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CONTRA-ORDENAÇÃO
AERONÁUTICA CIVIL
PESSOA COLECTIVA
ADMOESTAÇÃO
Sumário
- O recurso para o Tribunal da Relação tem como objeto a decisão judicial e não a decisão da Autoridade Administrativa, como se retira do artigo 73.º do RGCO; - A imputação à Pessoa Coletiva não pressupõe a identificação (individual ou biográfica) do condutor de veículo desta que, como se apurou, transportava material para seus clientes; - A admoestação não é aplicável a contraordenação classificada pelo legislador como grave.
Texto Integral
Acordam na Seção da Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa:
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I - Relatório
IBERLIM – HIGIENE E SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL, SA apresentou, no dia 16 de maio de 2024, recurso de impugnação judicial da decisão proferida pela ANAC- Autoridade Nacional da Aviação Civil, que a condenou nos seguintes termos: “- delibera-se aplicar à Iberlim uma coima no valor de Euros 6.500,00, por violação, a título de dolo, do n.º 1 do artigo 7.º do Decreto-Lei n.º 10/2004, de 9 de janeiro.”
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Por sentença, proferida a 27.11.2024, foi a referida impugnação judicial julgada nos seguintes termos: “a) Julgo improcedentes todas as questões prévias e nulidades invocadas pela Recorrente; b) Mantenho a condenação da Arguida em uma coima no montante de € 6.500,00 (seis mil e quinhentos euros) pela contraordenação praticada, a título doloso, prevista e punida pelo artigo 7.º, n.º 1, do Regime aplicável às contraordenações aeronáuticas civis.”
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Inconformada com tal decisão, veio a IBERLIM, a 9 de dezembro de 2024, interpôr recurso da mesma para este Tribunal da Relação, formulando as seguintes conclusões: “Nulidades I. No âmbito do presente processo de contra-ordenação 62/2018 foi proferida decisão condenatória em 24 de abril de 2019, que foi impugnada em processo no qual foi proferida sentença em 15 de julho de 2019 que declarou a nulidade da notificação para exercício do direitode defesa efetuadaem fevereirode 2018 (Of. 90/GabJur/PCA/18)nos termos doartigo 50.º do RGCO, por não conter uma enunciação sequenciada e clara dos factos imputados. II. Tendo a ANAC enviado à Recorrente nova notificação para exercício do direito de defesa (Of. 102/GabJur/PCA/2021), a mesma continua a padecer dos vícios já declarados na sentença de 15 de julho de 2019 já que, em primeiro lugar, aí não são elencados factos praticados pela Recorrente ou corporizadores de elementos típicos, mas apenas o conteúdo de diligências probatórias, de constatações da equipa inspetiva da ANAC, e reproduções de declarações das testemunhas e, em segundo lugar, existem várias contradições quer quanto ao balizamento temporal da conduta quer quanto ao comportamento alegadamente adotado pela Recorrente. III. Na douta sentença recorrida foi expressamente reconhecido que a matéria de facto elencada nas respetivas alíneas 8 a 16, 20 a 68 e 70 a 76 do Of. 102/GabJur/PCA/2021 não pode ser considerada por padecer dos identificados vícios (pontos 46 a 51 da sentença, a fls. 13 a 25 da mesma). IV. Contrariamente ao defendido pelo Tribunal recorrido a nulidade das alíneas 8 a 16, 20 a 68 e 70 a 76 da matéria de facto do Of. 102/GabJur/PCA/2021 contamina o restante ato. V. O direito de audição e defesa do Arguido (artigo 50.º do RGCO e artigo 32.º n.º10 da CRP) impõe que lhe seja conferida a oportunidade de ter uma participação útil no procedimento, intervindo, ativamente, na formação da decisão final. VI. A notificação para exercício de tal direito deve “fornecer ao arguido todos os elementos necessários para que este fique a conhecer a totalidade dos aspetos relevantes para a decisão, nas matérias de factoe de direito” (Assento1/2003) exigênciaque sóestarásatisfeita se houver uma comunicação integral dos factos imputados (Acórdãos do TRE de 05-04-2022, processo 256/18.2EAFAR.E1 e do TRL de 22-02-2023, processo 73/22.5TNLSB.L1-3). VII. É a autoridade administrativa que tem o ónus de habilitar o arguido com uma descrição ordenada, precisa, clara e concreta dos factos que lhe permita perceber o que lhe está a ser imputado e, assim, exercer de forma cabal e consciente os seus direitos. VIII. Não compete ao arguido descobrir (ou mesmo adivinhar) da panóplia de “factos” que lhe são imputados quais é que poderão efetivamente ser considerados pela autoridade administrativa (por não estarem inquinados por vícios formais) e assim organizar o seu direito de defesa. IX. Não é exigível que a Recorrente analisasse o elenco dos 76 “factos” que lhe foram imputados pela ANAC e que, no meio destes, lograsse distinguir ou descobrir os 11 factos que (no entendimento do Tribunal recorrido) não estavam inquinados por vícios, e que, com base nesses, determinasse ocomportamentopeloqual poderiavir aser condenadaneste processo de contra-ordenação e exercesse de forma cabal o seu direito de defesa quanto a tais factos. X. Acresce que desses 11 factos, 9 deles (alíneas 1 a 7, 17 e 18) são meramente de enquadramento da atividade da Recorrente, e um deles (alínea 69) alude a um comportamento que não releva para a condenação efetuada já que não se reporta a qualquer alegado processamento de provisões a partir das instalações do Prior Velho XI. A única alínea potencialmente relevante, a alínea 19) (i) é uma reprodução da alínea 15) que o próprio Tribunal recorrido considera nula – ponto 64 da sentença (ii) não afirma que as provisões provinham do Prior Velho, mas apenas que a documentação fazia referência a estas instalações (iii) não identifica a viatura (iv) não identifica a hora da infração. XII. Mais se diga que em tal alínea 19) não é identificado o agente (autor material) da suposta infração. XIII. A responsabilidade das pessoas coletivas não tem caracter objetivo depende da alegação e prova de que o facto tipicamente ilícito e culposo foi cometido pelos titulares dos seus órgãos sociais, mandatários, representantes ou trabalhadores no exercício das suas funções, no interesse da pessoa coletiva e de acordo com as ordens e instruções expressas que lhe tenham sido dirigidas (artigo 3.º n.º4 do Decreto-Lei 10/2004, artigo 7.º do RGCO e artigo 11.º n.º6 do CP e Acórdãos do Tribunal da Relaçãodo Porto de 21-03-2013, processo 6334/11.1TBMAI.P1, do Tribunal da Relação de Coimbra de 18-03-2015, processo n.º 304/14.5TBCVL.C1 e do Tribunal da Relação de Évora de 18-06-2013, processo 715/12.0TBLSA.EL). XIV. A falta de identificação concreta de alguém que tenha agido ou omitido dever de cuidado no cumprimento do normativo em apreço e a falta de indicação de que essa pessoa era funcionário ou representante da Arguida, atuava no exercício de tais funções e não desrespeitava as ordens e instruções transmitidas pela Arguida impede a Arguida de averiguar o que possa ter ocorrido e, assim, de exercer convenientemente os seus direitos de defesa e contraditório. XV. Os 11 factos entendidos como não viciados pelo Tribunal recorrido também não incorporam outros os elementos relevantes para a decisão da causa (por exemplo, não contêm factos relativos à situação económica-financeira da Recorrente que permitam verificar qual o entendimento da ANAC quanto à configuração da Recorrente como micro, pequena, média ou grande empresa para efeitos do artigo 9.º do Decreto-Lei 50/2004). XVI. Atento o supra exposto nas conclusões IV a XV conclui-se que a notificação para exercício do direito de defesa não contém uma enunciação sequenciada e clara dos factos imputados nem os elementos relevantes para a decisão da causa. XVII. Às garantias do direito de defesa e audição do processo contra-ordencional (artigo 32.º n.º 10 da CRP) não se sobrepõe o princípio do aproveitamento dos atos pelo que, contrariamente ao decidido pelo Tribunal recorrido, o disposto no artigo 122.º n.º 2 e 3 do CPP e o artigo 130.º do CPC não permite obstar à nulidade do ato. XVIII. Contrariamente ao entendido pelo Tribunal recorrido no ponto 82 da sentença, o facto de a ANAC não ter percebido os vícios apontados na sentença de 2019 e de como os devia sanar não se pode sobrepor às mais elementares decorrências do direito de defesa do arguido, nem pode levar a uma inversão das posições atribuídas à autoridade administrativa e ao arguido na fase administrativa do processo de contra-ordenações. XIX. Concluindo-se que o Of. 102/GabJur/PCA/2021 não cumpre as exigências do artigo 50º do RGCO, pelo que se verifica nulidade por violação de tal preceito legal. XX. Como referido nas conclusões I a XIX, os vícios declarados na sentença de 2019 não foram sanados na notificação para o exercício do direito de defesa efetuada em 2021 (Of. 102/GabJur/PCA/2021), pelo que a mesma é nula, por violação da autoridade do caso julgado, do principio non bis in idem e do regime de nulidade dos actos processuais. XXI. A matéria factual constante da decisão condenatória é exatamente igual à da notificação para exercício do direito de defesa (Of. 102/GabJur/PCA/2021), pelo que padece dos mesos vícios identificados nas conclusões II a XIX. XXII. A decisão condenatória não contém uma descrição dos factos objetivos que alegadamente foram apurados no decurso da fase administrativa, pelo que viola o disposto no artigo 58.º n.º1 al. b) do RGCO, o que conduz à nulidade da decisão nos termos dos artigos 283º, nº 3, alínea b), 374.º n.º2 e 379.º n.º1 al. a) do CPP. Decisão quanto à Matéria de Facto XXIII. Mesmo quando o recurso está limitado à questão de direito, é possível verificar se determinada proposição, considerada como facto provado, reflete uma questão de direito ou um juízo de feição conclusiva ou valorativa (Acórdão do STJ de 29 de Abril de 2015, proferido no processo 306/12.6TTCVL.C1.S1). XXIV. O Tribunal ao selecionar a matéria de facto relativamente à qual irá aplicar a matéria jurídica deveater-se apenas a um dado da experiência, umarealidade, um acontecimentohistórico, natural ou humano e não a proposições ou juízos valorativos. XXV. Por referência à alínea cc) da Matéria de Facto, saber se a Arguida deturpou a verdade dos factos e se não é verdade que a responsabilidade fosse do gestor de segurança obviamente constitui matéria de Direito (ou, no limite, conclusões valorativas) e não factos objetivos que possam ser levados à Matéria de Facto. XXVI. Por referênciaàs alíneas r)e cc)daMatériade Factosaber se aArguidarevelaounãosentido critico da sua conduta, se representou e quis proceder nos termos referidos, se agiu de forma livre e consciente, com consciência da ilicitude da sua conduta consubstanciam análises ou juízos jurídicos e não factos objetivos. XXVII. Como tal, as alíneas r) e cc) devem ser expurgadas da Matéria de Facto. Danãoverificaçãodoelementoobjetivo XVIII. É imputado à Recorrente o alegado incumprimento do Plano de Segurança aprovado no âmbito do Estatuto de FRPB, por a Recorrente pretensamente, e ao abrigo de tal estatuto de FRPB, ter processado provisões de bordo a partir das suas instalações do Prior Velho, quando tais instalações não estavam aprovadas. XXIX. Os procedimentos de aprovação de agentes como FRPB estão fixados no Regulamento CE n.º 300/2008 e no seu Regulamento de Execução (UE) 2015/1998, aí se estabelecendo, concretamente, que cada FRPB deve operar, nessa qualidade, a partir de uma determina instalação específica e que cada FRPB deve apresentar um programa de segurança que descreva os métodos e procedimentos a aplicar. XXX. No ordenamento jurídico nacional, o regime sancionatório aplicável ao regime jurídico estabelecido pelo Regulamento (CE) n.º 300/2008 e respetivos atos de execução apenas foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142/2019 de 19 de setembro. XXXIX. Só a partir de tal data foi sancionado como contra-ordenação o incumprimento do programa de segurança do FRPB e o incumprimento dos controlos de segurança ou dos requisitos de rastreio aplicáveis ao rastreio de provisões de bordo (artigo 54.º, n.º 1, alínea b) e alínea bbb) do Decreto-Lei n.º 142/2019). XXXII. O pretenso incumprimento do estatuto de FRPB da Recorrente ou do inerente Programa de Segurança da autoria da própria Recorrente não integra a previsão do artigo 7.º do Decreto-Lei 10/2004. XXXIII. O conceito de “instrução ou mandato” reporta-se a comandos expressos e concretos que revistam a característica da particularidade, quer quanto aos seus destinatários, quer quanto ao teor das condutas concretas que se pretendem evitar e que sejam perfeitamente percetíveis ao seu destinatário (Acórdão do TRP (de 06-06-2012, processo 4679/11.0TBMAI.P1). XXXIV. O Programa de Segurança tem natureza regulamentar pois aí constam diversos procedimentos gerais e abstratos no âmbito da atividade de FRPB desenvolvida pela Recorrente. XXXV. Estando em causa procedimentos gerais e abstratos e, ademais, elaborados pela própria Recorrente(enãopelaANAC), é evidente que nãoestamos perante instruçõesoumandados emitidos pela ANAC que se insiram no âmbito da previsão do artigo 7.º. XXXVI. O entendimento do Tribunal recorrido de que “É verdade que o sentido completo desta ordem depende das normas legais que regulam a atividade de fornecedor reconhecido de provisões de bordo” (pontos 52 e 53 da sentença recorrida, a fls. 99 e 100) viola o supra referido no sentido de que a instrução deve ser patente e clara que tal forma que seja perfeitamente percetível pelo destinatário. XXXVII. Atento o princípio da legalidade e o princípio da tipicidade (artigo 2º do RGCO) não é admissível o recurso à interpretação extensiva e, menos ainda, à analogia, para qualificar um comportamento como contra-ordenacional (Acórdãos do TRL de 14-06-2017, processo 2010/16.7T8.BRR.L1-4, de 23-06-2017, processo 3793/16.0T8BRR.L1-4). XXXVIII. O (pretenso) incumprimento do Programa de Segurança não preenche a previsão do artigo7.º do Decreto-Lei 10/2004. XXXIX. Aliás, se o incumprimento do programa de segurança do FRPB já estivesse abrangido no âmbito da previsão do artigo 7º. nº1 do Decreto-Lei 10/2004 inexistiria qualquer razão que justificasse que tivessem sido criados novos tipos contra-ordenacionais a preverem a punição de tais comportamentos no Decreto-Lei 142/2019. XL. Tal interpretação levaria a que se considerasse que o legislador adotou um ato inútil ou não soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, o que contraria o disposto no artigo 10.º n.º3 do CC. XLI. Conclui-se que só a partir de 20 de setembro de 2019 o comportamento imputado à Recorrente passou a ser punido nos termos das alíneas b) e bbb) do artigo 54.º n.º1 do Decreto-Lei 142/2019, normas que não podem ser aplicadas a factos pretensamente praticados em janeiro de 2018 sob pena de violação do artigo 2.º do RGCO. XLII. O único facto potencialmente relevante constante da Matéria de Facto (alínea q) não identifica o(s) agente(s) pessoa(s) singular(es) que terão praticado tal facto, nem se atuaram no exercício das funções que exerciam para a Recorrente e não desrespeitavam as ordens e instruções transmitidas pela Recorrente o que, como supra exposto nas conclusões XIII e XIV, viola o disposto no artigo 3.º n.º4 do Decreto-Lei 10/2004, artigo 7.º do RGCO e artigo 11.º n.º6 do CP. XLIII. O facto referido na alínea s) alude a um comportamento que não releva para a condenação efetuada já que não se reporta a qualquer alegado processamento de provisões a partir das instalações do Prior Velho XLIV. Das alíneas a) a j) dos Factos Provados resulta que a conduta adotada pela Administração da Recorrente é a de gestores diligentes e conscientes das obrigações a que estão sujeitos já que em 2013 obtiveram Estatuto de FRPB para as instalações que então utilizavam e em 2017 quando decidiram a utilização do novo armazém no Prior Velho, iniciaram os procedimentos necessários a assegurar a inclusão do mesmo no Programa de Segurança, por forma a que as provisões pudessem ser aí processadas ao abrigo do estatuto de FRPB. XLV. Das alíneas k) a p) dos Factos Provados decorre que a Recorrente designou como Gestor de Segurança um trabalhador que, como reconhecido pela própria ANAC, estava habilitado para exercer tal função, que este sabia que enquanto o armazém do Prior Velho não fosse autorizado as provisões daí provenientes não podiam ser seladas, tendo de ser sujeitas a rastreio e que as suas responsabilidades abrangiam transmitir para os responsáveis de segurança da sede e delegações as normas a serem cumpridas no âmbito do PNSAC e do PSFRPB e garantir que todos os elementos de segurança que irão manusear ou receber as provisões de bordo cumprem com as normas decorrentes do PSFRPB. XLVI. Das alíneas aa) e bb) dos Factos Provados decorre que a Recorrente é uma empresa de grande dimensão, tendo ao seu serviço milhares de trabalhadores, sendo de senso comum que numa empresa com tais características, é impossível que os três Administradores nomeados possam fazer um acompanhamento permanente, continuo do comportamento adotado por cada um desses trabalhadores, justificando-se que tal atividade fosse efetuada através da estrutura hierárquica estabelecida, que tinha como responsável o Gestor de Segurança, pessoa devidamente habilitada pela própria ANAC para esse efeito. XLVII. Atento o referido nas conclusões XLIV e XLVI, a terem sido praticados os factos descritos na alínea q) da sentença os mesmos não são consentâneos com o padrão de comportamento demonstrado pela Recorrente. XLVIII. A terem sido praticados tais factos pelos não identificados agentes foram-no em incumprimento do quadro de ação delineado pela Recorrente (que ordenou a revisão do Programa de Segurança para aí incluir o armazém do Prior Velho e designou um Gestor de Segurança que sabia que até à certificação de tal armazém, as provisões aí processadas não podiam ser seladas, tendo de ser sujeitas a rastreio e que tinha como responsabilidade assegurar que os demais trabalhadores cumpriam tais procedimentos). XLIX. Também o comportamento posterior da Recorrente não é consentâneo com o facto descrito na alínea q), pois a Recorrente substituiu o Gestor de Segurança BB…, ordenou a abertura de inquérito para avaliar os procedimentos levados a cabo e contratou CC…, Oficial da Força Aérea Portuguesa e Auditor Nacional de Segurança da Aviação Civil que acompanhou e assessorou a Arguida, designadamente acompanhando de perto toda a operação nas instalações do Prior Velho e, bem assim, a revisão de todo o Programa de Segurança da Arguida (alíneas t) a y) dos Factos Provados). L. Atento o referido nas conclusões XLII a XLIX, a terem sido infringidas quaisquer normas, designadamente o estatuto de FRPB e o inerente Programa de Segurança tal infração terá sido perpetrada contra instruções da Administração da Arguida, pelo que, por força do disposto no artigo 11.º n.º6 do C.P. e no artigo 3º nº 4 do Decreto-lei 10/2004 sempre estaria excluída a sua responsabilidade contra-ordenacional. LI. Atento o referido nas conclusões XLII a L também se conclui que a Recorrente adotou as providências que razoavelmente lhe poderiam ser exigidas para assegurar o cumprimento das suas obrigações, pelo que a ter-se verificado qualquer incumprimento o mesmo não é imputável à Recorrente seja a que título for, pelo que, ainda que se entendesse que estavam preenchidos os elementos objetivos da contra-ordenação – que não estão – sempre faltaria o elemento subjetivo do ilícito. Dasançãoaplicada LII. Para efeito de aplicação de sanção de admoestação, na análise da gravidade da infração, o que releva não é a qualificação legal da contra-ordenação mas a gravidade apurada em termos concretos (Acórdão do TRC de 18-04-2012, processo 430/11.2TBMLD.C1, do STA de 19-06-2019, processo 02584/15.0BELRS, de 24-04-2019, processo 01154/16.0BESNT, do TCA Sul de 28-04-2022, processo 2735/15.4BELRS e de 16-12-2020, processo 432/18.8BELRA). LIII. No caso concreto (i) não se apurou que a pretensa conduta da Recorrente tenha gerado qualquer dano ou que lhe tenha trazido benefício económico (ponto 115, a fls. 121 da sentença) (ii) previamente à pretensa prática do facto ilícito a Recorrente estava a rever o Programa de Segurança para incluir as instalações do Prior Velho e veio a obter em maio de 2018 o Estatuto de FRPB para essas instalações (alíneas g) a j) dos Factos Provados) (iii) a Recorrente adotou outras medidas destinadas a mitigar a pretensa situação verificada (alíneas t) a y) dos Factos Provados (iv) a Recorrente já não exerce atividade de FRPB desde 2019 (alínea z) dos Factos Provados), pelo que estão verificados os pressupostos do artigo 51.º do RGCO, devendo ser determinada a sanção da admoestação. LIV. Considera-se que, no âmbito das contra-ordenações aeronáuticas, a solicitação da concessão das autorizações e o decurso de um período longo sobre a prática do facto evidencia que a conduta do arguido não pode ser entendida enquanto carecendo de especiais cuidados ao nível da prevenção especial, o que justifica a suspensão da execução da coima nos termos do artigo 29.º do Decreto-Lei 10/2004 (Acórdão do TRL de 14 de abril de 2020, processo 125/19.9YUSRR.L1-PICRS). LV. Atenta a inexistência de danos ou benefícios económicos, o facto de a Arguida ter obtido a certificação do armazém do Prior Velho, ter adotado medidas mitigadoras da situação, de já não exercer a atividade de FRPB e o decurso de quase sete anos desde a pretensa data de prática dos factos, estão verificados os pressupostos do artigo 29.º do DL 10/2004, justificando-se a suspensão da sanção aplicada na sua totalidade. LVI. Para determinação dos limites mínimo e máximo da coima a aplicar foi considerado o artigo 9.º do Decreto-Lei 10/2004. LVII. Tendo em conta os princípios da proporcionalidade, adequação e necessidade (artigo 18.º da CRP) e da legalidade (artigos 2.º e 3.º da CRP) que determinam a generalidade e abstração na fixação das penas e outras sanções, bem como princípio da culpa (artigo 1.º da CRP), na determinação dos limites mínimo e máximo da moldura da sanção a aplicar a um determinado ilícito deve atender-se apenas aos elementos do tipo em causa e ao bem jurídico que se visa tutelar com o mesmo e não às características de cada agente. LVIII. O critério fixado no artigo 9ª do Decreto-Lei 10/2004 ao estabelecer que para uma contra-ordenação com a mesma classificação (leve, grave ou muito grave) e praticada com o mesmo grau de culpa são aplicáveis molduras sancionatórios (limite mínimo e máximo da coima) distintas conforme o arguido, sendo pessoa coletiva, é considerado como micro, pequena, média ou grande empresa, atende a particularidades especificas do agente: a sua dimensão (em número de trabalhadores, volume de negócios, balaço e estrutura de detenção do capital social). LIX. Tal critério também não permite aferir a situação económica do agente ou o benefício económico que retirou da infração já que o número de trabalhadores apenas permite aferir a capacidade técnica da empresa, o volume de negócios apenas reflete a faturação da empresa e não os custos que tais vendas e/ou prestações de serviços implicaram, o, balanço total anual apenas traduz a soma do seu ativo e passivo. LX. O artigo 9ª do Decreto-Lei 10/2004 ao prescrever molduras “abstratas” de coima para a mesma infração que são variáveis (também) em função da maior ou menor dimensão do Arguido e que, assim, não refletem o desvalor da conduta é inconstitucional por violação dos princípios referidos na conclusão LVII. LXI. Acresce que o critério de fixação do dos limites mínimo e máximo da coima estabelecido no art.º. 9ª do Decreto-Lei 10/2004 ao atender às características de cada agente (características essas que apenas deveriam ser atendidas na fase posterior de determinação concreta da sançãoaplicávelacadaagente)e aolevar aque empresas que tenham cometido omesmo tipo de ilícito, durante o mesmo período de tempo e obtendo benefícios económicos idênticos sejam aplicáveis molduras “abstratas” de coima completamente diferentes é inconstitucional também por violação do princípio da igualdade previsto no art.º 13º. da CRP. LXII. O artigo 29.º, nºs. 1, 3 e 4, da CRP impõe que a punição de um ilícito sancionatório seja determinada por lei anterior à prática do facto, por forma a que o destinatário possa apreender as possíveis consequências de determinada conduta e, assim, autodeterminar-se. LXIII. O art.º 9ª do Decreto-Lei 10/2004 não cumpre esses critérios, atenta a indeterminabilidade da coima no momento da comissão de uma infração (com efeito, no momento da prática da infração é impossível saber qual o número de trabalhadores, volume de negócios, balanço total anual e grau de dependência que a empresa terá nesse exercício). LXIV. Atento o referido nas conclusões LVII a LXIII invoca-se a inconstitucionalidade do artigo 9ª do Decreto-Lei 10/2004 por violação dos artigos 1º, 2º, 3º, 13º, 18º, 29.º n.º 1, 2 e 3 da CRP. LXV. Acresce que na sentença recorrida o artigo 9.º do Decreto-Lei 10/2004 foi interpretado no sentido de que o ano a ser tomado em consideração para determinação da dimensão da empresa é o do exercício imediatamente anterior ao da decisão condenatória proferida pela ANAC. LXVI. Tal Interpretação apenas reforça a inconstitucionalidade supra exposta nas conclusões LXII e LXIII, dado que, aquando da prática da infração é, naturalmente, impossível determinar em que data é que será proferida pela ANAC uma decisão condenatória e qual o número de trabalhadores, volume de negócios, balanço total anual e grau de dependência que a empresa terá nesse exercício. LXVII. O artigo 9ª do Decreto-Lei 10/2004 interpretado no sentido dado na conclusão LXV é inconstitucional por violação do artigo 29.º, nºs. 1, 3 e 4, da CRP. LXVIII. Viola a sentença recorrida o disposto nos artigos 3.º n.º4, 7.º n.º1, 9ª, 29ª do Decreto-Lei 10/2004, artigos 2.º, 3ª, 7.º, 41.º n .º1, 50.º, 51.º e 58.º n.º1 al. b) do RGCO, artigo 11.º n.º6 do Código Penal, nos artigos 4.º, 61.º n.º1 al. a), 122.º n.º1 e 2, 125.º, 126.º, 132.º n.º2 e 4, 174º n.º3 e 4, 275.º n.º1, 283º, nº 3, alínea b), 374 n.º2 e 379.º n.º1 do Código de Processo Penal, artigos 607.º n.º5, 628.º e 629.º do CPC, norma 8.1.1.1. do Anexo do Regulamento de execução (UE) 2015/1998 e nos artigos 1º, 2º, 3º, 13º, 18º, 29.º n.º 1, 2, 4 e 5, 32.º n.º10 da CRP, deverá ser declarada nula, ou, caso assim se não entenda, anulada, assim se fazendo JUSTIÇA.
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Admitido o recurso, respondeu a Autoridade Nacional da Aviação Civil (ANAC), a 9 de janeiro de 2025, apresentando as seguintes conclusões: “A. Com o presente recurso a Recorrente pretende ver apreciadas as seguintes questões: (i) Nulidades; (ii) Decisão quanto à matéria de facto; (iii) Da não verificação do elemento objetivo e (iv) Da sanção aplicada. B. Cumpre, desde já deixar afirmado que não assiste qualquer razão à Recorrente em qualquer das questões, tendo sido corretamente decididas pelo douto Tribunal a quo. C. Em primeiro lugar, importa salientar que o presente recurso não cumpre as regras do artigo 75º n.º 1 do RGCO, porquanto a Recorrente pretende, de forma encapotada, que o Tribunal ad quem aprecie o julgamento da matéria de facto. D. Depois, também não cumpre as regras relativas ao recurso estatuídas no artigo 410º n.º 2 do CPP, uma vez que vem colocar em crise não a decisão da 1ª instância, mas sim a decisão da autoridade administrativa. E. A Recorrente invoca ainda a existência de “nulidades” constantes da decisão administrativa, cujo recurso de impugnação judicial apresentou junto do Tribunal a quo e que foram por este apreciadas. F. O Tribunal a quo realizou uma análise criteriosa dos factos em causa, atenta a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, não existindo o efeito de contaminação invocado pela Recorrente, por alegadamente existirem nulidades na decisão administrativa. G. Tanto mais que, nesta fase jurisdicional, a decisão proferida pela autoridade administrativa vale como acusação, nos termos do artigo 62º n.º 1 do RGCO. H. Acresce que, a prova testemunhal produzida foi vasta, tendo o Douto Tribunal determinado a inquirição de outras testemunhas que não estavam inicialmente indicadas, com vista a obter o pleno esclarecimento da factualidade em causa, o que aconteceu. I. Com base nessa mesma prova, resultou provado em audiência de discussão e julgamento e que a Recorrente não conseguiu contrariar, a prática da infração em causa por parte da Recorrente, J. Pelo que a sentença sub judicie não padece de quaisquer das nulidades apontadas pela Recorrente. K. Em seguida, a Recorrente veio colocar em crise a decisão quanto à matéria de facto, alegando que dos factos provados, consta matéria de direito, mas não poderia estar mais equivocada. L. Como bem entende o Supremo Tribunal de Justiça, no aresto do processo n.º 08S3441, de 7 de maio de 2009, “Nem sempre é fácil distinguir entre o que é matéria de facto e matéria de direito, mas é consensual, na doutrina e na jurisprudência, que, para efeitos processuais, tudo o que respeita ao apuramento de ocorrências da vida real é questão de facto e é questão de direito tudo o que diz respeito à interpretação e aplicação da lei.” M. No caso que nos ocupa, o Douto Tribunal a quo cumpre na íntegra, a sua qualificação como matéria de facto. N. Entende também a Recorrente, que na sentença em crise, não está verificado o elemento objetivo, por entender que a norma aplicada – artigo 7º do Decreto-lei n.º 10/2004, de 9 de janeiro – incumprimento de mandado legítimo da ANAC - não é aplicável. O. Prende-se a Recorrente, com o facto de ter sido publicado o Decreto-Lei n.º 142/2019, de 19 de setembro, que veio criar o regime sancionatório aplicável ao Regulamento (CE) n.º 300/2008, e Regulamento de Execução (UE) 2015/1998, P. Alegando que, por esse motivo, à data dos factos ocorridos em 16 de janeiro de 2018, o comportamento adotado não era sancionável. Q. No caso sub judicie, importa salientar que a Recorrente Iberlim era, à data, “Fornecedor Reconhecido de Provisões de Bordo” (FRPB), cujo estatuto depende de aprovação por parte da Autoridade Aeronáutica da Aviação Civil, sendo que tal estatuto permite que a Recorrente proceda à entrega de mercadorias, em viaturas previamente seladas, que acedem à Área Crítica da Zona Restrita de Segurança (AC/ZS) do Aeroporto Humberto Delgado e que não carecem de ser rastreadas. R. Este Estatuto implica o cumprimento de regras, nomeadamente os requisitos exigidos no processo de aprovação, nos termos do ponto 8.1.3. do Anexo ao Regulamento (UE) n.º 185/2010, de 4 de março e que estão vertidos no Programa de Segurança apresentado pela Recorrente à ANAC e aprovado por esta Autoridade, em 3 de março de 2014. S. Resulta do ponto 8.1.3.1 do referido Regulamento que: “A aprovação como fornecedor reconhecido será restrita a um local específico”. T. Do Programa de Segurança, são indicadas as instalações onde a Recorrente exerce as funções de FRPB – in casu Rua … Carnaxide - tendo tal facto sido reiterado na comunicação da ANAC, datada de 10 de março de 2014, relativa à aprovação de fornecedor reconhecido de provisões de bordo. U. Mais: a Recorrente fez constar do Programa de Segurança, na declaração de compromisso, que comunicaria a mudança de instalações, com a antecedência mínima de 15 dias úteis em relação à data prevista para a alteração, o que não cumpriu. V. Não obstante ter escolhido as instalações em Carnaxide para exercício da atividade de FRPB, a Recorrente exerceu as funções de FRPB a partir de outras instalações – Prior Velho – sem que tivesse comunicado tal facto à ANAC e com esse comportamento desobedeceu ao mandado legítimo que foi emitido por esta Autoridade, e que constava no Ofício, datado de 10 de março de 2014, enviado por esta Autoridade à Recorrente Iberlim. W. Destarte, é possível concluir que o comportamento da Recorrente já era sancionável à data dos factos, uma vez que tal se enquadra num ato de desobediência a um mandado legítimo da ANAC, e que consistia tão simplesmente em só exercer a atividade para a qual estava aprovada nas instalações sitas na Rua …. X. O facto de o legislador ter publicado o Decreto-Lei n.º 142/2019, de 19 de setembro, que veio estabelecer o regime sancionatório aplicável ao regime jurídico das Normas de Base Comuns sobre a segurança da aviação civil, estabelecidas pelo Regulamento (CE) n.º 300/2008, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de março de 2008, respetivos atos de execução e medidas pormenorizadas, em nada colide com a aplicação do artigo 7º do Decreto-Lei n.º 10/2004. Y. Desde logo, porque a legislação entretanto publicada não visa só sancionar o incumprimento do Programa de Segurança, mas sim habilitar “a Autoridade Nacional de Segurança da Aviação Civil a elaborar regulamentação interna, instruções de segurança e circulares de informação aeronáutica, que desenvolvam e concretizem a implementação dos Programas deSegurança e cria-se um regime sancionatório de modo a garantir o cumprimento integral das obrigações contidas no presente decreto-lei e na regulamentação europeia sobre a matéria.”, conforme consta do preâmbulo do diploma. Z. Para além disso, resulta da evolução das ameaças no setor da aviação civil, e que levou a que o legislador entendesse agravar o comportamento em causa, sancionando como contraordenação muito grave – artigo 54º n.º 1 – alínea a). AA. Concluindo-se que o comportamento em causa já era sancionado à data dos factos, mas não de uma forma tão gravosa. BB. Aproveitando a temática do elemento objetivo, a Recorrente enxertou argumentação relativa ao concreto agente da infração, por entender que o comportamento em causa, terá sido realizado por agentes (pessoas singulares) em desobediência a ordens e instruções transmitidas pela Recorrente. CC. Ora, tal factualidade não resultou provada, pois resultou da prova produzida e sem qualquer margem para dúvida que o armazém do Prior Velho pertencia à Recorrente (assim o assumiram os seus administradores), e nele se encontravam provisões para ser embarcadas nas aeronaves, por trabalhadores com farda da Iberlim, em viaturas também identificadas como pertencendo à Iberlim (conforme verificado pelo inspetor da ANAC). DD. Resultou também provado que a utilização do armazém do Prior Velho, à data dos factos, resultou de uma decisão da administração de encontrar um local mais próximo do aeroporto, em virtude das instalações aprovadas se encontrarem em Carnaxide, o que se traduzia num dispêndio de tempo considerável com as deslocações das provisões. EE. Assim, atentas as regras da experiência comum, não é razoável que um ou mais trabalhadores tenham decidido utilizar o armazém do Prior Velho sem conhecimento dos seus superiores hierárquicos e aí exercerem a atividade da Recorrente, sem cumprimento de quaisquer regras e sem vigilância de toda a cadeia hierárquica existente. FF. Pelo contrário, pois resultou cristalino que a atuação em causa nos presentes autos – utilização do armazém do Prior Velho – não foi uma decisão de um ou mais trabalhadores, mas sim da administração da empresa, que decidiu deslocar meios técnicos e humanos para esse local, com vista a utilizar o mesmo no transporte das provisões para as aeronaves. GG. A questão primordial é que por força do seu Estatuto de Fornecedor Reconhecido de Provisões de Bordo, só o poderia fazer a partir do armazém localizado na Rua … Carnaxide, com viaturas seladas que não eram sujeitas a rastreio prévio, porque esse era o local aprovado pela ANAC, esse era o local seguro. HH. Deste modo, não existem dúvidas de que a Recorrente é a responsável pela factualidade que consubstancia a infração nos presentes autos. II. Sendo que, muitas das justificações apresentadas para o comportamento em causa, não passaram de meras fabulações, tal como o facto de ter contratado um especialista que se arrogava Auditor Nacional de Segurança da Aviação Civil, quando essa função é exclusiva dos funcionários da Autoridade Nacional da Aviação Civil e apenas enquanto exercem as funções de auditoria/inspeção por conta da autoridade aeronáutica. JJ. Quanto à sanção aplicada e à possibilidade de ser aplicada uma admoestação, a jurisprudência é longa e assente de que em contraordenações que são classificadas de graves e muito graves não é possível aplicar esta figura. KK. Inconformada com a condenação, a Recorrente veio ainda, pela primeira vez, suscitar o incidente de inconstitucionalidade, relativa à norma do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 10/2004, de 9 de janeiro. LL. O artigo 70º n.º 1 – alínea b) da Lei do Tribunal Constitucional (Lei n.º 28/82, de 15 de novembro) determina que “Cabe recurso para o Tribunal Constitucional, em secção, das decisões dos tribunais: (…) b) Que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo”, oque in casu nunca sucedeu. MM. Nesta situação, o Tribunal a quo não teve oportunidade de se pronunciar sobre a questão da “suposta” inconstitucionalidade do artigo 9º do Decreto-Lei n.º 10/2004, de 9 de janeiro, porque a mesma nunca foi suscitada anteriormente e por essa razão deverá improceder a pretensão da Recorrente também nesta parte. Nestes termos, e no mais que V/ Exas mui doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado totalmente improcedente, confirmando a sentença recorrida. Assim se fazendo a Acostumada Justiça!”
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Admitido o recurso, respondeu o Ministério Público, a 14 de janeiro de 2025, apresentando as seguintes conclusões: “A - Em processo de contraordenação, qualquer que seja o setor, incluindo o RGCO, inexiste uma tabela legal de nulidades, tal como inexiste norma ou princípio que suporte que os vícios da notificação para defesa e da decisão final contaminam a sentença que conhecer desses vícios e os julgue procedentes ou improcedentes no recurso de impugnação judicial. B – As conclusões I a XXII, manifestamente ou contêm um erro de direito por pressuporem esse efeito de contaminação, ou, conformam um meio processual impróprio, pois em sede de recurso de sentença, o seu objeto legal é a sentença e não os atos processuais da fase anterior como decorre à saciedade do regime dos artigos 73.º e segs. do RGCO. C – Todas as questões mencionadas nestas conclusões foram conhecidas e decididas na douta sentença recorrida, no seu capítulo II referente às questões prévias onde o TCRS conhece e decide a questão II.1 da nulidade da notificação para defesa – pontos 4 a 82 -, a questão II.2 da violação de caso julgado / violação da primeira sentença, de reenvio, do TCRS – pontos 84 a 89 -, a questão II.3 da nulidade da decisão final por falta de indicação de elementos essenciais da contraordenação – pontos 90 a 103, e, a questão II.4 da nulidade da decisão final por desconsideração de prova – pontos 105 a 115., D - No essencial, o douto Tribunal partindo da tese do Ac. do STJ 1/2003, caracterizando os vícios alegados como sanáveis, e verificando quanto a determinados factos que a Recorrente veio a apresentar uma defesa de mérito, prevalecendo-se do direito que invocou como preterido, reconheceu parcialmente as nulidades invocadas pela Recorrente, reduzindo a imputação de facto, quer da notificação do artigo 50.º, quer da decisão final para os enunciados dos pontos 1 a 7, 17, 18, 19 e 69. E - Uma vez que a nulidade parcial com a consequente redução da base de facto não envolve nem alteração substancial de factos, nem modificação simples, sendo os factos em menor número, mas, os mesmos, em relação aos quais a Recorrente, ofereceu uma defesa de mérito, assim, demonstrando que os compreendeu e pode contrariá-los, em obediência aos princípios estruturantes da celeridade, simplificação, de forma a garantir o máximo aproveitamento dos atos, que está no âmago do princípio do direito à decisão em tempo útil, bem andou o Tribunal ao proceder à redução da base de facto para os limites daquilo que foi efetivamente compreendido e contrariado pela Recorrente – cfr. ponto 83 da sentença. F - O TCRS reconheceu que os atos processuais relevantes para aferição da violação do caso julgado são os mesmos que conduziram à nulidade parcial da notificação para defesa, mais reconhecendo que efetivamente a ANAC violou o efeito de caso julgado formal da sentença do TCRS de 2019 nos segmentos de facto que constam da segunda notificação e que são comuns à primeira, mas, já não quanto aos segmentos novos, julgou parcialmente procedente tal questão, reduzindo a base de facto aos segmentos de facto, novos, não atingidos pelo vício, relativamente aos quais a Recorrente apresentou defesa de mérito. G - A Recorrente nada aduz de concreto do ponto de vista jurídico contra a fundamentação da sentença nestes segmentos decisórios, repristinando, apenas, os argumentos do seu recurso de impugnação, no sentido de uma nulidade total e insanável, mas, o que já está respondido nos ditos pontos da douta sentença de forma ampla, racional, e conforme aos princípios, à Jurisprudência e à Doutrina. H - A matéria destas conclusões deve ser julgada improcedente: inexiste nulidade total da notificação para defesa, nulidade total da decisão final porque o direito de defesa quanto aos pontos 1 a 7, 17, 18, 19 e 69 não foi comprometido e tal factualidade só por si tem relevância contraordenacional, não tendo ocorrido quanto a estes pontos de facto preterição do efeito de caso julgado formal da sentença do TCRS de 2019, inexistindo na douta sentença recorrida nestes segmentos decisórios qualquer erro ou nulidade. I – As conclusões XXIII a XXVII sobre a decisão de facto da sentença, e, mais concretamente sobre as alíneas cc e r dos factos provados da sentença, com a proposta de que sejam eliminados factos provados da sentença constitui impugnação dos mesmos. J - No facto provado cc (página 55 da sentença) o TCRS deu por provado que a arguida não revela sentido crítico da sua conduta, tendo deturpado a verdade dos factos ao afirmar que os mesmos foram praticados pelos trabalhadores contra ordens e instruções expressas e ao tentar atribuir a responsabilidade exclusivamente ao seu gestor de segurança o que não é verdade. K - Este enunciado de facto encontra-se motivado no ponto 73 da página 88 da sentença onde o TCRS revela que o mesmo partilha a sua justificação com as asserções relativas ao tipo subjetivo e à culpa e resulta da defesa apresentada. L - No facto cc estão os enunciados de facto caraterizadores da conduta da Recorrente pós o facto, cuja convicção do julgador se encontra objetivada na motivação de facto da sentença de forma compreensível, racional e segundo a matriz comum. M - No que respeita ao facto provado r o douto Tribunal deu por provado o tipo subjetivo, o dolo do tipo infracional e a culpa, estabelecendo que a arguida representou e quis proceder nos termos referidos, sabendo que devia cumprir o Programa de Segurança por si submetido à ANAC e devidamente aprovado e que, consequentemente, não podia utilizar as instalações do Prior velho uma vez que as mesmas não se encontravam aprovadas pela ANAC, tendo agido de forma livre e consciente, com consciência da ilicitude da sua conduta tendo ainda assim utilizado as mesmas na sua atividade. N - De forma clara, estão narrados em termos comuns e compreensíveis o dolo do tipo e a culpa, que são factos subjetivos porque caraterizam a conduta interna do agente da infração, contemporâneos da conduta externa, objetiva, sustentando a imputação subjetiva da conduta ao agente, mas, são factos e não juízos de direito. O - Sendo factos subjetivos, hão-de ser demonstrados através de outros factos que os revelam no mundo exterior, sendo destes inferidos, mas, a sua prova não altera a sua natureza. P - É precisamente este exercício de objetivação e demonstração dos factos subjetivos enunciados em r que o Tribunal faz na respetiva motivação nos pontos 54 a 63 de páginas 82 a 85 da sentença, analisando outros factos, objetivos, provados para deles inferir aqueles outros. Q - Nos termos do disposto no artigo 75.º/1 do RGCO o recurso de sentença em processo de contraordenação/recurso de impugnação judicial é somente de direito, funcionando o Venerando Tribunal da Relação como tribunal de revista, ainda que podendo ver-se confrontado com questões de conhecimento oficioso, como é o caso dos vícios previstos no artigo 410.º do CPP, por via do previsto no n.º 2 do mesmo normativo. R - A matéria destas conclusões do recurso encerra manifesto erro de interpretação por parte da Recorrente, e traduzem impugnação de facto dos factos provados da sentença r e cc, pelo que terá de ser desconsiderada. S – Nas conclusões XXVIII a LI procura a Recorrente demonstrar que o tipo objetivo da infração não se preenche, mas, apenas impugna de facto os factos provados da douta sentença q, s a j, k a p, aa e bb, t a y, persistindo a Recorrente na mesma linha da impugnação, repristinando argumentos e sem que contrarie a fundamentação da douta sentença e negando o dolo do tipo e a culpa (conclusão LI). T – Tratando-se de impugnação de facto proibida, deverão ser desconsideradas. U – Quanto à sanção de admoestação, no capítulo V.1, pontos 77 a 97, o douto Tribunal apoiando-se no Ac. 6/2018 do STJ, logo a excluiu por estar em causa contraordenação classificada pela lei como grave. Por outro lado, o Tribunal enunciou nos pontos 83 e segs. as razões que fluindo dos factos provados indicam que nem a ilicitude nem a culpa concreta da Recorrente são reduzidas. V - No capítulo V.2.1 refere-se o Tribunal à moldura abstrata da coima, demonstrando a justeza da solução jurídica, e cujos argumentos afastam o alegado juízo de inconstitucionalidade. X - Quanto à suspensão na execução da coima aplicada, a opção pela coima efetiva encontra-se fundamentada no capítulo V.2.3 da douta sentença, havendo de destacar-se a total indiferença da Recorrente pelos bens jurídicos protegidos – pontos 121 e 123 – o que faz soçobrar qualquer juízo de prognose favorável à suspensão como fator de auto retorno à normatividade e de interiorização do dever legal. Y – Existe em concreto uma especial necessidade de reafirmação da validade da norma violada. Z - A douta sentença recorrida não enferma de qualquer nulidade ou vício, ou erro de direito ou de interpretação, encerrando uma solução jurídica consentânea com as normas e os princípios, e, a Jurisprudência, contendo uma sanção adequada e proporcional. Em conclusão, a douta sentença recorrida deve ser mantida na íntegra e julgar-se total e manifestamente improcedente o recurso de sentença de IBERLIM. VEXAS, farão, contudo, a costumada JUSTIÇA.”
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Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Senhor Procurador Geral Adjunto, apôs visto.
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Os autos foram à conferência.
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II - Questões a decidir
Considerando que o âmbito dos recursos é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (cf. os artigos 119º, n.º 1, 123º, n.º 2 e 410º, n.º 2, als. a), b) e c) do Código de Processo Penal) e considerando que nos termos do artigo 75.º, n.º 1, do RGCO, este Tribunal apenas conhece de matéria de direito, importa conhecer das seguintes questões:
- Nulidade da notificação para o exercício do direito de defesa efetuada em 2021 por não conter uma enunciação sequenciada e clara dos factos imputados nem os elementos relevantes para a decisão da causa (artigo 50.º do RGCO);
- Nulidade da notificação para o exercício do direito de defesa (artigo 50.º do RGCO) por violação do caso julgado (sentença proferida pelo TCRS de 15 de julho de 2019), do princípio do non bis in idem e do regime de nulidade dos actos processuais;
- Nulidade da decisão final (administrativa) por não conter uma enunciação dos factos imputados nem dos elementos essenciais da contraordenação (artigo 58.º do RGCO);
- Nulidade da sentença por existência de erro notório na apreciação da prova. Erro de direito.
- do tipo legal da infração (elemento objetivo e subjetivo);
- da sanção (admoestação; suspensão da coima; da inconstitucionalidade do artigo 9.º do DL 10/2004).
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III - Fundamentação
A - Factos provados
A decisão recorrida deu como provados os seguintes factos:
a) A Iberlim é uma entidade com o Estatuto de Fornecedor Reconhecido de Provisões de Bordo (FRPB), tendo sido notificada em 13.03.2013 sobre o despacho favorável da ANAC (datado de 03 de março de 2014) para a aprovação desse estatuto.
b) A Iberlim submeteu à ANAC o seu Programa de Segurança (PSFRPB), o qual foi aprovado, na sua 5.ª Revisão, em 2 de novembro de 2015, designadamente no que respeita aos métodos e procedimentos que aquela entidade deve aplicar para dar cumprimento tanto às disposições dos mencionados regulamentos como do Programa Nacional de Segurança da Aviação Civil (PNSAC).
c) A norma 2.1.1. do Programa de Segurança, em vigor à data dos factos, indica quais as instalações aprovadas, e que correspondiam à Rua … Carnaxide, e Aeroporto de Lisboa, Edifício …, Armazém … Lisboa.
d) Também a norma 6.2.4, do mesmo Programa descrevia todas as matérias relativas às áreas reservadas, em concreto, das instalações da sede, com plantas em anexo (norma 6.3 e seguintes), devidamente aprovadas pela ANAC.
e) Em início de 2017, a Arguida perdeu o Cliente TAP e deixou de fornecer provisões e quaisquer outros produtos para bordo.
f) Só em maio de 2017 a Arguida retomou o Cliente TAP, para início do serviço de fornecimentos para bordo.
g) Após a retoma das operações com o Cliente TAP, a Arguida decidiu investir na operação, arrendando um armazém próximo do aeroporto (Prior Velho) que lhe permitisse agilizar as operações.
h) Simultaneamente decidiu iniciar a revisão do seu programa de segurança, por forma a incluir esse novo armazém.
i) A Administração da Arguida chamou a si a revisão do programa de segurança e incluiu na revisão de tal programa o seu novo diretor operacional – DD…
j) Tal revisão do programa de segurança culminou em maio de 2018 quando foi aprovado um novo Estatuto de FRPB para o armazém do Prior Velho.
k) Antes do início do serviço com a TAP, porque o seu gestor de segurança, AA…, tinha deixado caducar a sua certificação, a Arguida, em maio de 2017, solicitou a aprovação para que as funções de gestor de segurança passassem a ser exercidas pelo seu funcionário BB…..
l) O gestor de segurança da Arguida, BB…, previamente à sua nomeação (concretamente, em 3 de março de 2017), foi reconhecido pela ANAC como habilitado para exercer funções de gestor de segurança de fornecedor reconhecido de provisões de bordo, tendo concluído com aproveitamento o II Curso de Gestor de Segurança de Fornecedor (Re) Conhecido de Provisões de Bordo e Fornecedor Conhecido de Provisões de Aeroporto (PSFRPB), ministrado pela ANAC nos termos das normas 11.2.2. e 11.2.5 do anexo do Regulamento de Execução 2015/1998.
m) Nos termos do PSFRPB da IBERLIM, o gestor de segurança é responsável por garantir o cumprimento das normas emanadas pelo PNSAC e pelo cumprimento do PSFRPB (pontos 2.1.3. e 2.1.5. do PSFRPB).
n) Competindo-lhe, concretamente:
§ emanar para os responsáveis de segurança da sede e delegações as normas a serem cumpridas no âmbito do PNSAC e do PSFRPB;
§ garantir que todos os elementos de segurança que irão manusear ou receber as provisões de bordo cumprem com as normas decorrentes do PSFRPB;
§ elaborar os programas e planos de formação a ministrar aos colaboradores;
§ garantir as auditorias à sede e delegações de modo a garantir o cumprimento com as normas de segurança da aviação civil;
§ avaliar, nomear dos FCPB e acompanhar o cumprimento por parte destes das normas decorrentes do PNSAC;
§ garantir que os FCPB são auditados periodicamente por auditores de segurança internos;
§ proceder a alteração/revisão do PSFRPB sempre que tal for determinado pela ANSAC, haja uma mudança de legislação pertinente, haja alteração dos procedimentos implementados pelo FRPB ou haja necessidade de incorporar alterações decorrentes das ações corretivas identificadas pela ANSAC (pontos 2.1.3. e 2.1.5. do PSFRPB).
o) A execução prática do PSFRCB, a designação de FCPB, a seleção e formação do pessoal de segurança, a implementação dos procedimentos de aceitação de provisões, os procedimentos de rastreio de provisões de bordo e métodos de rastreio e os procedimentos para o transporte e entrega de provisões de bordo, etc, estava atribuída no PSFRPB da Arguida ao gestor de segurança.
p) BB… tinha conhecimento, pelo menos, de que as instalações da Arguida aprovadas para o exercício da atividade de FRPB se situavam na Rua … Carnaxide, e Aeroporto de Lisboa, Edifício …, Armazém … Lisboa e que, por isso, enquanto o armazém do Prior Velho não fosse autorizado as provisões daí provenientes para o Aeroporto Humberto Delgado não podiam ser seladas, tendo de ser sujeitas a rastreio.
q) No dia 16 de janeiro de 2018, uma viatura da Iberlim, durante a noite, tentou aceder à Área Crítica da Zona Restrita de Segurança (AC/ZRS) do Aeroporto Humberto Delgado, ao abrigo do estatuto de FRPB, com uma viatura selada, com provisões de bordo provenientes das instalações do Prior Velho, fazendo-se o motorista acompanhar de documentação com referência a estas instalações, as quais não estavam aprovadas pela ANAC. r) A Arguida representou e quis proceder nos termos referidos, sabendo que devia cumprir o Programa de Segurança por si submetido à ANAC e devidamente aprovado e que, consequentemente, não podia utilizar as instalações do Prior Velho uma vez que as mesmas não se encontravam aprovadas pela ANAC, tendo agido de forma livre e consciente, com consciência da ilicitude da sua conduta tendo ainda assim utilizado as mesmas na sua atividade.
s) No dia 18 de janeiro de 2018, a viatura da Iberlim FALSEC (55-011) tentou aceder à AC/ZRS, do Aeroporto Humberto Delgado, através do posto P.6, pelas 17:14 horas, ocultando 3 volumes de revistas debaixo do banco de trás da viatura.
t) O contrato de trabalho com BB… cessou por acordo de revogação.
u) Na sequência da receção da primeira notificação no âmbito deste processo em fevereiro de 2018 a Arguida contratou CC…, Oficial da Força Aérea Portuguesa e Auditor Nacional de Segurança da Aviação Civil a quem pediu que acompanhasse e assessorasse a Administração da Arguida em matérias de Segurança, designadamente acompanhando de perto toda a operação no Armazém do Prior Velho e, bem assim, a revisão de todo o Programa de Segurança da Arguida.
v) As funções atribuídas a CC… eram avaliar todo o processo adotado pela Iberlim, determinar quais as medidas que deviam ser desenvolvidas e acompanhar o processo de implementação das mesma, não só auxiliar no processo de inclusão do armazém do Prior Velho no estatuto de Fornecedor Reconhecido mas também, avaliar todo o restante processo, propor medidas para corrigir as falhas que detetasse e melhorar os procedimentos que já estavam implementados e depois, numa lógica de continuidade, acompanhar o processo de implementação das mesmas.
w) Depois da certificação do armazém do Prior Velho, em maio de 2018, a Administração da Iberlim dirigiu instruções escritas no sentido de que as provisões de bordo podiam ser processadas ao abrigo do Estatuto de FRPB e, consequentemente, carregadas em viaturas às quais era aposto selo inviolável.
x) Após a cerificação do armazém sito no Prior Velho, a Arguida adquiriu um aparelho de raio-x para obter uma maior celeridade no processo de rastreio das provisões e uma maior segurança e a contratação de uma empresa de segurança privada devidamente habilitada (a Securitas) para o efeito para proceder a esta operação de rastreio.
y) Após a notificação efetuada nos presentes autos nos termos e para os efeitos do artigo 50.º do Regime Geral das Contraordenações, a Administração da Arguida ordenou a abertura de um inquérito.
z) A Arguida já não detém o estatuto de FRPB desde 2019.
aa) A Arguida declarou no ponto 2.1.1 do seu Programa de Segurança ter ao seu serviço, só no Aeroporto Humberto Delgado aproximadamente 240 trabalhadores, mais 40 trabalhadores na sede.
bb) No ano de 2023, a Arguida teve um volume de negócios no montante de € 76.820.212,87, um resultado líquido do período no montante de € 867.707,56, um balanço total no montante de € 20.141.832,18, dos quais € 5.690.292,04 correspondem a capital próprio e 6855 trabalhadores. cc) A Arguida não revela sentido crítico da sua conduta, tendo deturpado a verdade dos factos, ao afirmar que os mesmos foram praticados pelos trabalhadores contra ordens e instruções expressas e ao tentar atribuir responsabilidade exclusivamente ao seu gestor de segurança, o que não corresponde à verdade.
B - Factos não provados
A decisão recorrida não deu como provados os seguintes factos:
a) A Arguida confiava que ao ter contratado para o exercício das funções de Gestor de Segurança BB…, devidamente certificado pela ANAC, que as passou a exercer efetivamente, todas as normas e procedimentos legais de segurança estavam a ser cumpridos.
b) Em novembro de 2017, porque as instalações do Prior Velho ainda não se encontravam aprovadas pela ANAC, encontrando-se em curso os procedimentos necessários a tal certificação, a Administração da Arguida deu ordens expressas, claras e diretas para que, naquele local, o processamento e transporte de provisões de bordo não fosse efetuado ao abrigo do estatuto FRPB, proibindo a adoção de controlos de segurança e a selagem das viaturas, e obrigando o acesso das mesmas ao AHD desseladas, submetendo-se toda a mercadoria a rastreio.
c) E mais determinou a retirada de quaisquer selos daquelas instalações.
d) Tais ordens foram transmitidas, ao Gestor de Segurança BB… e desde novembro de 2017 (data de início das suas funções) também ao Diretor de Operações CC….
e) Pelo menos o Diretor DD… transmitiu a ordem da Administração de proibição de selagem das viaturas no armazém do Prior Velho.
f) Tendo transmitido tal ordem a todos os supervisores e coordenadores que exerciam funções nas instalações do Prior Velho.
g) E, confiava a Administração da Iberlim, que tais ordens também tinham sido transmitidas pelo Gestor de Segurança BB… aos funcionários que operavam.
h) Todos os funcionários da IBERLIM que exercem funções nas instalações sitas no Prior Velho receberam estas ordens.
i) Quando a Administração da Iberlim nomeou BB… como Gestor de Segurança e o instruiu para assegurar que nas instalações do Prior Velho as provisões de bordo não eram processadas ao abrigo do Estatuto de FRPB (e, como tal, não eram são colocados em veículos e/ou contentores aos quais fossem aplicados selos invioláveis devendo, ao invés, tais viaturas efetuar o acesso ao AHD desseladas, sendo toda a mercadoria sujeita a rastreio), confiava que, face à experiência e conhecimentos que tal funcionário era titular, tal mandato, ordens e instruções seriam pontualmente cumpridos.
j) A Administração apenas tomou conhecimento dos factos praticados e descritos na notificação efetuada pela ANAC nos termos e para os efeitos do artigo 23.º do Decreto-Lei 10/2004 aquando da receção dessa notificação em fevereiro de 2018.
k) Descrição e imputação essa que surpreendeu a Iberlim.
l) No ano de 2016, o volume de negócios da Recorrente foi superior a 64 milhões.
m) Ao ordenar a instauração do inquérito referido nos factos provados, a Arguida visou efetivamente e na verdade averiguar os procedimentos levados a cabo e eventuais violações de normas, regulamentos, instruções e procedimentos de segurança.
n) A razão pela qual não foram instaurados processos disciplinares foi por terem cessado (quer por acordos de revogação de contratos de trabalho quer por transmissão da posição contratual de empregador na sequência de transmissão de estabelecimento) os contratos de trabalho da Arguida com os trabalhadores responsáveis pelos factos descritos nos factos provados, ocorridos em 16.01.2018.
o) Por Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, proferido no Proc. 275/20.9YUSTR-L1, transitado em julgado em 21 de dezembro de 2021, a Iberlim foi condenada, a título de dolo, na coima de €100.000,00, suspensa na sua execução, por 2 anos, em metade, por violação do regime jurídico aplicável à assistência em escala, neste caso por ter explorado tal atividade sem licença, em violação da alínea a) do n.º 1 do artigo 33.º do Decreto-Lei n.º 275/99, de 23 de julho, na redação dada pelo Decreto-Lei n.º 208/2004, de 19 de agosto.
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Tudo o mais que tenha sido alegado e/ou conste na decisão impugnada sem reflexo nos factos provados e não provados é matéria de direito, de natureza conclusiva ou irrelevante.”
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IV - O Direito A Recorrente pugna pela nulidade da notificação para o exercício do direito de defesa e da decisão da ANAC.
Alega, para o efeito e em síntese, que: - “impunha-se que do auto de notícia constassem as referências precisas e circunstanciadas quantos aos factos cuja prática é atribuída à Arguida; - o que não se verificou; - conforme reconhecido pela sentença sob impugnação; - o tribunal recorrido deveria ter extraído as inerentes consequências jurídicas; - a opção do tribunal recorrido foi tentar salvar a notificação efetuada pela ANAC com base nas parcas alíneas da matéria de facto que considerou não inquinadas pelos vícios declarados; - não sendo minimamente exigível à Recorrente que analisasse o elenco dos 76 “factos” que lhe eram imputados e que, no meio destes, lograsse distinguir ou descobrir os 11 factos que (no entendimento do Tribunal recorrido) não estavam inquinados por vícios, e que, com base nesses, determinasse o comportamento pelo qual poderia vir a ser condenado neste processo de contra-ordenação e exercesse de forma cabal o seu direito de defesa quanto a tais factos; - não estamos perante uma situação em que a nulidade de uma parte do ato não prejudique as outras partes que dela sejam independentes; - o que seria bastante para concluir pela nulidade (total) da notificação efetuada através do Of. 102/GabJur/PCA/2021; - os 11 factos espalhados ao longo do elenco de 76 factos não incorporam elementos que preencham o tipo contra-ordenacional pelo qual a Recorrente foi condenada; - mais se diga que de tais 11 factos considerados não viciados pelo Tribunal recorrido também não se extraem elementos para que o Arguido se possa pronunciar sobre todos os elementos relevantes para a decisão da causa; - aatribuiçãoàImpugnante do ónus de aferir naglobalidade do elenco de “factos” que lhe foram comunicados quais é que não estavam inquinados por vícios e de pronunciar sobre os mesmos, não é minimamente compatível com o seu direito de defesa que estabelece que é a autoridade administrativa que deve colocar o arguido na posição de se pronunciar sobre todos os elementos relevantes para a decisão o que passa, desde logo, pela indicação de uma descrição ordenada, sequenciada e clara dos factos que lhe são imputados; - não é o direito de defesa da Arguida que deve ser comprimido por a ANAC não conseguir perceber em que termos deve emitir a notificação a que se reporta o artigo 50.º do RGCO; - tal levaria a uma total deturpação do disposto no artigo 32.º da CRP, artigo 50.º do RGCO e do Assento 1/2003; - a notificação não permitia que a Recorrente conhecesse os elementos relevantes para a decisão não estando em condições de exercer plenamente o seu direito de defesa constitucionalmente previsto; - a decisão condenatória sob impugnação foi proferida sem que, previamente, tivesse sido conferida à Arguida a possibilidade de se pronunciar sobre a contra-ordenação que lhe é imputada e sobre a sanção em que incorre; - assim, a decisão condenatória é nula, por violação do artigo 50º do Decreto-Lei n.º 433/82; - foi proferida sentença em 15 de julho de 2019 a declarar a nulidade da notificação para exercício do direito de audiência prévia de fevereiro de 2018 por esta não conter uma enunciação sequenciada e clara dos factos imputados, mas uma descrição de constatações retiradas dos meios de prova produzidos; - Tendo a sentença transitado em julgado tem força obrigatória dentro do processo e fora dele e, concretamente é oponível à ANAC, autoridade administrativa competente para emitir a notificação a que alude o artigo 50.º do RGCO (artigo 41.º n.º1 do RGCO, artigo 4.º do CPP e artigos 628.º e 629.º do CPC); - Tendo nessa sentença sido conhecida a questão de saber se a notificação para o exercício do direito de defesa ser proferida neste processo de contra-ordenação deveria incluir factos objetivos e concretos e não reproduções de meios de prova e se podia incluir “factos” contraditórios entre si que não permitissem permitir o balizamento temporal e a concreta conduta imputada e tendo concluído em sentido negativo, tais questões não podem voltar a ser apreciadas nestes autos, sob pena de violação do principio “non bis in idem (artigo 29.º n.º5 da CRP). - os vícios declarados na sentença não foram sanados na notificação para o exercício do direito de defesa efetuada em 2021. - Pelo que se conclui que a notificação de fevereiro de 2021 (Of. 102/GabJur/PCA/2021) é nula, por violação da autoridade do caso julgado, do principio non bis in idem e do regime de nulidade dos actos processuais. - a decisão condenatória emitida pela ANAC padece exatamente dos mesmos vícios constantes da notificação para exercício do direito de defesa efetuada em fevereiro de 2021 (Of. 102/GabJur/PCA/2021) a que aludimos no ponto II deste recurso. - Atenta a identidade do teor da matéria de facto na decisão condenatória e na notificação para exercício do direito de defesa os vícios são também idênticos.”
Por sua vez, o Ministério Público respondeu, em síntese que: “B - As conclusões I a XXII, manifestamente ou contêm um erro de direito por pressuporem esse efeito de contaminação, ou, conformam um meio processual impróprio, pois em sede de recurso de sentença, o seu objeto legal é a sentença e não os atos processuais da fase anterior como decorre à saciedade do regime dos artigos 73.º e segs. do RGCO. C – Todas as questões mencionadas nestas conclusões foram conhecidas e decididas na douta sentença recorrida, no seu capítulo II referente às questões prévias onde o TCRS conhece e decide a questão II.1 da nulidade da notificação para defesa – pontos 4 a 82 -, a questão II.2 da violação de caso julgado / violação da primeira sentença, de reenvio, do TCRS – pontos 84 a 89 -, a questão II.3 da nulidade da decisão final por falta de indicação de elementos essenciais da contraordenação – pontos 90 a 103, e, a questão II.4 da nulidade da decisão final por desconsideração de prova – pontos 105 a 115., D - No essencial, o douto Tribunal partindo da tese do Ac. do STJ 1/2003, caracterizando os vícios alegados como sanáveis, e verificando quanto a determinados factos que a Recorrente veio a apresentar uma defesa de mérito, prevalecendo-se do direito que invocou como preterido, reconheceu parcialmente as nulidades invocadas pela Recorrente, reduzindo a imputação de facto, quer da notificação do artigo 50.º, quer da decisão final para os enunciados dos pontos 1 a 7, 17, 18, 19 e 69. E - Uma vez que a nulidade parcial com a consequente redução da base de facto não envolve nem alteração substancial de factos, nem modificação simples, sendo os factos em menor número, mas, os mesmos, em relação aos quais a Recorrente, ofereceu uma defesa de mérito, assim, demonstrando que os compreendeu e pode contrariá-los, em obediência aos princípios estruturantes da celeridade, simplificação, de forma a garantir o máximo aproveitamento dos atos, que está no âmago do princípio do direito à decisão em tempo útil, bem andou o Tribunal ao proceder à redução da base de facto para os limites daquilo que foi efetivamente compreendido e contrariado pela Recorrente – cfr. ponto 83 da sentença. F - O TCRS reconheceu que os atos processuais relevantes para aferição da violação do caso julgado são os mesmos que conduziram à nulidade parcial da notificação para defesa, mais reconhecendo que efetivamente a ANAC violou o efeito de caso julgado formal da sentença do TCRS de 2019 nos segmentos de facto que constam da segunda notificação e que são comuns à primeira, mas, já não quanto aos segmentos novos, julgou parcialmente procedente tal questão, reduzindo a base de facto aos segmentos de facto, novos, não atingidos pelo vício, relativamente aos quais a Recorrente apresentou defesa de mérito. G - A Recorrente nada aduz de concreto do ponto de vista jurídico contra a fundamentação da sentença nestes segmentos decisórios, repristinando, apenas, os argumentos do seu recurso de impugnação, no sentido de uma nulidade total e insanável, mas, o que já está respondido nos ditos pontos da douta sentença de forma ampla, racional, e conforme aos princípios, à Jurisprudência e à Doutrina. H - A matéria destas conclusões deve ser julgada improcedente: inexiste nulidade total da notificação para defesa, nulidade total da decisão final porque o direito de defesa quanto aos pontos 1 a 7, 17, 18, 19 e 69 não foi comprometido e tal factualidade só por si tem relevância contraordenacional, não tendo ocorrido quanto a estes pontos de facto preterição do efeito de caso julgado formal da sentença do TCRS de 2019, inexistindo na douta sentença recorrida nestes segmentos decisórios qualquer erro ou nulidade.
Por sua vez, a recorrida ANAC, respondeu, em síntese que: “C. Em primeiro lugar, importa salientar que o presente recurso não cumpre as regras do artigo 75º n.º 1 do RGCO, porquanto a Recorrente pretende, de forma encapotada, que o Tribunal ad quem aprecie o julgamento da matéria de facto. D. Depois, também não cumpre as regras relativas ao recurso estatuídas no artigo 410º n.º 2 do CPP, uma vez que vem colocar em crise não a decisão da 1ª instância, mas sim a decisão da autoridade administrativa. E. A Recorrente invoca ainda a existência de “nulidades” constantes da decisão administrativa, cujo recurso de impugnação judicial apresentou junto do Tribunal a quo e que foram por este apreciadas. F. O Tribunal a quo realizou uma análise criteriosa dos factos em causa, atenta a prova produzida em audiência de discussão e julgamento, não existindo o efeito de contaminação invocado pela Recorrente, por alegadamente existirem nulidades na decisão administrativa. G. Tanto mais que, nesta fase jurisdicional, a decisão proferida pela autoridade administrativa vale como acusação, nos termos do artigo 62º n.º 1 do RGCO. H. Acresce que, a prova testemunhal produzida foi vasta, tendo o Douto Tribunal determinado a inquirição de outras testemunhas que não estavam inicialmente indicadas, com vista a obter o pleno esclarecimento da factualidade em causa, o que aconteceu. I. Com base nessa mesma prova, resultou provado em audiência de discussão e julgamento e que a Recorrente não conseguiu contrariar, a prática da infração em causa por parte da Recorrente, J. Pelo que a sentença sub judicie não padece de quaisquer das nulidades apontadas pela Recorrente.
Vejamos.
Assinale-se que não compete a este Tribunal tomar conhecimento de putativas nulidades da decisão administrativa, desde logo, porque, como é bom de ver, o que está agora em crise é a decisão proferida pelo Tribunal a quo.
Aliás, a este respeito, o artigo 73.º do RGCO é bastante claro quando refere que “recorre-se para a relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64.º”.
Finalmente, acresce referir que existe jurisprudência abundante sobre a temática, destacamos o acórdão de 20 de janeiro de 2024, proferido no âmbito do processo n.º 150/23.5YUSTR.L1, nesta Secção do TRL, que, pela semelhança com o caso em análise, se julga oportuno transcrever: “Como resulta evidente da alegação da recorrente, os vícios são apontados à decisão a autoridade administrativa e não à sentença em recurso. Embora se afirme que a sentença em recurso não retirou as consequências devidas, nada é pedido a esse respeito. Isto é, não é apontada qualquer nulidade ou irregularidade da sentença, mas unicamente da decisão administrativa. A eventual existência de vícios da decisão da autoridade administrativa – não sendo de conhecimento oficioso e que se mantenham – mostra-se decidida pela sentença em recurso. Ora, como acertadamente a recorrida ANACOM alega, o presente recurso tem como objeto a decisão judicial e não a da autoridade administrativa. Como exemplarmente se afirma no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, uniformizador de jurisprudência, n. 3/2019, de 23 maio de 2019: “Em sede de 1.ª instância, o Tribunal conhece de toda questão em discussão - "o objecto da sua apreciação não é a decisão administrativa, mas a questão sobre a qual incidiu a decisão administrativa". O âmbito de cognição deste tribunal é bastante amplo: não se limita a um controlo da legalidade do ato, mas procede a uma apreciação de todo o ato administrativo, uma "apreciação da veracidade e exactidão dos factos (e da sua qualificação)", e também uma apreciação da medida da coima aplicada, considerando-se que o Tribunal tem "poderes de jurisdição plena". Isto é, "são admissíveis, na fase judicial do processo contraordenacional, todos os tipos de pronúncia que incidem sobre o mérito da causa, designadamente a manutenção da decisão administrativa, a sua revogação in totum, por via da absolvição, e a sua modificação, quer da qualificação jurídica quer da sanção". Não se trata, pois, de um mero controlo da legalidade, mas de um pleno poder de conhecimento do mérito da questão, de uma plena jurisdição à semelhança do que ocorre atualmente nos tribunais administrativos. Daqui decorre que a impugnação da decisão da autoridade administrativa não é um verdadeiro recurso. A causa é retirada do âmbito administrativo e entregue a um órgão independente e imparcial, o tribunal. E o tribunal irá decidir do mérito da causa como se fosse a primeira vez - o julgador não estará vinculado, nem limitado pelas questões abordadas na decisão impugnada, nem estará limitado pelas questões que tenham sido suscitadas aquando da impugnação, estando apenas limitado pelo objeto do processo definido pela decisão administrativa. Esta sofre uma transformação - o Ministério Público recebe da autoridade administrativa os autos, e remete-os ao juiz "valendo este ato como acusação" (art. 62.º, n.º 1, do RGCO). Aquela decisão administrativa passa a constituir uma "decisão-acusação", e aquela fase administrativa "transforma-se" em fase instrutória. (…) De tudo podemos concluir que a fase judicial não constitui uma reapreciação da questão, mas uma primeira apreciação judicial da questão contraordenacional sem limite dos poderes de cognição do juiz, que abarcam todo o objeto do processo. A impugnação judicial não constitui "um recurso em sentido próprio, mas de uma fase judicial do processo de contra-ordenação em que o tribunal julga do objecto de uma acusação consistente na decisão administrativa de aplicação da sanção na fase administrativa, com ampla discussão e julgamento da matéria de facto e de direito e de decisão final". No caso, como vimos e resulta das conclusões – e das alegações – da recorrente, esses vícios já não são imputados à decisão em recurso. A recorrente mantém que “incorreu a entidade administrativa em nulidade – que então se arguiu, e aqui se argui de novo” (expressamente na conclusão “E”, e igualmente resultante das conclusões “C” e “F”). Pelo exposto, não sendo matéria imputada à decisão judicial, não se conhece da arguição dos alegados vícios.”(destaques nossos)
Nessa medida, fazendo nossos os argumentos explanados, não se conhece das putativas nulidades da decisão administrativa.
Ainda assim, não podemos deixar de consignar umas breves notas.
Resulta, pois, da exposição da Recorrente, como aliás dá conta a Recorrida, a pretensão de expurgar matéria de facto, ou seja, obter indiretamente a impugnação da matéria de facto que, como é sabido, o artigo 75.º do RGCO não permite.
A circunstância de a sentença de 2019 ter determinado a correção da notificação a que alude o artigo 50.º do RGCO e de a sentença agora em análise ter confirmado o incumprimento parcial daquela, não obsta a que se “aproveitem os factos” que, assinale-se, não haviam sido julgados.
Esta constatação afasta, desde logo, a pretensa violação do princípio do non bis in idem.
Aliás, a não ser assim, quando um Tribunal determinasse a repetição da notificação do artigo 50.º do RGCO, estaria a praticar um ato inútil, pois que este também obstava ao “julgamento” dos mesmos.
Por outro lado, a constatação efetuada pelo Tribunal a quo que a Autoridade Administrativa não cumpriu integralmente a decisão anterior, não obsta ao aproveitamento daquilo que o mesmo Tribunal acaba por reconhece ser suscetível de, estando na notificação, na decisão administrativa e tendo sido “apreendido” pelo Impugnante, integrar a “acusação.”
Nessa medida, também não se vê de que forma aquele incumprimento da decisão importe a afetação daquilo que se reputou de aproveitável, não havendo, por isso, nesta parte violação do caso julgado.
Aliás, o que o Tribunal a quo acabou por decidir, além do já referido aproveitamento, foi declarar a nulidade parcial da notificação e da decisão impugnada, reputar inútil voltar a determinar o cumprimento do referido artigo 50.º e, naturalmente, aproveitar o que considerou ser relevante e que mais não é que o designo da primeira decisão.
Acresce dar conta que o referido aproveitamento, conforme Acórdão do STJ 1/2003, citado pelo Tribunal a quo, se impõe quando o impugnante se prevalecer na impugnação judicial do direito preterido.
Finalmente, a abrangência do objeto do processo reportada à fase judicial, como dá conta o citado Acórdão do STJ, afasta também os vícios invocados, pois que o Tribunal tem abrangência de conhecimento.
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- Nulidade da sentença.
A Recorrente pugna que a sentença em crise padece de erro notório na apreciação da prova.
Estando em causa o recurso de despacho judicial que conheceu da impugnação judicial de uma decisão administrativa proferida em processo de contraordenação, o disposto no artigo 75º, n.º 1, do DL n.º 433/82, de 27/10 (RGCO) estabelece que “se o contrário não resultar deste diploma, a 2.ª instância apenas conhecerá da matéria de direito, não cabendo recurso das suas decisões”.
Não obstante, o artigo 410.º, n.º 2, do Código Processo Penal, aplicável por força do artigo 41.º do RGCO, determina que “mesmo nos casos em que a lei restrinja a cognição do tribunal de recuso a matéria de direito, o recurso pode ter como fundamentos, desde que o vício resulte do texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum: a) a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; b) a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão; c) erro notório na apreciação da prova.”
Vejamos se lhe assiste razão.
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O erro notório na apreciação da prova “consiste num vício de apuramento da matéria de facto, que prescinde da análise da prova produzida para se ater, somente, ao texto da decisão recorrida, por si ou conjugado com as regras da experiência comum. Na lição do Prof. Germano Marques da Silva, regras da experiência comum, “são generalizações empíricas fundadas sobre aquilo que geralmente ocorre. Tem origem na observação de factos, que rotineiramente se repetem e que permite a formulação de uma outra máxima (regra) que se pretende aplicável nas situações em que as circunstâncias fáticas sejam idênticas. Esta máxima faz parte do conhecimento do homem comum, relacionado com a vida em sociedade.”. In " Curso de Processo Penal", Verbo, 2011, Vol. II, pág. 188. Verifica-se o erro notório na apreciação da prova quando no texto da decisão recorrida se dá por provado, ou não provado, um facto que contraria com toda a evidência, segundo o ponto de vista de um homem de formação média, a lógica mais elementar e as regras da experiência comum. Existe, designadamente, “... quando se dá como provado algo que notoriamente está errado, que não podia ter acontecido, ou quando, usando um processo racional e lógico, se retira de um facto dado como provado uma conclusão ilógica, arbitrária e contraditória, ou notoriamente violadora das regras da experiência comum, ou ainda quando determinado facto provado é incompatível ou irremediavelmente contraditório com outro dado facto (positivo ou negativo) contido no texto da decisão recorrida”. - Cf. Conselheiros Leal-Henriques e Simas Santos, obra citada, 2.º Vol., pág. 740 e, no mesmo sentido, entre outros, os acórdãos do STJ de 4-10-2001 (CJ, ASTJ, ano IX, 3º, pág.182 ) e acórdão da Rel. Porto de 27-9-95 ( C.J. , ano XX , 4º, pág. 231). Por esta razão, na fundamentação da sentença, para além da enumeração dos factos provados e não provados, deve constar uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal (art.374.º, n.º 2 do Código de Processo Penal). Este erro na apreciação da prova tem de ser ostensivo, que não escapa ao homem com uma cultura média. Dito de outro modo, o requisito da notoriedade do erro afere-se pela circunstância de não passar despercebido ao juiz “normal”, ao juiz dotado da cultura e experiência que deve existir em quem exerce a função de julgar, devido à sua forma grosseira, ostensiva ou evidente Cf. Prof. Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª Ed., 341) (cfr. Ac. TRC de 10 de julho de 2018, proferido no âmbito do processo n.º 26/16.2GESRT.C1, in www.dgsi.pt).
Tais vícios têm, como se assinalou, que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, tratando-se, assim, de vícios intrínsecos da decisão que, por isso, quanto a eles, terá que ser autosuficiente.
Mas não pode incluir-se na insuficiência da matéria de facto, no erro notório na apreciação da prova, ou na contradição insanável da fundamentação, a sindicância que os recorrentes possam pretender fazer/efectuar à forma como os factos dados como provados foram julgados ou enquadrados juridicamente ou sequer àquela como o Tribunal Recorrido valorou a prova produzida perante si, valoração que aquele tribunal é livre de fazer, de harmonia com o preceituado no artigo 127.º, do Código Processo Penal.
Dito de outra forma, aqueles vícios têm de resultar do texto da decisão recorrida e não de elementos processuais a ela estranhos, ainda que produzidos no âmbito da discussão judicial do caso, designadamente depoimentos testemunhais, pelo que, a insuficiência da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação, ou contradição entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação da prova devem resultar de per si do texto da decisão recorrida e ser analisados em função do aí consignado, conjugado com as regras de experiência. “Por isso, fica excluída da previsão do preceito toda a tarefa de apreciação e ou valoração da prova produzida, em audiência ou fora dela, nomeadamente a valoração de depoimentos, mesmo que objecto de gravação, documentos ou outro tipo de provas, tarefa reservada para o conhecimento do recurso em matéria de facto” (CCP Comentado, 3.ª Ed revista, António Henriques Gaspar e outros, p. 1291), objecto de recurso que em matéria contraordenacional está excluído do Tribunal de 2ª instância, conforme decorre do referido art. 75º, n.º 1, do RGCO.
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A Recorrente entende que a “decisão quanto à matéria de facto - Introdução de “facto” que reflete uma questão de direito ou um juízo de feição conclusiva ou valorativa Alíneas r) e cc) dos Factos Provados” pelo que devem considerar-se não escritas.
Alega que as afirmações efetuadas na alínea cc) não correspondem a factos que pudessem ter sido verificadas pelo Tribunal recorrido através dos meios de prova produzidos, mas sim a conclusões ou juízos valorativos.
Mais alega que a alínea r) não comporta factos objetivos, mas sim conclusões jurídicas, sendo que no seu entender dos factos objetivos considerados como provados não se extrai que a Arguida agiu de forma livre e consciente e com consciência da ilicitude da sua conduta.
O Digno MP entende que “de alguma forma, a proposta de que sejam eliminados factos provados da sentença constitui impugnação dos mesmos”, sendo que a matéria em causa se mostra motivada.
Mais entende que a alínea cc) decorre da defesa apresentada pela Recorrente, pois que atribui toda a responsabilidade aos seus trabalhadores e persiste na ideia de que houve ordens concretas quando ficou claramente provada a sua inexistência.
Entende ainda que a alínea r) narra em termos comuns e compreensíveis factos subjetivos “porque caraterizam a conduta interna do agente da infração, contemporâneos da conduta externa, objetiva, sustentando a imputação subjetiva da conduta do agente, mas são factos e não juízos de direito.”
Por sua vez, a ANAC alega que a Recorrente mais não faz que impugnar a matéria de facto, o que lhe está legalmente vedado.
Mais alega que nas duas alíneas se descrevem acontecimentos concretos da vida, externos e internos, que se apreendem diretamente pelos sentidos e/ ou através das regras da experiência, sendo, por isso, matéria de facto.
Vejamos.
Importa desde já dar conta o que verdadeiramente está em causa é saber se as referidas alíneas comportam matéria de direito e/ ou conclusiva, sendo que em caso afirmativo se devem considerar não escritas (cfr. artigo 607.º, n.º 4, do CPC a contrario sensu).
Pois, como demos conta supra, está arredado a este Tribunal sindicar a matéria de facto, pelo menos nos termos em que os demais sujeitos processuias referem ser a pretensão da Recorrente.
A apreciação teórica efetuada pelos sujeitos e as respetivas citações não nos merece qualquer discordância.
Aliás, julgamos ser inquestionável que a aplicação do direito pelos Tribunais pressupõe necessariamente o apuramento de ocorrências da vida real.
A respeito da linha divisória entre a matéria de facto e da matéria de direito e/ ou da matéria conclusiva, julgamos, ainda assim, oportuno chamar à colação a jurisprudência emanada do STJ, nomedamente o Acórdão de 12 de abril de 2024, proferido no âmbito do proc. 823/20.4T8PRT.P1.S1, quando dá conta que: “A matéria de facto “não pode conter qualquer apreciação de direito, isto é, qualquer valoração segundo a interpretação ou a aplicação da lei ou qualquer juízo, indução ou conclusão jurídica”, pelo que as questões de direito que constarem da seleção da matéria de facto devem considerar-se não escritas (embora o NCPC não contenha norma correspondente à ínsita no art. 646º, n.º 4, 1ª parte, do anterior CPC, chega-se à mesma conclusão interpretando a contrario sensu o atual art. 607.º, n.º 4, segundo o qual na fundamentação da sentença o juiz declara os “factos” que julga provados). Embora só acontecimentos ou factos concretos possam integrar a seleção da matéria de facto relevante para a decisão (“o que importa não poderem aí figurar nos termos gerais e abstratos com que os descreve a norma legal, por que tanto envolveria já conterem a valoração jurídica própria do juízo de direito ou da aplicação deste”), são ainda de equiparar aos factos os conceitos jurídicos geralmente conhecidos e utilizados na linguagem comum, verificado que esteja um requisito: não integrar o conceito o próprio objeto do processo ou, mais rigorosa e latamente, não constituir a sua verificação, sentido, conteúdo ou limites objeto de disputa das partes. Vale isto por dizer, também na expressão de Anselmo de Castro, que “a linha divisória entre facto e direitonão tem carácter fixo, dependendo em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa; o que é facto ou juízo de facto num caso, poderá ser direito ou juízo de direito noutro. Os limites entre um e outro são flutuantes”. Identicamente - e com o mesmo critério, como tem sido sustentado pela jurisprudência -, são de afastar expressões de conteúdo puramente valorativo ou conclusivo, destituídas de qualquer suporte factual, que sejam suscetíveis de influenciar o sentido da solução do litígio, ou seja, na expressão do Ac. de 09.12.2010 deste Supremo Tribunal (Proc. 838/06.5TTMTS.P1.S1), que invadam o domínio de uma questão de direito essencial.
No caso que nos ocupa, como dá conta a ANAC, estamos perante acontecimentos internos – realidades psíquicas ou emocionais do indivíduo – inequivocamente apreensíveis pelas regras da experiência.
Tal asserção decorre necessariamente da conjugação da prova, reportada aos factos e analisada criticamente de acordo com as regras da experiência, sendo o resultado expressivo daquilo que não se vê, ouve ou sente, mas seguramente daquilo que se “lê” da vida e que mais não representa que o resultado da prática judiciária.
Acresce referir que inequivocamente estamos perante expressões comuns do léxico da prática judiciária que seguramente são conhecidas, não só dos sujeitos processuais, dos Arguidos e mesmo do cidadão comum, e que, como referido, mais não representam que a atitude interna da Arguida reportada aos factos objetivos em análise.
Efetivamente, em ambas as alíneas, a matéria espelha a leitura efetuada pelo Tribunal que, como disso dá conta na motivação, corresponde à perceção geral dos factos reportada às regras da experiência.
Finalmente, importa ainda dar conta que a matéria vertida nas alíneas r) e cc) seguramente não integra matéria de direito que constitua o thema decidendum.
Dito isto, improcede o pugnado “erro notório da apreciação da prova”.
*
- Erro de direito.
Chegados a este ponto, importa verificar se a decisão em crise padece de outro vício que comprometa a sua validade.
* A Recorrente pugna pela não verificação do elemento objetivo do tipo legal da infração.
Alega, para o efeito e em síntese, que: - É imputado à Recorrente o alegado incumprimento do Plano de Segurança aprovado no âmbito do Estatuto de FRPB, por a Recorrente pretensamente, e ao abrigo de tal estatuto de FRPB, ter processado provisões de bordo a partir das suas instalações do Prior Velho, quando tais instalações não estavam aprovadas; - Os procedimentos de aprovação de agentes como FRPB estão fixados no Regulamento CE n.º 300/2008 e no seu Regulamento de Execução (UE) 2015/1998, aí se estabelecendo, concretamente, que cada FRPB deve operar, nessa qualidade, a partir de uma determina instalação específica e que cada FRPB deve apresentar um programa de segurança que descreva os métodos e procedimentos a aplicar; - No ordenamento jurídico nacional, o regime sancionatório aplicável ao regime jurídico estabelecido pelo Regulamento (CE) n.º 300/2008 e respetivos atos de execução apenas foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 142/2019 de 19 de setembro; - Só a partir de tal data foi sancionado como contra-ordenação o incumprimento do programa de segurança do FRPB e o incumprimento dos controlos de segurança ou dos requisitos de rastreio aplicáveis ao rastreio de provisões de bordo (artigo 54.º, n.º 1, alínea b) e alínea bbb) do Decreto-Lei n.º 142/2019); - O pretenso incumprimento do estatuto de FRPB da Recorrente ou do inerente Programa de Segurança da autoria da própria Recorrente não integra a previsão do artigo 7.º do Decreto-Lei 10/2004; - O Programa de Segurança tem natureza regulamentar, pois aí constam diversos procedimentos gerais e abstratos no âmbito da atividade de FRPB desenvolvida pela Recorrente; - Estando em causa procedimentos gerais e abstratos e, ademais, elaborados pela própria Recorrente (e não pela ANAC), é evidente que não estamos perante instruções ou mandados emitidos pela ANAC que se insiram no âmbito da previsão do artigo 7.º; - O entendimento do Tribunal recorrido de que “É verdade que o sentido completo desta ordem depende das normas legais que regulam a atividade de fornecedor reconhecido de provisões de bordo” (pontos 52 e 53 da sentença recorrida, a fls. 99 e 100) viola o supra referido no sentido de que a instrução deve ser patente e clara de tal forma que seja perfeitamente percetível pelo destinatário; - Atento o princípio da legalidade e o princípio da tipicidade (artigo 2º do RGCO) não é admissível o recurso à interpretação extensiva e, menos ainda, à analogia, para qualificar um comportamento como contra-ordenacional (Acórdãos do TRL de 14-06-2017, processo 2010/16.7T8.BRR.L1-4, de 23-06-2017, processo 3793/16.0T8BRR.L1-4); - O único facto potencialmente relevante constante da Matéria de Facto (alínea q) não identifica o(s) agente(s) pessoa(s) singular(es) que terão praticado tal facto, nem se atuaram no exercício das funções que exerciam para a Recorrente e não desrespeitavam as ordens e instruções transmitidas pela Recorrente o que, como supra exposto nas conclusões XIII e XIV, viola o disposto no artigo 3.º n.º4 do Decreto-Lei 10/2004, artigo 7.º do RGCO e artigo 11.º n.º 6 do CP; - Das alíneas k) a p) dos Factos Provados decorre que a Recorrente designou como Gestor de Segurança um trabalhador que, como reconhecido pela própria ANAC, estava habilitado para exercer tal função, que este sabia que enquanto o armazém do Prior Velho não fosse autorizado as provisões daí provenientes não podiam ser seladas, tendo de ser sujeitas a rastreio e que as suas responsabilidades abrangiam transmitir para os responsáveis de segurança da sede e delegações as normas a serem cumpridas no âmbito do PNSAC e do PSFRPB e garantir que todos os elementos de segurança que irão manusear ou receber as provisões de bordo cumprem com as normas decorrentes do PSFRPB; - A terem sido praticados tais factos pelos não identificados agentes foram-no em incumprimento do quadro de ação delineado pela Recorrente (que ordenou a revisão do Programa de Segurança para aí incluir o armazém do Prior Velho e designou um Gestor de Segurança que sabia que até à certificação de tal armazém, as provisões aí processadas não podiam ser seladas, tendo de ser sujeitas a rastreio e que tinha como responsabilidade assegurar que os demais trabalhadores cumpriam tais procedimentos); - Atento o referido nas conclusões XLII a XLIX, a terem sido infringidas quaisquer normas, designadamente o estatuto de FRPB e o inerente Programa de Segurança tal infração terá sido perpetrada contra instruções da Administração da Arguida, pelo que, por força do disposto no artigo 11.º n.º6 do C.P. e no artigo 3º nº 4 do Decreto-lei 10/2004, sempre estaria excluída a sua responsabilidade contra-ordenacional; - Atento o referido nas conclusões XLII a L também se conclui que a Recorrente adotou as providências que razoavelmente lhe poderiam ser exigidas para assegurar o cumprimento das suas obrigações, pelo que a ter-se verificado qualquer incumprimento o mesmo não é imputável à Recorrente seja a que título for, pelo que, ainda que se entendesse que estavam preenchidos os elementos objetivos da contra-ordenação – que não estão –, sempre faltaria o elemento subjetivo do ilícito.
Por sua vez, o Ministério Público respondeu, em síntese que: – Nas conclusões XXVIII a LI procura a Recorrente demonstrar que o tipo objetivo da infração não se preenche, mas apenas impugna de facto os factos provados da douta sentença q, s a j, k a p, aa e bb, t a y, persistindo a Recorrente na mesma linha da impugnação, repristinando argumentos e sem que contrarie a fundamentação da douta sentença e negando o dolo do tipo e a culpa (conclusão LI); -Tratando-se de impugnação de facto proibida, deverão ser desconsideradas.
Por sua vez, a recorrida ANAC, a este respeito, refere em síntese que: - Entende também a Recorrente, que na sentença em crise, não está verificado o elemento objetivo, por entender que a norma aplicada – artigo 7º do Decreto-lei n.º 10/2004, de 9 de janeiro – incumprimento de mandado legítimo da ANAC - não é aplicável; - No caso sub judicie, importa salientar que a Recorrente Iberlim era, à data, “Fornecedor Reconhecido de Provisões de Bordo” (FRPB), cujo estatuto depende de aprovação por parte da Autoridade Aeronáutica da Aviação Civil, sendo que tal estatuto permite que a Recorrente proceda à entrega de mercadorias, em viaturas previamente seladas, que acedem à Área Crítica da Zona Restrita de Segurança (AC/ZS) do Aeroporto Humberto Delgado e que não carecem de ser rastreadas; - Este Estatuto implica o cumprimento de regras, nomeadamente os requisitos exigidos no processo de aprovação, nos termos do ponto 8.1.3. do Anexo ao Regulamento (UE) n.º 185/2010, de 4 de março e que estão vertidos no Programa de Segurança apresentado pela Recorrente à ANAC e aprovado por esta Autoridade, em 3 de março de 2014; - Resulta do ponto 8.1.3.1 do referido Regulamento que: “A aprovação como fornecedor reconhecido será restrita a um local específico”; - Do Programa de Segurança, são indicadas as instalações onde a Recorrente exerce as funções de FRPB – in casu Rua … Carnaxide - tendo tal facto sido reiterado na comunicação da ANAC, datada de 10 de março de 2014, relativa à aprovação de fornecedor reconhecido de provisões de bordo; - A Recorrente fez constar do Programa de Segurança, na declaração de compromisso, que comunicaria a mudança de instalações, com a antecedência mínima de 15 dias úteis em relação à data prevista para a alteração, o que não cumpriu; - Não obstante ter escolhido as instalações em Carnaxide para exercício da atividade de FRPB, a Recorrente exerceu as funções de FRPB a partir de outras instalações – Prior Velho – sem que tivesse comunicado tal facto à ANAC e com esse comportamento desobedeceu ao mandado legítimo que foi emitido por esta Autoridade, e que constava no Ofício, datado de 10 de março de 2014, enviado por esta Autoridade à Recorrente Iberlim; - É possível concluir que o comportamento da Recorrente já era sancionável à data dos factos, uma vez que tal se enquadra num ato de desobediência a um mandado legítimo da ANAC, e que consistia tão simplesmente em só exercer a atividade para a qual estava aprovada nas instalações sitas na Rua …; - A questão primordial é que por força do seu Estatuto de Fornecedor Reconhecido de Provisões de Bordo, só o poderia fazer a partir do armazém localizado na Rua …, em Carnaxide, com viaturas seladas que não eram sujeitas a rastreio prévio, porque esse era o local aprovado pela ANAC, esse era o local seguro; - muitas das justificações apresentadas para o comportamento em causa, não passaram de meras fabulações, tal como o facto de ter contratado um especialista que se arrogava Auditor Nacional de Segurança da Aviação Civil, quando essa função é exclusiva dos funcionários da Autoridade Nacional da Aviação Civil e apenas enquanto exercem as funções de auditoria/inspeção por conta da autoridade aeronáutica;
Vejamos.
Estabelece o artigo 1.º do DL n.º 10/2004, de 9 de janeiro, sob a epígrafe “Âmbito”, que: “1 - O presente diploma estabelece o regime aplicável às contra-ordenações aeronáuticas civis. 2 - Constitui contra-ordenação aeronáutica civil todo o facto ilícito e censurável que preencha um tipo legal correspondente à violação de disposições legais relativas à aviação civil, para o qual se comine uma coima. 3 - O presente diploma apenas se aplica ao exercício das actividades e funções de natureza civil. 4 - As aeronaves do Estado estão excluídas do âmbito de aplicação do presente diploma. 5 - Para efeitos do número anterior, são consideradas aeronaves do Estado as utilizadas nos serviços militares, aduaneiros e policiais.”
Por sua vez, dispõe o artigo 7.º do mesmo diploma legal, sob a epígrafe “Instruções do INAC”, que: “1 - Constitui contra-ordenação grave o incumprimento de instruções ou mandados legítimos do INAC, transmitidos por escrito ou verbalmente, desde que posteriormente confirmados por escrito aos seus destinatários. 2 - Se, verificado o incumprimento a que se refere o número anterior, o INAC notificar o destinatário para cumprir a instrução ou o mandado e aquele continuar a não cumprir, é aplicável a coima correspondente às contra-ordenações muito graves, desde que a notificação do INAC contenha a indicação expressa de que ao incumprimento se aplica esta sanção.”
A decisão proferida pelo Tribunal a quo, nos pontos 83 a 59 (que corresponde, face a manifesto lapso na numeração, ao ponto 109) a este respeito, deu conta que se mostra preenchido o elemento objetivo do tipo legal em análise.
Antecipa-se que a extensa argumentação expendida, no essencial, merece a nossa concordância.
Efetivamente, considerando a factualidade apurada julgamos correta a subsunção efetuada.
Aliás, importa dar conta, que ao contrário das hipóteses enunciadas pela Recorrente, nomeadamente em termos de procedimento da Administração, temos que nos cingir à factualidade provada.
Acresce ainda referir que o tipo legal citado apresenta particularidades que justificam uma atenção especial.
Na verdade, a norma, como muitas outras ao nível das contraordenações especiais, complementa a sua previsão remetendo para (o incumprimento de) “instruções ou mandados legítimos do INAC, com a necessidade de serem transmitidos por escrito ou verbalmente, desde que posteriormente confirmados por escrito aos seus destinatários.”
Entre estas, como bem dá conta a decisão em crise, temos que atender ao programa de segurança aprovado pela ANAC e que, não é demais recordar, fora apresentado pela Recorrida para operar na respetiva área.
A respeito do programa de segurança, tal como dá conta a sentença em crise, importa considerar o Regulamento CE n.º 300/2008 do Parlamento Europeu e do Conselho de 11 de março, em particular os artigos 4.º, 10.º e 14.º, bem como a Deliberação do Conselho de Ministros n.º 248-DB/2003, de 23 de dezembro de 2003, e o Regulamento de Execução (UE) 2015/1998 da Comissão, de 5 de novembro de 2015, que estabelece as medidas de execução das normas de base comuns para a proteção da aviação civil contra atos de interferência ilícita que comprometam a segurança da aviação civil.
As primeiras normas dão conta da necessidade de se estabelecer um programa nacional de segurança da aviação civil, o respetivo âmbito e as normas de base comuns, sendo que o artigo 14.º estabelece, em termos gerais, a obrigação de cada entidade/ operador – como é o caso da Recorrente, por força do artigo 2.º, n.º 1, al. c) – elaborar, aplicar e manter um programa de segurança.
Por sua vez, o Regulamento de Execução concretiza as normas de base comuns, ou seja, descreve as medidas exigidas para o efeito aos operadores e entidades.
Destacam-se do referido Regulamento, a respeito das provisões de bordo: “8.1.3 Aprovação de fornecedores reconhecidos 8.1.3.1 Os fornecedores reconhecidos devem ser aprovados pela autoridade competente. A aprovação como fornecedor reconhecido deve ser restrita a uma instalação específica. … 8.1.3.2. Para efeitos da aprovação de agentes reconhecidos, deve ser aplicado o seguinte procedimento: … O candidato deve apresentar à autoridade competente um programa de segurança. Este programa deve descrever os métodos e procedimentos que o fornecedor deve aplicar para cumprir os requisitos do ponto 8.1.5. O programa deve descrever ainda o modo como o fornecedor deve controlar a aplicação destes métodos e procedimentos. … b) A autoridade competente, ou um agente de validação UE para efeitos da segurança da aviação agindo em seu nome, deve examinar o programa de segurança e proceder a uma verificação no local das instalações específicas, a fim de validar se o candidato cumpre os requisitos do ponto 8.1.5; c) Se considerar satisfatórias as informações prestadas em cumprimento das alíneas a) e b), a autoridade competente pode aprovar o fornecedor como fornecedor reconhecido para as instalações especificadas. … 8.1.3.3 A aprovação como agente conhecido deve ser renovada a intervalos regulares não superiores a 5 anos. Esta revalidação deve incluir uma verificação ao local para apurar se o fornecedor reconhecido continua a cumprir os requisitos do ponto 8.1.5. … 8.1.5. Controlos de segurança a realizar pelas transportadoras aéreas, pelos fornecedores reconhecidos e pelos fornecedores conhecidos 8.1.5.1. As transportadoras aéreas, os fornecedores reconhecidos e os fornecedores conhecidos de provisões a bordo devem: … e) Aplicar selos invioláveis em todos os veículos e/ou contentores que transportam provisões de bordo, ou protegê-los fisicamente. … 9.1. Controlos de segurança … 9.1.1.1 As provisões do aeroporto devem ser rastreadas antes de ser autorizada a sua entrada nas zonas restritas de segurança, exceto se: … b) Tiverem sido submetidas aos controlos de segurança necessários por um fornecedor conhecido ou por um fornecedor reconhecido e tiverem sido protegidas contra interferências não autorizadas desde o momento em que esses contolos foram efetuados até à entrega restrita de segurança.”
Tal como refere a decisão em crise, face ao citado, que “um fornecedor reconhecido de provisões de bordo pode transportar provisões para a área restrita de um aeroporto através de viaturas seladas, mas se estas tiverem proveniência de uma instalação específica aprovada pela ANAC e em obediência ao programa de segurança apresentado à ANAC. Em contrapartida, se as provisões forem provenientes de instalações não aprovadas apenas podem entrar na área restrita de um aeroporto se forem sujeitas a rastreio.”
Assim, a concretização da previsão do citado artigo 7.º do DL 10/2004, tal como referimos, para o caso em análise, opera-se por reporte às obrigações decorrentes do programa de segurança, tal como descritas (concretizadas) supra.
Dito isto, temos então por assente que, em face da factualidade apurada, importa concluir pelo preenchimento do tipo objetivo do ilícito contraordenacional.
Na verdade, estamos perante um mandado da ANAC decorrente da aprovação (escrita) das instalações da Recorrente para o exercício da atividade de Fornecedor Reconhecido de Provisões de Bordo que, em consequência, a obriga a exercer essa atividade em conformidade com o plano de segurança, ou seja, procedendo à selagem de viaturas com provisões a fim de aceder à área restrita do Aeroporto, ficando em conformidade dispensado do rastreio, aquelas têm que ser provenientes a partir das instalações sediadas em Carnaxide e no Aeroporto, o que se mostra inobservado.
Últimas notas, não se vislumbra, de todo, que a obrigação suscite dúvidas, em particular para quem opera no sector, nomeadamente para aqueles que apresentaram um programa de segurança e, em particular, que logrou ser aprovado pela ANAC.
Igualmente, salvo o devido respeito, também não julgamos que se mostre violado o princípio da legalidade e ou da tipicidade, desde logo, porque, como vimos, a lei que prevê e pune como contraordenação a conduta em análise é anterior à sua prática.
A respeito da (não) identificação do condutor do veículo da Recorrida, reportado ao facto q), não sendo elemento do tipo, que não é, indubitavelmente está prevista a responsabilidade da pessoa coletiva pelas contraordenações aeronáuticas civis quando os factos tiverem sido praticados pelos titulares dos seus órgãos sociais, mandatários, representantes ou trabalhadores no exercício das suas funções, em seu nome ou por sua conta (cfr. artigo 3.º, n.º 4, do DL 10/2004).
Naturalmente, não sendo elemento do tipo, não se afigura necessário identificar (individual ou biográfica) o condutor do veículo da Recorrente que, como resulta da matéria de facto, transportava material desta para os respetivos clientes.
Esta circunstância, como bem assinala a decisão proferida pelo Tribunal a quo, é inequívoca que sendo o veículo da Recorrente a efetuar transporte desta e com documentos desta, necessariamente estamos perante uma daquelas pessoas (identificação funcional), no exercício das suas funções, em seu nome ou por sua conta.
Reportado à pretensa prática dos factos em análise em incumprimento do quadro de ação delineado pela Recorrente e/ ou contra a administração, salvo o devido respeito, porque não se mostra provada factualidade que assim o ateste, necessariamente a pretensão daquela em ver excluída a sua responsabilidade terá que improceder.
Acresce deixar claro que a circunstância de existir alguém responsável pelo cumprimento de determinadas funções, habilitado para o efeito, não obsta a que, havendo incumprimento de regras legais, a Pessoa Coletiva seja responsável pela sua violação; assim como não obsta à mesma conclusão a circunstância de terem milhares de trabalhadores ao serviço, pois que a responsabilidade não advém do efetivo controlo da administração/ gestão mas da respetiva organização ou, melhor, da sua falta e ou inadequação; afinal de contas estamos perante um armazém da Recorrente, com funcionários seus e com provisões a laborar.
Efetivamente, admitindo a perspetiva da Recorrente, apenas Pessoas Coletivas de pequeníssimas dimensões seriam responsabilizáveis.
Finalmente, a respeito da entrada em vigor do DL 142/2019, não vemos que se possa concluir nos termos efetuados pela Recorrente, ou seja, que só a partir desse momento tenha surgido o ilícito contraordenacional em análise.
Aliás, o que se conclui, face ao referido supra, é que foi operada uma sucessão de leis, sendo que o legislador, como deu conta a Recorrida, agravou aquela, pelo que não sufragamos a pretensão da Recorrente.
* A Recorrente pugna pela não verificação do elemento subjetivo do tipo legal da infração.
Alega, para o efeito e em síntese, que:
- a ser verdade que processou provisões de bordo a partir das instalações do Prior Velho ao abrigo do Estatuto de FRPB a Administração de tal entidade não tinha conhecimento deste facto;
- confiava que as provisões de bordo não eram processadas, a partir de tais instalações, ao abrigo do estatuto de FRPB;
- resultava da nomeação como Gestor de Segurança de pessoa devidamente habilitada e titular de formação em Gestor de Segurança de Fornecedor (Re) Conhecido de Provisões de Bordo e Fornecedor Conhecido de Provisões de Aeroporto ministrada e reconhecido pela própria ANAC;
- resultava do conhecimento que tal Gestor de Segurança tinha de que as instalações da Arguida aprovadas para o exercício da atividade de FRPB se situavam na Rua … Carnaxide, e Aeroporto de Lisboa, Edifício …, Armazém … Lisboa e que, por isso, enquanto o armazém do Prior Velho não fosse autorizado as provisões daí provenientes para o Aeroporto Humberto Delgado não podiam ser seladas, tendo de ser sujeitas a rastreio;
- resultava do facto de o Gestor de segurança ser responsável por garantir o cumprimento das normas emanadas pelo PNSAC e pelo cumprimento do PSFRPB (pontos 2.1.3. e 2.1.5. do PSFRPB), competindo-lhe, entre outras funções, emanar para os responsáveis de segurança da sede e delegações as normas a serem cumpridas no âmbito do PNSAC e do PSFRPB e garantir que todos os elementos de segurança que irão manusear ou receber as provisões de bordo cumprem com as normas decorrentes do PSFRPB;
- quando decidiram passar a utilizar o armazém do Prior Velho, simultaneamente decidiram iniciar a revisão do programa de segurança, por forma a incluir esse novo armazém;
- estando em causa uma solução meramente temporária para vigorar apenas até à revisão do Programa de Segurança e aprovação das novas instalações sitas no Prior Velho pela ANAC, o que veio a ocorrer em Maio de 2018.
Por sua vez, o Ministério Público respondeu, em síntese que:
- que a Recorrente assenta a sua defesa através de impugnação de matéria de facto, devendo, por isso, ser desconsiderada;
- que tendo ficado provado que a Recorrente incumpriu o programa de segurança, que submeteu a ANAC e que foi aprovado, ao utilizar na sua atividade de FRPB as instalações do Prior Velho não aprovadas pela ANAC, com dolo e culpa, o tipo mostra-se preenchido.
A recorrida ANAC, a este respeito, refere em síntese que:
- a utilização do armazém do Prior Velho resulta de uma decisão da administração de encontrar um local mais próximo do aeroporto;
- no armazém existiam meios técnicos e humanos para efetuar o transporte de provisões para as aeronaves;
- a sua utilização pelos trabalhadores da Iberlim foi, por isso, efetuada com o conhecimento dos seus superiores hierárquicos e mediante vigilância da respetiva cadeia hierárquica.
Vejamos.
Importa recordar que o Tribunal a quo deu como provado que a Recorrente agiu com dolo direto, ou seja, que representou e quis agir nos termos descritos, sabendo que devia cumprir o Programa de Segurança por si submetido e aprovado pela ANAC e que, por isso, não podia utilizar as instalações do Prior Velho nos termos em que o fez, tendo agido de forma livre e consciente.
Dito isto, tendo presente o disposto no artigo 75.º do RGCO, como deu conta o MP, a posição da Recorrente assenta fundamentalmente na impugnação da matéria de facto aprovada o que, como já referimos, não se afigura possível.
Aliás, os argumentos avançados pela Recorrente encontram resposta na decisão em crise nos pontos 54 a 63 da motivação de facto.
Ainda assim, julgamos oportuno referir que o artigo 3.º do DL 10/2004 prevê, ao nível da imputação de responsabilidade da pessoa coletiva, um modelo funcional, ou seja, fundada nos atos dos órgãos, dos representantes e dos funcionários ou empregados da pessoa coletiva e que “o dolo contraordenacional reside no conhecimento intelectual dos elementos do tipo e no desrespeito pelas proibições ou obrigações legais tuteladas pelas normas contraordenacionais” (cfr. Comentário RGCO, Paulo Pinto Albuquerque, pág. 72) o que, reportado ao caso que nos ocupa, se mostra demonstrado.
* Da sanção (admoestação; da inconstitucionalidade do artigo 9.º do DL 10/2004; suspensão da coima).
A Recorrente pugna que a sanção aplicada é excessiva, devendo, por força do artigo 51.º do RGCO, ser substituída por uma admoestação.
Alega, para o efeito e em síntese, que:
- a gravidade concreta dos factos imputados à Recorrente é que deve determinar a opção pela sanção e não a classificação do tipo de contraordenação;
- no caso concreto não se pode entender que o incumprimento de mandados ou instruções legitimas da ANAC tenha sido grave;
- não resultou qualquer dano ou mesmo perigo concreto;
- não foi obtido qualquer benefício económico;
- previamente à sua prática estava a rever o Programa de Segurança para incluir as instalações do Prior Velho, sendo que em maio de 2018 foi aprovado para as referidas instalações;
- cessou o contrato com o Gestor de Segurança L.S.;
- iniciou processo de inquérito para averiguar o sucedido;
- contratou novo responsável para acompanhar o processo de revisão do Programa de Segurança e dar apoio ao processo de fornecimento de refeições a bordo;
- desde 2019 deixou de ter o estatuto de FRPB;
- deixou de se dedicar à atividade que esteve na origem dos factos em análise.
Pugna ainda que, assim não se entendendo, ao abrigo do artigo 29.º do DL 10/2004, deve ser suspensa a sanção.
Para o efeito, alega, em resumo, que:
- só considerações de ordem preventiva devem ser apreciadas e valoradas;
- nomeadamente as necessidades sancionatórias demandadas pela prática do ilícito;
- se obtenha a interiorização do desvalor das condutas;
- sendo que inexistem antecedentes contraordenacionais e a Recorrente estava capacitada para o exercício da função;
- pelo que a conduta não pode ser entendida enquanto carecendo de especiais cuidados ao nível da prevenção especial;
- o decurso do prazo desde a pretensa prática da contraordenação, mantendo boa conduta;
Finalmente, para a hipótese de assim não se entender, pugna “pela ilegalidade da decisão expressa na sentença recorrida”.
Para o efeito, alega que:
- o artigo 9.º do DL 10/2004, decorrente da indeterminação dos limites mínimo e máximo da coima abstratamente aplicável e da utilização de critérios de determinação de tais limites que são atentatórios dos princípios da igualdade (artigo 13.º da CRP) e da proporcionalidade, padece de inconstitucionalidade; - assim como os princípios da adequação e necessidade que norteiam a restrição dos direitos fundamentais;
- na determinação da medida das coimas abstratamente aplicáveis às contraordenações deve ser respeitado o princípio da generalidade e abstração diretamente relacionado com o grau de reprovação reconhecido pelo ordenamento jurídico para a prática ilícita;
- os critérios para classificar uma empresa como micro, pequena, média ou grande (número de trabalhadores, volume de negócios, balanço total anual e o seu grau de dependência) não determinam a sua situação económica e, muito menos, o benefício económico que esta terá extraído da prática da infração;
- assim como os princípios da segurança, certeza e previsibilidade da ordem jurídica (artigo 18.º 1 e 2, da CRP);
- a volatilidade dos critérios utilizados contende com os artigos 29.º, n.ºs 1, 3 e 4, da CRP e 1.º e 2.º do RGCO, pois que apenas podem ser aplicadas penas que estejam expressamente cominadas em lei anterior;
- o tribunal considerou o ano anterior ao da decisão condenatória proferida pela ANAC;
Por sua vez, o Ministério Público respondeu, em síntese, que:
- quanto à admoestação o Tribunal a quo apoiou-se no Acórdão 6/2018 do STJ, logo a excluir por estar em causa contraordenação classificada pela lei como grave;
- que a sentença deu por assente que nem a ilicitude, nem a culpa, concretas, são reduzidas;
- que a Recorrente mostrou total indiferença pelos bens jurídicos protegidos, o que faz soçobrar qualquer juízo de prognose favorável à suspensão como fator de auto retorno à normalidade e de interiorização do dever legal;
- que não se verifica qualquer inconstitucionalidade.
A ANAC respondeu, em síntese, que:
- a admoestação está dependente da reduzida gravidade da infração e da culpa do agente;
- sendo que cabe ao legislador a classificação das contraordenações;
- apenas nas contraordenações leves é admissível a aplicação da admoestação se e quando o tribunal se convencer, através de um juízo de prognose favorável, que o delinquente alcançará por tal via a sua (re)socialização e que a sua aplicação não porá em causa os limites mínimos das expetativas comunitárias ou de prevenção de integração;
- no caso está em causa uma contraordenação grave;
- está ainda em causa a segurança da infraestrutura aeroportuária e das aeronaves;
- a inconstitucionalidade apenas foi suscitada nesta instância pelo que não deve ser atendida.
Vejamos.
A admoestação é uma sanção aplicável às contraordenações, conforme previsto no artigo 51.º do RGCO.
Por sua vez, considerando que o DL 10/2004, de 9 de janeiro, não exclui a sua aplicação e que o seu artigo 35.º prevê a aplicação do RGCO, enquanto direito subsidiário, para os casos que não forem expressamente regulados, dúvidas não existem de que é aplicável o referido artigo 51.º
Assim, a primeira questão mostra-se resolvida pelo Acórdão do STJ n.º 6/2018, de 14 de novembro de 2018, que fixou a seguinte jurisprudência: “A admoestação prevista no art. 51.º, do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27.10, não é aplicável às contraordenações previstas no art. 34.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 78/2004, de 03.04.”
Aliás, o respetivo sumário dá conta que a não aplicação da admoestação se reporta às contraordenações graves.
O texto do Acórdão é suficientemente esclarecedor, sendo que optamos por destacar as seguintes passagens:
“…
Mas, atentemos nos pressupostos de aplicação da admoestação segundo o estipulado no art. 51.º, do RGCO. Segundo o disposto no artigo referido, são claros os requisitos impostos para a aplicação de uma admoestação: 1) "reduzida gravidade da infracção" e 2) reduzida "culpa do agente".
Assim sendo, a aplicação de uma admoestação depende, desde logo, da maior ou menor ilicitude da infração. Esta ilicitude poderá ser aferida tendo em conta o que expressamente o legislador considerou - caso que se torna evidente quando o legislador classifica a infração de grave ou muito grave ou leve (aliás, de acordo com a classificação prevista no art. 21.º, da lei-quadro das contraordenações ambientais, Lei n.º 50/2006, de 29.08). No caso em discussão, o legislador referiu expressamente que constituíam uma contraordenação grave as previstas no n.º 2, do art. 34.º, do Decreto-Lei n.º 78/2004, de 03.04, pelo que não se pode considerar estar preenchido um dos requisitos impostos pelo art. 51.º, n.º 1, do RGCO - a "reduzida gravidade da infração". A gravidade de uma infração é determinada pela gravidade da ilicitude pressuposta pelo legislador. Ao classificar uma dada infração como grave o legislador considerou-a, em abstrato, portadora de uma ilicitude considerável, o que terá desde logo determinado uma moldura da coima com limites mínimos e/ou máximos superiores àqueles que foram determinados para as contraordenações que entendeu como sendo de gravidade menor ou de média gravidade. Depois, em função do caso concreto, e dentro dos limites da coima prevista pelo legislador, ir-se-á determinar a medida concreta da sanção em atenção às finalidades de punição das coimas e em atenção à culpa do agente. Todos estes elementos poderão ser determinantes para que se entenda que, pese embora se trate de uma contraordenação grave, portadora de uma ilicitude, em abstrato, grave, atento o caso concreto dever-se-á entender que o agente deverá ser punido com uma sanção próxima do seu limite mínimo.
Porém, não se pode considerar que, atento o caso concreto, a ilicitude da conduta diminua de gravidade, depois de o legislador a ter classificado como sendo uma contraordenação grave, porque portadora de uma ilicitude considerada grave. Na verdade, sempre que o legislador, de forma geral e abstrata, classifica a infração como sendo grave, não poderá o julgador modificar a lei atribuindo menor gravidade àquela ilicitude. Por isto, não pode deixar de se entender que a classificação legal de uma contraordenação como grave afasta logo a possibilidade de o julgador considerar que aquela mesma contraordenação grave afinal é de "reduzida gravidade".
O legislador, ao classificar as contraordenações como graves, muito graves ou leves, pretendeu assegurar o princípio da proporcionalidade entre as infrações e as sanções previstas. Este princípio não é assegurado sempre que atenta a gravidade da infração se decide pela aplicação de uma sanção que pressupõe a reduzida gravidade daquela.
Pelo que, estando subjacente à admoestação uma menor ilicitude da conduta (assim, Augusto Silva Dias, ob. cit., p. 167), somos forçados a considerar que esta sanção não poderá ser aplicada às contraordenações expressamente classificadas pelo legislador como sendo contraordenações graves atenta a "relevância dos direitos e interesses violados" (art. 21.º, da lei-quadro das contraordenações ambientais) [também no sentido da aplicação da admoestação a contraordenações "de reduzido grau de ilicitude", Simas Santos e Leal Henriques (ob. cit., p. 394) expressamente concluem que "se houver uma qualificação legal de contra-ordenações em função da sua gravidade, deverão considerar-se de reduzida gravidade nos casos em que a lei as qualifique como leves ou simples"; ou considerando que se aplica apenas a "contraordenações ligeiras", cf. Alexandra Vilela, O direito de mera ordenação social, Coimbra: Coimbra Editora, 2013, p. 433, pese embora a entenda como uma sanção acessória].”(destaques nossos)
Considerando que a contraordenação objeto dos presentes autos é classificada como grave, aplicada a jurisprudência citada, a que se adere, necessariamente que a primeira pretensão da Recorrente improcede.
Prosseguindo.
Vejamos então se se verifica a “ilegalidade da decisão expressa na sentença recorrida de aplicar coima no valor de 6.500,00 €”.
A Recorrente centra a sua posição na inconstitucionalidade do artigo 9.º do DL 10/2004, decorrente da indeterminação dos limites mínimo e máximo da coima abstratamente aplicável e de critérios de determinação de tais limites que são, no seu entender, atentatórios dos princípios da igualdade e da proporcionalidade.
Estabelece o artigo 9.º, sob a epígrafe “Montantes das coimas”, que: “1 - A cada escalão de gravidade das contra-ordenações aeronáuticas civis corresponde uma coima variável em função do grau de culpa, consoante seja praticada por pessoa singular ou colectiva e, neste último caso, consoante a sua dimensão. 2 - As contra-ordenações leves são puníveis com as seguintes coimas: … 3 - As contra-ordenações graves são puníveis com as seguintes coimas: a) Se praticadas por pessoa singular, coima mínima de (euro) 250 e máxima de (euro) 500, em caso de negligência, e coima mínima de (euro) 500 e máxima de (euro) 1500, em caso de dolo; b) Se praticadas por microempresa, coima mínima de (euro) 400 e máxima de (euro) 1000, em caso de negligência, e coima mínima de (euro) 800 e máxima de (euro) 2000, em caso de dolo; c) Se praticadas por pequena empresa, coima mínima de (euro) 1000 e máxima de (euro) 2000, em caso de negligência, e coima mínima de (euro) 2500 e máxima de (euro) 4000, em caso de dolo; d) Se praticadas por média empresa, coima mínima de (euro) 1500 e máxima de (euro) 2500, em caso de negligência, e coima mínima de (euro) 3000 e máxima de (euro) 5000, em caso de dolo; e) Se praticadas por grande empresa, coima mínima de (euro) 2000 e máxima de (euro) 5000, em caso de negligência, e coima mínima de (euro) 5000 e máxima de (euro) 10000, em caso de dolo. 4 - As contra-ordenações muito graves são puníveis com as seguintes coimas: … 5 - Para efeitos do presente artigo entende-se por: a) «Microempresa» a que empregar menos de 10 trabalhadores; b) «Pequena empresa» a que empregar menos de 50 trabalhadores, tiver um volume de negócios anual que não exceda 7 milhões de euros ou um balanço total anual que não exceda 5 milhões de euros e que cumpra o critério de independência definido na alínea seguinte; c) «Média empresa» a que empregar menos de 250 trabalhadores, tiver um volume de negócios anual que não exceda 40 milhões de euros ou um balanço total anual que não exceda 27 milhões de euros e que cumpra o critério de independência, segundo o qual 25% ou mais do seu capital social ou dos seus direitos de voto não sejam detidos, directa ou indirectamente, por uma grande empresa ou conjunto de médias empresas; d) «Grande empresa» a que empregar mais de 250 trabalhadores e tiver um volume de negócios anual que exceda 40 milhões de euros ou um balanço total anual que exceda 27 milhões de euros. 6 - O limiar do critério de independência definido na alínea c) do número anterior pode ser excedido nos dois casos seguintes: a) Se a empresa for propriedade de sociedades públicas de investimento, sociedades de capital de risco ou investidores institucionais, desde que estes últimos não exerçam, a título individual ou conjuntamente, qualquer controlo sobre a empresa; b) Se o capital se encontrar disperso de maneira que não seja possível determinar quem o detém e se a empresa declarar que pode legitimamente presumir que 25% ou mais do seu capital social ou dos seus direitos de voto não são detidos, directa ou indirectamente, por uma grande empresa ou conjunto de médias empresas.”
O Tribunal a quo, no âmbito aplicação da coima, em particular da determinação da moldura legal abstrata, encetou um percurso, que passou pela aplicação do citado artigo 9.º, do artigo 6.º, n.º 4, do mesmo diploma legal, do artigo 72.º-A, n.º 2, do RGCO, do artigo 69.º, n.º 4, da Lei da Concorrência, do artigo 7.º, n.º 8 e 9, do Regime Quadro das Contraordenações do Setor das Comunicações, do artigo 19.º, n.º 2, do Regime Jurídico das Contraordenações Económicas, e que o levou a concluir que o valor da coima vai de Euros 5.000,00 a 10.000,00.
Adiante-se desde já que não se vislumbram as pugnadas ilegalidades.
Em termos do princípio da igualdade não vemos que seja concedido um tratamento diverso para situações iguais, pelo contrário, é assegurado que tratamento diverso para situações diversas.
Dito de outra forma, temos para nós que o impacto de uma coima deve ser sentido de forma proporcional à realidade da Arguida, ou seja, perante factos semelhantes praticados por “empresas diversas”, se partíssemos dos mesmos valores, certamente incorreríamos em soluções iníquas, essas sim, violadoras daquele princípio.
Aliás, é imaginar o efeito que o valor de uma coima de Euros 6.500,00 tem ou pode ter para uma empresa como a Recorrente e para uma empresa como a Apple.
Por isso julgamos proporcional e adequado partir de valores diversos para realidades diversas, por forma a garantir, tanto quanto possível, que as visadas, na medida das suas especificidades, sintam o mesmo “impacto” em situações semelhantes.
Acresce dar conta que o artigo 9.º, como decorre do exercício encetado pelo Tribunal a quo, é a expressão do legislador para se estabelecer as ditas especificidades.
Relativamente ao momento relevante para se apurar os critérios dos quais depende a classificação das empresas, o percurso encetado pelo Tribunal a quo mostra-se lógico e apoiado numa visão sistemática com a qual concordamos.
Efetivamente, havendo argumentos válidos para se apontar qualquer um dos momentos que medeia entre a prática da infração e a da decisão, neste caso seja a administrativa ou mesma a judicial, não podemos deixar de julgar mais adequado aquele que se encontra mais próximo da aplicação da sanção, em particular pela natureza da coima e da necessidade de garantir a sua eficácia enquanto sanção.
Também aqui julgamos ser proporcional, adequado e necessário atender à realidade da visada reportada a momento mais próximo da aplicação da coima, pois assim não sucedendo, mais uma vez, aumenta significativamente a probabilidade de se chegar a uma situação desadequada ou injusta.
Por sua vez, a respeito da (in)determinabilidade também não vemos que seja condicionante para reportar ao ano da infração o momento em que se afere a “dimensão da empresa”.
Na verdade, julgamos que o argumento da (in)determinabilidade se aplica em qualquer momento que medeia a prática da infração e o da decisão, pois que considerando os critérios enunciados pela lei e a reconhecida volatilidade com que se deparam as empresas, tal como, aliás, refere a Recorrente, haverá sempre uma margem para o seu apuramento.
Não obstante, admitimos que a referida margem não obste a que se estabeleçam limites, na certeza que o que releva é a mensagem transmitida e que julgamos intuída pelos operadores económicos de que o paradigma existente ao nível das coimas tem fundamentalmente em conta a capacidade de pagamento da visada.
Nessa medida, também reputamos que assim se garante a pugnada generalidade e abstração relacionado com o grau de reprovação, pois que os critérios/ limites são fixados pelo legislador.
Assim como temos por certo que as coimas decorrem da aplicação de lei anterior.
Finalmente, com o devido respeito, não vemos que sejam desadequados os critérios legais para determinar a “qualidade da empresa”.
Admitimos certamente que se pudesse recorrer a outros critérios, sejam de reportados à estrutura/ organização, ao funcionamento, à área de atividade, aos clientes e etc, porém, julgamos que o número de trabalhadores, o volume de negócios anual, o balanço total anual e o critério da independência, conjugados, são comummente aceites como “os critérios” mais objetivos para aquilatar da realidade de uma empresa.
Assim, também não vislumbramos que a sua aplicação importe a violação dos princípios da igualdade e da proporcionalidade, pelo contrário, julgamos antes que garantem o seu respeito, uma vez que procuram, mediante a aplicação dos mesmos critérios objetivos, definir as possibilidades concretas das visadas por forma a garantir a já referida efetividade/proporcionalidade da sanção.
Dito isto, julgamos que a interpretação efetuada pelo Tribunal a quo do artigo 9.º do DL 10/2004, reportado à determinação dos limites mínimo e máximo da coima abstratamente aplicável, não padece de qualquer vício, nomeadamente das apontadas inconstitucionalidades.
Finalmente, vejamos a pugnada suspensão.
Estabelece o artigo 29.º do DL n.º 10/2004, de 9 de janeiro, sob a epígrafe “Suspensão da sanção”, que: “1 - O INAC pode suspender, total ou parcialmente, a aplicação da sanção. 2 - A suspensão pode ficar condicionada ao cumprimento de certas obrigações, designadamente as consideradas necessárias para a regularização de situações ilegais, à reparação de danos ou à prevenção de perigos para a segurança na aviação civil. 3 - O tempo de suspensão é fixado entre dois e cinco anos, contando-se o seu início a partir da data em que se esgotar o prazo da impugnação judicial da decisão condenatória. 4 - A suspensão não abrange custas. 5 - Decorrido o tempo de suspensão sem que o arguido tenha praticado qualquer contra-ordenação aeronáutica civil e sem que tenha violado as obrigações que lhe hajam sido impostas, fica a condenação sem efeito, procedendo-se, no caso contrário, à execução da sanção aplicada.”(destaque nosso)
Por sua vez, dispõe o artigo 50.º do CP, sob a epígrafe “Pressupostos e duração”, que: “1 - O tribunal suspende a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a cinco anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição. 2 - O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova. 3 - Os deveres e as regras de conduta podem ser impostos cumulativamente. 4 - A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições. 5 - O período de suspensão é fixado entre um e cinco anos.”(destaques nossos)
O Tribunal a quo fundou a decisão de não suspender a coima aplicada com base nos citados artigos, o que fez de forma adequada.
Efetivamente, concorda-se que as circunstâncias do ilícito revelam uma postura de indiferença em relação aos interesses jurídicos protegidos e que os factos posteriores não são demonstrativos de um arrependimento genuíno e sincero.
Aliás, quanto a este último, que se reflete em termos da conduta posterior à infração, julgamos ser bem demonstrativo o facto de a “Arguida não revela sentido crítico da sua conduta, tendo deturpado a verdade dos factos, ao afirmar que os mesmos foram praticados pelos trabalhadores contra as ordens e instruções expressas e ao tentar atribuir responsabilidade exclusivamente ao seu gestor de segurança, o que não corresponde à verdade.” (cfr. facto provado cc).
Também se concorda que, tendo presente que estamos no âmbito da segurança da aviação civil e que, não é demais lembrar, é suscetível de por em causa a vida de passageiros e tripulantes, aquela indiferença sustenta a convicção firmada pelo Tribunal a quo de que à primeira oportunidade, havendo motivação suficiente, a Recorrente pode facilmente incorrer na prática de contraordenações aeronáuticas civis, sendo, por isso, absolutamente imperativo que intua o alcance da sua conduta.
Finalmente, acrescentamos ainda que em termos de prevenção geral este tipo de comportamento não se compadece, de modo algum, com a suspensão pugnada, desde logo por estarmos no âmbito de uma atividade económica que envolve inúmeros operadores a quem não se pode transmitir, de modo algum, ideia de permissividade e/ ou contemplação.
Naturalmente, que não ignoramos as circunstâncias “atenuantes”, em particular a ausência de antecedentes contraordenacionais e o tempo decorrido desde a prática dos factos, porém, face ao referido supra, manifestamente não conseguimos concluir que a simples censura do facto e a ameaça da sanção realizem de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
Dito de outra forma, não vislumbramos que a concessão de um espaço de oportunidade à Arguida, seja suscetível de, por um lado, obstar à adoção de comportamentos semelhantes por parte da Arguida, em particular pelo comportamento posterior à infração, e, por outro, a dissuadir as demais instituições existentes no circulo de atividade da aviação civil a adequarem o respetivo comportamento com o dever ser jurídico contraordenacional.
* Lei no tempo.
Finalmente, importa dar conta que no dia 20 de setembro de 2019, entrou em vigor o DL n.º 142/2019, que procedeu “à revisão do Programa Nacional de Segurança da Aviação Civil, adaptando-o à mais recente regulamentação europeia”, nos termos da qual a punição da contraordenação, com a revisão operada, tendo mudado o número dos artigos, manteve a respetiva punibilidade, sendo que a agravou, por passar a considerar muito grave.
Assistindo-se, assim, a uma sucessão de leis no tempo entre as datas do cometimento da contraordenação e o momento presente, nos termos do art. 3.º, n.º 2, do DL 433/82, de 27 de outubro, impõe-se determinar qual das duas leis se revela, em concreto, mais favorável ao agente.
Porém, porque este diploma remete para efeitos de aplicação do regime das contraordenações aeronáuticas e civis, aprovado pelo DL n.º 10/2004, de 9 de janeiro, ou seja, o mesmo regime que o da data da prática dos factos, sendo que, como vimos, passou a contraordenação muito grave, não vemos, por isso, a necessidade de ponderar a sua aplicação, pois, em abstrato, esta é certamente desfavorável à Arguida.
*
Por todo o exposto, julgamos improcedente o recurso apresentado pela Iberlim, mantendo a decisão do Tribunal a quo.
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V - Decisão
Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso interposto pela arguida IBERLIM – HIGIENE E SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL, SA, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC’s.
Notifique.
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Lisboa, 26 de março de 2025
Bernardino Tavares
Armando Manuel da Luz Cordeiro
Paulo Abrantes Registo (com voto de vencido que segue infra)
“Subscrevo a decisão, com excepção do segmento que não conheceu das alegadas nulidades da decisão administrativa, por ter considerado que o objeto do recurso é a decisão judicial e não a decisão da autoridade administrativa.
Das conclusões do recurso afigura-se que a empresa recorrente pretende impugnar a sentença proferida pelo tribunal de primeira instância (máxime págs. 2 a 37), na parte em que julgou válida a notificação realizada pela autoridade administrativa, para efeitos do disposto no art. 50.º do DL n.º 433/82, relativamente aos pontos 1 a 7, 17, 18, 19 e 69 da matéria de facto.
Deste modo, de acordo com o disposto no art. 73.º, n.º 1, do DL n.º 433/82, teria conhecido o recurso interposto pela empresa recorrente, na sua totalidade, muito em particular do segmento da sentença que se pronunciou sobre a questão da apontada nulidade da decisão administrativa.”