovar o alegado. Quanto à alegação da omissão de produção de prova oficiosa, a mesma não procede, uma vez que impendia sobre o recorrente a obrigação de suscitar oportunamente a mesma, sendo certo que de tal pretensa omissão não pode este tribunal de recurso tirar qualquer ilação, e não foi suscitada qualquer nulidade processual, ou a anulação do julgamento com tal fundamento, não se vislumbrando fundamento para o determinar oficiosamente.
De todo o modo, por constar de documento não impugnado, entende-se aditar um facto à matéria de facto provada, com o seguinte teor: Consta do nº 15, al. g), do “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”, o seguinte: “A A... poderá manter um seguro relacionado com a prestação de Serviços de Entrega pelo Parceiro de Entregas Independente, tal como venha a determinar discricionariamente. Caso a A... venha a contratar um seguro relativo à sua prestação de Serviços de Entrega, a A... pode alterar os termos, ou cancelar, essa apólice, por sua única e exclusiva determinação e a qualquer momento. Se a A... adquirir um seguro relacionado com a prestação de Serviços de Entrega por parte do Parceiro de Entregas Independente e este desejar receber tal seguro, o Parceiro de Entregas Independente deverá cumprir os termos e condições aplicáveis a tal seguro. Se a A... adquirir um seguro no âmbito da sua prestação de Serviços de Entrega, a A..., a H... e/ou as suas afiliadas não serão responsáveis seja de que forma for, se o seguro recusar pagar por qualquer perda.”
Al. q), com a seguinte redacção: No caso de acidente, AA deve reportar a situação na plataforma da A..., na parte dos sinistros.
O recorrente nada refere em relação a este facto, entendendo apenas que o mesmo resultaria da prova da alínea anterior, invocando as regras da experiência.
A recorrida alega que nenhuma prova se fez da existência da aludida obrigação.
Assiste razão à recorrida, pelo que improcede a impugnação quanto ao mesmo.
Al. r), com a seguinte redacção: AA exerce a atividade de estafeta através da App A... cerca de 8 horas por dia, e al. s), com a seguinte redacção: AA não presta atividade para nenhuma outra entidade ou plataforma, dependendo o seu rendimento mensal exclusivamente do serviço prestado em benefício da Ré.
Invoca o recorrente o depoimento do prestador da actividade, “conjugando estas declarações com a documentação constante dos autos, designadamente, o histórico dos recibos semanais emitidos entre 01-08-2023 e 31-10-2023 junto com a participação da ACT e a documentação apresentada pela Ré relativa a pagamentos semanais efetuados ao prestador entre janeiro de 2023 e fevereiro de 2024”.
Respondeu a recorrida: “o prestador de atividade visado esclareceu que os horários que observava foram pelo mesmo determinados com base num valor que o mesmo gostaria de receber e, alcançado tal valor, desligava a aplicação”, pelo que “não se pode concluir com segurança que exista um tempo médio que o prestador de atividade”, e “ficou provado que o prestador de atividade visado, à data da audiência de julgamento, prestava também a atividade de motorista I... numa plataforma não operada pela A...”.
Consta da sentença: 2No tocante aos factos não provados r) e s) os mesmos foram mencionados por AA. As fragilidades apontadas do seu depoimento, bem como o compulsar dos vencimentos auferidos descritos na documentação junta a 22-7-2024, levam-nos no entanto a duvidar de tais efetivos períodos de atividade, e se não exercia efetivamente este estafeta – como de resto é muito habitual – as mesmas funções junto de outras plataformas, de forma a obter o maior número de propostas possíveis. Assim, e à míngua de outra prova, designadamente testemunhal ou documental, não se pode ter por certo o vertido nestes pontos, apenas com base no relatado por AA.”
A nossa convicção é coincidente com a que se sufragou na sentença. O depoimento do prestador da actividade revela-se insuficiente para prova dos factos em causa, o que não é colmatado pelos documentos invocados pelo recorrente. Efectivamente, embora o prestador da actividade tenha referido que prestava a mesma entre 10 e 11 horas por dia, 6 dias por semana, também referiu, como salientado pela recorrida, que quando atingia o montante fixara como objectivo a atingir, normalmente parava. Quanto à exclusividade, embora referida pela testemunha, também não se nos afigura suficiente o depoimento para a julgar como provada.
Assim, improcede também aqui a impugnação.
Por poder ter relevância para a decisão de mérito, acrescentam-se oficiosamente quatro pontos à matéria de facto provada com o teor dos nº 4, al. g), nº 5, al. c), nº 11, al. b) e nº 16, al. b), do “Contrato de Parceiro de Entregas Independente”.

2. Da qualificação da relação
Consta da sentença:
“Esta longa e complexa norma [art. 12º-A, do Código do Trabalho], e as inspeções levadas a cabo pela ACT relativamente a estafetas que tiveram lugar no ano de 2023 após a sua entrada em vigor – inspeções que levaram à interposição de centenas de ações de reconhecimento de existência de contrato de trabalho semelhantes à presente no nosso país, entre as quais se encontra esta ação – não surgem de forma inusitada.
Surgem, na verdade, no âmbito duma discussão que se faz também além-fronteiras, referente à regulamentação a aplicar a quem presta a sua atividade, e obtém o seu sustento, na denominada “gig economy”, com o recurso a sites da Internet ou Apps para prestação de diversos tipos de atividade – designadamente transportes, alojamento turístico ou, como aqui sucede, com a entrega de variados produtos entre dois pontos, vulgo, prestação de atividade enquanto estafetas.
Atividades em que a ligação e relação entre a app ou sítio da internet e o prestador de atividade não é equivalente à conceção clássica da relação entre um empregador e um trabalhador, mas em que, defende alguma doutrina (e jurisprudência internacional) se podem ainda assim descortinar, pelo menos em abstrato, situações de dependência económica ou subordinação do prestador de atividade que, consequentemente, deve ser considerado como sujeito a um contrato de trabalho.
Seguindo aqui Teresa Coelho Moreira e Marco Carvalho Gonçalves, in Presunção de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital: alguns aspetos materiais e processuais, Revista do Ministério Público 175, p. 182, “as plataformas digitais de trabalho desempenham um papel fundamental na transição digital da economia europeia e são um fenómeno em expansão. Segundo dados apresentados pela Comissão Europeia, «a dimensão da economia das plataformas digitais de trabalho na UE quase quintuplicou, passando de cerca de 3 mil milhões de euros em 2016 para aproximadamente 14 mil milhões de euros em 2020. As plataformas digitais de trabalho representam inovação, criam emprego e reforçam a competitividade da UE. Proporcionam rendimentos complementares, nomeadamente àquelas pessoas cujo acesso aos mercados de trabalho pode ser mais difícil. No entanto, o trabalho nas plataformas digitais pode também resultar em condições laborais precárias e num acesso inadequado à proteção social para muitas pessoas que exercem a sua atividade através dessas plataformas. O principal desafio do trabalho nas plataformas digitais está relacionado com o estatuto profissional, o que determina o acesso dos seus trabalhadores aos direitos laborais e à proteção existentes. Além disso, as pessoas que trabalham através de plataformas podem estar sujeitas a decisões automatizadas dependentes de algoritmos, sem terem a possibilidade de as questionar e procurar obter reparação. Muitas vezes, têm também um acesso limitado a mecanismos de representação e negociação coletiva. Por último, existem também desafios relacionados com a natureza transfronteiriça do trabalho nas plataformas digitais e com a possibilidade de identificar o país onde o trabalho é prestado»”.
E seguindo Leal Amado, in As plataformas digitais e o novo artigo 12°-A do Código do Trabalho: empreendendo ou trabalhando?, A Revista STJ Jan. a Jun. 2023, disponível em https://arevista.stj.pt/, a qualificação do vínculo entre prestadores de atividades e plataformas digitais, “apresenta fronteiras difíceis de definir com precisão, havendo, decerto, zonas cinzentas nas suas margens, mas, como ensina a doutrina francesa, o seu conteúdo é um composto de obediência (a subordinação stricto sensu) e de fraqueza (a dependência). Ora, como acima se referiu, as apps, ao permitirem novas formas de prestar serviços, colocando em contacto a oferta e a procura, representam, sem dúvida, um dos desafios emergentes para o Direito do Trabalho. Afinal, os serviços fornecidos via apps, sejam serviços de transporte efetuados por um motorista, sejam serviços de entrega ao domicílio efetuados por um estafeta (só para darmos estes dois exemplos, frequentes nos nossos dias), relevam para o Direito do Trabalho, situando-se dentro das fronteiras deste ramo do ordenamento? Ou, pelo contrário, quem presta tais serviços são trabalhadores independentes, são, quiçá, microempresários, cuja atividade já está para além das fronteiras do direito laboral?”.
Foi tentando responder a tais problemas que foi criado o art. 12º-A supra citado, facilitando a posição processual do prestador de atividade que queira provar ser trabalhador (ou de quem em seu nome o pretenda fazer nos termos legais, como sucede aqui com o Ministério Público), criando novas presunções, distintas das “clássicas” previstas no art. 12º, tendentes ao reconhecimento da existência dum contrato de trabalho.
Importa no entanto notar e sublinhar, como o fazem Teresa Coelho Moreira e Marco Carvalho Gonçalves, na obra já mencionada, que “a lei não estabelece qualquer obrigatoriedade de que todas as pessoas que prestam atividade nas plataformas digitais tenham de ver os seus contratos convertidos em contratos de trabalho. Claro que nada impede que as plataformas, atendendo ao que consta na presunção, olhem para o seu modelo de negócios, para a evolução do Direito do Trabalho e celebrem voluntariamente contratos de trabalho, como, aliás, aconteceu em Espanha com algumas plataformas digitais. Mas isto é a título voluntário. Não é o que está na lei. O que está na lei é uma presunção e ilidível que visa facilitar e clarificar a distinção entre quem é verdadeiro trabalhador autónomo e quem é um falso trabalhador autónomo perante estas novas formas de prestar trabalho. Não significa que todos que prestam atividade nas plataformas sejam trabalhadores. Quem for verdadeiro autónomo continuará a ser”.
Ou seja, aqui, e tal como sucedia com as hipóteses para presunção da existência de contrato de trabalho previstas no art. 12º do Código do Trabalho, estamos perante hipóteses que geram um presunção iuris tantum que admite prova em contrário, nos termos do nº 2, do art. 350º, do Código Civil, sendo que, preenchendo-se os factos que preenchem a presunção da existência de relação laboral, fica a cargo do empregador a prova dos factos tendentes a ilidir a presunção, ou seja, alegar e provar os factos que denotem que a situação em causa não constitui um contrato de trabalho, antes reveste as características de um contrato de prestação de serviço (ou outro).
Prova essa que passará pela invocação e prova de indícios que atestam que o contrato com que nos confrontamos é distinto dum contrato de trabalho (presumido).
Indícios esses correspondentes aos supra elencados.
Em suma, os arts. 12º e 12º-A não definem substancialmente o que são contratos de trabalho.
Ao invés, preveem hipóteses que fazem presumir, e tão só isso, a sua existência.
Mas tal existência depende, sempre e inevitavelmente, da inserção ou não da relação de facto existente, face às suas concretas caraterísticas comprovadas, dentro da espécie contratual prevista nos citados 11º do Código do Trabalho e 1152º do Código Civil.
E para tal, acabamos sempre por ser reconduzidos, essencialmente, à aferição de existência, ou não, de subordinação ou autonomia na relação fáctica existente, e dum foco, ou não, no resultado da prestação.
Com as dificuldades apontadas de existirem em muitas relações contratuais zonas cinzentas, de difícil qualificação.
(...)
Isto dito, a aplicação do Direito ao presente caso passa assim, em primeiro lugar, por aferir se estão ou não preenchidas as hipóteses que fazem presumir a existência de contrato de trabalho – e se todas as hipóteses de presunção podem aqui ser utilizadas.
Não estando deverá aferir-se se existem factos comprovados que, de acordo com os indícios de laboralidade supra elencados permitam ainda assim concluir pela existência dum contrato de trabalho.
Estando preenchidas tais hipóteses, e presumida a existência de contrato de trabalho, dever-se-á ao invés aferir se a Ré alegou e comprovou factos que nos permitam concluir estar-se perante uma situação de predominante autonomia do prestador da atividade, ou pela falta de outro elemento essencial do contrato de trabalho.
Comecemos então por aferir se está preenchida alguma das hipóteses previstas legalmente para permitir a presunção de existência de contrato de trabalho.
No tocante à primeira das hipóteses de presunção de laboralidade aplicáveis, ou seja, a prevista no art. 12º, nº 1, al. a), do Código do Trabalho, de que “a atividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado”, temos de concluir, face à factualidade provada, que a mesma não se preenche.
AA, tal como sucede com outros estafetas, é livre de escolher o local onde presta os seus serviços ao principiar a sua atividade, não tendo a Ré qualquer espaço físico em que as atividades de AA tenham ou possam ser prestadas.
É certo que, escolhida a zona inicial de atividade, uma sua alteração encontra-se condicionada à realização dum certo número de pedidos de entrega. Mas isso não afasta a circunstância do lugar de prestação de atividade ser, num primeiro momento, escolhido pelo estafeta.
E o mesmo pode ligar-se à App onde quiser, escolher as recolhas de produtos que quiser independentemente da localização das mesmas e fazer as rotas para entrega de produtos entre o parceiro e o cliente que entender.
Esta presunção não se encontra assim preenchida.
A segunda presunção é a prevista na al. b), do nº 1, do art. 12º do Código do Trabalho, preenchendo-se quando os “equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da atividade”.
É certo, face à factualidade provada, que AA não utiliza qualquer equipamento ou instrumento físico que seja propriedade da Ré para exercício da sua atividade enquanto estafeta.
Mas é certo, face à factualidade provada, que utiliza a aplicação informática A... para o efeito, um instrumento de trabalho de natureza incorpórea (software), gerido pela Ré no nosso país, que é quem em última análise permite, ou não, a sua utilização por parceiros comerciais, clientes e estafetas. Ré que é a pessoa coletiva que gere a plataforma digital da A..., mas não se confunde nem se esgota com o software que integra tal plataforma digital, software esse que é o efetivo instrumento utilizado, com a permissão da Ré, por AA para o exercício da sua atividade.
Esta presunção encontra-se assim preenchida – não pressupondo a lei que todos os equipamentos ou instrumentos sejam pertença da Ré para o seu preenchimento, mas tão só que um dos equipamentos ou instrumentos o sejam.
No tocante à hipótese prevista na al. c) do nº 1 do citado art. 12º do Código de Trabalho, prevendo os casos em que o “prestador de atividade observe horas de início e de termo da prestação, determinadas pelo beneficiário da mesma” é claro em função da factualidade provada que a mesma não se preenche.
AA é absolutamente livre para escolher os dias e horas em que pretende prestar atividade, sem qualquer penalização da Ré, que não impõe ou sequer sugere dias e horas de trabalho em que o mesmo deva prestar serviços com recurso à sua plataforma.
Igualmente não preenchida é a hipótese prevista na al. d), do nº 1 do art. 12º do Código do Trabalho, que prevê uma presunção de laboralidade quando “seja paga, com determinada periodicidade, uma quantia certa ao prestador de atividade, como contrapartida da mesma”.
E isto por duas ordens de razão: em primeiro lugar porque não resultou provado que nos momentos em que exerceu a atividade como parceiro de entregas de parceiro de frota (com intermediário) auferisse qualquer quantia diretamente entregue pela Ré.
E em segundo lugar porque nos momentos em que não exerceu atividade através de intermediário, o montante auferido nunca foi uma quantia certa e previamente determinada, porquanto o auferido por AA depende dos serviços que o mesmo pretende realizar, os quais oscilam semanal e mensalmente.
No tocante à última hipótese “clássica” que faz presumir a laboralidade, prevista na al. e) do nº 1 do art. 12º do Código do Trabalho, é também certo que a mesma não se preenche, porquanto é aqui cristalino que não existem factos que permitam concluir que AA “desempenhe funções de direção ou chefia na estrutura orgânica da empresa” – nem tal era sequer defendido na petição inicial.
Assim, existindo apenas o preenchimento duma das hipóteses previstas no art. 12º, nº 1 do Código do Trabalho, não se pode ao abrigo do mesmo presumir a existência dum contrato de trabalho – tal demandaria o preenchimento de pelo menos duas das hipóteses ali previstas.
Isto posto, passemos a apreciar da aplicação ou não das presunções de laboralidade previstas no art. 12º-A do Código do Trabalho.
Precisa-se, desde logo, que não julgamos ser aplicáveis as referidas hipóteses no presente caso em função da entrada em vigor das mesmas após o início da relação contratual existente entre AA e Ré.
Pois que, contrariamente ao vertido na petição inicial, o exercício da sua atividade como estafeta principiou-se em janeiro de 2023, sem alteração dos seus elementos essenciais até à data de entrada em juízo da presente ação.
Ora, em janeiro de 2023 o referido art. 12º-A não tinha ainda entrado em vigor.
Sendo que da leitura do art. 35º da Lei 13/2023, de 03 de abril retiramos que a aplicação das presunções ali previstas apenas valem para contratos emergentes em data posterior à entrada em vigor de tal lei.
O que não será o caso do presente.
Em sentido semelhante – ainda que se reportando a um caso de aplicação, ou não, das presunções “clássicas” – vide, entre outros, o Ac. do STJ, Proc. 1272/16.4T8SNT.L1.S1, disponível em www.dgsi.pt.
O exposto determinaria desde logo o afastamento do reconhecimento do contrato de trabalho através destas presunções.
Mas, se assim não se entender, sempre aqui acautelaremos a apreciação do preenchimento ou não de tais hipóteses.
(...)
Assim, repetimos, face à inexistência de alegação e consequente prova de factos que façam presumir ou comprovar um vínculo laboral com qualquer entidade terceira, designadamente um intermediário, o mesmo não pode nem será aqui declarado.”
Insurge-se o recorrente, alegando:
“Em primeiro lugar, entendemos ter sido errado o entendimento do Tribunal no sentido de não ser aplicável à situação em apreço o disposto no artigo 12º-A do Código do Trabalho, em virtude de se ter fixado o início da prestação da atividade em janeiro de 2023 e o mencionado normativo ter sido introduzido no Código do Trabalho pela Lei nº 13/2023, de 03-04, que entrou em vigor apenas em 01-05-2023.
(...)
(...) nas situações em que se torna difícil distinguir um contrato de trabalho de outra figura jurídica, os artigos 12º e 12º-A do Código do Trabalho são acionados para facilitar a tarefa de as destrinçar e qualificar juridicamente. Ora, conforme já referido, esta tarefa de indiciação opera sobre a execução do contrato e não sobre a sua constituição. E, quanto a essa execução do contrato, a mesma não sofreu alteração por força da entrada em vigor da Lei nº 13/2023, de 03-04: ela iniciou-se em momento anterior à lei nova e prosseguiu nos mesmíssimos termos após a lei nova.
(...)
Caso se conclua, como nos parece admissível, pela aplicação direta do instrumento de indiciação previsto pelo artigo 12º-A do Código do Trabalho, haverá, desde logo que referir que, nos termos do disposto no seu nº 1, tal preceito invoca, logo de início, a possibilidade de aplicação das presunções previstas no artigo anterior, ou seja, no artigo 12º do Código do Trabalho.
Assim, tendo presente a redação de ambos os preceitos, afigura-se-nos desde logo que, na situação em apreço, deverão ter-se por verificadas duas das características que fazem presumir a existência de contrato de trabalho previstas no artigo 12º do Código do Trabalho.
Em primeiro lugar, e contrariamente ao entendimento do tribunal, é nosso parecer que estará verificada a característica presuntiva prevista na alínea a) do nº 1, do artigo 12º do Código do Trabalho, ou seja, que “a atividade seja realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado”.
Quando a esta característica, atente-se no ponto de facto dado como provado sob a alínea 23). Assim, considerou-se assente que “AA presta a sua atividade habitualmente nas zonas de Vila Nova de Gaia e Porto, sendo a área de abrangência escolhida pelo próprio, limitando a plataforma a possibilidade de alteração de zona de abrangência com uma imposição dum número de entregas prévia na zona anterior escolhida”.
Decorre deste facto e do que foi demonstrado em audiência de julgamento que o prestador de atividade tem de escolher uma área geográfica para o desenvolvimento da sua atividade.
Sucede que:
1º - Tal escolha de área de atuação constitui uma exigência da Plataforma para a ativação da conta e para o acesso à aplicação A...;
2º - A escolha do prestador é condicionada pelas possibilidades oferecidas/impostas pela Plataforma: ele escolhe de entre as alternativas que lhe são apresentadas;
3º - É a Plataforma que fixa os concretos limites da área geográfica escolhida (por ex. Porto e Vila Nova de Gaia não incluem a totalidade de ambos os concelhos, havendo freguesias onde o prestador de atividade não pode/consegue operar/receber ofertas de entregas); e
4º - Caso pretenda mudar de área geográfica, o prestador de atividade tem de o solicitar na aplicação, ficando condicionado ao cumprimento de um número mínimo de entregas na primeira zona escolhida, sendo questionado várias vezes sobre se mantém tal pretensão.
Todos estes factos correspondem a condicionalismos impostos por uma das partes na relação contratual, a Ré, e que restringem a liberdade de escolha pressuposta por uma atividade realizada com total autonomia.
O modo como a escolha do local é apresentada ao prestador serve apenas para a organização da atividade económica desenvolvida pela Ré, ficando o prestador vinculado a um local que, em última instância, é definido e controlado por terceiro, em termos de atribuição de pedidos e de indicação de percursos entre locais de recolha e de entrega dos pedidos.
Assim, afigura-se-nos que, na situação em apreço, a referida característica deverá considerar- se verificada.
Em segundo lugar, haverá que concluir pela verificação da característica prevista em abstrato pela alínea b) do nº 1, do mesmo artigo 12º do Código do Trabalho, ou seja, que os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam ao beneficiário da atividade.
Conforme foi também concluído pelo Tribunal, tendo presentes as especificidades da atividade desenvolvida pelo prestador de atividade, ligado a uma plataforma digital, é evidente que o principal instrumento de trabalho utilizado será a aplicação informática, no caso, a APP A..., instalada no smartphone do prestador, através da qual o mesmo recebe as ofertas de entregas, verifica o respetivo valor e diligencia pela recolha do pedido no restaurante e pela entrega do pedido ao cliente final.
Toda esta atividade não seria possível sem a aplicação informática, a qual é detida em exclusividade pela Ré.
Concluindo-se então pela verificação de duas das características que fazem presumir a existência de contrato de trabalho previstas pelo artigo 12º do Código do Trabalho, vejamos, agora, se está verificada mais alguma característica, agora de entre as previstas pelo artigo 12º-A do mesmo Código do Trabalho.
Em primeiro lugar, haverá que aferir se “a plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela” (nº 1, alínea a)). (...) A nosso ver, atenta a factualidade considerada assente – na qual deverá ser incluído o facto descrito sob a al. m) –, concluir-se-á pela verificação desta característica. (...) É o que resulta dos factos dados como assentes sob as alíneas 18) e 20).
(...)
Quanto à característica descrita na alínea b) do nº 1, do artigo 12º-A do Código do Trabalho – “A Plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto á forma de apresentação do prestador de atividade, á sua conduta perante o utilizar do serviço ou à prestação da atividade” – o Tribunal concluiu, e a nosso ver bem, pela sua verificação, decorrente da circunstância de a Ré impor a apresentação de determinados documentos para registo da conta e início de atividade com recurso à plataforma digital A... e exigir a utilização de determinados equipamentos para o exercício da atividade de estafeta, como uma mochila com determinadas dimensões e telemóvel com geolocalização ativa para recolha e entrega de pedidos.
Agora em sentido contrário à decisão sob recurso, entendemos que, neste caso concreto, se verifica também a característica prevista na alínea c) do mesmo preceito legal, ou seja, de que “a plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica”. (...) – ponto 17) da matéria considerada assente. (...) E, para além deste controlo biométrico, o prestador AA está também sujeito ao controlo quanto à sua localização espacial, enquanto mantém ativos a sua ligação à aplicação (app A...) e o sinal de GPS.
(...)
Atenta a factualidade dada como assente, designadamente o facto elencado sob a alínea 22) – “A Ré pode restringir o acesso de AA à aplicação ou desativar definitivamente a sua conta se o mesmo permitir a utilização da conta por terceiras pessoas ou se for efetuada queixa contra o mesmo relacionada com fraude” – entendemos que também estará verificada a característica prevista na alínea d) do nº 1, do artigo 12º-A do Código do Trabalho –, em consonância, aliás com o decidido.
(...)
Já quanto à característica prevista na alínea e) do preceito agora em análise – “A Plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta”, decorre da sentença em apreciação que o tribunal concluiu pela sua verificação, (...)
(...)
Finalmente também se conclui pela verificação do disposto na alínea f) do referido preceito legal, ou seja, que “os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por estes explorados através de contrato de locação”. Valerão aqui as considerações já tecidas para a análise da al. b) do nº 1 do artigo 12º do Código do Trabalho.
(...)
A nosso ver, os factos atendidos pelo Tribunal não se mostram aptos a afastar a presunção de laboralidade decorrente das várias (muitas) características apuradas na situação presente.
Na verdade, o que parece decorrer da sentença é que o tribunal apreciou o vínculo contratual existente entre a Ré e o prestador/Estafeta à luz do modelo tradicional do contrato de trabalho, ou seja, aquele em que o prestador da atividade tem de comparecer num determinado local e cumprir ordens emanadas de um superior hierárquico, com obediência a um horário e ao dever de assiduidade.
Sucede que, com a evolução da tecnologia (a chamada “revolução digital”) surgiram também novas formas de contratação que, mitigando algumas características de subordinação, ainda assim assumem a natureza de vínculo laboral porque, claro está, se conclui que uma pessoa se obrigou, mediante retribuição, a presar a sua atividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas (artigo 11º do Código do Trabalho – Noção de contrato de Trabalho).
(...)
A estrutura organizativa não é dele, mas da Ré, daí não poder fazer subcontratações nem se substituir por um terceiro (fora de condições muito limitadas e definidas unilateralmente pela Ré).
(...)
Esta inserção na estrutura organizativa da Ré determina um grau de subordinação a regras de vinculação e de execução da atividade incompatível, a nosso ver, com a autonomia pressuposta pela prestação de serviços.
Atente-se, neste sentido, no decidido no recente acórdão da Relação de Guimarães, datado de 31-10-2024, prolatado numa situação de trabalho no âmbito de plataforma digital, onde se refere, no respetivo sumário que: “no que respeita à relação entre estafeta e plataforma, o conceito de “subordinação” deve ser visto à luz da nova realidade, sendo de relevar a inserção do estafeta na estrutura económica da ré, na estrutura económica da ré, na organização produtiva encarnada pela plataforma, e a inexistência de uma estrutura organizada por parte do “estafeta” e a sua dependência dessa organização, quer quanto ao trabalho, quer económica. (...) (acórdão no processo nº 2824/23.1T8VRL.G1, relatado por Antero Veiga e disponível no site www.dgsi.pt).”
Contrapõe a recorrida:
“Salvo melhor entendimento, bem andou o Tribunal a quo ao aplicar ao caso concreto a presunção prevista no artigo 12º do Código do Trabalho, e não a consagrada no artigo 12º-A, como pugna o Recorrente.
(...)
Aplicando o Tribunal a quo o artigo 12º do Código do Trabalho, como bem fez, a presunção nele consagrada é inoperante no caso concreto, porquanto, percorrendo os factos provados e não provados, concluiu que apenas se verificava o preenchimento da característica previstas na alínea b) do nº 1 do referido artigo 12º esteja verificada.
Ainda que concordemos relativamente ao facto de a referida presunção de laboralidade ser inoperante no caso concreto, por não se ter verificado o preenchimento de, pelo menos, 2 dos indícios consagrados na referida disposição do Código do Trabalho, cremos que a conclusão que juridicamente se impõe é a de que nenhum dos referidos indícios se encontra preenchido no caso sub judice. Vejamos:
- Não se provou que a atividade era ou é realizada em local pertencente à Recorrente ou por ela determinado; a área geográfica onde o prestador de atividade faz as entregas é escolhida por si, tendo este escolhido a área de Vila Nova de Gaia e do Porto, podendo, ainda, alterar a sua área de atuação, mediante comunicação) (Ponto 23 dos Factos Provados);
- Não se provou que os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertençam à Recorrida; neste ponto, cremos que seja de frisar que o software não pode ter-se como um utensílio nos mesmos moldes que um hardware (um bem corpóreo), pois entender em sentido divergente deste seria entrar num raciocínio tautológico ou metalinguístico, absorvendo-se a própria plataforma digital no conceito de equipamento ou utensílio de trabalho, com a consequente desvirtuação de conceitos. Neste sentido já concluiu o Tribunal da Relação de Évora no acórdão proferido no âmbito do processo nº 3842/23.5T8PTM.E1 (João Luís Nunes), datado de 12 de setembro de 2024. No mais, ficou provado que os efetivos instrumentos/equipamentos, tal como o veículo (mota ou bicicleta), o telemóvel e a mochila térmica de transporte, que o prestador de atividade utiliza foram por si adquiridos (Ponto 16 dos Factos Provados);
- Não se provou que o prestador de atividade observe horas de início ou termo da sua atividade determinadas pela Recorrida, antes pelo contrário, uma vez que resultou provado que é o próprio que escolhe os dias e horas em que pretende ligar-se à plataforma A... (Ponto 28 dos Factos Provados);
- Não se provou que a Recorrida pague uma quantia certa com periodicidade ao prestador de atividade, uma vez que o mesmo recebe ao pedido e tem total liberdade para aceitar e recusar os pedidos apresentados (Pontos 18 e 27 dos Factos Provados). A este propósito, resultou igualmente provado, desde logo, que o mesmo pode decidir quando quer ser pago (Ponto 26 dos Factos Provados). Para além disso, ficou provado que o prestador de atividade tem a faculdade de determinar a sua taxa mínima por quilómetros, ficando a Recorrida condicionada à determinação do prestador de atividade (Ponto 24 dos Factos Provados);
- Por fim, não se provou (nem sequer se alegou) que o prestador de atividade desempenhe quaisquer funções de direção ou chefia na estrutura orgânica da Recorrida, tal como concluiu o Tribunal a quo.
Assim, a presunção de existência de contrato de trabalho consagrada sob o artigo 12º, nº 1, do Código do Trabalho, é inoperante no caso concreto, pela inexistência da verificação de qualquer um dos indícios previstos na referida disposição.
(...)
Ora, sem prejuízo de a presunção consagrada sob o artigo 12º-A do Código do Trabalho não ser aplicável ao caso concreto, conforme decidido pelo Tribunal a quo e explanado acima, é forçoso concluir que nenhum dos indícios previstos no referido preceito se mostrou preenchido face à prova produzida.
(...)
(...) caso o Tribunal ad quem assim não entenda e conclua pelo preenchimento de alguns dos pressupostos de aplicação da presunção de laboralidade consagrada no artigo 12º (aplicável ao caso concreto) ou 12º-A do Código do Trabalho, o que apenas por mero dever de patrocínio se concebe, é certo que a Recorrida ilidiu tal presunção, tal como o Tribunal a quo decidiu, pois demonstrou, sem margem para dúvidas, que o prestador de atividade visado nos presentes autos presta a sua atividade com efetiva autonomia, sem estar sujeito ao poder de direção, ao poder disciplinar, ao poder de supervisão ou ao poder regulamentar da ora Recorrida, pelo que não existe subordinação jurídica e, consequentemente, não mantém com o prestador de atividade qualquer relação de natureza laboral.”
Desde já se adianta que não nos merece censura a sentença sob recurso.
Nos termos do art. 1154º do Código Civil, contrato de prestação de serviço é aquele em que uma das partes se obriga a proporcionar à outra certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual, com ou sem retribuição.
O mesmo Código define o contrato de trabalho, no seu art. 1152º como aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta.
Embora de forma pouco esclarecedora, o art. 11º Código do Trabalho, define o contrato de trabalho como aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas.
No dizer de Pedro Romano Martinez, em Direito do Trabalho, Almedina, 2006, págs. 294-295, “justificar-se-ia repensar o critério distintivo entre o contrato de trabalho, como trabalho subordinado, e as figuras afins, onde se inclui o designado trabalho autónomo; todavia, a superação deste critério passaria por uma nova perspectiva do contrato de trabalho. De iure condendo, no actual quadro legal, apesar de criticável, dever-se-á continuar a recorrer ao critério de distinção tradicional. No domínio contratual, por via do princípio da liberdade negocial, é conferida às partes autonomia para conformarem as suas relações contratuais; deste modo, o regime aplicável à actividade que uma pessoa presta a outra depende do acordo das partes. Contudo, tendo em conta o potencial desequilíbrio negocial entre aquele que se oferece para prestar uma actividade e o que pretende beneficiar dessa actividade, estabeleceram-se várias limitações à autonomia privada no contrato de trabalho. Relacionado com estas limitações, torna-se imperioso controlar a qualificação negocial, de molde a evitar que as partes se furtem à aplicação das regras imperativas em matéria laboral. Daí a necessidade de apreciar a licitude da opção das partes pelo trabalho autónomo.”
Ora, “Se teoricamente a distinção é nítida, na prática a destrinça entre estas duas figuras contratuais reveste-se, por vezes, de grande dificuldade, dado que em ambas existe uma alienação de trabalho, e ambas visam sempre um resultado, pois conforme reconhece Galvão Teles, todo o trabalho conduz a um resultado e este também não existe sem aquele” (acórdão do STJ de 31 de Janeiro de 2012, processo 121/04.0TTSNT.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt). Veja-se igualmente Pedro Romano Martinez, ob. cit., pág. 296.
“Das definições legais apontadas resultam como elementos diferenciadores de tais contratos: a) Enquanto que no contrato de trabalho a prestação típica a que fica adstrita a pessoa contratada consiste em pôr à disposição do outro contraente a sua actividade intelectual ou manual, no contrato de prestação de serviços aquela obriga-se a proporcionar a esta certo resultado do seu trabalho intelectual ou manual. b) No contrato de trabalho a pessoa contratada fica sujeita à autoridade e direcção do contratante, sendo normal dele receber ordens e instruções quanto ao modo, tempo e lugar da actividade a que se vinculou, nisto consistindo a subordinação jurídica, elemento essencial do contrato de trabalho; no contrato de prestação de serviço, a pessoa contratada não está sujeita a quaisquer ordens ou instruções do contratante, agindo com autonomia na prossecução do resultado a que se comprometeu. c) O contrato de trabalho é por natureza remunerado, enquanto que o de prestação de serviço poderá, ou não, sê-lo” (Acórdão desta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto de 21 de Maio de 2007, processo 5616/06.4, ao que se supõe, não publicado).
De qualquer forma, a distinção entre contrato de trabalho e contrato de prestação de serviços assenta em dois elementos essenciais: no objecto do contrato (prestação de actividade no primeiro; obtenção dum resultado no segundo); e no tipo de relacionamento entre as partes (subordinação jurídica no primeiro; autonomia no segundo).
“E assim sendo, se o prestador da actividade estiver sujeito à autoridade e direcção da pessoa servida, estaremos perante um contrato de trabalho. Mas se apenas estiver vinculado ao resultado da sua actividade, exercendo-a sem estar sujeito à autoridade da pessoa servida, estaremos perante um contrato de prestação de serviço, por ao credor apenas interessar o resultado final da actividade do devedor, que goza de total autonomia na forma de o alcançar. Donde resulta como critério verdadeiramente diferenciador das duas figuras contratuais a existência de subordinação jurídica no contrato de trabalho, enquanto no contrato de prestação de serviço o devedor apenas se responsabiliza perante o credor pelo resultado prometido, sendo inteiramente livre na forma como a ele chega (referido acórdão do STJ de 31 de Janeiro de 2012).
Tal subordinação jurídica caracterizadora do contrato de trabalho decorre precisamente do poder de direcção que a lei confere à entidade empregadora e a que corresponde um dever de obediência por parte do trabalhador.
Para Maria do Rosário Palma Ramalho, no Tratado de Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 2012, pág. 54, “Quanto ao poder directivo, a sua grande diferença relativamente aos poderes ordenatórios, que se encontram noutros contratos envolvendo a prestação continuada de uma actividade produtiva, está no grau de eficácia das ordens e instruções do empregador, que decorre do facto de serem assistidas pelo poder disciplinar sancionatório – dito de outra forma, embora o mandante, dono da obra ou o dono do negocio tenham um poder instrutório sobre o mandatário, o empreiteiro ou o agente, respectivamente, o desrespeito das suas instruções apenas lhes permite recorrer aos meios comuns de cumprimento coercivo e de ressarcimento dos danos.”
Em consequência, costumam apontar-se como elementos adjuvantes da caracterização do contrato de trabalho, designadamente os seguintes:
- A natureza da actividade concretamente desenvolvida;
- O carácter duradouro da prestação – o contrato de trabalho é, em regra, de execução continuada;
- O regime da retribuição que é fixada por tempo: meses, semanas, dias ou horas;
- O carácter genérico da prestação ajustada;
- A propriedade dos instrumentos utilizados (em regra pertencentes ao empregador);
- A inexistência de colaboradores dependentes do trabalhador (em termos de subordinação jurídica e/ou económica);
- A incidência do risco da execução da actividade (que recai sobre o empregador);
- Exclusividade da prestação da actividade por conta do empregador e consequente dependência da retribuição por este paga, a que se reporta a chamada «subordinação económica» (mencionado acórdão desta Secção Social de 21 de Maio de 2007).
É certo que cada um dos indícios apontados tem um valor relativo e, por isso, o juízo a fazer é sempre um juízo de globalidade, a ser formulado com base na totalidade dos elementos de informação disponíveis, a partir de uma maior ou menor correspondência com o conceito-tipo (António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, 14ª edição, 2009, pág. 147, pág. 147).
Ou como se salienta no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21 de Maio de 2014, processo 517/10.9TTLSB.L1.S1, acessível em www.dgsi.pt, “Dadas as dificuldades sentidas no desenho de um conceito rígido e absoluto de “subordinação jurídica”, é sobretudo na operacionalização deste elemento contratual (máxime no que tange ao seu momento organizatório) que em regra se recorre ao método indiciário, com base numa “grelha” de tópicos ou índices de qualificação (elementos que exprimem pressupostos, consequências ou aspetos colaterais de certo tipo de vínculo contratual), relativamente aos quais há significativo consenso na doutrina e na jurisprudência, apesar de o seu elenco não ser rígido e de nenhum deles (isoladamente) assumir relevância decisiva, não sendo assim exigível que todos eles apontem no mesmo sentido.”
Esta dificuldade levou o legislador a estabelecer a presunção de laboralidade do contrato, no art. 12º, nº 1, do Código do Trabalho, desde que se verifiquem pelo menos duas das características enunciadas das suas diversas alíneas. Entende, porém, Pedro Romano Martinez, no Código do Trabalho Anotado, coord. do mesmo, 9ª edição, 2013, Coimbra: Almedina, pág. 138, “do preceito, em análise, contrariamente ao que se lê na epígrafe no respectivo texto, não resulta nenhuma presunção. Como sentido útil, tal como na versão anterior deste artigo, mas agora de forma mais limitada, retira-se que o legislador tem em consideração certos indícios para a existência de subordinação jurídica. Os indícios da subordinação jurídica são, assim: 1) dependência do prestador da atividade; 2) inserção na estrutura organizativa do beneficiário da atividade; 3) realização da atividade sob as ordens, direção e fiscalização do respectivo destinatário.”
O que significa que continua a incidir sobre recorrente o ónus de prova dos factos de onde se possa extrair a conclusão da verificação da subordinação jurídica na relação entre as partes resultante do contrato em causa, nos termos do art. 342º, nº 1, do Código Civil.

No caso da actividade prestada no âmbito das plataformas digitais a dificuldade de distinção não esmorece, o que se traduz em divergentes posições na doutrina e, sobretudo, em decisões jurisprudenciais antagónicas, por enquanto todas da segunda instância, embora seja maioritária a posição que nega o estatuto juslaboral à actividade dos estafetas que prestam a mesma no âmbito das plataformas digitais. Assim, entre outros, todos acessíveis em www.dgsi.pt, os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 15 de Janeiro de 2025, processo 31164/23.4T8LSB.L1-4, e processo 29383/23.2T8LSB.L1-4, de 12 de Fevereiro de 2025, processo 28891/23.0T8LSB.L1-4, de 26 de Fevereiro de 2025, processo 29252/23.6T8LSB.L1-4, e processo 30191/23.6T8LSB.L1-4, de 12 de Março de 2025, processo 20/24.0T8LSB.L1-4, e processo 20/24.0T8LSB.L1-4, do Tribunal da Relação de Évora de 12 de Setembro de 2024, processo 3842/23.5T8PTM.E1, de 7 de Novembro de 2024, processo 1451/23.8T8PTG.E1, e processo 1625/23.1T8BJA.E1, de 5 de Dezembro de 2024, processo 1964/23.1T8TMR.E2, de 16 de Janeiro de 2025, processo 1915/23.3T8TMR.E2.
Em sentido contrário, entendendo-se que estamos perante verdadeiros contratos de trabalho, pronunciam-se os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 5 de Dezembro de 2024, processo 4306/23.2T8VFX.L1-4, e do Tribunal da Relação do Coimbra de 17 de Janeiro de 2025, processo 1697/23.9T8CVL.C1, e do Tribunal da Relação de Guimarães de 31 de Outubro de 2024, processo 2824/23.1T8VRL.G1. Este é, porém, o entendimento maioritário no Tribunal da Relação de Guimarães conforme, a título meramente exemplificativo, os acórdãos de 31 de Outubro de 2024, processo 2824/23.1T8VRL.G1, invocado pelo recorrente nas suas alegações, ainda de 17 de Outubro de 2024, processos 2821/23.7T8VRL.G1, 2796/23.2T8VRL.G1 e 2793/23.8T8VRL.G1, e de 31 de Outubro de 2024, processos 2781/23.4T8VRL.G1 e 2783/23.0T8VRL.G1.
Nesta Secção Social do Tribunal da Relação do Porto, vem prevalecendo este último entendimento, conforme os acórdãos de 3 de Fevereiro de 2025, processo 367/24.5T8AVR.P1, ainda acessível em www.dgsi.pt, e de 17 de Março de 2025, processo 4119/23.1T8VFR.P1, ainda não publicado, relatado pela aqui segunda adjunta, únicos proferidos até este momento.

Passando à análise do caso, importa começar por referir que não é aqui aplicável o disposto no art. 12º-A do Código do Trabalho, conforme bem decidido na sentença sob recurso. Este é o entendimento pacífico da jurisprudência acima indicada, independentemente da solução adoptada para a questão da laboralidade da relação.
Nesse sentido, considerou-se no acórdão desta Secção Social de 3 de Fevereiro de 2025:
“A primeira questão que se coloca prende-se com a aplicação no tempo do artigo 12º-A. [Sobre esta problemática, veja-se, SANTOS, Pedro, «Qualificação contratual: o “estafeta” e a plataforma digital», in Prontuário de Direito do Trabalho, Centro de Estudos Judiciários, 2023-II, Edições Almedina, S.A., p. 235.º a 241º].
O Tribunal a quo debruçando-se sobre esta questão, conclui que o artigo 35º, nº 1, da Lei nº 13/2023, apresenta uma solução idêntica à do artigo 7º, nº 1, da Lei nº 7/2009, e que, segundo entendimento jurisprudencial consolidado, na qualificação de uma relação jurídica estabelecida antes da entrada em vigor de alterações legislativas que estabeleceram regimes de presunção de laboralidade, aplica-se o regime jurídico vigente à data da sua constituição, salvo alteração substancial entretanto ocorrida na sua configuração.
Assim, considerando que a relação em causa é exercida pelo estafeta (...) desde 15 de março de 2023, não é aplicável a presunção do artigo 12º-A, mas sim a do artigo 12º.
O entendimento preconizado na primeira instância corresponde, efetivamente, à vasta jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal de Justiça. [Esta posição, contudo, é contestada por parte significativa da doutrina, que defende a aplicação imediata da presunção de laboralidade do artigo 12º do Código do Trabalho, às relações iniciadas antes da sua entrada em vigor, desde que se mantivessem, nessa data, sem requisitos adicionais. Neste sentido, veja-se, FERNANDES, António Monteiro, in Direito do Trabalho, 17ª Edição, 2014, Edições Almedina, S.A., p. 139º e 139º; AMADO, João Leal, in Contrato de Trabalho, 4ª Edição, 2014, Coimbra Editora, S.A., p. 90º e 91º; ROUXINOL, Milena Silva, in op. supracitada, pp. 97º a 103º.]
E complementa-se no acórdão desta Secção de 17 de Março de 2025, invocando os acórdãos do STJ de 4 de Julho de 2018, processo 1272/16.4T8SNT.L1.S1, de 1 de Junho de 2022, processo 21116/18.1T8LSB.L1.S1 e de 25/ de Setembro de 2024, processo 12510/19.1T8SNT.L1.S1, todos acessíveis em www.dgsi.pt: “estando em causa a qualificação de uma relação jurídica estabelecida entre as partes, antes da entrada em vigor das alterações legislativas que estabeleceram o regime da presunção de laboralidade, e não se extraindo da matéria de facto provada que tenha ocorrido uma mudança na configuração dessa relação, há que aplicar o regime jurídico em vigor na data em que se estabeleceu a relação jurídica entre as partes.”
Assim, improcede este fundamento de recurso.

Quanto à qualificação jurídica da relação.
A dificuldade da delimitação do contrato de trabalho, face a figuras que lhe são próximas, assume aqui particular acuidade. Conforme se refere no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15 de Janeiro de 2025, processo 31164/23.4T8LSB.L1-4, “O tempo e a evolução tecnológica têm feito surgir no tecido social novas formas de vinculação das partes cuja atracção a um modelo contratual já definido, designadamente ao contrato de trabalho, encerra sérias e fundadas dúvidas decorrentes da circunstância de, as mais das vezes, não estarem presentes certos indícios que tínhamos por certos aquando da qualificação de situações pretéritas e de outros surgirem de forma diluída ou difusa e, nessa medida, de difícil captação. Falamos, claro está, da actual prestação de actividade através ou com recurso a aplicações ou sítios de internet, disponibilizados através de plataformas digitais, na qual avultam, de sobremaneira, o carácter quase impessoal da relação jurídica que assim se estabelece e a ausência, por via de regra, de certos elementos a que tradicionalmente se recorria em ordem ao seu enquadramento – ou não – na figura do contrato de trabalho.”
Alega o recorrente que se verifica no caso a circunstância prevista na al. a) do art. 12º do Código do Trabalho, ser a atividade realizada em local pertencente ao seu beneficiário ou por ele determinado, argumentando que a escolha da área de atuação constitui uma exigência da Plataforma para a ativação da conta e para o acesso à aplicação A..., a qual é condicionada pelas possibilidades oferecidas/impostas pela Plataforma, que fixa os concretos limites da área geográfica escolhida, e, caso pretenda mudar de área geográfica, o prestador de atividade tem de o solicitar na aplicação.
A recorrida entende que não se verifica tal circunstância.
Na sentença, como se viu, considerou-se que a invocada circunstância de o estafeta ter de escolher uma determinada “zona inicial de actividade” (ponto 23 da matéria de facto provada), ou seja uma circunscrição de maior dimensão, das diversas definidas pela plataforma, não impõe a conclusão de o local da prestação da actividade é escolhido pela ré, Uma vez que a definição do local concreto de recolha é determinada, embora dentro da circunscrição previamente definida pela plataforma, a pedido do estafeta, quando este se coloca na zona onde pretende fazer recolhas, ali procedendo à ligação à plataforma, conforme descrito nos facto provados 14 e 15.
Neste sentido o apontado acórdão desta Secção de 17 de Março de 2025, referindo que, “ainda que também se tenha provado que é a recorrida que escolhe e define os estabelecimentos comerciais e os clientes finais, ou seja, o sítio a que o estafeta tem de se dirigir para recolher os pedidos e o sítio onde os vais entregar, estando tal definição delimitada pela área geográfica escolhida pelo estafeta, não se pode considerar verificada uma situação subsumível à referida al. a), do nº 1 do art. 12 do CT.” Veja-se ainda já mencionado o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15 de Janeiro de 2025, processo 31164/23.4T8LSB.L1-4, no qual se acrescenta, “Apesar de resultar dos factos provados que o prestador não tem qualquer possibilidade de influir no local onde deve efectuar a recolha do pedido e o local onde o deve entregar, sem prejuízo de poder escolher o percurso que efectua para o efeito, certo é que, a montante, é ele quem define a área geográfica onde quer prestar actividade e, nessa medida, ser elegível para os pedidos que, na mesma, se processem. Relevar, para efeitos de subsunção na alínea ora em discussão, a hétero-determinação do local de recolha e local de entrega – nos quais, ademais, avulta que deriva dos próprios parceiro e cliente final – e, nessa medida, a eleição do local de trabalho pelo beneficiário da actividade, redundaria, em rigor, em concluir que, a cada pedido, ao prestador era alterado o local de trabalho.”
Assim, improcede mais este fundamento do recurso.
Finalmente, pretende a recorrente ocorrer a “verificação da característica prevista em abstrato pela alínea b) do nº 1, do mesmo artigo 12º do Código do Trabalho”, argumentando que “o principal instrumento de trabalho utilizado será a aplicação informática”.
A recorrida sustenta que “o software não pode ter-se como um utensílio nos mesmos moldes que um hardware (um bem corpóreo), pois entender em sentido divergente deste seria entrar num raciocínio tautológico ou metalinguístico, absorvendo-se a própria plataforma digital no conceito de equipamento ou utensílio de trabalho, com a consequente desvirtuação de conceitos”.
O entendimento da recorrente tem sustento em parte da jurisprudência acima elencada, nomeadamente no referido acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 5 de Dezembro de 2024, no qual se refere: “Trata-se, cremos, efetivamente de um meio, de um instrumento utilizado, não obstante a sua natureza incorpórea, necessário para que a atividade possa ter lugar. E não se diga que a natureza da “aplicação informática” exclui que possa ser instrumento laboral, tendo de se reconduzir à plataforma digital, o que, com o devido respeito, não se afigura razoável, desde logo porque a plataforma e a App se diferenciam claramente, quer jurídica quer tecnologicamente, como realidades diversas; ao que acresce que não resulta de qualquer lado da lei que esta tenha pretendido retirar aos meios informáticos a qualidade de possíveis instrumentos de trabalho.” Veja-se igualmente o acórdão desta Secção Social de 17 de Março de 2025.
Certo é que tal entendimento não é pacífico, como resulta dos acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 15 de Janeiro de 2025, processo 31164/23.4T8LSB.L1-4, e do Tribunal da Relação de Guimarães de 3 de Outubro de 2024, processo 2800/23.4T8VRL.G1, referindo-se neste último que, “entendemos que a plataforma digital que gere os serviços de entrega, não pode ser considerada de instrumento ou equipamento de trabalho, pois para além de não ter existência física, o instrumento de trabalho é o telemóvel que permite aceder à aplicação.”
De todo o modo, a questão não assume relevância, uma vez que o entendimento do recorrente foi o perfilhado na sentença sob recurso, apenas sendo referida a verificação de tal circunstância para se concluir pela presunção da laboralidade da relação. Sucede que, tal como se concluiu na sentença, e atenta a concordância acima expressa, não se verificando a circunstância prevista na al. a) do nº 1 do art. 12º do Código do Trabalho, não ocorre a pretendida presunção.

Entendeu-se, porém, para situação semelhante nos acima identificadas acórdãos desta Secção Social que, não obstante a inexistência da presunção, a relação é de qualificar como laboral, uma vez que se encontra demonstrado que a “atividade é prestada dentro de um serviço organizado alheio, sendo as condições essenciais de execução determinadas unilateralmente pela recorrida através da aplicação que organiza todo esquema de prestação da atividade. Estabeleceu-se, assim, entre as partes, apesar das especificidades próprias desta nova forma de organização do trabalho, uma relação na qual está presente o poder de direção da atividade do estafeta pela recorrida e o poder disciplinar ou sancionatório, afinal uma relação de efetiva subordinação jurídica, entendida sob a nova roupagem que lhe conferem as hodiernas formas de organização do trabalho e, em particular o trabalho prestado às plataforma digitais pelos estafetas.” (mencionado acórdão desta Secção Social de 17 de Março de 2025). Este é também o fundamento essencial que vem seguido a jurisprudência que segue a mesma posição.
Conforme refere António Monteiro Fernandes (Direito do Trabalho, 22ª Edição, Coimbra: Almedina, 2023, pág. 140), citado no acima mencionado acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16 de Janeiro de 2025, «[h]á (...) uma progressiva desvalorização dos comportamentos directivos na caracterização do trabalho subordinado. Se se adoptar como critério identificativo a ocorrência de ordens e instruções pelas quais o trabalhador, em regime de obediência, paute o seu comportamento na execução do contrato, deixar-se-á à margem da regulamentação laboral um número crescente de situações de verdadeiro “emprego”, em tudo merecedoras do mesmo tratamento. Na verdade, a subordinação consiste, essencialmente, no facto de uma pessoa exercer a sua actividade em proveito de outra, no quadro de uma organização do trabalho (seja qual for a sua dimensão) concebida, ordenada e gerida por essa outra pessoa. O elemento organizatório implica que o prestador do trabalho está adstrito a observar os parâmetros de organização e funcionamento definidos pelo beneficiário, submetendo-se, nesse sentido, à autoridade que ele exerce no âmbito da organização do trabalho, ainda que execute a sua actividade, sem, de facto, receber qualquer indicação conformativa que possa corresponder à ideia de “ordens e instruções” – nem, porventura, o beneficiário estar em condições (técnicas ou práticas) de a formular».
Porém, como alerta o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15 de Janeiro de 2025, processo 31164/23.4T8LSB.L1-4, “se, num primeiro momento, nos cumpre lançar mão da norma presuntiva e verificar se a mesma se encontra preenchida, isso não nos dispensa de, num segundo momento, proceder à análise global dos indícios que tenhamos em presença, operação que, neste caso concreto, arriscamos dizer ser imposta pela singularidade da relação jurídica que se nos apresenta. Cientes disso, por um lado, e, por outro lado, da possível incapacidade de a presunção a que alude o art. 12º, do Código do Trabalho, abarcar a complexidade e a diversidade da actividade que se desenvolve entre a plataforma digital e o prestador/trabalhador/estafeta importa que, recorrendo ao modelo indiciário, nos debrucemos sobre os demais elementos que o caracterizam e também dos elementos que, por si só, integram a definição de contrato de trabalho, quais sejam a inserção organizacional e a sujeição à autoridade, parente próximo da dependência, por oposição a autonomia. Tudo com vista a, por essa via, aquilatar da existência, ou não, da subordinação jurídica, sabendo-se, como se sabe, que a sua fisionomia não é hoje, conforme já o dissemos, a mesma que esteve na génese do Direito do Trabalho, antes consistindo na inserção do trabalhador num ciclo produtivo de trabalho alheio e em proveito de outrem, estando obrigado a observar os parâmetros de organização e funcionamento definidos pelo beneficiário. Falamos, no fundo, de dependência, por contraposição à autonomia na definição e conformação da actividade e da prestação que lhe inere.”
Voltando ao caso concreto em análise, temos como fundamento da invocada integração numa estrutura organizativa alheia ao prestador da actividade, os seguintes factos:
12. Para realização de tais registos na plataforma da Ré, AA teve de apresentar documentos relativos a seguro de responsabilidade civil de motociclo, do seu registo criminal e da declaração de inexistência de dívidas da Autoridade Tributária e Segurança Social.
14. Nos momentos de recolha e entrega dos produtos que aceita transportar, AA tem de manter ativa a sua ligação à plataforma da Ré e o sistema de geolocalização existente em tal aplicação.
15. Tal ativação e geolocalização determina a atribuição das propostas de entrega dos pedidos dos clientes aos estafetas e o cálculo da quantia paga pela entrega.
16. Para a prestação da atividade, a Ré exige a AA que disponha de um smartphone com ligação à internet e duma mochila térmica apta para transporte dos pedidos A...,
17. É periodicamente solicitada a AA através da App A... a sua identificação facial para confirmar a titularidade da conta (controlo biométrico).
18. O valor a receber por AA por serviços de estafeta é indicado no momento em que surge o pedido para aceitar ou não na App A....
19. Nos períodos em que AA trabalhou como parceiro de entregas independente a Ré pagou os montantes devidos por atividade como estafeta com periodicidade semanal, através de transferência bancária.
21. A App/Plataforma da Ré contém um sistema de avaliação, no qual os utilizadores do serviço (clientes finais) inscrevem a sua avaliação da recolha e entrega dos pedidos efetuada pelos estafetas, nomeadamente, por AA.
22. A Ré pode restringir o acesso de AA à aplicação ou desativar definitivamente a sua conta se o mesmo permitir a utilização da conta por terceiras pessoas ou se for efetuada queixa contra o mesmo relacionada com fraude.
23. AA presta a sua atividade habitualmente nas zonas de Vila Nova de Gaia e Porto, sendo a área de abrangência escolhida pelo próprio, limitando a plataforma a possibilidade de alteração de zona de abrangência com uma imposição dum número de entregas prévia na zona anterior escolhida.
Estes os factos que se vem aceitando como indícios de laboralidade da actividade aqui em questão. Porém, outros se provaram que apontam claramente em sentido oposto, como seja:
24. A taxa de entrega mínima por quilómetro por si percorrido pode ser ajustada por AA a qualquer momento nos termos da cláusula 6.c. dos termos e condições acordados.
25. E dispõe de uma ferramenta que lhes permite visualizar outras ofertas de entrega disponíveis na sua área e que são pagas abaixo da sua taxa mínima por quilómetro, sem necessidade de alterar a que escolheu, e selecioná-las para entrega, se assim o desejar, através da ferramenta “Radar de Viagens”.
26. AA pode escolher, quando exerce atividade como parceiro de entrega independente, a periodicidade dos pagamentos devidos por serviços prestados através da App A..., através da ferramenta ....
27. AA pode aceitar, ignorar ou rejeitar livremente quaisquer propostas de entrega na plataforma da Ré.
28. AA é livre para escolher o seu horário de atividade e decidir quando se liga e desliga da Plataforma.
29. E pode bloquear clientes e estabelecimentos na Plataforma.
30. Pode prestar atividade a terceiros, incluindo via outras plataformas digitais.
31. E não está adstrito a qualquer obrigação de exclusividade.
32. A Plataforma da Ré não faz qualquer controlo sobre a rota que AA faz para concluir as entregas acordadas, podendo efetuar rotas diversas das indicadas pelo GPS.
33. As escolhas adotadas por AA em conformidade com o exposto em 23) a 32) não importam qualquer penalização por parte da Ré.
34. Os estafetas podem fazer-se substituir por outro estafeta registado na Ré.
Com respeito pela posição contrária, não vislumbramos razão para alterar o entendimento que unanimemente se vinha seguindo nesta Secção Social, para situações não relacionadas com as plataformas digitais, segunda a qual é incompatível com uma relação laboral a possibilidade de o prestador da actividade poder faltar quando entender, sem ter que justificar as faltas, pode fazer-se substituir, ainda que por outra pessoa devidamente credenciada, não ter que cumprir qualquer horário de trabalho, e poder recusar as ofertas que lhe são apresentadas pelo beneficiário. Ora, a situação aqui em análise é ainda mais flagrante que as que se punham anteriormente, sem prejuízo da sempre presente dificuldade de delimitação do enquadramento jurídico já acima apontada.
Efectivamente, incluindo o tempo de trabalho, definido no art. 197º, nº 1, do Código do Trabalho, também o período em que o trabalhador permanece à disposição do empregador até que lhe seja indicada a actividade a realizar (veja-se Francisco Liberal Fernandes, em O Trabalho e o Tempo: Comentário ao Código do Trabalho, Porto: Universidade do Porto, 2018, págs. 82-83), é difícil conceber que o prestador da actividade possa prestar a mesma a diversos “empregadores” em simultâneo, sem se poder diferenciar para qual está a “trabalhar” em momentos especificamente determinados. Também não se vislumbra como compatibilizar com o contrato de trabalho a possibilidade de o prestador da actividade cancelar um serviço já aceite, mas cuja execução ainda não iniciou, para, por exemplo, poder fazer outro que entretanto lhe foi “oferecido” noutra plataforma.
Não significa isto que não se possa discriminar positivamente as situações dos prestadores de actrividade no âmbito das plataformas digitais, da qual se apresenta como prelúdio o art. 12º-A do Código do Trabalho, ainda que com soluções que se nos afiguram não isentas de critica. Entendemos, porém, que a mesma tem que resultar de adequada regulamentação legislativa.
Neste termos se conclui pela improcedência da apelação.

IV. Decisão
Pelo exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, não obstante julgar improcedente a apelação, confirmando-se a sentença sob recurso.
Sem custas por isenção do Ministério Público.

Porto, 7 de Abril de 2025
Rui Penha - relator
Rita Romeira
Maria Luzia Carvalho [vencida, conforme voto que apresento:
Voto de vencida
Ainda que acompanhe o acórdão quanto à decisão sobre a matéria de facto, à inaplicabilidade, no caso concreto, da presunção prevista pelo art.º 12.º-A do Código de Trabalho e quanto à conclusão de que não estão verificados indícios suficientes da presunção prevista pelo art.º 12.º do mesmo Código, votei vencida quanto à questão da qualificação do vínculo, por entender que a factualidade apurada permite/impõe que se conclua que entre o estafeta AA e a ré A... Portugal, Unipessoal, Lda, vigorava um contrato de trabalho.
Como referimos no Acórdão de 17/03/2025, que relatámos, proferido no processo n.º 4119/23.1T8VFR.P1, ainda não publicado, mas acessível no registo de acórdãos, «(…) o fulcro da subordinação consistirá no facto de o prestador não trabalhar segundo a sua própria organização, mas sim inserido num ciclo produtivo de trabalho alheio e em proveito de outrem, estando adstrito a observar os parâmetros de organização e funcionamento definidos pelo beneficiário - António Monteiro Fernandes, Direito do Trabalho, Almedina, 19º ed., p. 148.”
Como refere Maria do Rosário Palma Ramalho [Tratado de Direito do Trabalho, Parte II – Situações Laborais Individuais, 9ª edição, revista e actualizada à Lei n.º 13/2023 de 3 de abril, pág. 44] “A referência à integração do trabalhador no âmbito da organização do empregador, que é agora feita no contexto da noção de contrato de trabalho (art. 11º do CT), vem justamente salientar a componente organizacional do contrato de trabalho (…), e que, obviamente tem um valor qualificativo”.
Alterou-se, pois, o centro de gravidade da subordinação jurídica subjetiva (heterodeterminação da prestação de atividade, com presença dos poderes hierárquico, organizacional e disciplinar) para a subordinação jurídica objetiva (que leva em conta a integração do trabalhador na estrutura produtiva).”, alteração que, do nosso ponto de vista, assume particular relevância nas situações como a dos autos.»
E no caso concreto, consideramos que a matéria de facto provada permite concluir que, quando se liga à plataforma digital, o estafeta passa a integrar um serviço organizado e concebido inteiramente pela recorrida, observando parâmetros de organização e funcionamento unilateralmente definidos pela mesma. A sua atividade é prestada dentro de um serviço organizado alheio, sendo as condições essenciais de execução determinadas unilateralmente pela recorrida através da aplicação que organiza todo o esquema de prestação da atividade.
Nesse sentido apontam claramente os factos dados como provados sob os números 14, 15, 16, 17, 18, 19, 23, 34 e 38.
Seria ainda de ter em conta, na nossa perspetiva, que o principal, instrumento de trabalho utilizado pelo estafeta é a aplicação, sobre a qual aquele não tem qualquer domínio ou controlo, mas que constitui a ferramenta imprescindível para a execução da atividade contratada, pelos motivos que apontámos no já referido Acórdão de 17/03/2025 e que aqui damos por reproduzidos.
E os pontos 22 e 41 a 43 dos factos provados, permitem também concluir que a recorrida, detém, no seu próprio interesse, um poder extremamente amplo relativamente a todas as condições de execução da atividade pelo estafeta, sejam elas principais ou acessórias, que em caso de incumprimento, lhe permite suspender a atividade do estafeta ou cessá-la.
Trata-se de um poder que, tal como configurado, contém uma faceta ordenadora e prescritiva que vai para além das consequências do mero incumprimento contratual, distinguindo-se da responsabilidade civil e sem se ater aos seus limites, pois a aplicação da “sanção” de desativar temporária ou permanentemente a conta do estafeta, não se confunde com a exigência do cumprimento coercivo da prestação e do ressarcimento de danos, ou seja, com as consequências próprias do incumprimento contatual civil.
Acrescentamos ainda que não relevaríamos o facto de o estafeta poder escolher quando presta a atividade, de poder rejeitar as ofertas que lhe são feitas e mesmo de cancelar as já aceites, desde que ainda não tenha recolhido o produto a entregar, atentas as especificidades próprias da prestação de atividade nas plataformas digitais, sendo de importância fulcral a captação da realidade da era digital em que nos encontramos, que constituiu referência do «Livro Verde Sobre o Futuro do Trabalho», 2021, podendo ler-se na pág. 172 “que a circunstância de o prestador de serviço utilizar instrumentos de trabalho próprios, bem como o facto de estar dispensado de cumprir deveres de assiduidade, pontualidade e não concorrência, não é incompatível com a existência de uma relação de trabalho dependente entre o prestador e a plataforma digital».
Quanto à possibilidade de cancelar as “ofertas” já aceites, não podemos ainda deixar de salientar que a sua eventual relevância se esbate face ao teor do n.º 16, al. b) do Contrato de Parceiro de Entregas do Parceiro de Frota, que permite à ré resolver o contrato se o estafeta aceitar propostas sem intenção de as entregar.
Consideramos também que a possibilidade de o estafeta se fazer substituir, por outros prestadores inscritos na mesma aplicação, revela uma autonomia meramente aparente, já que é uma possibilidade restrita ao universo de estafetas também registados e cuja atividade a recorrida organiza e controla da mesma forma.
Por seu turno, a ausência do dever de exclusividade, não assume, do nosso ponto de vista, relevância quanto à qualificação do contrato como prestação de serviços, pois importa, por um lado, considerar que é a própria recorrida que a inclui nas condições contratuais, pelo que, nunca se poderia falar de incumprimento pelo estafeta do dever de lealdade tipicamente laboral e por outro lado, considerar que como se refere no Ac. da RG de 03/10/2024, processo n.º 2838/23.1T8VRL.G1, acessível em www.dgsi.pt, os estafetas “São “mercadoria fungível”, facilmente substituível, em que não faz qualquer sentido falar em exclusividade ou impossibilidade de subdelegação de tarefas.”
Por tudo, ao contrário da posição que obteve vencimento, teríamos julgado o recurso procedente e reconhecido a existência do contrato de trabalho entre o estafeta AA e a ré.]