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LAPSO MANIFESTO
RECTIFICAÇÃO DE SENTENÇA
CASO JULGADO
EXTINÇÃO DO PODER JURISDICIONAL
Sumário
(art.º 663º, n.º 7 do Código de Processo Civil) I. Uma sentença de que não é interposto recurso é, por princípio, imodificável, em respeito pela regra de estabilidade e segurança prevista no art.º 613º, n.º 1 do Código de Processo Civil, que afirma os princípios da extinção do poder jurisdicional e da intangibilidade da decisão judicial. II. O juiz a quo não pode proceder à reformulação de uma decisão transitada em julgado, afetando efeitos substantivos e processuais já produzidos, quando está perante um erro que se situa muito para além do erro material demonstrado pelo próprio contexto da sentença, ou seja, quando não é possível, de forma objetiva e por mera leitura do texto desta, concluir pela existência da expressão de uma vontade contrária àquela que o decisor pretendia efetivamente exteriorizar, antes exigindo a perceção do lapso o recurso a elementos externos à decisão. III. Ainda que se revele evidente que o julgador errou, implicando os documentos constantes do processo e dos demais apensos uma decisão distinta, este erro, subsumível à previsão do art.º 616º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil, apenas autoriza a reforma da decisão em exercício de uma competência que cabe exclusivamente ao tribunal superior e que reclama a oportuna e tempestiva interposição de recurso, quando a causa o admita. IV. Nesses casos, fica vedada ao juiz do processo a possibilidade de chamar a si a competência para retificação/reforma da decisão, sendo a atuação assim desenvolvida violadora do caso julgado. V. Se o interveniente processual diretamente afetado pelo erro/lapso de que padecia a decisão não exerceu o seu direito de reação pela via própria da interposição de recurso, terá que suportar as consequências dessa omissão, que se traduzem na estabilização definitiva do decidido.
Texto Integral
QUESTÃO PRÉVIA.
Na resposta dirigida ao recurso interposto pela apelante no processo de insolvência (sob tramitação em separado – apenso S), veio a Massa Insolvente arguir a ilegitimidade da apelante Ares Lusitani para recorrer, o que sustenta no facto de estar em causa uma retificação de sentença de graduação de créditos relativa à verba 14, que foi vendida à Caixa Económica Montepio Geral em 27.03.2014. Segundo a recorrida, dado que a cessão de créditos apenas ocorreu em 27.03.2024 e não poderá ter incluído a verba 14 já então comprada pela CEMG com compensação do crédito garantido, a recorrente, apesar de habilitada, não tem legitimidade para recorrer “uma vez que o crédito não lhe foi transmitido”.
Estabelece o art.º 631º, n.º 1 do Código de Processo Civil que, sem prejuízo do disposto no n.º 2, os recursos só podem ser interpostos por quem, sendo parte principal na causa, tenha ficado vencido.
No caso concreto, a apelante foi habilitada no processo na qualidade de cessionária da credora cedente CEMG (decisão datada de 18.06.2024, ref.ª Citius 151619566), não contendo a decisão que declarou procedente o incidente de habilitação qualquer restrição passível de limitar a substituição processual operada, passando a apelante a assumir a posição que cabia à CEMG na ação (artigos 262º, al. a), 263º, n.º1 e 356º, todos do Código de Processo Civil).
Nesta medida, o único elemento relevante para aferir da legitimidade da apelante assenta no reconhecimento da qualidade de parte vencida ou prejudicada pela decisão na data em que a mesma foi proferida e em que, potencialmente, irá produzir efeitos, sendo irrelevante a data em que ocorreu a venda da verba 14.
Dado que a decisão recorrida declara o propósito de atuar efeitos que se produzem negativamente na esfera da cedente, cuja posição processual foi integralmente assumida pela cessionária/apelante, nenhum motivo existe para questionar a regularidade do despacho de admissão de recurso na vertente em que considerou a apelante parte legítima.
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Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa
I.
1. Por sentença datada de 25.10.2011, transitada em julgado em 13.12.2011, foi declarada a insolvência da devedora Zumali – Compra e Venda de Imóveis, S.A., pessoa coletiva, n.º …, com sede na Avª …, n.º … (antigo lote …), Queluz, registada na Conservatória do Registo Comercial de (…).
2. Com início em 28.11.2011, foi tramitado apenso de apreensão de bens – apenso A -, incluindo os imóveis apreendidos, entre outros, os seguintes:
“(…) Verba 3 - Prédio urbano, sito em …, com a área de 175 metros quadrados, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob a ficha …, da freguesia de …, concelho de …, inscrito na respetiva matriz sob o artigo … - P da dita freguesia, a que foi atribuído o presumível valor de € 1.750,00; (…) Verba Catorze - Prédio urbano, sito em …, designado por lote sessenta e um, com a área de 375 metros quadrados, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob a ficha …, da freguesia de …, concelho de …, inscrito na respetiva matriz sob o artigo … da dita freguesia, a que foi atribuído o presumível valor de € 47.299,63 (…)”.
3. Em 20.03.2014 foi iniciado o apenso de liquidação do património da insolvente, que, após integral liquidação do património apreendido, veio a ser declarado findo por despacho de 14.12.2021.
4. Por apenso ao processo de insolvência correu termos ação de verificação ulterior de créditos – apenso H -, instaurada por AA. contra a massa insolvente de ZUMALI - COMPRA E VENDA DE IMÓVEIS, S.A., pedindo o cumprimento de contrato promessa de dação em pagamento celebrado e a entrega à autora de imóveis objeto do contrato, ou o reconhecimento de crédito no montante de 460.000,00 €, de natureza garantida por via do direito de retenção sobre três imóveis, que identifica.
Na referida ação foi celebrada transação, no contexto da qual as partes acordaram no seguinte:
“1. A Autora desiste do pedido formulado em a) por impossibilidade superveniente da lide. 2. A Ré Massa Insolvente reconhece o crédito da Autora no valor de €460.000,00 (quatrocentos e sessenta mil euros), sendo €25.000,00 (vinte e cinco mil euros) de natureza garantida por direito de retenção quanto ao lote para construção com o n.º …, sito na Rua …, Freguesia e Concelho de …, descrito na Conservatória de Registo Predial de …, sob o número … e inscrito na matriz sob o número …. E o remanescente de €435.000,00 (quatrocentos e trinta e cinco mil euros) como crédito comum”.
A transação foi homologada por sentença datada de 28.11.2019, que transitou em julgado.
5.
i. No âmbito do apenso de reclamação de créditos - apenso M -, foi apresentada pelo Administrador de Insolvência, em 05.07.2020 (em retificação de lista anterior, datada de 04.05.2020), a relação de créditos reconhecidos e não reconhecidos, nos termos previstos pelo art.º 129º do CIRE.
Em 18.11.2020 a credora AA. apresentou requerimento no aludido apenso, pedindo a retificação da lista de créditos por parte do Sr. Administrador de Insolvência, por ter omitido “o crédito da aqui Credora, tal como foi reconhecido no Apenso H” e requerendo que “na sentença de verificação e graduação de créditos seja tido em consideração o crédito de AA. tal como resulta da transação homologada no Apenso H, reconhecendo-se e graduando-se o crédito de 460.000,00 EUR, dos quais 435.000,00 EUR são de natureza comum e 25 000,00 EUR de natureza garantida, por direito de retenção, quanto ao lote para construção com o n.º …, sito na Rua …, Freguesia e Concelho de …, descrito na Conservatória de Registo Predial de …, sob o número … e inscrito na matriz sob o número … (Verba 14)”
ii. Em 21.04.2021 o Sr. Administrador de Insolvência, dando razão à credora requerente e reconhecendo a omissão apontada, apresentou lista retificada de credores reconhecidos, entre os quais, com o n.º 20 e por referência ao apenso H, se encontra identificado o crédito de AA., NIF …, com fundamento em transação judicial, no valor de 460.000,00 €, sendo 25.000,00 € crédito garantido e 435.000,00 € crédito comum, constando da nota 4 que “O crédito foi reconhecido com a natureza de garantido, por direito de retenção incidente sobre o imóvel designado por lote 61, sito na …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob a ficha … da freguesia de …, inscrito na matriz sob o artigo … da dita freguesia”.
iii. Em 02.11.2021 foi proferida sentença no referido apenso, incluindo os factos ali tidos como provados, além do mais, o seguinte: “A). De facto 1. A lista dos créditos reconhecidos junta com o R/ 21.04.2021 cujo teor se dá por reproduzido com os seguintes créditos garantido/privilegiado (os restantes são créditos comuns para cuja leitura se remete): a. A AT/SERVIÇO DE FINANÇAS, com um crédito emergente de (…) b. A Arrow Global Limited (em lugar do credor originário Caixa Económica Montepio Geral – nota 1), no valor de €75.171,78, com hipoteca sobre os imóveis identificados nas verbas 4 a 45 e 47, a par do Montepio, pois a garantia resulta do facto da constituição da hipoteca voluntária pela insolvente a favor da Caixa Económica Montepio Geral conter “clausula de efeito abrangente”. c. A Caixa Económica Montepio Geral, no valor de €6.003.054,11, com hipoteca sobre os imóveis, verbas 4 a 47 (…) d. A Cozimafra, Lda, no valor de €19.500,00, beneficiando do privilégio a que alude o art.º 98º do CIRE (Nota 4 da lista de créditos). e. Os credores BB. e CC., com créditos no valor de €26.488,11, e 2.409,70, respectivamente, e privilégio mobiliário geral e imobiliário especial relativo aos imóveis apreendidos pelas verbas 4 a 46 (R/ 22.09.2020). f. AA., com crédito no valor de €25.000,00, por direito de retenção sobre o imóvel designado por lote 61, sito …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob a ficha … da freguesia de …, inscrito na matriz sob o artigo … da dita freguesia (Nota 4 da lista de créditos). (…)”
A final, a sentença contém o seguinte dispositivo:
“(…) III. Decisão Nesta conformidade, decide-se: 1. Homologar a nova lista rectificada pelo Sr. Administrador da Insolvência conforme R/ 21.04.2021, julgando verificados todos os créditos dela constantes e as respectivas naturezas. 2. Graduar os créditos nos seguintes termos: a) Pelo produto da venda dos imóveis apreendidos, dar-se-á pagamento pela ordem seguinte: Verba 3 aa) Em primeiro lugar o credor AA., com crédito no valor de €25.000,00; bb) Em segundo lugar a AT (IRC), no valor de €50.352,71; cc) Em terceiro lugar os créditos comuns. Verba 4 a 47 dd) Em primeiro lugar o credor AT (IMI) no valor de 18.211,34; ee) Em segundo lugar – apenas quanto às verbas 4 a 46 – os credores BB. e CC., com créditos no valor de €26.488,11, e 2.409,70; ff) Em segundo lugar – apenas quanto à verba 47 – os credores Arrow Global Limited, no valor de €75.171,78 e o credor Caixa Económica Montepio Geral, no valor de €6.003.054,00, a par. gg) Em terceiro lugar – apenas quanto às verbas 4 a 46 – os credores Arrow Global Limited (este, especificamente, quanto às verbas 4 a 45) no valor de €75.171,78 e o credor Caixa Económica Montepio Geral, no valor de €6.003.054,00, a par. hh) Em terceiro lugar (verba 47) e quarto lugar (verbas 4 a 46) a AT (IRC), no valor de €50.352,71; ii) Por último os créditos comuns. b) Pelo produto da venda de bens móveis, dar-se-á o pagamento pela ordem seguinte: jj) Em primeiro lugar os credores BB. e CC., com créditos no valor de €26.488,11, e 2.409,70; kk) Em segundo lugar a AT (IRC), no valor de €50.352,71; aa) Em terceiro lugar a Cozimafra, Lda, no valor de €19.500,00. Sem custas atento o disposto no art.º 303º do CIRE. Registe e notifique”.
iv. A sentença foi notificada aos credores, incluindo a credora AA. (notificação de 05.11.2021, ref.ª Citius n.º133658520) e não foi objeto de reclamação ou recurso, tendo transitado em julgado.
6. Em 18.06.2024 foi proferida decisão nos autos de insolvência a considerar habilitada a requerente ARES LUSITANI – STC, S.A., quanto aos 50 créditos que identifica e na medida em que os mesmos tenham total ou parcial correspondência com os créditos reclamados por Caixa Económica Montepio Geral, Caixa Económica Bancária, S.A., no apenso de reclamação de créditos.
Tal decisão transitou em julgado.
7. Em 05.07.2024 o Sr. Administrador de Insolvência juntou ao processo de insolvência proposta de rateio final (art.º 182º do CIRE), de cujo teor consta, além do mais, por referência à verba 3, que a credora AA. é graduada em 1º lugar, com crédito verificado no valor de 25.000,00 €, sendo a receber 1.332,24 € e 23.667,76 € a não receber.
A proposta não foi objeto de reclamação.
8. Em 02.09.2024, foi proferido o seguinte despacho:
“Mapa de rateio final (03-07-2024): Não tendo sido apresentada reclamação e nem se suscitando dúvidas quanto à proposta apresentada aprovo o mapa de rateio. Pague-se juntando os comprovativos a verificar pela Secção que lavrará cota informativa. Notifique”.
9. Em 05.09.2024 o Sr. Administrador de Insolvência comunicou ao processo de insolvência que se encontravam efetuados todos os pagamentos do homologado rateio final, deduzidos do respetivo custo bancário, identificando, entre outros, o credor AA. como tendo recebido a quantia de 1.332,24 €, por transferência datada de 04.09.2024.
Mais informou que foi encerrada a conta da massa.
10. Em 06.09.2024 foi lavrado termo pela secretaria, do qual consta: “os pagamentos mostram-se efetuados conforme mapa de rateio”.
11. Em 01.10.2024 a credora AA. apresentou requerimento no âmbito da ação de verificação ulterior de créditos correspondente ao apenso H (ponto I.4 do relatório), referindo ter constatado, após consulta dos autos, ter sido determinado que a quantia a pagar à requerente teria por base o produto de liquidação da verba n.º 3, quando a garantia do pagamento de 25.000,00 € do seu crédito é assegurada pela verba 14, pelo que terá havido lapso na determinação da quantia paga à requerente.
Conclui requerendo que sejam tomadas as providências que o tribunal julgar convenientes para cumprimento integral da transação acordada homologada por decisão judicial, com vista ao pagamento à requerente da quantia em falta no valor de 23.674,00 €.
12. Em 03.10.2024, foi proferido nos autos de insolvência o seguinte despacho:
“(…) Compulsados os autos verifica-se que foi junto ao apenso H, de verificação ulterior de créditos, em 01-10-2024 requerimento apresentado por AA. requerendo o pagamento de €23.674,00. Assim, e com nota de urgente notifique o Sr. Administrador da Insolvência para esclarecer o que tiver por conveniente no prazo de 5 dias. Informe, ainda, a secção o que tiver por conveniente atentos os pareceres emitidos quanto ao mapa do rateio e à verificação dos pagamentos. Notifique”.
Por requerimento de 28.10.2024, o Sr. Administrador de Insolvência pronunciou-se referindo que a proposta de rateio final foi elaborada em obediência à sentença de verificação e graduação de créditos de 02.11.2021, notificada à credora requerente AA. em 03.11.2021, com publicação da proposta de rateio no portal Citius em 03.07.2024, sem censura por parte da credora requerente. Mais refere que a sentença em questão contém um lapso quando identifica o imóvel que garante o crédito da requerente, que corresponde à verba 14 cujo produto de liquidação ascende a 53.550,00 €, tendo sido adquirido pelo credor Montepio Geral, que depositou 20% do preço (10.170,00 €) ficando dispensado do depósito do remanescente, pelo que entende que o mesmo deve entregar o valor em falta à credora – 23.674,00 € - com vista a uma resolução mais célere.
13. Em 30.10.2024, no processo de insolvência, foi proferido o seguinte despacho:
“Requerimentos apresentados: - em 01-10-2024 ao apenso H pela credora AA. e - em 28-10-2024 aos presentes autos pelo Sr. Administrador da Insolvência e informação que antecede: Resulta da análise dos autos que ocorreu lapso de escrita na sentença de graduação de créditos em que se graduou o pagamento à credora pelo produto da venda da Verba 3 e não pelo produto da venda da Verba 14, lapso este que não foi detectado até ao presente momento. Assim, e conforme refere o Sr. Administrador da Insolvência assiste razão à credora AA: Resulta da análise dos autos, ainda, que o imóvel sobre o qual foi reconhecido e verificado o crédito da requerente é o correspondente à Verba 14, cujo produto da liquidação ascendeu a €53.550,00 cujo adquirente foi o credor garantido Caixa Económica Montepio Geral que depositou na massa a quantia de € 10.710,00, correspondente a 20% do preço, tendo, pela sua qualidade, ficado dispensado de depositar o remanescente do preço. Assim, e pelo exposto determina-se que: - se conclua de imediato o apenso de reclamação de créditos para ser rectificado o lapso de escrita na sentença; e - ainda, que o Sr. Administrador da Insolvência para apresentar o mapa da rateio devidamente rectificado, no prazo de 5 dias, de acordo com o requerimento supra referido, e que notifique o mesmo aos demais credores e ao credor adquirente Caixa Económica Montepio Geral, notificando-o para entregar o remanescente do preço que falta pagar à credora requerente na quantia de € 23.674,00 por depósito autónomo a fim de a secretaria o poder entregar à requerente. Notifique”.
14. Em 04.11.2024 foi proferido despacho no apenso M de reclamação de créditos, com o seguinte teor:
“Constatou-se neste momento que por manifesto lapso de escrita, resulta da análise dos autos que ocorreu lapso de escrita na sentença de graduação de créditos em que se graduou o pagamento à credora pelo produto da venda da Verba 3 e não pelo produto da venda da Verba 14, lapso este que não foi detectado até ao presente momento. Dispõe o artigo 614.º, n.º 1 do Código de Processo Civil que: “Se a sentença omitir o nome das partes, for omissa quanto a custas ou a algum dos elementos previstos no n.º 6 do artigo 607.º, ou contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexactidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz.” Pelo exposto, e nos termos do artigo 614º, do Código de Processo Civil, proceder-se-á à correcção da sentença verificando-se que a mesma padece de lapso material evidente que urge ser reparado, nos seguintes termos: “(…) Verba 3 Em primeiro lugar a AT (IRC), no valor de €50.352,71; Em segundo lugar os créditos comuns; * Verba 14 (imóvel designado por lote 61, sito na …, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob a ficha … da freguesia de …, inscrito na matriz sob o artigo … da dita freguesia) aa) Em primeiro lugar o credor AA., com crédito no valor de €25.000,00; bb) Em segundo lugar a AT (IRC), no valor de €50.352,71; cc) Em terceiro lugar os créditos comuns.” * “Verbas 4 a 47 (com excepção da verba 14) Em primeiro lugar o credor AT (IMI) no valor de 18.211,34; ee) Em segundo lugar – apenas quanto às verbas 4 a 46 com excepção da verba 14 – os credores BB. e CC., com créditos no valor de €26.488,11, e 2.409,70; ff) Em segundo lugar – apenas quanto à verba 47 – os credores Arrow Global Limited, no valor de €75.171,78 e o credor Caixa Económica Montepio Geral, no valor de €6.003.054,00, a par. gg) Em terceiro lugar – apenas quanto às verbas 4 a 46, com excepção da verba 14 – os credores Arrow Global Limited (este, especificamente, quanto às verbas 4 a 45 com excepção da verba 14) no valor de €75.171,78 e o credor Caixa Económica Montepio Geral, no valor de €6.003.054,00, a par. hh) Em terceiro lugar (verba 47) e quarto lugar (verbas 4 a 46, com excepção da verba 14) a AT (IRC), no valor de €50.352,71; ii) Por último os créditos comuns (…)”. Notifique e rectifique no local próprio.”
15. Na mesma data, 04.11.2024, no processo de insolvência, o Sr. Administrador de Insolvência apresentou versão corrigida do rateio final, com alteração do valor a pagar à credora AA., identificando a verba 14, a graduação em 1º lugar por efeito de direito de retenção - apenso H -, o valor de 25.000,00 € de crédito verificado e de 25.000,00 € a receber.
Anexou notificação dirigida à credora Ares Lusitani para, no prazo de 10 dias, emitir DUC, em depósito autónomo, na quantia de 25.000,00 € correspondente à parte do preço não depositado relativo à verba 14 e entregar nos autos com comprovativo do pagamento, informando que a quantia de 23.674,00 € se destina a pagamento da parte restante à credora AA., sendo 1.332,24 € para pagamento aos credores comuns.
16. O MP, em representação da AT, e a credora Ares Lusitani, reclamaram do mapa de rateio final, esta última requerendo que o mapa de rateio seja tido por provisório.
17. A credora Ares Lusitani:
i. em 20.11.2024 apresentou requerimento de interposição de recurso do despacho referido em I.13 (autos de insolvência);
ii. em 26.11.2024 apresentou requerimento de interposição de recurso do despacho referido em I.14 (apenso de reclamação de créditos).
18. A massa insolvente e o MP apresentaram resposta ao recurso aludido em I.17.i (despacho proferido no processo de insolvência).
Em relação ao recurso interposto no apenso de reclamação de créditos, não foram apresentadas contra-alegações.
19. Foram proferidos despachos de admissão dos recursos:
- em 06.02.2025, foi admitido o recurso interposto nos autos de insolvência, como apelação, com subida imediata em separado e efeito devolutivo;
- em 06.02.2025, foi admitido o recurso interposto no apenso de reclamação de créditos, como apelação, com subida imediata nos próprios autos e efeito devolutivo.
20. Distribuído o presente recurso, foram notificadas as partes para se pronunciarem quanto à perspetivada apensação do recurso interposto no apenso de reclamação de créditos, face à dependência das questões sob apreciação e, sem oposição das partes, foi ordenada a apensação, impondo-se, nestes autos, apreciar conjuntamente os dois recursos interpostos pela credora Ares Lusitani.
21. No recurso interposto do despacho proferido nos autos de insolvência, reproduzido em I.13 [que declarou a existência de lapso na sentença de verificação de créditos, ordenou a abertura de conclusão no apenso de reclamação para retificação do lapso e determinou que o Sr. Administrador de Insolvência retificasse o mapa de rateio e notificasse o credor Montepio Geral para proceder ao pagamento do remanescente devido à credora requerente da quantia de € 23.674,00 por depósito autónomo], a apelante pede a revogação do despacho, apresentando fundamentos que sintetiza nas seguintes conclusões
A. No despacho sob recurso, proferido em 30/10/2024, a MMª Juíza a quo deixou plasmado o entendimento de que a sentença de verificação e graduação de créditos padece de “lapso de escrita”.
B. No despacho sob recurso ordenou a MMª Juíza a quo a conclusão do apenso de reclamação de créditos, para rectificação de “lapso de escrita”.
C. Ainda, no despacho sob recurso, ordenou a MMª Juíza a quo, fosse notificada a CEMG para devolução à Massa Insolvente da quantia de €23.674, ao abrigo da rectificação que seria por si operada.
D. A sentença de verificação e graduação de créditos, foi proferida em 2/11/2021, no apenso M dos autos.
E. A sentença de verificação e graduação de créditos não foi objecto de recurso, tendo transitado em julgado.
F. Nos autos principais foi, em 3/07/2024, apresentada proposta de rateio final, em concordância com a mencionada Sentença de verificação e graduação de créditos, transitada em julgado.
G. Não foi apresentada qualquer reclamação ao mapa de rateio proposto.
H. Em 2/09/2024 foi proferido despacho que julgou aprovado o mapa de rateio e ordenou fossem realizados os pagamentos previstos.
I. Apenas em 1/10/2024 veio a credora AA., apresentar requerimento dando nota que “havia um lapso” na determinação da quantia que lhe foi paga, mais requerendo o pagamento do remanescente em falta.
J. Em 18/06/2024 foi proferido despacho que habilitou a Recorrente na posição processual da CEMG.
K. A CEMG já não é parte nos presentes autos, nem titular dos créditos cedidos.
L. A rectificação pretendida pela MMª Juiz a quo, não se reconduz a uma rectificação mero lapso de escrita, como propugnado
M. A rectificação propugnada traduz-se numa alteração substancial à sentença já transitada em julgado.
N. A MMª Juiz a quo não dispõe de poderes, para promover a alteração pretendida, já que o seu poder jurisdicional findou, com o trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação.
O. A alteração em causa consubstancia uma violação do disposto no art.º 613º do CPC.
P. O despacho sob recurso é extemporâneo, por ser proferido antes do trânsito em julgado do despacho que “rectificou” a sentença de verificação e graduação.
Q. Até ao trânsito em julgado da “rectificação”, nem a CEMG, nem a Recorrente poderão estar obrigadas a qualquer entrega à massa insolvente.
R. Nos termos do art.º 619º, apenas com o trânsito em julgado, a decisão ganha força obrigatória.
S. O despacho de que se recorre é proferido ao abrigo da correcção de uma sentença, ainda não transitada em julgado.
T. O despacho sob recurso, sendo extemporâneo, viola o citado preceito legal.
Em resposta, a massa insolvente, representada pelo Administrador de Insolvência, alegou a falta de legitimidade da apelante para recorrer (já apreciada a título prévio). No mais, pugna pela improcedência do recurso.
O MP apresentou contra-alegações, manifestando a sua concordância com a retificação realizada, que entende não violar qualquer disposição legal e pugnando pela improcedência do recurso.
22. No recurso interposto do despacho proferido no apenso de reclamação de créditos, reproduzido em I.14 [que retificou a sentença de verificação e graduação de créditos], a apelante pede a revogação do despacho, apresentando fundamentos que sintetiza nas seguintes conclusões
I. No despacho sob recurso, proferido a 04.11.2024 a MMª Juíza a quo deixou plasmado o entendimento de que a sentença de verificação e graduação de créditos padece de “lapso de escrita”.
II. No despacho sob recurso ordenou a MMª Juíza a quo a conclusão do apenso de reclamação de créditos, para rectificação de “lapso de escrita”.
III. Ainda, no despacho sob recurso, ordenou a MMª Juíza a quo, fosse notificada a CEMG para devolução à Massa Insolvente da quantia de €23.674, ao abrigo da rectificação que seria por si operada.
IV. A sentença de verificação e graduação de créditos, foi proferida em 2/11/2021, no apenso M dos autos.
V. A sentença de verificação e graduação de créditos não foi objecto de recurso, tendo transitado em julgado.
VI. Nos autos principais foi, em 3/07/2024, apresentada proposta de rateio final, em concordância com a mencionada Sentença de verificação e graduação de créditos, transitada em julgado.
VII. Não foi apresentada qualquer reclamação ao mapa de rateio proposto.
VIII. Em 2/09/2024 foi proferido despacho que julgou aprovado o mapa de rateio e ordenou fossem realizados os pagamentos previstos.
IX. Passados três anos, e sem qualquer motivação, decide, sem mais, o MM juiz do Tribunal a quo, alterar por despacho, uma sentença, ignorando todos os atos e efeitos jurídicos já produzidos. Um abuso de direito.
X. Não se trata de um mero lapso de escrita. Trata-se de uma alteração material e substancial da sentença de graduação de créditos.
XI. Passados três anos, não pode a MMª Juiz, decidir que “… que se graduou o pagamento à credora pelo produto da venda da Verba 3 e não pelo produto da venda da Verba 14, lapso este que não foi detetado até ao presente momento”.
XII. Volvidos três anos após a sentença de verificação e graduação de créditos, é ilegal, senão mesmo amoral, que a Credora, Ares Lusitani (hoje habilitada como cessionária do crédito cedido pela Caixa Económica Montepio Geral S.A.), seja “condenada” a pagar um valor,
XIII. Que resulta de um mero requerimento datado de 1/10/2024, apresentado por AA., dando nota que “havia um lapso” na determinação da quantia que lhe foi paga, mais requerendo o pagamento do remanescente em falta.
XIV. Também a cessão de créditos em favor da Credora, Ares Lusitani, não foi contestada por nenhum credor, pelo que, em 18/06/2024 foi proferido despacho, com a referência 151619566, onde se lê “Termos em que se considera habilitada a requerente, quanto aos créditos que identifica e na medida em que os mesmos tenham total ou parcial correspondência com os créditos reclamados por Caixa Económica Montepio Geral, Caixa Económica Bancária, S.A., no apenso de reclamação de créditos. Notifique, e ainda a cedente e a cessionária.”
XV. Pelo que, deixou a CEMG de ter intervenção nos autos, desde a aludida data.
XVI. O despacho agora objeto de recurso, visa alterar os efeitos de uma sentença (02.11.2021), pelo que o mesmo não pode ser admitido, porquanto não se enquadra numa simples retificação de erro material.
XVII. O despacho emitido em 04.11.2021, visa alterar de modo penoso, o crédito reconhecido da Ares Lusitani, quando o seu crédito foi reconhecido em 11/2021, aplicando-se, necessariamente, os efeitos decorrentes do artigo 619.º do Cód. Processo Civil.
XVIII. A rectificação pretendida pela MMª Juiz a quo, não se reconduz a uma rectificação de mero lapso de escrita, como propugnado.
XIX. A rectificação propugnada traduz-se numa alteração substancial à sentença já transitada em julgado.
XX. A MMª Juiz a quo não dispõe de poderes, para promover a alteração pretendida, já que o seu poder jurisdicional findou, com o trânsito em julgado da sentença de verificação e graduação.
XXI. A alteração em causa consubstancia uma violação do disposto no art.º 613º do CPC.
XXII. O despacho sob recurso é extemporâneo, por ser proferido antes do trânsito em julgado do despacho que “rectificou” a sentença de verificação e graduação.
XXIII. Até ao trânsito em julgado da “rectificação”, nem a CEMG, nem a Recorrente poderão estar obrigadas a qualquer entrega à massa insolvente.
XXIV. Nos termos do art.º 619º, apenas com o trânsito em julgado, a decisão ganha força obrigatória.
XXV. O despacho de que se recorre é proferido ao abrigo da correção de uma sentença, ainda não transitada em julgado.
XXVI. O despacho sob recurso, sendo extemporâneo, viola o citado preceito legal.
Não foram apresentadas contra-alegações.
Foram colhidos os vistos legais.
Cumpre apreciar.
II.
Dado que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, sem prejuízo das questões passíveis de conhecimento oficioso (artigos 608º, n.º 2, parte final, ex vi do art.º 663º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil), constituem questões a decidir:
i. apreciar da existência de “lapso manifesto” na sentença proferida em 02.11.2021 e da regularidade da subsequente retificação introduzida no respetivo texto;
ii. com parcial dependência da decisão da questão anterior, aferir da existência de fundamento e da oportunidade (por preceder a retificação da sentença) da prolação de despacho a ordenar a alteração de rateio final já validado e da ordem de pagamento dirigida pelo tribunal recorrido ao apelante em consequência da retificação introduzida no mapa de rateio;
iii. caso exista, por efeito da alteração introduzida ao rateio final, uma obrigação de entrega de valores à massa insolvente, aferir se a responsabilidade por tal pagamento cabe à cedente CEMG ou à cessionária apelante.
III.
Os factos relevantes para a decisão a proferir correspondem aos sintetizados no ponto I (relatório), que aqui se têm por reproduzidos.
IV.
Conforme resulta do elenco de sub-questões enunciadas como objeto do(s) recurso(s), as pretensões da apelante entroncam na apreciação de uma questão essencial: a de aferirmos se o tribunal recorrido podia alterar uma sentença de verificação e graduação de créditos transitada em julgada ou, em concreto, se existia lapso cuja natureza autorizasse a retificação oficiosa, imediata (sem contraditório) e a todo o tempo (in casu, três anos após a prolação da decisão) de uma sentença com a qual todos os interessados se conformaram.
O art.º 614º do Código de Processo Civil – preceito em que o tribunal recorrido sustentou a atuação por si desenvolvida – dispõe no seu n.º 1, na parte aqui relevante, que se a sentença contiver erros de escrita ou de cálculo ou quaisquer inexatidões devidas a outra omissão ou lapso manifesto, pode ser corrigida por simples despacho, a requerimento de qualquer das partes ou por iniciativa do juiz. Resulta do disposto nos n.ºs 2 e 3 do citado preceito legal que, quando não seja interposto recurso (como sucedeu no caso concreto), a retificação pode ter lugar a todo o tempo.
Ao longo dos tempos, a doutrina e a jurisprudência não têm divergido na definição da inexatidão devida a lapso manifesto que autoriza a retificação de uma decisão judicial, em delimitação (que contém uma inevitável margem casuística) da atuação que permite excecionar a regra de estabilidade e segurança prevista no art.º 613º, n.º 1 do Código de Processo Civil, onde se estabelece que o poder jurisdicional do juiz da causa fica esgotado uma vez proferida a sentença, afirmando os princípios da extinção do poder jurisdicional e da intangibilidade da decisão judicial.
A propósito do alcance e justificação do princípio da extinção do poder jurisdicional, Alberto dos Reis [Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, Coimbra Editora, 1984, p. 126 e ss] refere que o juiz “não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu; nem a decisão, nem os fundamentos em que ela se apoia e que constituem com ela um todo incindível. Ainda que, logo a seguir ou passado algum tempo, o juiz se arrependa, por adquirir a convicção de que errou, não pode emendar o seu suposto erro. Para ele a decisão fica sendo intangível”. A propósito das razões doutrinal e pragmática que justificam que se extinga o poder jurisdicional, esclarece o citado Professor que “o juiz, quando decide, cumpre um dever – o dever jurisdicional – que é a contrapartida do direito de acção e de defesa (…) E como o poder jurisdicional só existe como instrumento destinado a habilitar o juiz a cumprir o dever que sobre ele impende, segue-se logicamente que, uma vez extinto o dever pelo respectivo cumprimento, o poder extingue-se e esgota-se”, acrescentando, como razão pragmática, a “necessidade de assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional. Que o tribunal superior possa, por via de recurso, alterar ou revogar a sentença ou despacho, é perfeitamente compreensível; que seja lícito ao próprio juiz reconsiderar e dar o dito por não dito, é de todo em todo intolerável, sob pena de se criar a desordem, a incerteza, a confusão”.
Uma sentença de que não é interposto recurso é, assim, por princípio, imodificável.
Chamando a atenção para as palavras lapso manifesto, Alberto dos Reis [op. cit., p. 131] refere ser “necessário que as circunstâncias sejam de molde a fazer admitir, sem sombra de dúvida, que o juiz foi vítima de erro material: quis escrever uma coisa, e escreveu outra. Há-de ser o próprio contexto da sentença que há-de fornecer a demonstração clara do erro material”, distinguindo estes casos das nulidades por erro de julgamento, em que se verifica oposição entre os fundamentos e a decisão, pressupondo um vício lógico (nulidade atualmente prevista no art.º 615º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil).
Este entendimento não se afasta daquele que tem sido o sentido unânime da jurisprudência dos tribunais superiores.
Por ter sido prolatado num contexto fáctico próximo daquele que aqui se discute, cita-se o Acórdão do STJ de 10-02-2022 (proc.º n.º 529/17.1T8AVV-A.G1.S1, rel. Fernando Batista, disponível nesta ligação), onde se refere que “o erro material da decisão, passível de rectificação, nos termos do artº 614º, nº 1, CPC, é aquele que ressalta de forma clara e ostensiva do teor da própria decisão. Só do contexto desta é possível aferir se ocorreu ou não esse erro. Portanto, não emergindo – como, in casu, não emerge – do próprio texto da sentença (de 02.12.2019) um indício, sequer, de ocorrência de qualquer divergência entre a vontade do juiz e o que ali efectivamente se plasmou, não pode falar-se em erro material (passível de rectificação)”.
No mesmo sentido, entre outros, vejam-se os Acórdãos do STJ de 12-04-2024 (proc.º n.º 1408/20.0T8CSC.L1-A.S1), do TRG de 29-05-2024 (proc.º n.º1766/20.7T8VCT-AK.G1), ambos disponíveis em www.dgsi.pt e do TRL de 25.02.2025 (proc.º n.º 26139/09.9T2SNT-XE.L1), este com sumário disponível para consulta nesta ligação (onde se refere “(…) O erro material da Sentença é passível de rectificação, nos termos do art.º 614º nº 1 do Código de Processo Civil; caso haja erro de julgamento não pode o Juiz socorrer-se deste preceito para o rectificar e só em via de recurso tal é possível. IV- Não decorrendo da decisão proferida a existência de um erro ou lapso evidente, ostensivo ou manifesto, não pode a mesma ser simplesmente rectificada, uma vez que tal importa uma alteração substancial do conteúdo da decisão”).
Efetuado este enquadramento, analisemos o caso concreto.
O 1º despacho proferido (em 30.10.2024) e aqui recorrido, foi prolatado no âmbito do processo de insolvência (ponto I.13 do relatório), num contexto processual em que já havia sido aprovado o mapa de rateio e ordenada a realização dos pagamentos, tendo o Administrador de Insolvência dado conhecimento que os pagamentos haviam sido efetuados. Perante um requerimento dirigido por uma das credoras ao apenso H, manifestando a existência de lapso no pagamento que lhe havia sido efetuado (ponto I.11 do relatório), após consultar o Administrador de Insolvência (que referiu ter elaborado a proposta de rateio em cumprimento do determinado na sentença, contendo esta um lapso), a Mm.ª juiz a quo declarou que havia ocorrido um lapso de escrita na sentença de graduação em que fora graduado o crédito da credora AA., referindo que o pagamento seria efetuado pelo produto da venda da verba 3 e não, como deveria ter ocorrido, pelo produto da venda da verba 14, razão pela qual ordenou que fosse de imediato aberta conclusão no apenso de reclamação de créditos para ser retificado o lapso de escrita.
Arredando, por ora, a análise da restante parte do despacho em questão, passemos desde já para o despacho recorrido e proferido no apenso de reclamação de créditos em 04.11.2024 (ponto I.14 do relatório), em que a Mmª Juiz a quo, após cumprimento pela secção da ordem de abertura de conclusão, deu seguimento à anunciada intenção de retificação, referindo ter constatado a existência de um “manifesto lapso de escrita” traduzido na graduação do pagamento do crédito da credora “pelo produto da venda da Verba 3 e não pelo produto da venda da Verba 14”, concluindo estar perante um lapso material “evidente que urge ser reparado”, o que passou a fazer.
A coincidir a retificação com a simplicidade dos termos sintetizados pelo tribunal recorrido, a alteração bastar-se-ia com a frase “onde se lê Verba n.º 3, passará a ler-se Verba n.º 14”.
Contudo, pela análise do teor da “retificação” facilmente se verifica que não estamos perante a singela retificação de um lapso, mas perante a reformulação da decisão transitada em julgado.
Em suma, a Mmª Juiz a quo alterou a decisão transitada em julgado retificando a graduação efetuada pelo produto da venda da Verba n.º3 (retirando a credora AA), autonomizou a graduação da Verba n.º14 (que não constava da sentença original) onde passou a incluir a credora AA. em 1º lugar, passando a AT para segundo lugar e, de seguida, graduou os créditos em relação às verbas n.º4 a 47 “com excepção da verba 14”, introduzindo uma exceção que não constava da decisão original, gerando uma evidente contradição entre o que passou a ficar decidido e o elenco de factos considerados provados, que permaneceram inalterados.
Ou seja, o tribunal recorrido produziu uma decisão nova, alterando, de forma relevante, a sentença originária há muito transitada em julgado, afetando um conjunto de efeitos processuais e substantivos já produzidos e estabilizados (rateio e pagamentos).
Ainda que pareça evidente que ocorreu um lapso aquando da prolação da sentença proferida no apenso de verificação e graduação de créditos, bastará atentar no elenco de factos que nela foram considerados provados para compreendermos que a questão se situa muito para além do erro material demonstrado pelo próprio contexto da sentença. Não é possível, de forma objetiva e por mera leitura do texto da sentença, concluir pela existência da expressão de uma vontade contrária àquela que o decisor pretendia efetivamente exteriorizar, antes exigindo a perceção do lapso o recurso a elementos externos à decisão, em concreto, ao teor da transação celebrada no apenso H, bem como à listagem, numeração e identificação das verbas apreendidas, constante do apenso de apreensão de bens.
Note-se que a sentença objeto de retificação pelo tribunal recorrido – parcialmente transcrita no ponto I.5.iii do relatório – incluiu entre os factos provados os factos 1.b e c., que identificavam as hipotecas de que beneficiava a Arrow Global e a CEMG como incidentes sobre as verbas “4 a 45” (ou seja, incluindo a verba 14 e excluindo a verba 3), sendo o lapso final com toda a probabilidade decorrente do facto de o direito de retenção da credora AA. ser identificado no facto 1.f. por referência à descrição do imóvel, sem menção à verba a que correspondia. Estes factos são, formal e objetivamente, coerentes com a decisão, não resultando, da leitura de uns e outros, qualquer lapso evidente que autorize retificação.
A verificação do erro impõe que seja feita a correspondência entre o prédio identificado no facto 1.f e a verba n.º 14, sendo que essa correspondência não é viabilizada por qualquer dado acessível na própria decisão, antes impondo, como se referiu, o recurso a elementos externos à mesma.
Será fácil, nesta fase, compreender que o julgador originário errou, já que os documentos constantes do processo e dos demais apensos implicavam uma decisão distinta. Mas este erro, subsumível à previsão do art.º 616º, n.º 2, al. b) do Código de Processo Civil, apenas autoriza a reforma da decisão em exercício de uma competência que cabe exclusivamente ao tribunal superior e que reclama a oportuna e tempestiva interposição de recurso.
Encontrava-se, por isso, vedada à Mm.ª Juiz a quo a possibilidade de chamar a si a competência para retificação da decisão, sendo a atuação desenvolvida violadora do caso julgado.
Os despachos recorridos em que, num primeiro momento, se declara a existência de lapso manifesto passível de retificação e, num segundo momento, se executa tal declaração alterando uma decisão transitada em julgado, atentam contra os efeitos vinculativos do caso julgado e contra o princípio da imodificabilidade da decisão judicial.
O tribunal recorrido estava vinculado à decisão que proferiu e que se refletiu nos atos subsequentes que, em cumprimento da decisão, foram praticados pelo Administrador de Insolvência e que, necessariamente, conflituam com os atos que, por nova determinação do tribunal, foram praticados e são objeto de recurso. Por assim ser, impõe-se a revogação dos referidos despachos, com reposição da regularidade processual e repristinação do processado anterior, que envolve, quer a validação da sentença originária, quer do mapa de rateio final e dos pagamentos efetuados com base nessa decisão.
Como refere Rui Pinto [Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (artigos 613.º a 617.º do CPC), Julgar Online, Maio de 2020, p. 3, acessível nesta ligação] “Esgotadas ou não exercidas, seja a (eventual) via recursória, sejam as vias excecionais previstas no artigo 613.º, n.º 2, deve ser considerada absolutamente nula uma posterior decisão em que o mesmo tribunal (ou um tribunal de recurso, fora das condições legais) retifique ou reforme a sentença ou despacho primitivos. É que o tribunal já não tem poder jurisdicional”.
Note-se, como salienta a apelante, que o tribunal recorrido, apesar de ordenar que lhe fosse aberta conclusão no apenso de reclamação onde considerou que se impunha (em ato futuro) proceder à retificação do lapso, sem deixar estabilizar o despacho e sem que houvesse ainda proferido a decisão retificadora que havia anunciado, optou por, de imediato, ordenar a alteração do mapa de rateio (que tem por base a decisão de verificação e graduação de créditos e havia sido corretamente efetuado com respeito pela decisão nessa ocasião inalterada) e as consequentes notificações aos credores, incluindo a notificação para entrega de valores que, por decorrência de alterações aos pagamentos devidos, considerou ser de executar imediatamente.
Há, em toda esta atuação, uma violação das regras de faseamento lógico e cronológico dos atos processuais, não podendo descurar-se o facto de as exigências de forma constituírem um meio de proteção das partes contra o (ainda que involuntário) arbítrio, que, não escassas vezes, é efeito de bem-intencionadas preocupações de celeridade e/ou daquilo que subjetivamente se considera corresponder à realização da justiça do caso concreto.
Contudo, como melhor se refere no Acórdão do STJ de 12.03.2015 (proc.º n.º 756/09.5TTMAI.P2.S1, acessível aqui), «Consistindo o processo jurisdicional num conjunto não arbitrário de atos jurídicos ordenados em função de determinados fins, as partes devem deduzir os meios necessários para fazer valer os seus direitos na altura/fase própria, sob pena de sofrerem as consequências da sua inatividade, numa lógica precisamente assente, em larga medida, na autorresponsabilidade das partes e, conexamente, num sistema de ónus, poderes, faculdades, deveres, cominações e preclusões(…) Deste modo, é inerente à natureza/essência do processo que, proferida a sentença, fique imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa (art.º 613.º, n.º 1, CPC), embora o mesmo possa e deva continuar a exercer no processo o seu poder jurisdicional para resolver as “questões e incidentes que surjam posteriormente e não exerçam influência na sentença ou despacho que emitiu”»
Se o interveniente processual diretamente afetado pelo erro/lapso de que padecia a decisão não exerceu o seu direito de reação pela via própria da interposição de recurso, terá que suportar as consequências dessa omissão, que se traduzem na estabilização definitiva do decidido.
Conclui-se, assim, pela procedência dos recursos interpostos e pela consequente revogação dos despachos recorridos, proferidos em 30.10.2024 no processo de insolvência e em 04.11.2024 no apenso de reclamação de créditos, considerando-se afetado pelos efeitos da declarada revogação o processado subsequente que seja consequência direta de tais despachos (designadamente a alteração introduzida ao mapa de rateio final e subsequentes alterações aos pagamentos devidos).
*
Não obstante nos recursos interpostos serem suscitadas outras questões autonomizadas entre as questões a decidir, a revogação dos despachos que estiveram na origem das questionadas obrigações de entrega pela apelante ou pela CEMG de quaisquer montantes à massa insolvente abala necessariamente o efeito destas, por estarem compreendidas no processado subsequente aos despachos recorridos, afetado pelos efeitos da declarada revogação.
Tem-se, assim, por prejudicada a apreciação das demais questões suscitadas pela apelante (art.º 608º, n.º 2 ex vi do art.º 663º, n.º 2, ambos do Código de Processo Civil)
*
A apelante obteve provimento em ambos os recursos interpostos. Contudo, apenas foram apresentadas contra-alegações no recurso interposto no processo de insolvência.
Não obstante ter ocorrido a apensação dos recursos, dado que foram pagas taxas de justiça autónomas, face ao disposto no art.º 527º, n.º 1 e n.º 2 do Código de Processo Civil, impõe-se que:
- no presente apenso S se considere que não são devidas custas;
- as custas referentes ao recurso interposto no apenso M fiquem a cargo da apelada massa insolvente, que nele ficou vencida.
*
*
V.
Nos termos e fundamentos expostos, acordam as juízas que integram a 1ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa em:
- revogar o despacho proferido no processo de insolvência em 30.10.2024, indeferindo-se a pretensão formulada pela credora AA. em 01.10.2024 no apenso H, com a consequente anulação do processado subsequente que constitua efeito direto de tal despacho;
- revogar o despacho de retificação proferido em 04.11.2024 no apenso M de reclamação de créditos, mantendo plenos efeitos a sentença original objeto de retificação.
*
Sem custas na instância recursiva do apenso S.
Custas da instância recursiva do apenso M a cargo da apelada massa insolvente.
Notifique e, após trânsito, insira certidão (física e eletrónica) da presente decisão no apenso M.
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Ana Rute Costa Pereira
Isabel Brás Fonseca
Susana Santos Silva