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CONTRA-ORDENAÇÃO
PRESTAÇÃO DE CUIDADOS DE SAÚDE
Sumário
SUMÁRIO (da responsabilidade do Relator) 1. A Recorrente vem condenada pelo TCRS, pela prática de uma contraordenação por desrespeito da decisão da ERS, emitida por deliberação do Conselho de Administração de 24.02.2019 no âmbito do processo de inquérito sob o n.º ERS/75/2018, o que constitui uma contraordenação prevista e punida pela alínea b), do n.º 1, do artigo 61.º dos Estatutos da ERS (publicados em anexo ao Decreto Lei n.º 126/2014, de 22 de agosto), em conjugação com o artigo 19.º, alíneas a) e b), do mesmo diploma. 2. A decisão da ERS em causa, estipulou, como obrigação da arguida: “(i) Garantir, em permanência, que, na prestação de cuidados de saúde, são respeitados os direitos e interesses legítimos dos utentes, nomeadamente, o direito aos cuidados adequados e tecnicamente mais corretos, em conformidade com o estabelecido no artigo 4.º da Lei n.º 15/2014, de 21 de março. 3. Segundo o artigo 4.º, n.º 2, da Lei n.º 15/2014, lei esta que consolida a legislação em matéria de direitos e deveres do utente dos serviços de saúde: “O utente dos serviços de saúde tem direito à prestação dos cuidados de saúde mais adequados e tecnicamente mais corretos.”. 4. Neste contexto, a Recorrente, ao não integrar na equipa cirúrgica que realizava cesarianas um enfermeiro instrumentista, sendo certo que a não presença de enfermeiro instrumentista na equipa cirúrgica aumenta o risco de serem deixados no interior do utente compressas e instrumentos corto-perfurantes, apenas podemos concluir que não foram garantidos, em permanência, o direito aos cuidados adequados e tecnicamente mais corretos. 5. Mostra-se, por isso, preenchido o tipo contraordenacional pelo qual a Recorrente foi condenada pelo TCRS, julgando-se improcedente o recurso.
Texto Integral
Acordam na Secção da Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão do Tribunal da Relação de Lisboa
I. RELATÓRIO
Recorrente/arguida: UNIDADE LOCAL DE SAÚDE DO ALGARVE, EPE (doravante, ULSA)
Recorrida/Entidade Supervisora: Entidade Reguladora da Saúde (doravante, ERS)
1. A arguida interpôs recurso de impugnação judicial da decisão final condenatória da ERS, que decidiu o seguinte:
“Condenar o infrator na coima de 10.000 EUR (dez mil euros), por desrespeito da decisão da ERS, emitida por deliberação do Conselho de Administração de 24 de fevereiro de 2019, no âmbito do processo de inquérito registado sob o n.º ERS/75/2018. A presente decisão será publicada no sítio da ERS em www.ers.pt, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 27.º, n.º 1, alínea d) e do artigo 65.º, dos Estatutos da ERS, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 126/2014, de 22 de agosto, sendo que caso seja a mesma objeto de recurso judicial essa circunstância indicada na publicação, bem como será publicada a decisão judicial que resultar do recurso em causa.”
2. Em 16-12-2024, foi proferida decisão final (doravante, sentença recorrida) pelo TCRS, com o seguinte teor:
“Em face de todo o exposto, julgo o recurso totalmente improcedente, mantendo-se a condenação da Recorrente na coima de 10.000,00 EUR (dez mil euros) pela prática, dolosa, da contraordenação prevista e punida pelos artigo 61.º, n.º 1, alínea b), dos Estatutos da ERS, aprovados pelo Decreto-Lei n.º 126/2014, de 22 de agosto, em conjugação com o artigo 19.º, alíneas a) e b), do mesmo diploma e a consequente publicação da decisão na página eletrónica da ERS em conformidade com o artigo 65.º, n.º 1, dos respetivos Estatutos.”.
3. Inconformada com a decisão judicial dela recorreu a ULSA para o presente Tribunal da Relação.
4. A Recorrente teceu as seguintes
CONCLUSÕES e PEDIDO (reprodução integral) “1ª- A ERS emitiu uma instrução à recorrente em 24 de fevereiro de 2019 com o seguinte conteúdo:
“[…](i) Garantir, em permanência, que, na prestação de cuidados de saúde, são respeitados os direitos e interesses legítimos dos utentes, nomeadamente, o direito aos cuidados adequados e tecnicamente mais corretos, em conformidade com o estabelecido no artigo 4º da Lei nº15/2014, de 21 de março;
(ii) Reforçar, através de protocolo ou regulamento escrito, todos os procedimentos de verificação da qualidade e segurança cirúrgica existentes, garantindo, em permanência, a correta e minuciosa contagem de todos os instrumentos e compressas utilizados pela equipa cirúrgica, quer no início, quer no final de qualquer procedimento cirúrgico […]”. 2ª- Na sequência do inquérito que deu origem à instrução a ERS instaurou um processo de monitorização. 3ª-No âmbito do procedimento de monitorização foi realizada auditoria interna para verificação dos procedimentos associados à Cirurgia Segura e da aplicação da Norma Hospitalar nº24 do CHUA que incorporou a Norma nº2/2013 da DGS relativa aos procedimentos adicionais de segurança e verificação associados à Cirurgia Segura.
4ª- Na sequência das conclusões da auditoria apresentadas pela recorrente foi arquivado o procedimento de monitorização por terem sido adotadas medidas no sentido de garantir o reforço dos procedimentos de verificação da qualidade e segurança cirúrgica existentes, garantindo, em permanência, a correta e minuciosa contagem de todos os instrumentos e compressas utilizados pela equipa cirúrgica, quer no início, quer no final de qualquer procedimento cirúrgico; 5ª- A instrução da ERS determinou o reforço dos procedimentos de verificação e qualidade e segurança cirúrgica existentes de modo a garantir a correta e minuciosa contagem de todos os instrumentos e compressas utilizados pelas equipas cirúrgicas, quer no início quer no final dos procedimentos cirúrgicos.
6ª- Na sua instrução a ERS nunca referiu a existência de enfermeiro instrumentista nas equipas cirúrgicas como medida a adotar.
7ª- A instrução foi no sentido de adotar mecanismos de garantia e controlo da contagem de instrumentos e compressas em todas as cirurgias.
8ª- No Bloco de Partos a contagem dos instrumentos e das compressas usadas nas cesarianas era realizado pelo cirurgião e pelo enfermeiro circulante, o que também aconteceu na cesariana realizada a AA….
9ª- As recomendações da OMS e a Norma da DGS relativas à Cirurgia Segura determinam a contagem dos instrumentos e das compressas usados na intervenção cirúrgica, mas não determinam a obrigatoriedade da existência de um enfermeiro instrumentista na equipa de enfermagem.
10º- Também a instrução da ERS é omissa quanto à obrigatoriedade de incluir um enfermeiro instrumentista nas equipas cirúrgicas.
11º- A instrução determina, expressamente, que sejam adotados protocolos ou regulamentos com vista a garantir que a contagem de instrumentos e compressas é feito, de forma minuciosa, no início e no fim de cada intervenção.
12º- Não existe qualquer norma jurídica que determine a obrigatoriedade de constituição de equipas de cirurgia com enfermeiro instrumentista, assim como a instrução da ERS não previa essa necessidade ou obrigatoriedade.
13ª- Assim, a recorrente não praticou qualquer facto ilícito já que não existe norma jurídica, recomendação da OMS ou da DGS ou instrução da ERS que determine a obrigatoriedade de constituição de equipas cirúrgicas com enfermeiro instrumentista.
14ª- Não há tipo legal pelo que não há facto ilícito nem culpa, nos termos do disposto nos art. 1º e 8º do DL 433/82 de 27.10.
15ª- Pelo que não estão preenchidos os elementos típicos da contraordenação, não havendo lugar à aplicação de coima, ao contrário do que afirma a sentença.
16ª- A instrução da ERS foi realizada, de modo que nenhuma cirurgia deixasse de ter contagem de instrumentos e compressas para que se cumpra o desígnio de prestar cuidados adequados e corretos nos termos do disposto no art. 4º da Lei nº 15/2014, sendo certo que, como se provou, a adoção da instrução nunca eliminaria a possibilidade de se verificar uma situação indesejada.
17ª- Não tem razão a sentença quando diz nos pontos 91 e 92 da fundamentação jurídica da sentença, que estão preenchidos os elementos típicos da contraordenação.
18ª- A obrigação expressa na instrução de garantir a correta e minuciosa contagem de todos os instrumentos e compressas usados pelas equipas cirúrgicas no início e no final de procedimento cirúrgico sempre foi cumprido pelo que a decisão violou os artigos 1º e 8º do DL 433/82 de 27.10.
19ª- O Tribunal deveria ter decidido que não existe tipo legal pelo que, não existe facto ilícito a que possa ser aplicada uma coima.
Termos em que, deve proceder o presente recurso e, por via disso ser revogada a sentença, para que se faça a costumada JUSTIÇA.”.
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5. A ERS, respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência do recurso e consequente manutenção da sentença recorrida.
6. O Ministério Público junto do TCRS respondeu ao recurso, pugnando pela improcedência do recurso e consequente manutenção da sentença recorrida.
7. O Ministério Público junto deste tribunal subscreveu a posição expressa pelo Exm.º Magistrado do Ministério Público junto do TCRS.
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II. QUESTÕES
8. O presente recurso segue a tramitação prevista no Código do Processo Penal, com as especialidades previstas no artigo 74.º, n.º 4, do Regime Geral das Contraordenações.
9. No âmbito de processos de contraordenação, em recursos interpostos de decisões do tribunal de primeira instância, o Tribunal da Relação apenas conhece da matéria de direito, como estatui o n.º 1, do art.º 75.º, do Regime Geral das Contraordenações.
10. Podem, ainda, ser conhecidos os vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, do Código do Processo Penal e nulidades conforme previsto no n.º 3 deste preceito Cf. Ac. STJ de Fixação de Jurisprudência n.º 3/2019, DR. n.º 124/2019, Série I de 2019-07-02..
11. Por outro lado, importa também não esquecer, e constitui jurisprudência corrente dos tribunais superiores, que o âmbito do recurso se afere e se delimita pelas conclusões formuladas na motivação de (cada) recurso (artigo 412.º, n° 1, do Código de Processo Penal), sem prejuízo da apreciação das questões que importe conhecer oficiosamente, por obstativas da apreciação do seu mérito.
12. De notar, por último, que os referidos preceitos do Código do Processo Penal, quando necessário, devem ser “devidamente adaptados” ao processo contraordenacional (artigo 41.º, n.º 1, do Regime Geral das Contraordenações).
13. Nestes termos, e perante as conclusões de recurso, cumpre ao presente tribunal responder à seguinte questão:
i. A conduta da Recorrente integra o tipo de ilícito pelo qual foi condenada?
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III. FUNDAMENTAÇÃO
A. DA MATÉRIA DE FACTO
14. A sentença recorrida fixou a factualidade conforme seguidamente transcrito. Factos provados
a) A UNIDADE LOCAL DE SAÚDE DO ALGARVE, E. P. E., é uma entidade prestadora de cuidados de saúde, inscrita no SRER da ERS sob o n.º 22789, desde 10 de setembro de 2013, e registou sob sua responsabilidade nove estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde.
b) No âmbito do processo de inquérito que correu termos no Departamento de Intervenção Administrativa e Sancionatória da ERS, registado sob o n.º ERS/75/2018, instaurado em virtude de um caso de retenção de uma compressa no interior de uma utente sujeita a uma cirurgia no Hospital do Algarve, explorado pela Recorrente, o Conselho de Administração da Entidade Reguladora da Saúde deliberou, em 24 de fevereiro de 2019, emitir uma instrução ao então Centro Hospitalar Universitário do Algarve, E.P.E.
c) A referida instrução emitida pelo Conselho de Administração da ERS, cuja cópia consta a fls. 60 a 68, dando-se aqui por integralmente reproduzido o seu teor, determinava o seguinte: “[…] (i) Garantir, em permanência, que, na prestação de cuidados de saúde, são respeitados os direitos e interesses legítimos dos utentes, nomeadamente, o direito aos cuidados adequados e tecnicamente mais corretos, em conformidade com o estabelecido no artigo 4.º da Lei n.º 15/2014, de 21 de março; (ii) Reforçar, através de protocolo ou regulamento escrito, todos os procedimentos de verificação da qualidade e segurança cirúrgica existentes, garantindo, em permanência, a correta e minuciosa contagem de todos os instrumentos e compressas utilizados pelaequipa cirúrgica, quer no início, quer no final de qualquer procedimento cirúrgico […]”.
d) Da referida instrução constava ainda a seguinte menção: “[…] A instrução ora emitida constitui decisão da ERS, sendo que a alínea b) do n.° 1 do artigo 61.° dos Estatutos da ERS, aprovados em anexo ao Decreto-Lei n.° 126/2014, de 22 de agosto, configura como contraordenação punível in casu com coima de € 1000.00 a € 44 891,81, "[....] o desrespeito de norma ou de decisão da ERS que, no exercício dos seus poderes regulamentares, de supervisão ou sancionatórios determinem qualquer obrigação ou proibição, previstos nos artigos 14.°, 16.°, 17.°, 19.°, 20.°, 22.°, 23.°.
e) A Arguida era conhecedora do teor da Instrução emitida pela ERS em 24 de fevereiro de 2019, no âmbito do processo de inquérito que correu termos sob o n.º ERS/75/2018 e não impugnou tal deliberação.
f) Tinha igualmente conhecimento da consequência do incumprimento da instrução.
g) Após o referido de inquérito ERS/75/2018 foi instaurado um procedimento de monitorização.
h) Nesse procedimento de monitorização e por ofício de 28 de abril de 2021, a Recorrente deu conhecimento à ERS do relatório final resultado da auditoria interna aos procedimentos associados à "Lista de verificação da Cirurgia Segura” nos seguintes termos: “1- A 28 de maio de 2019, sendo solicitada resposta a curto prazo pela Direção Clínica, a Presidente da Comissão da Qualidade e Segurança, [...] iniciou a apreciação da reclamação que deu origem ao processo n° 75/2018 da ERS; 2- Assim, no Capítulo VI. DECISÃO do processo n" 75/2018 da ERS, damos conta que concomitantemente com a aplicação da Norma Hospitalar n° 24 do CHUA, cuja Norma n° 2/2013 da" DGS faz parte integrante, realizamos um conjunto de procedimentos adicionais de segurança e verificação associados à "Cirurgia segura, salva vidas"; 3- Foi realizada auditoria interna, aos procedimentos associados à "Lista de Verificação da Cirurgia Segura", utilizando para isso a lista de verificação da "Cirurgia Segura, Salva Vidas" da Direção Geral da Saúde; 4- Esta auditoria decorreu na primeira semana de junho deste ano, tendo sido concretizadas por auditoras internas, da Unidade de Faro, presencialmente, no Bloco Operatório, em dois dias distintos, sendo que os intervenientes nos procedimentos auditados só no momento da auditoria tiveram conhecimento que esta se estava a realizar; 5- A referida auditoria cumpriu os preceitos formais na sua realização, sendo que as auditoras não pertencem à unidade de cuidados onde foram realizadas as auditorias; 6- Do relatório efetuado, foram -identificadas "recomendações para um melhor cumprimento da Norma DGS n° 2/2013, no CHUA, Unidade Hospitalar de Faro"; 7- Decorreu ainda auditoria aos processos clínicos, em contexto de formação interna de auditores, no dia 11 de junho, no seguimento do "Sistema de prevenção e monitorização da cirurgia segura", com preenchimento da lista de verificação da cirurgia segura em doentes internados; 8- Nesta última auditoria, avaliados que foram 6 processos clínicos, constatou-se que o registo das contagens de instrumentos, compressas e corto-perfurantes estava realizado na íntegra. 9- Às Recomendações da ERS e do resultado da Auditoria Interna, acrescentamos ainda os dados de auditoria em contexto de formação, o que levou à realização de reuniões de orientação com as equipas de enfermagem do Bloco Operatório Central e Unidade de Cirurgia de Ambulatório, sobre o tema "Segurança do doente — Cirurgia segura", com especial ênfase na confirmação do parâmetro "contagem de instrumentos, compressas e corto-perfurantes"; 10- Estiveram presentes 25 enfermeiros na reunião no Bloco Operatório Central numa equipa de 28 enfermeiros disponíveis (ausentes por ferias e doença 12, por terem trabalhado de Noite 4 e por estarem de folga ou descanso 8); 11- Estiveram presentes 13 enfermeiros na reunião na Unidade de Cirurgia de Ambulatório, a totalidade da equipa de enfermeiros (ausentes 3 por férias e doença e 1 por folga); 12- Nestas reuniões de orientação foram focados os aspectos relacionados com a "cirurgia segura" e de acordo com as recomendações da ERS e resultados das auditorias entretanto realizadas, foram reforçadas as orientações para o cumprimento da norma da DGS/OMS sobre este assunto; 13- Foram indicadas também sugestões de melhoria, relacionadas com a correta contagem de cortoperfurantes, instrumentos e compressas, tendo ficado o compromisso do registo dessas evidências, a evidenciar em próximas_ auditorias de acompanhamento e avaliação; 14- Ainda foi implementada uma nova medida de melhoria, no que diz respeito ao registo do penso cirúrgico. Este procedimento avaliará com rigor todos os passos de contacto com a pessoa operada; 15- No âmbito de Cirurgia de Ambulatório evidencia-se o registo da Consulta de Enfermagem não presencial (24h pós-operatório), com todos os registos "sem queixas, viagem, passar bem a noite, ausência de complicações, com exeção de dor", 3 em escala de O a 10, não tendo recorrido a medicação suplementar ou a unidade de saúde; 16- Após consulta do SCIínico (ferramenta de registo informatizado), verifica se que foi realizado o registo atempado da "verificação da segurança cirúrgica", com confirmação de "as contagens de instrumentos, compressas e corto perfurantes", sem registo nas "informações adicionais" na mesma página do SCIínico; 17- De acordo com o preceituado pela ERS, aceite e cumprido por parte dos intervenientes neste processo, damos cumprimento à sua decisão, tendo reforçado os procedimentos de verificação da qualidade e segurança cirúrgica, garantindo em permanência a correta contagem de instrumentos, compressas e corto-perfurantes utilizados pela equipa cirúrgica, instaurando ainda melhorias na evidência desse registo".
i) Na sequência destes elementos, a ERS, em 07.05.2021, arquivou o referido procedimento de monitorização, conforme cópia da respetiva decisão junta aos autos a fls. 69 a 71, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, com os seguintes fundamentos: “- foram adotadas medidas no sentido de garantir o reforço dos procedimentos de verificação da qualidade e segurança cirúrgica existentes, garantindo, em permanência, a correta e minuciosa contagem de todos os instrumentos e compressas utilizados pela equipa cirúrgica, quer no início, quer no final de qualquer procedimento cirúrgico; - até à presente data, não foi tomado conhecimento de qualquer reclamação, ou constatada qualquer outra situação idêntica ou similar, ao caso em concreto, que justificasse a necessidade de uma qualquer intervenção regulatória adicional da ERS;”.
j) No dia 12 de janeiro de 2021 AA… foi submetida a uma cesariana no Hospital de Faro explorado pela Arguida tendo a equipa que efetuou a intervenção cirúrgica deixado uma compressa no interior do corpo da utente, o que motivou a apresentação de uma reclamação no dia 26.01.2021.
k) Em 2007 começou a funcionar o bloco operatório do Bloco de Partos do Hospital de Faro, explorado pela Arguida.
l) Desde essa data que a equipa cirúrgica que realizava cesarianas não tinha enfermeiro instrumentista.
m) A contagem das compressas e dos instrumentos corto perfurantes era efetuada pelo cirurgião e pelo enfermeiro circulante, como sucedeu no caso da utente AA….
n) A não presença de enfermeiro instrumentista na equipa cirúrgica aumenta o risco de serem deixados no interior do utente compressas e instrumentos corto-perfurantes, como aconteceu na situação da utente AA….
o) A Arguida, pelo menos, em 12.01.2021 representou como possível que ao não dotar as equipas cirúrgicas do bloco operatório do Bloco de Partos de um enfermeiro instrumentista estava a aumentar o risco de ocorreram casos de incidência de compressas ou instrumentos cirúrgicos retidos no organismo dos operados, como aquele que veio a ocorrer em 12.01.2021 com AB…, e, consequentemente, omitia os cuidados tecnicamente mais corretos, em violação da instrução da ERS com o n.º ERS/75/2018, tendo-se conformado com essa possibilidade, tendo agido de forma livre e com consciência da sua ilicitude.
p) A Arguida foi condenada pela ERS, no âmbito do processo de contraordenação com a referência PCO/323/2019, por decisão proferida em 19 de janeiro de 2023, na coima de € 2.500 por desrespeito da decisão da ERS, emitida por deliberação do Conselho de Administração de 14 de março de 2019, no âmbito do processo de inquérito registado sob o n.° ERS/149/2018.
q) No ano de 2023, a Arguida teve um volume de negócios no montante de € 211.598.004,68, um resultado líquido negativo do período no valor de € 57.787.058,66 e apresentou um capital próprio negativo no montante de € 11.241.961,13.
r) A dotação das equipas cirúrgicas de enfermeiro instrumentista não anula a incidência de compressas ou instrumentos cirúrgicos retidos no organismo dos operados.
s) A incidência de compressas ou instrumentos cirúrgicos retidos no organismo dos operados é, segundo alguns estudos, de 1 em 1000 a 1 em 1500 cirurgias em cirurgias pélvicas, entre as quais as cesarianas.
t) Desde maio de 2022 que a Arguida dotou as equipas cirúrgicas do bloco operatório do Bloco de Partos de um enfermeiro instrumentista.
u) O atual Conselho de Administração da Unidade Local de Saúde do Algarve iniciou as suas funções em 2023.
v) A Arguida não revela sentido crítico da sua conduta.
Factos não provados
a) Existiam recursos tecnológicos a que a Arguida poderia ter recorrido para minimizar situações como a ocorrida em relação à utente AA….
b) Os cálculos de dotação segura dos cuidados de enfermagem realizados pelo enfermeiro gestor responsável pelo bloco de partos nunca considerou que a dotação de pessoal de enfermagem estivesse abaixo do exigido para que as intervenções cirúrgicas se pudessem realizar.
c) Desde o início de funcionamento do bloco operatório do Bloco de Partos até à cesariana realizada à utente em 12 de janeiro de 2021 não existiu qualquer ocorrência deste tipo.
d) A incidência de esquecimento de compressas ou objetos no corpo de uma utente em 14 anos é muito baixa e está dentro do limite estatístico considerado para unidades hospitalares com boas práticas.
e) As cesarianas são as cirurgias em que o risco de incidência de compressas ou instrumentos cirúrgicos retidos no organismo dos operados é maior.
Tudo o mais que tenha sido alegado e que conste na decisão impugnada sem reflexo nos factos provados e não provados é matéria de direito, de natureza conclusiva ou irrelevante.
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B. DO MÉRITO DO RECURSO
i. A conduta da Recorrente integra o tipo de ilícito pelo qual foi condenada?
15. Alegou a Recorrente, em essência, o seguinte:
“9ª- As recomendações da OMS e a Norma da DGS relativas à Cirurgia Segura determinam a contagem dos instrumentos e das compressas usados na intervenção cirúrgica, mas não determinam a obrigatoriedade da existência de um enfermeiro instrumentista na equipa de enfermagem. 10º- Também a instrução da ERS é omissa quanto à obrigatoriedade de incluir um enfermeiro instrumentista nas equipas cirúrgicas. 11º- A instrução determina, expressamente, que sejam adotados protocolos ou regulamentos com vista a garantir que a contagem de instrumentos e compressas é feito, de forma minuciosa, no início e no fim de cada intervenção. 12º- Não existe qualquer norma jurídica que determine a obrigatoriedade de constituição de equipas de cirurgia com enfermeiro instrumentista, assim como a instrução da ERS não previa essa necessidade ou obrigatoriedade. 13ª- Assim, a recorrente não praticou qualquer facto ilícito já que não existe norma jurídica, recomendação da OMS ou da DGS ou instrução da ERS que determine a obrigatoriedade de constituição de equipas cirúrgicas com enfermeiro instrumentista.”.
16. O Ministério Público respondeu, em essência, que “[t]endo ficado provado na douta sentença que a Recorrente não optou dolosamente pelos procedimentos tecnicamente mais corretos para a mitigação do risco de retenção de compressas, que se consubstanciava naintegração na equipa cirúrgica de um enfermeiro instrumentista, com a sua conduta preencheu o tipo infracional por que foi condenada pelo douto TCRS.”.
17. O ERS respondeu, em essência, que “[n]ão podem subsistir dúvidas que de facto, ao não garantir a presença de enfermeiro instrumentista na cirurgia em questão, a Recorrente não cumpriu a instrução que lhe foi dirigida pela ERS.”.
Apreciação da questão por este Tribunal ad quem
18. A Recorrente vem condenada pelo TCRS, pela prática de uma contraordenação por desrespeito da decisão da ERS, emitida por deliberação do Conselho de Administração de 24.02.2019 no âmbito do processo de inquérito sob o n.º ERS/75/2018, o que constitui uma contraordenação prevista e punida pela alínea b), do n.º 1, do artigo 61.º dos Estatutos da ERS (publicados em anexo ao Decreto Lei n.º 126/2014, de 22 de agosto), em conjugação com o artigo 19.º, alíneas a) e b), do mesmo diploma.
19. Segundo o artigo 61.º, n.º 1, al. b) dos aludidos Estatutos:
“1 - Constitui contraordenação, punível com coima de (euro) 750 a (euro) 3740,98 ou de (euro) 1000 a (euro) 44 891,81, consoante o infrator seja pessoa singular ou coletiva: a) …; b) O desrespeito de norma ou de decisão da ERS que, no exercício dos seus poderes regulamentares, de supervisão ou sancionatórios, determinem qualquer obrigação ou proibição, previstos nos artigos 14.º, 16.º, 17.º, 19.º, 20.º, 22.º e 23.º”.
20. Conforme resulta da matéria de facto provada:
“b) No âmbito do processo de inquérito que correu termos no Departamento de Intervenção Administrativa e Sancionatória da ERS, registado sob o n.º ERS/75/2018, instaurado em virtude de um caso de retenção de uma compressa no interior de uma utente sujeita a uma cirurgia no Hospital do Algarve, explorado pela Recorrente, o Conselho de Administração da Entidade Reguladora da Saúde deliberou, em 24 de fevereiro de 2019, emitir uma instrução ao então Centro Hospitalar Universitário do Algarve, E.P.E. c) A referida instrução emitida pelo Conselho de Administração da ERS, cuja cópia consta a fls. 60 a 68, dando-se aqui por integralmente reproduzido o seu teor, determinava o seguinte: “[…] (i) Garantir, em permanência, que, na prestação de cuidados de saúde, são respeitados os direitos e interesses legítimos dos utentes, nomeadamente, o direito aos cuidados adequados e tecnicamente mais corretos, em conformidade com o estabelecido no artigo 4.º da Lei n.º 15/2014, de 21 de março; (ii) Reforçar, através de protocolo ou regulamento escrito, todos os procedimentos de verificação da qualidade e segurança cirúrgica existentes, garantindo, em permanência, a correta e minuciosa contagem de todos os instrumentos e compressas utilizados pela equipa cirúrgica, quer no início, quer no final de qualquer procedimento cirúrgico […]”. d) Da referida instrução constava ainda a seguinte menção: “[…] A instrução ora emitida constitui decisão da ERS, sendo que a alínea b) do n.° 1 do artigo 61.° dos Estatutos da ERS, aprovados em anexo ao Decreto-Lei n.° 126/2014, de 22 de agosto, configura como contraordenação punível in casu com coima de € 1000.00 a € 44 891,81, "[....] o desrespeito de norma ou de decisão da ERS que, no exercício dos seus poderes regulamentares, de supervisão ou sancionatórios determinem qualquer obrigação ou proibição, previstos nos artigos 14.°, 16.°, 17.°, 19.°, 20.°, 22.°, 23.°.”.
21. É, portanto, relativamente à ora citada decisão da ERS, em conjugação com o citado normativo dos Estatutos da ERS que devemos apreciar se a conduta apurada à Recorrente, constitui um facto ilícito contraordenacional.
22. Antes de avançarmos, contudo, será conveniente tecer algumas considerações sobre os métodos de tipificação presentes na norma incriminadora em causa.
23. Com efeito, diferentemente do que sucede no domínio do Direito Penal, em sede de Contraordenações, é frequente o Legislador construir o tipo contraordenacional, utilizando conceitos indeterminados e, inclusive, através de remissões materiais para outra(s) norma(s) do mesmo diploma ou, até, para critérios fixados pela Administração, como é aqui o caso (vide, a este respeito, por exemplo, os Acs. TC n.ºs 231/2020 e 494/2024).
24. O entendimento do Tribunal Constitucional nesta matéria, como ilustram os dois acórdãos aludidos é que tal técnica legislativa não fere o princípio da legalidade.
25. Por seu turno, decorre da mencionada jurisprudência que a determinabilidade da obrigação imposta pelo tipo legal deverá ser testada tendo como base o ponto de vista dos seus destinatários típicos, pois é face a estes que interessa verificar se a norma é o suficientemente precisa para que consigam evitar incorrer em condutas por ela proibidas.
26. Nesta esteira, no caso presente deve ter-se em consideração que os destinatários da norma não são todos e quaisquer administrados, considerados de modo indiferenciado, mas destinatários muito específicos.
27. Com efeito, apenas “[e]stão sujeitos à regulação da ERS, no âmbito das suas atribuições e para efeitos dos [respetivos] estatutos, todos os estabelecimentos prestadores de cuidados de saúde, do setor público, privado, cooperativo e social, independentemente da sua natureza jurídica, nomeadamente hospitais, clínicas, centros de saúde, consultórios, laboratórios de análises clínicas, equipamentos ou unidades de telemedicina, unidades móveis de saúde e termas.” (cf. artigo 4.º, n.º 2, dos Estatutos da ERS).
28. Neste domínio específico, portanto, há que não olvidar que é suposto que os destinatários das decisões emitidas pela ERS tenham um conhecimento técnico e científico, na área da saúde, profissional e atualizado, e realizem os cuidados de saúde de que estão incumbidos, de acordo com as melhores práticas.
29. Aqui chegados, vejamos mais de perto o decidido pelo TCRS.
30. Neste âmbito, a sentença recorrida refere o seguinte:
“99. No caso, a Recorrente não cumpriu a primeira instrução, pois ficou provado que a presença de enfermeiro instrumentista na equipa cirúrgica diminui o risco de serem deixados no interior do utente compressas e instrumentos coro-perfurantes, com[o] aconteceu na situação da utente AA… (cf. alínea n) dos factos provados). Por conseguinte, este procedimento era tecnicamente mais adequado do que aquele que era adotado pela Recorrente para prevenir esse risco e que consistia na contagem ser efetuada pelo cirurgião e pelo enfermeiro circulante (cf. alíneas l) e m) dos factos provados).”.
31. Concluiu, assim, o tribunal a quo, que foi violado o dever de“[g]arantir, em permanência, que, na prestação de cuidados de saúde, são respeitados os direitos e interesses legítimos dos utentes, nomeadamente, o direito aos cuidados adequados e tecnicamente mais corretos, em conformidade com o estabelecido no artigo 4.º da Lei n.º 15/2014, de 21 de março”, constante de (i) da decisão da ERS.
32. De seguida, a sentença recorrida sustenta a referida conclusão em jurisprudência e obras científicas, para depois apreciar e afastar a argumentação então aduzida pela ora Recorrente, concluindo que se verificam, in casu, todos os elementos objetivos e subjetivos do tipo.
33. Perante a matéria de facto dada como provada, há que concordar com a sentença recorrida.
34. Efetivamente, apurou-se, desde logo, o seguinte:
“k) Em 2007 começou a funcionar o bloco operatório do Bloco de Partos do Hospital de Faro, explorado pela Arguida. l) Desde essa data que a equipa cirúrgica que realizava cesarianas não tinha enfermeiro instrumentista. m) A contagem das compressas e dos instrumentos corto perfurantes era efetuada pelo cirurgião e pelo enfermeiro circulante, como sucedeu no caso da utente AA…. n) A não presença de enfermeiro instrumentista na equipa cirúrgica aumenta o risco de serem deixados no interior do utente compressas e instrumentos corto-perfurantes, como aconteceu na situação da utente AA... o) A Arguida, pelo menos, em 12.01.2021 representou como possível que ao não dotar as equipas cirúrgicas do bloco operatório do Bloco de Partos de um enfermeiro instrumentista estava a aumentar o risco de ocorreram casos de incidência de compressas ou instrumentos cirúrgicos retidos no organismo dos operados, como aquele que veio a ocorrer em 12.01.2021 com AB…, e, consequentemente, omitia os cuidados tecnicamente mais corretos, em violação da instrução da ERS com o n.º ERS/75/2018, tendo-se conformado com essa possibilidade, tendo agido de forma livre e com consciência da sua ilicitude.”.
35. Recorde-se que, segundo o artigo 4.º, n.º 2, da Lei n.º 15/2014, lei esta que consolida a legislação em matéria de direitos e deveres do utente dos serviços de saúde: “O utente dos serviços de saúde tem direito à prestação dos cuidados de saúde mais adequados e tecnicamente mais corretos.”.
36. É, portanto, no contexto da citada norma que melhor se compreende a primeira instrução constante da Decisão da ERS supra citada: “Garantir, em permanência, que, na prestação de cuidados de saúde, são respeitados os direitos e interesses legítimos dos utentes, nomeadamente, o direito aos cuidados adequados e tecnicamente mais corretos, em conformidade com o estabelecido no artigo 4.º da Lei n.º 15/2014, de 21 de março”.
37. Nestes termos, a Recorrente, ao não integrar na equipa cirúrgica que realizava cesarianas um enfermeiro instrumentista, sendo certo que a não presença de enfermeiro instrumentista na equipa cirúrgica aumenta o risco de serem deixados no interior do utente compressas e instrumentos corto-perfurantes, apenas podemos concluir que não foram garantidos, em permanência, o direito aos cuidados adequados e tecnicamente mais corretos.
38. Mostra-se, por isso, preenchido o tipo contraordenacional pelo qual a Recorrente foi condenada pelo TCRS.
39. E a esta conclusão não se opõe, tal como deixou consignado a sentença recorrida, o facto de “o arquivamento do procedimento de monitorização”, pois “esta decisão não compromete a verificação dos elementos típicos.... A verificação ou não dos elementos típicos depende apenas da subsunção dos factos ao direito e não de qualquer constatação prévia por parte da ERS, pelo que nenhuma decisão em sentido contrário também seria suscetível de os afastar.”.
40. Nestes termos o recurso será julgado improcedente.
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IV. DECISÃO
Pelo exposto, acorda-se em julgar o presente recurso totalmente improcedente, confirmando-se a sentença recorrida.
Custas pela Recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs (artigo 94.º, n.º 3, do RGCO).
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Lisboa, 26-03-2025
Alexandre Au-Yong Oliveira
Bernardino Tavares
A.M da Luz Cordeiro