DOMICÍLIO
INSOLVÊNCIA
COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
REGULAMENTO
RESIDÊNCIA HABITUAL
PRINCÍPIO DA IGUALDADE
Sumário

1. O requisito, pressuposto ou critério legal “domicílio” configura conceito legal previsto nos arts. 82º e ss. do Código Civil e, por isso, questão de direito à qual não cumpre responder em sede de decisão de facto mas, se for o caso, aferir no âmbito do enquadramento jurídico devido operar sobre os factos conhecidos nos autos.
2. As regras do Regulamento (UE) 2017/848 de 20.05.2015 sobrepõem-se às regras gerais de competência internacional previstas no nosso ordenamento jurídico, sejam as especiais (art.º 7º, nº 1, 276º a 287º e 294º a 296º do CIRE), sejam, por maioria de razão, as gerais (art.º 62º do CPC).
3. É pelas regras do Regulamento, e não pelas regras de competência internacional do direito interno, que se afere se o mesmo é ou não aplicável ao caso, o que se faz através da valoração jurídica dos factos alegados e disponíveis nos autos à luz do critério de competência internacional por aquele previsto e termos em que o mesmo é aí definido.
4. O critério para aferir da competência internacional de um Estado-membro da UE para a abertura e tramitação de determinado processo de insolvência não é o da localização do domicílio dos devedores, mas sim o da localização do centro dos seus interesses principais (CIP), que pode ou não corresponder ao local da residência habitual.
5. Ainda assim, o CIP do devedor só releva como fator de conexão de competência relevante se os terceiros o puderem perspetivar ou reconhecer como tal, o que se afere no momento da abertura do processo, e não o da constituição das dívidas que integram a situação da insolvência.
6. O Estado melhor colocado para aferir da atual situação patrimonial e económico financeira dos devedores é o país no qual atualmente residem, procuram (outro) espaço para residir de modo mais condigno, trabalham e auferem os rendimentos que sustentam o respetivo agregado familiar, e onde os seus filhos frequentam a escola; no caso, o país para onde os recorrentes emigraram com o objetivo de aí alcançarem melhores condições remuneratórias e de vida.
7. Não está na disponibilidade do devedor optar pela aplicação das normas de direito interno reguladoras da competência internacional dos tribunais portugueses em detrimento das normas do Direito da União Europeia vinculativas e aplicáveis na matéria nem, por isso, optar por uma ou por outra jurisdição de acordo com a sua conveniência ou vontade à margem dos critérios de competência neste previstos.
8. No âmbito da aplicação do Regulamento (UE) 2017/848, por regra o processo de insolvência particular previsto nos arts. 294º e ss. do CIRE só pode ser aberto depois da abertura do processo principal de insolvência no Estado-membro com competência internacional, caso em que aquele processo adota a designação de processo secundário (cfr. art.º 294º, nº 3 do CIRE e art.º 3º, nº 3 do Regulamento).
9. No âmbito da aplicação do Regulamento (UE) 2017/848, a abertura de processo particular antes da abertura do processo principal só é admissível nas circunstâncias ali previstas (art.º 3º, nº 4) e, nesse caso, adota a designação de processo de insolvência territorial (cfr. art.º 294º, nº 3 do CIRE e art.º 3º, nº 4 do Regulamento).
10. Tratando-se de insolvência transfronteiriça abrangida pelo Regulamento 2017/848, não colhe fundamentar a violação do princípio constitucional da igualdade na alegação de que a declaração de incompetência internacional dos tribunais portugueses determina a impossibilidade de os devedores acederem ao perdão das dívidas vencidas que integram a sua situação de insolvência.
11. A possibilidade de os cidadãos portugueses terem tratamento jurídico distinto em função do Estado-membro onde têm o seu CIP não é suscetível de configurar violação do princípio constitucional da igualdade e é realidade perfeitamente assumida e aceite pelo próprio Direito Comunitário.

Texto Integral

Acordam as juízas da 1ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa

I - Relatório
1. Por requerimento de 04.02.2025, A., com o CC nº 136… emitido pela República Portuguesa e NIF 257…, e B., com o CC nº134… emitido pela República Portuguesa e NIF 248…, casados entre si, apresentaram-se a juízo pedindo a declaração da sua situação de insolvência.
Alegaram que: residem na casa dos pais da requerente mulher, sita na Rua… Charneca da Caparica; em 2023 a requerente ficou desempregada e em 2024 emigraram para a Holanda para obterem rendimentos suficientes a uma vida condigna do seu agregado familiar, integrado por 4 filhas menores (entre os 3 e os 14 anos de idade); em 2021 e 2023 contrataram um crédito automóvel com a Bicredit e um crédito pessoal com a Cofidis para aquisição de veículo e para fazer face a despesas correntes do agregado familiar, cujas prestações, até emigrarem para a Holanda, eram pagas com a ajuda dos pais do requerente, que não conseguem continuar a ajudar; “[N]este momento, os Requerentes e as suas quatro filhas vivem num parque de campismo na Holanda” mas “estão à procura de casa condigna onde possam residir com as suas quatro filhas”, o requerente exerce funções de operador de limpezas, auferindo rendimento médio mensal de cerca de €2.700,00, e a requerente ainda não conseguiu arranjar trabalho na Holanda mas mantém-se à procura de atividade remunerada. Mais alegaram que as despesas mensais do respetivo agregado familiar ascendem ao valor médio mensal global de €5.150,00, no que, para além de alimentação (€2.000,00), eletricidade, água, gás, telecomunicações e saúde, incluíram renda mensal de €1.500,00, despesas escolares e despesas com infantário para duas filhas.
Juntaram relação de credores conforme mapa de responsabilidades de crédito do Banco de Portugal (BCP, BNP Paribas, Unicre, Universo, IME SA, e Wizink Bank, com fundamento em cartão de crédito, Bircredit e Cofidis com fundamento em contratos de crédito) e relação de bens, da qual consta apenas veículo automóvel ligeiro de passageiros da marca DOGE, modelo JC, matrícula ..-IM-.. de 2009.11.27. Mais juntaram certidão dos respetivos assentos de nascimento e de casamento, e folhas de pagamento salarial semanal ao requerente referentes ao período de 04 de novembro a 29 de dezembro de 2024 (redigidas em holandês).
2. Notificados para se pronunciarem sobre a atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses - esclarecendo o que tiverem por conveniente quanto ao lugar dos seus principais interesses ou outros elementos de conexão para os efeitos do art.º 62º do CPC -, os requerentes alegaram ter o centro dos seus principais interesses em Portugal, que justificaram alegando que “têm em Portugal todos os familiares e amigos, e também todos os seus Credores”, “a residência dos Requerentes em Portugal é aquela que é a mais conhecida por terceiros, nomeadamente, pelos credores”, “na Holanda (…) apenas procuraram emprego (…), sendo com Portugal que mantêm a conexão mais estreita, procurando passar o máximo de tempo possível em Portugal e pretendendo a este país regressar definitivamente logo que possível.”, “não pode esta deslocação e estadia provisórias dos Requerentes no estrangeiro sobrepor-se aos critérios materiais subjacentes ao conceito de principais interesses acima concretizado”, o Regulamento nº2015/848 prevê “expressamente que o centro dos interesses principais não se presume ser o lugar da residência habitual quando esta haja sido transferida para outro Estado-Membro nos seis meses anteriores ao pedido de abertura do processo de insolvência (art.º 3.º, n.º 1 do Regulamento)”, distinguir entre o devedor que permanece em Portugal e o devedor que sai temporariamente do país em busca e melhores condições de trabalho para proporcionar ao primeiro a exoneração do passivo restante e ao segundo é contrário ao espirito da lei e é inconstitucional por violação do princípio da igualdade previsto pelo art.º 13º da Constituição da República Portuguesa, por consubstanciar tratamento desigual de pessoas em identidade substancial quanto à mesma pretensão de tutela jurisdicional. Concluíram reiterando os pedidos de declaração da sua insolvência e da exoneração do passivo restante.
3. Por decisão de 13.02.2025 foi declarada verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta dos tribunais portugueses para a ação e, em consequência, indeferida a petição de apresentação à insolvência, que foi objeto de publicitação
4. Inconformados, os requerentes apresentaram o presente recurso requerendo a revogação daquela decisão, “devendo declarar-se o Tribunal “a quo” competente para o processo normal de insolvência (e não particular) a que os Recorrentes se apresentaram, com todas as consequências legais.
Formularam as seguintes conclusões:
1. (…)
DO ERRO SOBRE OS FACTOS
2. Contrariamente ao decidido pelo Tribunal “a quo”, no dia em que se apresentaram à insolvência, peticionando a sua declaração de insolvência e a concessão da exoneração do passivo restante (04/02/2025) e, bem assim, igualmente à data de hoje, os Recorrentes tinham e têm o seu domicílio fiscal em Portugal (cfr. certidões emitidas pela Autoridade Tributária e Aduaneira, acima juntas como Docs. n.º 1 e 2).
3. A circunstância de os Recorrentes se encontrarem há algumas semanas e, ainda por cima, de forma exclusivamente temporária na Holanda não se mostra suficiente para determinar a alteração da sua residência habitual para fora de Portugal,
4. O que ressalta desde logo do facto de a viagem dos Recorrentes até à Holanda ter ocorrido muito recentemente e de se perspetivar de curto prazo, tanto assim é que os mesmos se encontram a pernoitar, neste momento, num parque de campismo na Holanda (cfr. artigo 12.º da petição inicial dos Recorrentes de 04/02/2025, constante dos autos).
5. A mudança de domicílio dos Recorrentes para fora de Portugal – como erradamente assumiu o Tribunal “a quo” – não resulta de nenhum elemento dos autos, mas antes o contrário: todas as moradas que constam dos autos correspondem à morada sita em Portugal, a saber a Rua Jacinto Freire de Andrade, n.º 28, R/C, 2820-149 Charneca da Caparica, Portugal.
6. A desconsideração do domicílio dos Recorrentes em Portugal é, pois, especificamente um dos concretos pontos de facto que os Recorrentes consideram incorretamente julgados (cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. a) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE).
7. O cabeçalho da petição inicial dos Recorrentes de 04/02/2025 (onde se identificam as partes e as suas moradas), o artigo 5.º da mesma petição inicial e as procurações forenses outorgadas à Mandatária ora signatária (Doc. n.º 20 da petição inicial), em conjugação com a ausência nos autos de elementos comprovativos de alteração do domicílio para a Holanda, impunham uma decisão, sobre o referido ponto de facto impugnado, diversa da recorrida (cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. b) do CPC, ambos ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE).
8. A alteração da matéria de facto, ora requerida, assume decisiva relevância ao conduzir a uma decisão diversa, uma vez que leva necessariamente à verificação do pressuposto processual relativo à competência do Tribunal “a quo”, visto que, nos termos do disposto no artigo 7.º, n.º 1 do CIRE, “é competente para o processo de insolvência o tribunal da sede ou do domicílio do devedor” (sublinhado nosso).
9. Face ao exposto, deveria ter sido dado como provado que o domicílio dos Recorrentes se situava (e situa-se) em Portugal (Rua Jacinto Freire de Andrade, n.º 28, R/C, 2820-149 Charneca da Caparica, Portugal) e, em consequência, o Tribunal “a quo” deveria ter-se julgado competente para o processo normal de insolvência dos Recorrentes (cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. c) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE), o que se requer.
DA ERRADA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA LEI
10. A Lei portuguesa determina a competência para o processo de insolvência, essencialmente, em função do domicílio do devedor (cfr. art.º 7.º, n.º 1 do CIRE) e/ou do lugar em que o devedor tenha o centro dos seus principais interesses (cfr. art.º 7.º, n.º 2 do CIRE) (critérios alternativos – cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 11/07/2024, acima parcialmente transcrito).
11. No caso “sub judice”, tanto um critério como outro estão preenchidos, pelo que poderia a presente ação de insolvência ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa (cfr. art.º 62.º, alínea a) do CPC).
12. Certo é que, sendo por V. Exas. julgada procedente a alteração da matéria de facto acima requerida, de modo a dar-se como provado que o domicílio dos Recorrentes se situava (e situa-se) em Portugal, ter-se-á de concluir, necessariamente, pela competência dos tribunais portugueses (mormente, do Tribunal “a quo”) para o processo de insolvência dos Recorrentes ao abrigo do disposto no artigo 7.º, n.º 1 do CIRE.
13. E, ainda que se entendesse que o domicílio dos Recorrentes não se situava em Portugal – o que apenas se admite por mero dever de patrocínio –, sempre se diria que o centro dos principais interesses dos Recorrentes permanece em Portugal, contrariamente ao que foi entendido pelo Tribunal “a quo”.
14. Em face das regras decorrentes do Regulamento n.º 2015/848, a competência do Tribunal “a quo” para abrir o presente processo de insolvência encontra enquadramento legal, designadamente, no artigo 3.º, n.º 1 do Regulamento, que autoriza, no caso “sub judice”, a abertura de um processo de insolvência principal em Portugal pelo facto de os Recorrentes deterem aqui o centro dos seus principais interesses.
15. Sobre o que seja o centro dos interesses principais, o aludido Regulamento n.º 2015/848 refere ser “o local em que o devedor exerce habitualmente a administração dos seus interesses de forma habitual e cognoscível por terceiros” (cfr. art.º 3.º, n.º 1, 2.ª parte do Regulamento n.º 2015/848).
16. Ora, é com o Estado Português que os Recorrentes mantêm as relações pessoais e económicas mais estreitas em detrimento de qualquer outro Estado.
17. Em contrapartida, a ligação dos Recorrentes à Holanda não passa de uma ligação extremamente recente, transitória e fraca, pois, tal como os Recorrentes explicaram nos autos (petição inicial de 04/02/2025 e requerimento de 08/02/2025), a viagem até à Holanda ocorreu muito recentemente e perspetiva-se de curto prazo, tanto que se encontram a pernoitar, neste momento, num parque de campismo na Holanda (cfr. artigo 12.º da petição inicial dos Recorrentes de 04/02/2025, constante dos autos).
18. A intensidade da conexão com Portugal resulta, por exemplo, do facto de os Recorrentes manterem o seu domicílio fiscal em Portugal – aqui declarando os seus rendimentos e pagando os seus impostos –, assim como do facto de Portugal ser o Estado onde se encontram situados todos os créditos sobre os Recorrentes que deram, precisamente, origem ao presente processo de insolvência, os quais os Recorrentes almejam satisfazer através do presente processo,
19. Também foi em Portugal que adquiriram todos os bens de que são proprietários, detendo atualmente uma viatura automóvel que adquiriram por intermédio da sociedade comercial portuguesa Bicredit, Sociedade Financeira de Crédito, S.A., portadora do NIPC …, com sede na Avenida Engenheiro …, Torre .., 12.º, sala …, Lisboa, e não por intermédio de qualquer outra entidade estrangeira, nem em qualquer outro país.
20. Porque todos os créditos que deram azo à situação de insolvência foram contraídos em Portugal, tem aplicação direta o artigo 62.º, alínea b) do CPC que atribui competência aos tribunais portugueses quando tiver sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou algum dos factos que a integram.
21. Além disso, a residência dos Recorrentes em Portugal é aquela que é a conhecida por terceiros, nomeadamente, pelos credores, num contexto em que, para a determinação da competência para o processo de insolvência, releva a perspetiva de garantia da segurança jurídica e de proteção dos credores dos insolventes.
22. Não pode a deslocação e estadia provisórias dos Recorrentes no estrangeiro, por razões de desemprego em Portugal, sobreporem-se aos critérios materiais subjacentes ao conceito de principais interesses (no mesmo sentido, vide a decisão sumária do Tribunal da Relação de Lisboa de 28/05/2019, acima parcialmente transcrita).
23. Os Recorrentes apenas viajaram para a Holanda com o intuito de obter melhores condições de trabalho, nomeadamente, remuneratórias (atentos elevados níveis de desemprego e de trabalho precário em Portugal) para, desse modo, poderem ressarcir os seus credores.
24. O Recorrente marido encontra-se a trabalhar na Holanda desde o final do ano de 2024 e a apresentação à insolvência ocorreu no início do mês de fevereiro de 2025 (cfr. autos).
25. A par do referido, os Recorrentes são de nacionalidade portuguesa, têm em Portugal todos os seus familiares e amigos e estão em Portugal uma grande parte do tempo.
26. Por outro lado, tendo em conta a “ratio legis” do processo de insolvência e do procedimento de exoneração do passivo restante que o acompanha, que visa proporcionar ao devedor um “fresh start”, não se vislumbra qualquer fundamento material justificador de uma eventual distinção entre o devedor que, após o seu endividamento, permanece em Portugal e o devedor que, após o mesmo, sai temporariamente do país em busca de melhores condições de trabalho (e. consequentemente, remuneratórias) que lhe permitirão inclusive uma maior satisfação dos seus credores, proporcionando-se ao primeiro devedor a exoneração do seu passivo restante e ao segundo não.
27. Uma tal interpretação privilegiaria a inércia em detrimento da proatividade, revelando-se completamente contrária ao espírito da lei que pretende a revitalização consciente do devedor,
28. Além de que sempre consubstanciaria uma inconstitucionalidade material por violação do princípio da igualdade consagrado constitucionalmente, que exige positivamente um tratamento igual de situações de facto iguais e um tratamento diverso de situações de facto diferentes (cfr. art.º 13.º da Constituição), dado que conduziria a um tratamento desigual de pessoas em identidade substancial quanto à mesma pretensão de tutela jurisdicional.
29. Independentemente de o domicílio fiscal dos Recorrentes se situar em Portugal (o que, por si só, bastaria para a atribuição de competência aos tribunais portugueses), sempre se diria que, entre o objeto da presente ação e a ordem jurídica portuguesa há um elemento ponderoso de conexão,
30. Pelo que, tendo em conta que o direito invocado pelos Recorrentes (nomeadamente, o direito à insolvência e à exoneração do passivo restante em Portugal) não se pode tornar efetivo senão por meio de ação proposta em território português (e por se verificar dificuldade apreciável na propositura da ação em países estrangeiros com os quais os Recorrentes não têm qualquer ligação, pois os Recorrentes não tem quaisquer bens ou credores localizados na Holanda), teria, igualmente, aplicação direta o artigo 62.º, alínea c) do CPC que atribui competência aos tribunais portugueses.
31. De notar que, os Recorrentes se apresentaram a um processo normal de insolvência e não a um processo particular de insolvência, que apenas poderia ter aplicação no âmbito de uma situação de insolvência transfronteiriça assente em ligações com mais do que um Estado-Membro e em que a competência internacional para o processo principal de insolvência fosse de outro Estado-Membro, o que, como se disse, não ocorre no caso dos autos (cfr. acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 17/03/2020, acima parcialmente transcrito).
32. Em suma, ao declarar verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta dos tribunais portugueses para os termos da ação e, por conseguinte, ao indeferir liminarmente a petição de insolvência apresentada pelos Recorrentes, o Tribunal “a quo” violou as disposições conjugadas do artigo 7.º, n.º 1 e 2 do CIRE, do artigo 62.º, alíneas a), b) e c) do CPC, e do artigo 13.º da Constituição,
33. Porquanto deveriam as normas jurídicas decorrentes de tais disposições ter sido interpretadas e aplicadas pelo Tribunal “a quo” no sentido de se julgar competente para o processo normal de insolvência, conhecendo do mérito da causa e, em consequência, declarando a insolvência dos Recorrentes,
34. Razão pela qual deverá a decisão, objeto do presente recurso, ser substituída por outra que assim decida, conforme à correta interpretação das acima referidas normas.
5. Com as alegações requereram a junção de dois documentos emitidos em 05.03.2025 pelo Serviço de Finanças de Almada 3, Charneca da Caparica a certificar que os requerentes têm o seu domicílio fiscal em Rua…, Charneca da Caparica.
6. Não foram apresentadas contra-alegações.
 
II - Objeto do recurso:
Sem perder de vista que o objeto do recurso é antes de mais o mérito da crítica que vem dirigida à decisão recorrida, é consensual que o objeto do recurso é definido pelas conclusões das alegações, que definem e delimitam o âmbito de intervenção do tribunal ad quem (arts. 635º, nº 4 e 639º, nº 1 do CPC), sem prejuízo das questões cuja apreciação resulte prejudicada pela solução dada às que a precedem, ou de outras cujo conhecimento oficioso se imponha nos temos do arts. 608º, nº 2, ex vi art.º 663º, nº 2, ambos do CPC. Acresce que o tribunal de recurso não está adstrito à apreciação de todos os argumentos alegados pelas partes, mas apenas das questões de facto ou de direito por elas suscitadas que, contidas nos elementos essenciais da causa, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, sendo o tribunal livre na determinação e interpretação das normas jurídicas aplicáveis (cfr. art.º 5º, nº 3 do CPC).
Nestes termos, considerando o teor da decisão recorrida e das conclusões dos recorrentes, pelo presente recurso cumpre aferir da exceção da incompetência dos tribunais portugueses para tramitação e apreciação do pedido de declaração de insolvência dos recorrentes, que no caso passa por aferir:
a) Se deve ser “dado como provado que o domicílio dos Recorrentes se situava (e situa-se) em Portugal (Rua… Charneca da Caparica, Portugal);
b) Se, de acordo com o alegado pelos recorrentes e as normas aplicáveis ao caso, é em Portugal que se situa o centro dos seus principais interesses.

III – Questão prévia - Da admissibilidade dos documentos juntos com as alegações de recurso
Sob a epigrafe Junção de documentos e de pareceres prevê o art.º 651º do CPC que As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância. O art.º 425º do CPC prevê que Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento.
Assumindo o modelo de reponderação do nosso sistema de recurso e o disposto no art.º 611º, nº 1 do CPC – dos quais resulta que “a decisão do recurso deve reflectir a situação de facto existente no momento do encerramento da discussão em 1ª instância”[1] – , os requisitos previstos pelo art.º 425º centram-se na definição da natureza e alcance jurídico-processual da ‘impossibilidade’ da junção dos documentos, que a doutrina e a jurisprudência consensualmente reconduzem a questão de superveniência objetiva ou subjetiva do documento por referência (temporal) ao encerramento da discussão em 1ª instância. O art.º 651º prevê um novo fundamento, específico da instância recursiva, da necessidade do documento determinada pela novidade de elemento de facto ou de direito introduzido no julgamento operado pela decisão recorrida. Acresce que, como consta sumariado no acórdão da Relação de Coimbra de 18.11.2014, “I – Da articulação lógica entre o artigo 651º, nº 1 do CPC e os artigos 425º e 423º do mesmo Código resulta que a junção de documentos na fase de recurso, sendo admitida a título excepcional, depende da alegação e da prova pelo interessado nessa junção de uma de duas situações: (1) a impossibilidade de apresentação do documento anteriormente ao recurso; (2) ter o julgamento de primeira instância introduzido na acção um elemento de novidade que torne necessária a consideração de prova documental adicional.
Sem curar da (ir)relevância dos documentos em questão na apreciação do mérito do recurso, com as alegações os recorrentes juntaram duas certidões emitidas pelo Serviço de Finanças de Almada, que se limitaram a referenciar e a dar por reproduzidos na articulação da motivação do recurso (arts. 9º, 17º e 61º das alegações), sem que tenham alegado qualquer justificação para a sua apresentação apenas em sede de recurso, omissão que, por si só, é impeditiva da admissão dos documentos em sede de recurso. Como se disse, o recurso não é o momento processual próprio para instrução dos fundamentos da ação ou da defesa, e só excecional e justificadamente pode admitir-se perante o tribunal ad quem
Ainda que assim não fosse, aos documentos pretendidos juntar sempre falharia os requisitos da superveniência ou da necessidade exigidos pelo citado art.º 651º do CPC, não se vislumbrando justificação para a impossibilidade de os juntar até à prolação da decisão recorrida. Não são subjetiva nem objetivamente supervenientes nem se tornaram necessários em virtude do julgamento da 1ª instância na medida em que, por um lado, reportam a factos que eram do conhecimento pessoal dos recorrentes desde o início da instauração dos autos e, por outro lado,  estava na disponibilidade das suas vontades e ação requerer a sua produção e junção aos autos no momento processual oportuno, a saber, no âmbito do contraditório cumprido com a sua notificação para os termos da questão oficiosamente suscitada pelo tribunal, sendo certo que na resposta que ofereceram também não protestaram juntar qualquer documento nem requereram prazo para o efeito.
Nestes termos, carece de fundamento legal a junção dos documentos apresentados com as alegações de recurso, motivo pelo qual vão rejeitados[2], com consequente condenação dos recorrentes nas custas do incidente nos termos dos arts. 443º, nº 1 e art.º 27º, nº 1 do Regulamento das Custas Processuais, que se fixa em 1 UC por adequada à atividade processual a que deram causa em sede recursiva.

IV – Fundamentação de Facto
1. Conforme consta da decisão recorrida, na apreciação da questão da competência dos tribunais portugueses para o processo de insolvência dos recorrentes o tribunal a quo considerou o alegado pelos recorrentes na petição inicial, e que sintetizou nestes termos:
- têm nacionalidade portuguesa;
- viveram em Portugal até 2024, altura em que emigraram para a Holanda onde residem actualmente;
- não possuem bens além de um veículo automóvel;
- o único rendimento que têm é proveniente do vencimento do requerente que exerce funções de operador de limpeza na Holanda.
2. Para além desses dados e dos acima descritos em sede de relatório, para os quais se remete, para melhor contextualização e compulsar da apreciação dos fundamentos que suportam a decisão recorrida e, principalmente, dos que lhe são opostos pelos recorrentes, do alegado e documentos juntos pelos recorrentes mais resultam os seguintes factos, que no uso do poder-dever previsto pelo art.º 662º, nº 1 do CPC se aditam aos considerados pelo tribunal recorrido:
- Das folhas de ‘especificação/discriminação salarial’ (Loonspecificatie) relativas ao trabalho prestado pelo requerente na Holanda consta o endereço do recorrente (‘Boslaan 7, 9945 TM Wagenborgen’) e, no quadro referente ao trabalhador, além de outros dados (como a data de nascimento, 12.10.1989), consta a data da contratação (‘Datum in dienst’), em 09-02-2022[3]. Mais consta que incide imposto sobre a folha de pagamento, com desconto (Loonheffing: Ja met korting), e que o País de residência para efeitos fiscais é ‘Países Baixos’ (Fiscaal woonland: Nederland).

V – Fundamentos do recurso
A) Da (putativa) impugnação do julgamento de facto
Alegam os recorrentes que “Contrariamente ao decidido pelo Tribunal “a quo”, aquando da apresentação à insolvência e à data de hoje tinham e têm o seu domicílio fiscal em Portugal, todas as moradas que constam dos autos correspondem à sua morada em Portugal, e o facto de se ‘se encontrarem’ temporariamente na Holanda não é suficiente “para determinar a alteração da sua residência habitual para fora de Portugal.”, o que reforçam alegando que “a viagem até à Holanda” ocorreu muito recentemente e perspetiva-se de curto prazo, e que tanto assim é que se encontram a pernoitar num parque de campismo na Holanda. Com esses fundamentos, e mais invocando a ausência de elementos comprovativos de alteração do domicílio para a Holanda, requerem seja dado como provado que o seu domicílio se situava e situa em Portugal, na morada que consta indicada na petição inicial e na procuração forense que com ela juntaram.
Anota-se antes de mais que não passa despercebida a terminologia ou expressões agora empregues pelos recorrentes para descreverem a deslocação e estadia do seu agregado familiar para a Holanda desde 2024 até à presente data[4], sendo que na petição inicial sequer especificaram em que mês do ano de 2024 emigraram para Holanda, que agora se limitam a situar em finais desse ano (novamente, sem especificação de mês), o que relativamente ao recorrente é contrariado pelos elementos que se extrataram das folhas do seu vencimento/salário, das quais consta que foi contratado no ano de 2022[5]. Desses documentos mais resulta que a residência do recorrente para efeitos fiscais são os Países Baixos, o que só por si manifesta a irrelevância do facto de os recorrentes terem número de identificação fiscal atribuído pela administração fiscal portuguesa e de manterem como seu domicílio fiscal uma morada em Portugal posto que o domicílio fiscal releva para efeitos fiscais e, no caso, não se aprecia uma relação jurídica ou qualquer questão de natureza fiscal, mas sim a competência dos tribunais judiciais portugueses para a tramitação do processo de insolvência dos recorrentes.
Nessa apreciação, e contrariamente ao que vem assumido pelos recorrentes, o tribunal recorrido não deu como provado que não têm o seu domicílio (fiscal ou não fiscal) em Portugal; antes se limitou a concluir que assim é em sede de enquadramento jurídico e a partir dos factos por eles alegados, nestes termos: “Da factualidade descrita pelos requerentes [que antes elencou nos termos que acima se assentaram], verifica-se que está em causa um processo de insolvência transfronteiriço ao qual é aplicável o Regulamento (UE) 2015/848 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de Maio de 2015, uma vez que apresenta ligações com mais do que um Estado-membro, dado que os credores estão localizados em Portugal e os devedores têm domicílio na Holanda (art.º 82º do Cód. Civil).”
Com efeito, no âmbito do objeto em que se move em discussão nestes autos, domicílio consubstancia conceito legal previsto no art.º 82º do Código Civil e, por isso, questão de direito à qual não cumpre responder em sede de decisão de factos mas, se for o caso, apreciar no âmbito do enquadramento jurídico devido operar sobre os factos conhecidos nos autos, sendo que estes correspondem aos alegados e documentados com a petição inicial, e não se confundem com a valoração semântica e/ou jurídica que deles foi feita pelos recorrentes no âmbito do incidente de incompetência e deste recurso.
Termos em que se rejeita a impugnação à decisão de facto.

IV – Fundamentação de Direito
1. A decisão recorrida concluiu pela incompetência internacional dos tribunais portugueses, antes de mais, por ter considerado que os recorrentes têm domicílio na Holanda, o que fez por referência aos factos por eles alegados, que enquadrou no art.º 82º do Código Civil (CC) e, com fundamento nesse pressuposto, convocou o art.º 275º, nº 1 do CIRE e aplicou o Regulamento (UE) 2017/848 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de maio de 2015[6] [7].
Conforme alegado e/ou documentado nos autos, atualmente e à data da apresentação à insolvência os recorrentes e as suas filhas ‘encontram-se’ na Holanda, país membro da União Europeia (UE) para onde emigraram e no qual o recorrente aufere rendimentos de trabalho subordinado desde pelo menos o ano de 2022, e para onde a recorrente também se deslocou com o mesmo desiderato (pelo menos) ‘em finais de 2024’. Neste contexto factual, e porque o passivo relacionado pelos recorrentes tem a sua origem em contratos de crédito celebrados e executados em Portugal por entidades que aqui exercem a sua atividade e o único bem penhorável relacionado corresponde a veículo automóvel matriculado e sito em Portugal, dúvida não há que o caso apresenta contactos com duas ordens jurídicas distintas: Holanda, para onde os recorrentes emigraram (o recorrente já desde pelo menos 2022 e a recorrente e as filhas do casal desde pelo menos finais de 2024) e onde atualmente se encontram a residir com as 4 filhas de ambos, e Portugal, país da constituição dos créditos relacionados e da aquisição e situação de veículo automóvel matriculado em 2009, correspondendo este ao único bem que identificam como garantia patrimonial dos seus credores.
Como ponto de partida desde já se confirma a aplicação ao caso do regime de direito internacional privado relativo a processos de insolvência previsto pelo Regulamento (UE) 2017/848 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de maio de 2015, cujas normas desde logo se impõe convocar como prius normativo necessário para aferir da sua aplicação ou não e, se for o caso, para a justificar. Ou seja, é pelas regras do próprio Regulamento que antes de mais se afere se o mesmo é ou não aplicável, o que se faz através da valoração dos factos alegados e disponíveis nos autos à luz do critério de competência internacional pelo mesmo previsto e termos em que o mesmo é aí definido[8]. Concluindo-se pela positiva, conforme dispõem os arts. 59º do CPC e 275º, nº 1 do CIRE, as regras do Regulamento sobrepõem-se às regras gerais de competência internacional previstas no nosso ordenamento jurídico, sejam as especiais (art.º 7º, nº 1, 276º a 287º e 294º a 296º do CIRE), sejam, por maioria de razão, as gerais (art.º 62º do CPC).
Consta do considerando nº 25 do Regulamento que este “aplica-se exclusivamente aos processos relativos ao devedor cujo centro dos interesses principais está situado na União.”, critério que sob a epigrafe Competência internacional é nesses termos previsto e regulado pelo art.º 3º do Regulamente. Prevê-se aqui que “1. Os órgãos jurisdicionais do Estado-Membro em cujo território está situado o centro dos interesses principais do devedor são competentes para abrir o processo de insolvência («processo principal de insolvência»). O centro dos interesses principais é o local em que o devedor exerce habitualmente a administração dos seus interesses de forma habitual e cognoscível por terceiros.//No caso de sociedades e pessoas coletivas, presume-se, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais é o local da respetiva sede estatutária. (…).//No caso de pessoa singular que exerça uma atividade comercial ou profissional independente, presume-se, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais é o local onde exerce a atividade principal. (…).//No caso de qualquer outra pessoa singular, presume-se, até prova em contrário, que o centro dos interesses principais é o lugar de residência habitual. Esta presunção só é aplicável se a residência habitual não tiver sido transferida para outro membro Estado-Membro nos seis meses anteriores ao pedido de abertura do processo de insolvência.” (subl. nosso).
Daqui decorre que, ainda que se cruzem por força da presunção legal ali prevista ou possam confundir-se no caso em concreto, o critério para aferir da competência de Portugal ou de Holanda para a abertura e tramitação do processo de insolvência dos recorrentes não é o da localização do respetivo domicílio, mas sim o da localização do centro dos seus principais interesses (CIP). Critério que, contrariamente ao pressuposto pelos recorrentes, não se confunde com a nacionalidade do devedor[9], nem com “o local onde foram praticados os factos que servem de fundamento ao pedido de insolvência, o local de origem do passivo e o local onde os credores/pessoas coletivas foram constituídos e têm a sua sede[10], que o legislador comunitário não erigiu a fatores de atribuição da competência internacional entre os Estados Membros da UE em matéria de insolvência. Muito menos se confunde com o Estado onde o devedor tem ou mantém domicílio fiscal declarado[11] – sendo que o recorrente também o terá na Holanda posto que os únicos rendimentos que atualmente alega auferir são ali tributados  -, nem com o local onde estão os seus familiares e amigos e ao qual regressem nos períodos de férias ou outros não coincidentes com os períodos de trabalho a que estão e/ou possam vir a estar (a recorrente) vinculados na Holanda e, porque têm 4 filhas menores, com os períodos de frequência escolar no local onde atualmente residem (conforme despesas escolares e de frequência escolar que os recorrentes indicaram na petição inicial).
Assim, a questão da competência internacional do tribunal recorrido apenas se coloca quanto ao critério do CIP, que o art.º 3º, nº 1 do Regulamento, à semelhança do critério previsto no art.º 7º, nº 2 do CIRE, descreve como o lugar em que o devedor exerce a administração dos seus principais interesses, de forma habitual e cognoscível por terceiros. De forma parcialmente distinta, o nosso ordenamento jurídico interno acolhe dois critérios alternativos de competência territorial[12] - o lugar da sede ou do domicílio do devedor (art.º 7º, nº 1 do CIRE), e o lugar em que o devedor tenha o centro dos seus interesses principais como critérios alternativos de competência territorial (art.º 7º, nº 2 do CIRE). Relação de alternatividade que não foi acolhida pelo Regulamento posto que ao local do domicílio ou sede do devedor atribuiu ‘apenas’ valor de presunção do local da situação do centro dos seus principais interesses.
Com efeito, a coincidência entre o domicílio do devedor e o lugar onde habitualmente administra os seus interesses, ainda que seja comum ou normal que assim suceda, não é uma inevitabilidade. Não o sendo, o lugar que efetivamente constitui o CIP do devedor só releva como fator de conexão se os terceiros o puderem perspetivar ou reconhecer como tal. Está em causa a tutela da sua legítima expectativa sobre o ordenamento jurídico aplicável. O que se compreende considerando que, contrariamente ao que sucede com, por exemplo, uma mera ação de dívida ou uma ação de responsabilidade civil – relativamente às quais os tribunais do país em que ocorreram os factos que servem de causa de pedir estão melhor colocados para o acesso às provas e para a sua apreciação -, a causa de pedir ou a situação factual que caracteriza a insolvência é complexa: em síntese, é integrada pelas dívidas vencidas e não pagas - cujos atos constitutivos reportam a um passado mais ou menos longínquo ou recente -, mas pressupõe o conhecimento da atual situação patrimonial ou económico financeira dos devedores (da qual resulte a impossibilidade de cumprimento das dívidas) – para o que estarão melhor colocados os tribunais do Estado onde os devedores administrem os seus principais interesses.
No caso, o Estado melhor colocado para aferir da atual situação patrimonial e económico financeira dos recorrentes é, sem dúvida, o país onde agora residem[13] [14], onde procuram novo espaço para residir de modo mais condigno, onde o recorrente trabalha e aufere os rendimentos que atualmente sustentam o seu agregado familiar, onde a recorrente procura trabalha com o mesmo desiderato, onde as filhas do casal frequentam a escola, em síntese e conforme alegaram, o país para onde emigraram - que o mesmo é dizer, o país estrangeiro onde se estabeleceram – com o objetivo de aí alcançarem melhores condições de vida associadas à angariação de rendimentos do trabalho[15], e não por motivos profissionais ou familiares, caso em que, aí sim, seria de ponderar a existência de pluralidade de residências habituais. Não sendo esse o caso, independentemente de ser ou não intenção dos recorrentes regressar ao seu país de origem e de o preverem daqui a um, dois, cinco, dez ou mais anos, enquanto ali estiverem a viver é aí que estabelecem as relações jurídicas patrimoniais associadas às necessidades básicas do ser humano e a outras impostas e/ou decorrentes do existir em sociedade. Com efeito, viver em condições humana e socialmente condignas implica auferir rendimentos (independentemente da sua origem) e aceder, fruir e consumir bens, serviços e equipamentos que a organização sócio-económica subjacente ao viver em sociedade e, particularmente, o mercado ou as estruturas comerciais do local onde se reside, disponibilizam a todos os cidadãos que aí residam (independentemente da sua nacionalidade), o que inevitavelmente implica a constituição e assunção de dívidas, designadamente, as de vencimento periódico, como o são as rendas devidas pelo espaço que se habita (que os recorrentes estimaram em €1.500,00), os consumos de eletricidade, água, gás e telecomunicações (que estimaram em €300,00), e a frequência de infantário pelas suas filhas (que estimaram em €600,00), para além das despesas com alimentação (que estimaram em €2.000,00), vestuário e higiéne (que estimaram em €300,00), escolares (que estimaram em mais €150,00), e de saúde (que estimaram em €300,00), num total médio mensal de €5.150,00. O que vale por dizer que o país para onde emigraram e no qual se estabeleceram e passaram a residir com o respetivo agregado familiar é o local onde os recorrentes agora administram os seus principais interesses de forma habitual e cognoscível por terceiros, visibilidade que deixou de acontecer em Portugal, incluindo para os titulares dos créditos constituídos antes de terem emigrado, pura e simplesmente porque os recorrentes deixaram de aqui residir habitualmente e de exercer qualquer atividade económica ou trabalho por conta de outrem. Com efeito, para além da manutenção da morada dos pais da recorrente como o respetivo domicílio fiscal e o local onde ficam quando se deslocam a Portugal, os únicos elementos de conexão que os recorrentes indicaram manter atualmente com Portugal são, precisamente, os seus familiares e amigos e um veículo automóvel matriculado em Portugal em 2009.
Com o que se conclui pela situação do CIP dos recorrentes na Holanda e, assim e à luz das normas comunitárias citadas, pela competência internacional da jurisdição desse Estado Membro da UE para a abertura de processo de insolvência dos recorrentes.
Nesse sentido, entre outros, acórdão da Relação de Coimbra de 13.12.2022, assim sumariado:
I – Os tribunais portugueses são internacionalmente incompetentes, tanto para a abertura de um processo principal de insolvência, como de um processo particular [na terminologia do art.º 294.º do CIRE e processo territorial e secundário na terminologia do Regulamento (UE) 2015/848], quanto a duas pessoas de nacionalidade portuguesa, casadas entre si, que residem e trabalham em França – quando foi proposta a ação já residiam habitualmente naquele país, sendo que em Portugal têm residência ocasional –, onde se encontram emigradas, por ser aí que se situa o “centro dos interesses principais do devedor”, aquele “em que o devedor exerce habitualmente a administração dos seus interesses de forma habitual e cognoscível por terceiros”.
II – Nesse âmbito, as normas de competência relevantes não erigem, como fatores de atribuição de competência internacional, o local onde foram praticados os factos que servem de fundamento ao pedido de insolvência, o local de origem do passivo e o local onde os credores/pessoas coletivas foram constituídos e têm a sua sede.
III – Situando-se em Portugal o único bem imóvel pertença dos requeridos, mas não constituindo um estabelecimento, é de concluir que a requerente não está em condições de se prevalecer do art.º 3.º, n.º 2, do Regulamento para requerer a abertura, em Portugal, de um processo particular de insolvência dos requeridos, com efeitos limitados ao imóvel situado em território português.
Dos fundamentos do acórdão mais consta que “[o]s factos relativos ao nascimento do passivo, designadamente a natureza de tais factos, a nacionalidade dos credores e a sede deles, quando forem pessoas colectivas, podem dar uma ideia do local do centro dos interesses principais dos devedores no momento em que o passivo foi constituído. Sucede que, para efeitos da competência internacional para abertura de um processo principal de insolvência, o que conta é, em regra, o local do centro dos interesses principais no momento da abertura.
2. Mais alegam os recorrentes que os direitos à insolvência e à exoneração do passivo restante que pretendem exercer em Portugal não se pode tornar efetivo senão por meio de ação proposta em território português, e “por se verificar dificuldade apreciável na propositura da ação em países estrangeiros com os quais os Recorrentes não têm qualquer ligação pois os Recorrentes não tem quaisquer bens ou credores localizados na Holanda, teria, igualmente, aplicação direta o artigo 62.º, alínea c) do CPC que atribui competência aos tribunais portugueses..”
Argumentação que, para além do discurso ‘redondo’ (face aos fundamentos do recurso já apreciados), assenta em pressuposto que já se afastou (a questão da alegada ausência de conexão juridicamente relevante com a Holanda, a respeito da qual remetemos para o antes exposto), e faz tábua rasa dos normativos que vimos de citar e aplicar em matéria de direito internacional privado.
Como é sabido, as leis de competência internacional – sejam de direito interno, sejam de direito internacional - são leis de ordem pública que definem o poder de julgamento dos tribunais de um país em relação aos tribunais de outros países[16]. No espaço da UE cabe a cada Estado-membro assegurar a aplicação uniforme do Direito da União, designadamente, dos Regulamentos que, como é igualmente sabido, são atos legislativos vinculativos e diretamente aplicáveis em toda a UE. Como se referiu, a questão objeto do recurso convoca o Regulamento sobre insolvência nº2015/848 que, em matéria de insolvências transnacionais (relativas a devedores com centro dos principais interesses na EU), “regula fundamentalmente (i) a competência internacional, (ii) a determinação do Direito aplicável e (iii) o reconhecimento de decisões estrangeiras. Trata-se, portanto, de uma fonte comunitária de Direito Internacional Privado. Isto não obsta a que o Regulamento contenha um conjunto de normas materiais unificadas complementares, quer de carácter processual quer de carácter substantivo, designadamente nos art.ºs 19. º a 24.º e 29.º a 42. º. Estas normas visam, entre outros aspectos, a coordenação entre processos instaurados em vários Estados-Membros e a adopção de medidas de publicidade. Assim, o Regulamento sobre insolvência não prejudica, em princípio, a aplicação pelos tribunais portugueses do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas. Em caso de conflito, prevalecem as normas do Regulamento], que é uma fonte do Direito hierarquicamente superior à lei ordinária na ordem jurídica interna.[17] Nesse sentido, e como também já se referiu, o art.º 4º do Regulamento impõe a cada Estado membro a verificação da sua competência internacional para a abertura de um processo de insolvência sempre que a situação, conforme surge retratada ou configurada nos autos[18], apresente ligações com mais do que uma jurisdição (designadamente, pelo facto de o devedor exercer atividade ou residir num Estado-membro e ter credores e/ou bens localizados em outro(s) Estado(s). Por assim ser, “[a] competência estabelecida pelo art.º 3.°/1 do Regulamento deve ser considerada uma competência exclusiva[19] e, por conseguinte, não poderão ser reconhecidas, por força do próprio Regulamento, decisões de tribunais de Estados terceiros de abertura de um processo de insolvência principal (i.e., com vocação universal) quando o centro dos principais interesses do devedor se situar em Portugal ou noutro Estado-Membro.[20] Exclusividade que se impõe pela lógica ou princípio da reciprocidade: “Se os Estados-Membros reclamam uma determinada esfera de competência exclusiva também devem reconhecer igual esfera de competência exclusiva a terceiros Estados.”[21]
Efetivamente, as normas que regulam a competência internacional têm natureza imperativa, pelo que não está na disponibilidade do devedor optar pelas normas de direito interno reguladoras da competência internacional dos tribunais portugueses em detrimento das normas comunitárias vinculativas e aplicáveis na matéria nem, por isso, optar por uma ou por outra jurisdição de acordo com a sua conveniência ou vontade à margem dos critérios de competência previstos no direito comunitário aplicável na matéria, que é fonte de direito internacional privado prevalecente sobre o ordenamento jurídico interno e como tal por este reconhecido (cfr. arts. 59º do CPC e 275º, nº 1 do CIRE). Como é referido por Catarina Serra, “Nestas situações (internacionais), deverá entender-se que não cabe liberdade de escolha ao devedor, sendo a competência determinada com base no CIP que, in casu, puder presumir-se ou ficar provado. Considerando a hierarquia das fontes, o Regulamento prevalece sobre a lei interna, como, aliás está consignado no art.º 275.º, n.º 1, do CIRE.[22]
Por outro lado, em matéria de reconhecimento das decisões proferidas por outro Estado-membro competente para a abertura do processo de insolvência nos termos previstos pelo Regulamento, prevê o art.º 19º, nº 1 do Regulamento que “Qualquer decisão que determine a abertura de um processo de insolvência, proferida por um órgão jurisdicional de um Estado-Membro competente por força do artigo 3.º, é reconhecida em todos os outros Estados-Membros logo que produza efeitos no Estado de abertura do processo.//A regra prevista no primeiro parágrafo é aplicável no caso de o devedor, em virtude da sua qualidade, não poder ser sujeito a um processo de insolvência nos restantes Estados-Membros.”, e prevê o art.º 20.º, nº 1 que “A decisão de abertura de um processo de insolvência referido no artigo 3.º, n.º 1, produz, sem mais formalidades, em qualquer dos demais Estados-Membros, os efeitos que lhe são atribuídos pela lei do Estado de abertura do processo, salvo disposição em contrário do presente regulamento e enquanto não tiver sido aberto nesse outro Estado-Membro um processo referido no artigo 3.º, n.º 2.
3. Mais alegam os recorrentes que “se apresentaram a um processo normal de insolvência e não a um processo particular de insolvência, que apenas poderia ter aplicação no âmbito de uma situação de insolvência transfronteiriça assente em ligações com mais do que um Estado-Membro e em que a competência internacional para o processo principal de insolvência fosse de outro Estado-Membro,
Neste segmento os recorrentes manifestam o seu desinteresse e rejeitam a abertura de um processo secundário de insolvência, que o tribunal recorrido também afastou invocando o desconhecimento do paradeiro do veículo automóvel relacionado pelos recorrentes e a ausência de alegação de uma impossibilidade ou dificuldade apreciável em tornar o direito efetivo por meio de ação a propor no Estado-membro competente. Impossibilidade ou dificuldade que os recorrentes invocaram apenas em sede de recurso, mas sem qualquer fundamento de suporte posto que restringiram a alegação aos termos da hipótese legal abstratamente prevista nos arts. 62º, al. c) do CPC e 3º, nº 4, al. a) do Regulamento.
Não obstante sempre se dirá que, tratando-se de insolvência transfronteiriça abrangida pelo Regulamento – que, como se disse, prevalece sobre as regras internas de competência internacional e, por isso, sobre o art.º 62º, al. c) do CPC invocado pelos recorrentes e pela decisão recorrida[23] -, a abertura de um processo de insolvência secundário – que abrange apenas os bens situados no Estado-membro que decide a sua abertura - só é possível nos termos previstos no art.º 3º, nº 2: No caso de o centro dos interesses principais do devedor se situar no território de um Estado-Membro, os órgãos jurisdicionais de outro Estado-Membro são competentes para abrir um processo de insolvência relativo ao referido devedor se este possuir um estabelecimento no território desse outro Estado-Membro.; requisito que no caso não se verifica (art.º 3º, nº 2 do Regulamento).
Ainda que assim não fosse, não obstante verificar-se o requisito da incompetência internacional do tribunal recorrido para o processo de insolvência principal dos recorrentes, sempre obstaria à abertura de um processo secundário a ausência de um processo principal de insolvência aberto no Estado-membro competente. Com efeito, por regra o processo secundário só pode ser aberto depois da abertura de um processo principal de insolvência, caso em que adota aquela designação (art.º 3º, nº 3). As exceções à regra – antes da abertura do processo principal, caso em que adota a designação de processo de insolvência territorial – constam previstas no nº 4 do art.º 3º do Regulamento, a saber: a) Não seja possível abrir um processo de insolvência ao abrigo do n.º 1 em virtude das condições estabelecidas na lei do Estado-Membro em cujo território se situa o centro dos interesses principais do devedor; ou//b) A abertura do processo territorial de insolvência seja requerida por://i) um credor cujo crédito decorra da exploração, ou esteja relacionado com a exploração, de um estabelecimento situado no território do Estado-Membro em que é requerida a abertura do processo territorial,// ii) uma autoridade pública que, nos termos da lei do Estado-Membro em cujo território o estabelecimento está situado, tenha o direito de requerer a abertura de um processo de insolvência. Exceções que ao caso não se aplicam na medida em que o processo de insolvência dos recorrentes foi instaurado por apresentação dos próprios e, por outro lado, como foi expressamente referido na decisão recorrida, nada alegaram nem resulta dos autos a respeito da possibilidade ou não de abrirem um processo de insolvência principal na Holanda. Com o que se conclui que sempre estaria inviabilizada a abertura de processo de insolvência territorial para apreensão e liquidação do veículo que os recorrentes identificaram como o único bem penhorável por eles detido, processo que, de resto, não corresponde ao propósito visado pelos recorrentes com a declaração da insolvência na medida em que ao processo secundário abrangido pelo Regulamento não se aplicam as disposições sobre exoneração do passivo restante por expressamente afastadas pelo art.º 295º, al. c) do CIRE (disposição que não é contrariada pelo Regulamento na medida em que no  art.º 7º, nº 1 prevê que “a lei aplicável ao processo de insolvência e aos seus efeitos é a lei do Estado-Membro em cujo território é aberto o processo («Estado de abertura do processo»)”
4. Por referência a este propósito – de acesso ao benefício da exoneração do passivo restante - mais alegam os recorrentes que, tendo em conta que este instituto “visa proporcionar ao devedor um “fresh start”, não se vislumbra qualquer fundamento material justificador de uma eventual distinção entre o devedor que, após o seu endividamento, permanece em Portugal e o devedor que, após o mesmo, sai temporariamente do país em busca de melhores condições de trabalho (…) proporcionando-se ao primeiro devedor a exoneração do seu passivo restante e ao segundo não”, para concluírem que a interpretação da lei acolhida pela decisão recorrida é “contrária ao espírito da lei que pretende a revitalização consciente do devedor”, e inconstitucional “por violação do princípio da igualdade consagrado constitucionalmente, que exige positivamente um tratamento igual de situações de facto iguais e um tratamento diverso de situações de facto diferentes (cfr. art.º 13.º da Constituição), dado que conduziria a um tratamento desigual de pessoas em identidade substancial quanto à mesma pretensão de tutela jurisdicional.” (subl. nosso)
Alegação que, novamente, surge ao arrepio do Direito comunitário amplamente discutido nestas matérias a propósito da Diretiva 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20.06.2019 (doravante, Diretiva), responsável pela harmonização dos regimes jurídicos dos Estados-membros no âmbito dos procedimentos pré-insolvenciais (reestruturação preventiva) e também, precisamente, do perdão de dívidas,  e responsável no nosso ordenamento jurídico pela redução do período de cessão de 5 para 3 anos (art.º 239º, nº 2 do CIRE) através da sua transposição para o direito interno através da Lei nº19/2022 de 11.01.
Diretamente atinente com essa matéria, além de outros, consta dos considerandos da Diretiva:
(1) A presente diretiva tem por objetivo contribuir para o bom funcionamento do mercado interno e eliminar os obstáculos ao exercício de liberdades fundamentais como a livre circulação de capitais e a liberdade de estabelecimento, os quais resultam das diferenças entre as legislações e processos nacionais de reestruturação preventiva, de insolvência, de perdão de dívidas e de inibições. (…)
(5) Em muitos Estados-Membros, são necessários mais de três anos para que os empresários que são insolventes mas honestos consigam obter o perdão da dívida e recomeçar a sua atividade. A ineficiência dos regimes de perdão de dívidas e de inibição faz com que os empresários tenham de se deslocalizar para outras jurisdições para poderem ter um novo começo após um período razoável, com um custo adicional considerável tanto para os credores como para os próprios empresários. As decisões de inibição com vigência prolongada, que muitas vezes acompanham um processo de perdão de dívidas, obstam à liberdade de acesso e exercício de uma atividade empresarial por conta própria.
(15) É necessário reduzir os custos da reestruturação tanto para os devedores como para os credores. Para o efeito, importa reduzir as diferenças entre Estados-Membros que dificultam a reestruturação precoce de devedores viáveis com dificuldades financeiras e a possibilidade de perdão de dívidas para os empresários honestos. A redução dessas diferenças deverá permitir maiores níveis de transparência, segurança jurídica e previsibilidade em toda a União. Essa redução deverá maximizar os rendimentos para todos os tipos de credores e investidores e fomentar o investimento transfronteiriço. Uma maior coerência dos processos de reestruturação e de insolvência deverá facilitar igualmente a reestruturação de grupos de sociedades, independentemente do local de estabelecimento dos seus membros na União.
(21) O sobreendividamento dos consumidores é uma questão de grande importância económica e social e está estreitamente relacionado com a redução do endividamento excessivo. Além disso, muitas vezes não é possível estabelecer uma distinção clara entre as dívidas contraídas por um empresário no exercício da sua atividade comercial, industrial ou artesanal, ou profissional por conta própria, e as contraídas fora do âmbito dessas atividades. Os empresários não beneficiarão efetivamente de uma segunda oportunidade se tiverem que ser parte em processos distintos, com diferentes condições de acesso e prazos para o perdão, para obter o perdão das suas dívidas de natureza profissional e das outras dívidas contraídas fora do âmbito profissional. Por estes motivos, apesar de a presente diretiva não estabelecer regras vinculativas relativas ao sobreendividamento dos consumidores, será aconselhável que os Estados-Membros apliquem igualmente aos consumidores, logo que possível, as disposições da presente diretiva relativas ao perdão de dívidas.
Considerandos que o legislador comunitário transpôs para o articulado da Diretiva sob os arts. 20º a 26º, prevendo, designadamente, que “Os Estados-Membros asseguram que os empresários insolventes tenham acesso a, pelo menos, um processo suscetível de conduzir ao perdão total da dívida em conformidade com a presente diretiva.” (art.º 20º, nº 1), e “Os Estados-Membros asseguram que o período após o qual os empresários insolventes podem beneficiar de um perdão total das suas dívidas não seja superior a três anos” (art.º 21º, nº 1), a par com a previsão da possibilidade da derrogação dos arts. 20º a 22º nos termos do art.º 23º, designadamente, através da previsão, em determinadas circunstâncias ou relativamente a determinadas categorias de dívidas ou de profissionais, da possibilidade de recusa ou limitação do acesso ao perdão de dívidas ou de prazos mais longos a sua obtenção (nºs 2 a 5 do art.º 23º).
 Face ao teor e valor jurídico da Diretiva no espaço comunitário é manifesto que não colhe fundamentar a violação do princípio constitucional da igualdade na alegação de que a declaração de incompetência internacional do tribunal recorrido determina a impossibilidade de os recorrentes acederem ao perdão das dívidas vencidas que integram a sua situação de insolvência pois que Holanda, país onde atualmente residem e auferem rendimentos para sustento do respetivo agregado familiar, é Estado-membro da UE e, por isso, destinatária daquela Diretiva (cfr. art.º 36º) e, como tal, obrigada à sua transposição para o respetivo ordenamento jurídico, sendo que pelos recorrentes não vem alegado que esse processo não foi ali cumprido ou que o ordenamento jurídico desse país prevê a possibilidade de perdão de dívidas com requisitos, deveres e/ou efeitos mais gravosos do que os previstos pelo CIRE em Portugal.
Nada tendo sido alegado nesse sentido sempre ficaria dispensado, por inútil, aferir se a sujeição dos devedores a diferentes regimes jurídicos de perdão de dívidas em função da competência internacional de um ou outro Estado, determinada e fixada de acordo com as regras de direito internacional privado internas e/ou comunitárias aplicáveis, é suscetível de concretizar tratamento discriminatório violador do princípio da igualdade (de tratamento do que é igual e desigual do que é desigual) previsto no art.º 13º do Constituição da República Portuguesa, o que, não obstante, numa apreciação sumária não deixamos de rejeitar posto que, conforme se prevê no nº1 daquela norma fundamental, a dignidade social e a igualdade é perante a lei – ou seja, a que for aplicável ao caso – e do elenco dos motivos ou fatores de discriminação positiva ou negativa proibidas previstas no nº 2 não consta a diversidade de regimes jurídicos aplicável em cada Estado soberano. Ao invés, um dos motivos de discriminação que a lei Constitucional valoriza como violador do princípio da igualdade resulta no sentido oposto ao reclamado pelos recorrentes na medida em que, conforme se prevê no art.º 13º daquele diploma, perante a lei (aplicável) “[n]inguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de (…) território de origem.” Para além de a possibilidade de os cidadãos portugueses terem tratamento jurídico distinto entre si em função do Estado-membro onde cada um tem o seu CIP não ser suscetível de configurar violação do princípio constitucional da igualdade, acresce que essa realidade é perfeitamente assumida e aceite pelo próprio Direito Comunitário, bem revelado pela qualificação do fenómeno ‘forumshopping[24] como atuação ilícita por abusiva ou, pelo menos, que não deve ser objeto de tutela/reconhecimento legal. 
5. Em conformidade com todo o exposto, na ausência de elemento de conexão fundamento da competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer e tramitar o processo da insolvência dos requeridos, impõe-se confirmar a incompetência internacional do tribunal recorrido e, assim, a decisão recorrida, de indeferimento da petição de apresentação à insolvência (cfr. art.º 27º, nº 1, al. a) do CIRE, e arts. 96º, al. a), 97º, nº 1, e 278º, nº 1, al. e) do CPC).
Termos em que se reitera o acerto da decisão recorrida e se conclui pela improcedência do recurso.

VI - Decisão:
Em conformidade com o exposto, as juízas desta secção julgam a apelação improcedente, com consequente manutenção da sentença recorrida.
Custas a cargo dos recorrentes (cfr. art.º 527º, nº 1 e 2 do CPC).

Lisboa, 08.04.2025
Amélia Sofia Rebelo
Paula Cardoso
Renata Linhares de Castro

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[1] J. Castro Mendes e M. Teixeira de Sousa, Manual de Processo Civil, Vol. II, AAFDL 2020, p. 133.
[2] Não se determina o desentranhamento dos documentos rejeitados por consubstanciar ato inútil (artigo 130º do Código de Processo Civil).
[3] A colidir com o que alegado no recurso pelo recorrente, que se encontra na Holanda “apenas há algumas semanas (…).” (art.º 12 das alegações), e que “(…) encontra-se a trabalhar na Holanda desde o final do ano de 2024 (…).” (conclusão 24.)
[4] Se na petição inicial alegaram expressamente que em 2024 emigraram e que “vivem num parque de campismo na Holanda” mas “estão à procura de casa condigna onde possam residir com as suas quatro filhas”, nas alegações de recurso a decisão e ato de emigrar é reduzida a uma ‘viagem’ e o facto de desde 2024 estarem a viver na Holanda, de aí se sustentarem com os rendimentos aí auferidos pelo recorrente, e de aí procurarem casa condigna para residência do agregado, é reduzida a um ‘encontrarem-se’ na Holanda e a uma ‘estadia’ e viagem ‘de curto prazo’.
[5] Para além dos valores devidos e dos valores a deduzir em cada período semanal, em cada folha de pagamento mais constam descritos valores acumulados (pagos e deduzidos), a confirmar que o início do contrato de trabalho do recorrente na Holanda é anterior a novembro de 2024 ou, nos termos agora empregues pelos recorrentes, ‘a finais de 2024’.
[6] Em vigor desde 26.06.2017, cfr. art.º 91º do Regulamento.
[7] Regulamento a que doravante nos referimos se outro não for indicado.
[8] Sob a epígrafe Verificação da competência, o art.º 4º, nº 1 do Regulamento estabelece que “Cabe ao órgão jurisdicional ao qual é apresentado o pedido de abertura de um processo de insolvência verificar oficiosamente a sua competência, nos termos do artigo 3º. A decisão de abertura do processo de insolvência indica os fundamentos que determinam a competência do órgão jurisdicional e, em especial, se a mesma decorre do artigo 3º, n.ºs 1 ou 2.”
[9] Nos termos dos arts. 25º e 31º do Código Civil, a nacionalidade do indivíduo releva para determinação da lei pessoal aplicável na regulação do estado dos indivíduos, da capacidade das pessoas, das relações de família e das sucessões por morte.
[10] Acórdão da RC de 13.12.2022, proc. nº 2615/22.7T8CBR.C1, relatado por Emídio Santos.
[11] Sob a epígrafe Domicílio fiscal o art.º 19º da Lei Geral Tributária prevê o seguinte:
1 - O domicílio fiscal do sujeito passivo é, salvo disposição em contrário:
a) Para as pessoas singulares, o local da residência habitual;
b) Para as pessoas colectivas, o local da sede ou direcção efectiva ou, na falta destas, do seu estabelecimento estável em Portugal.
2 - O domicílio fiscal integra ainda o domicílio fiscal eletrónico, que inclui o serviço público de notificações eletrónicas associado à morada única digital, bem como a caixa postal eletrónica, nos termos previstos no serviço público de notificações eletrónicas associado à morada única digital e no serviço público de caixa postal eletrónica.
3 - É obrigatória, nos termos da lei, a comunicação do domicílio do sujeito passivo à administração tributária.
4 - É ineficaz a mudança de domicílio enquanto não for comunicada à administração tributária.
5 - Sempre que se altere o estatuto de residência de um sujeito passivo, este deve comunicar, no prazo de 60 dias, tal alteração à administração tributária.
(…)
 11 - A administração tributária poderá rectificar oficiosamente o domicílio fiscal dos sujeitos passivos se tal decorrer dos elementos ao seu dispor.
[12] Como dissemos no acórdão de 02.05.2023 desta secção, fora do âmbito de aplicação do Regulamento O art.º 7º do CIRE surge como norma simultaneamente reguladora da competência territorial interna e internacional dos tribunais portugueses para o conhecimento e tramitação dos processos de insolvência.
[13] Independentemente do espaço que habitam tratar-se de equipamento montado num parque de campismo, ou de uma casa num bairro, rua ou avenida.
[14] No acórdão do STJ de 08.01.1991 considerou-se que “I - Um emigrante, que vive em França e vem a Portugal apenas passar um mês de ferias, tem a sua residência habitual naquele pais, devendo considerar-se ai domiciliado (artigo 82 n. 1 do Código Civil).
[15] E não com o intuito – que seria fraudulento ou abusivo - de requerer a abertura de um processo de insolvência na Holanda com prejuízo significativo para os seus credores titulares dos créditos constituídos antes da mudança, conforme consta previsto no considerando 30 do Regulamento como fundamento de ilisão da presunção de que o local da residência habitual constitui o CIP, fenómeno que a doutrina designa de forumshopping e que consiste na adoção, pelo devedor, de medidas de requalificação do CIP para que determinada jurisdição reconheça a sua competência e aplique o respetivo Direito que aquele previamente identificou como o mais favorável aos seus interesses, assim operando uma seleção abusiva do foro.
[16] Nas palavras de Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, a competência internacional constitui a “fração do poder jurisdicional atribuída aos tribunais portugueses no seu conjunto em face dos tribunais estrangeiros para julgar as ações que tenham algum elemento de conexão com ordens jurídicas estrangeiras (Manuel de Processo Civil, 2ª ed. revista e atualizada, p. 198).
[17] Luís de Lima Pinheiro, O regulamento comunitário sobre insolvência - Uma introdução, Revista Ordem Advogados, A2006, Vol. II, disponível em portal.oa.pt
[18] Nas palavras do acórdão do STJ de 07.06.2022, “A competência internacional dos Tribunais Portugueses afere-se pelos termos em que o autor configura a relação jurídica controvertida.”
[19] Exclusividade que se restringe às questões relatias à abertura, tramitação e encerramento do processo de insolvência.
[20] Idem.
[21] Luís de Lima Pinheiro, A competência internacional exclusiva dos tribunais portugueses, disponível em portal.oa.pt
[22] Insolvência transfronteiriça, em Revista de Direito Comercial, 04.12.2018, p. 1283 e s., disponível em https://static1.squarespace.com/static/58596f8a29687fe710cf45cd/t/5c079093562fa73e4b746ad2/1543999637805/2018-27.pdf
[23] Como é referido por Catarina Serra, “[d]eterminando-se, no art.º 275.º, n.º 1, do CIRE, que os processos aos quais seja aplicável o Regulamento são regulados aí apenas a título subsidiário e na medida em que isso não seja contrário ao disposto no Regulamento, prevalece o primeiro critério: os tribunais portugueses (só) são competentes se o estabelecimento estiver localizado em Portugal. Restará aplicar a norma do art.º 294.º, n.º 2, do CIRE aos restantes processos internacionais, isto é, aqueles que não sejam abrangidos pelo Regulamento.” (texto cit., p. 1287).
[24] Prática que, como se descreveu na nota 15, consiste na adoção, pelo devedor, de medidas de requalificação do CIP para que determinada jurisdição reconheça a sua competência e aplique o respetivo Direito que aquele previamente identificou como o mais favorável aos seus interesses, assim operando uma seleção abusiva do foro.