Ups... Isto não correu muito bem. Por favor experimente outra vez.
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
RENDIMENTO INDISPONÍVEL
DESPESAS
RESIDÊNCIA NO ESTRANGEIRO
Sumário
Da responsabilidade da relatora – art.º 663º nº 7 do CPC. 1 – Não se reconduz a impugnação da matéria de facto aquela que, embora expressamente deduzida, não visa a eliminação, alteração ou aditamento da matéria de facto provada e/ou não provada, mas coloca apenas em causa que a matéria de facto, integralmente provada nos termos alegados, não ter sido considerada na decisão proferida. 2 - Dada a tensão entre interesses contrapostos que se fazem sentir no instituto da exoneração do passivo restante, não tem apoio legal a tese de que o rendimento mínimo necessário para o sustento do devedor seja sempre correspondente ao das despesas por ele suportadas. 3 – Se o devedor insolvente reside no Reino Unido, onde ganha um salário razoável, mas suporta com as despesas essenciais custos mais elevados, do que os que suportaria em Portugal, deve o rendimento indisponível para cessão ser fixado tendo em conta a remuneração mínima garantida no local onde vive, no caso o National Minimum Wage (NMW), durante o período em que aí se encontre.
Texto Integral
Acordam as juízas da Secção de Comércio do Tribunal da Relação de Lisboa
1. Relatório
CM, apresentou-se à insolvência, com pedido de exoneração do passivo restante, alegando encontrar-se em situação de insolvência atual.
A insolvência da requerente foi declarada por sentença de 23/08/2024.
Foi dispensada a realização de assembleia de apreciação do relatório.
O Sr. Administrador da Insolvência juntou aos autos relatório, nos termos previstos no art.º 155º do CIRE, no qual se pronunciou pelo prosseguimento do processo para liquidação do ativo e, relativamente ao pedido de exoneração do passivo restante, emitiu parecer no sentido de que o requerimento deve ser deferido apontando a inexistência de incumprimento das alíneas a) a g) do nº 1 do art.º 238º, e considerando dever o rendimento disponível corresponder à diferença entre uma vez o national minimum wage e o montante auferido.
A credora CA Auto Bank SPA – Sucursal em Portugal veio pronunciar-se alegando que residindo a requerente no estrangeiro terão que se aplicar as regras dos arts. 294º e ss. do CIRE, não podendo ser admitido o pedido de exoneração do passivo restante.
A insolvente respondeu, alegando ter emigrado temporariamente para obter rendimentos que lhe permitam uma vida condigna, permanecendo a sua residência e centro dos principais interesses em Portugal, não se verificando qualquer dos pressupostos do processo particular de insolvência.
Por decisão do tribunal de 20/11/2024, foi decidido deferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, fixando-se o rendimento da insolvente, tido por minimamente digno ao sustento da mesma, no montante correspondente a 2,5 vezes o salário mínimo nacional.
Inconformada com a parte da decisão respeitante à fixação do montante do rendimento disponível, apelou a insolvente pedindo seja revogada a sentença recorrida, fixando-se o montante de € 3.345,12 (equivalente a 2.826,96 libras), como o montante necessário para o sustento minimamente digno da Insolvente, ora Recorrente, e do seu agregado familiar, excluindo-se o referido montante da cessão ao Fiduciário e apresentando as seguintes conclusões:
“1. O presente recurso tem por objeto o despacho inicial de exoneração do passivo restante, na parte em que fixou o valor do rendimento indisponível em 2,5 vezes o salário mínimo português – o que consubstancia erro sobre os factos, bem como uma errada interpretação e aplicação da Lei.
DO ERRO SOBRE OS FACTOS
2. O Tribunal “a quo” não deu a devida relevância ao custo de vida do lugar onde a Recorrente atualmente vive (Londres, Reino Unido), nem às despesas por si concretamente alegadas e demonstradas e que resultam, igualmente, das regras da experiência comum, assim como também não valorizou a fase de elevada inflação da economia britânica, nem a consequente subida do preço dos bens essenciais e nem as consequências negativas da guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Despesas referentes a habitação
3. A despesa mensal invocada e comprovada por via do Doc. n.º 7 junto com o requerimento inicial de 12/07/2024, para habitação no valor de EUR 1.596,78 (equivalente a 1.350,00 libras), na zona de residência da Recorrente (Londres, Reino Unido), não se afigura ser demasiada, nem minimamente sumptuária em face dos valores astronómicos praticados no mercado do arrendamento habitacional e que são inclusiva e incessantemente notícia nacional e internacional.
4. No município (“borough”) de Hillingdon, onde a Recorrente reside, para um apartamento pequeno, o valor mediano das rendas habitacionais era, a 30 de setembro de 2024, de 1.500,00 libras mensais, segundo dados da AutoridadeMetropolitana de Londres (“Greater London Authority”), ou seja, um valor muito superior ao valor atualmente suportado de 1.350,00 libras (equivalente a EUR 1.596,78), a título de despesas de habitação.
5. O município de Hilligton é, além do mais, entre os 32 municípios de Londres, o sétimo onde o valor médio de renda é mais baixo e a curta distância do mais baixo – sendo igualmente um dos municípios mais distantes do perímetro urbano da cidade (“Central London”) e do seu centro.
6. Há que notar que, o valor mensal suportado pela Recorrente a título de habitação absorve, por si só, cerca de 78% do valor do rendimento indisponível fixado pelo Tribunal “a quo” para a sobrevivência da Recorrente (EUR 2.050,00)!
7. Depois de pago o valor referente à habitação EUR 1.596,78 (equivalente a 1.350,00 libras), a Recorrente fica com o valor de apenas EUR 453,22 (EUR 2.050,00 – EUR 1.596,78 = EUR 453,22) para todas as restantes despesas básicas e imprescindíveis ao seu dia a dia em Londres, Reino Unido, a saber com: alimentação; higiene, vestuário e calçado; eletricidade, água, gás e telecomunicações; council tax, consultas médicas e medicamentos e, ainda, colégio a seu cargo de uma das suas irmãs…, o que se mostra manifestamente insuficiente. Despesas referentes a alimentação
8. O Tribunal “a quo” também não podia ter desconsiderado a existência e a imprescindibilidade da despesa referente a alimentação, no valor médio mensal de EUR 354,84 (equivalente a 300,00 libras), em Londres, Reino Unido, num contexto, ainda por cima, de inflação e de subida do preço dos bens essenciais.
9. O sector da alimentação foi profundamente afetado pela crise inflacionista no Reino Unido, tendo, num passado recente, a escalada de preços nos bens alimentares atingido um máximo histórico de 19,2% (maio de 2023, dados do Office for National Statistics), e, já no decorrer deste ano (janeiro de 2024) o valor de 7,0%!
10. A título de exemplo, um cabaz alimentar representativo que, a 30 de novembro de 2022, tivesse um custo de EUR 500,00, teria, a 30 de novembro de 2023, um custo estimado de EUR 596,00, ou seja, um valor muito superior ao que foi indicado pela Recorrente (EUR 354,84, equivalente a 300,00 libras).
11. A Recorrente já privilegia a confeção de refeições em casa, furtando-se a fazer despesas em restauração, assim como também privilegia alimentos mais baratos em detrimentos de outros mais caros como a carne ou o peixe.
12. A Recorrente, na sua condição de trabalhadora ativa (gestora de conflitos), tem necessidades acrescidas de energia e, por conseguinte, de alimentação, pelo que uma diminuição radical da alimentação da Recorrente para uma dieta quantitativa e qualitativamente insuficiente levará certamente a desequilíbrios graves, designadamente fraqueza e doenças graves, com impacto extremo e irreversível na sua qualidade de vida.
13. Não pode a saúde física e psicológica da Recorrente ser comprometida, com o inerente risco de vida, pela sua situação creditícia, pois tal atentaria nitidamente à dignidade da pessoa humana – princípio de qualquer Estado de Direito Democrático.
14. A manutenção da vida ativa da Recorrente não se mostra compaginável com o valor de rendimento indisponível que lhe foi fixado pelo Tribunal “a quo” (EUR 2.050,00). Despesas referentes a higiene, vestuário e calçado
15. Também a despesa referente a higiene, vestuário e calçado, no valor médio mensal indicado de EUR 118,28 (equivalente a 100,00 libras) perante o aumento do custo de vida em Londres, Reino Unido, devia ter sido valorada.
16. O sector do vestuário e calçado foi bastante afetado pela escalada de preços decorrente dos conflitos militares internacionais em curso desde fevereiro de 2022.
17. A Recorrente, no desempenho das suas funções, contacta diretamente com o público (enquanto gestora de conflitos), facto que lhe exige uma aparência física sempre cuidada, assim como uma boa apresentação, quer em termos de higiene, quer em termos de vestuário e calçado, o que acarreta, naturalmente, as suas despesas e que, por serem condição imprescindível para a manutenção do seu trabalho, a Recorrente não pode delas prescindir.
18. Acresce que, em face das inúmeras deslocações que faz no dia-a-dia entre casa e o seu local de trabalho, utilizando transportes públicos, e das deslocações que são inerentes à sua atividade profissional, facilmente se compreende que o seu próprio vestuário e calçado esteja, também, sujeito a desgaste rápido e que o mesmo tenha de obedecer a padrões mínimos de apresentação, e, sobretudo de qualidade.
19. A qualidade mínima do seu calçado impõe-se, desde logo, para que o desgaste desse mesmo calçado, num contexto climatérico propício à humidade e à formação de gelo (como o Reino Unido), se não traduza num desgaste muscular e ósseo da Recorrente – esse por seu turno dificilmente suprível ou reversível. - Despesas referentes a eletricidade, água, gás e telecomunicações
20. A despesa média mensal de EUR 501,63 (equivalente a 422,96 libras) relativa a eletricidade, água, gás e telecomunicações, em Londres, Reino Unido (comprovada por via do Doc. n.º 8 junto com o requerimento inicial de 12/07/2024) não se mostra nada excessiva tendo em conta que o sector da energia também tem sido um dos sectores muito afetados pela escalada de preços decorrente da inflação.
21. Os preços dos produtos energéticos essenciais seguiram uma trajetória ascendente largamente imprevisível, e em parte determinada pelas consequências da saída do Reino Unido da União Europeia (Brexit), concorrendo com os efeitos diretos da invasão russa da Ucrânia.
22. Os preços no Reino Unido são delimitados por um teto à fatura anual de energia, que sofreu, desde o inverno de 2021/2022 até ao quarto trimestre de 2024, um aumento de 41% (!), para 2.380 libras!
23. Os valores atualmente praticados, quer na faturação da energia, quer na faturação do gás, são muito elevados em comparação com a realidade portuguesa, ou até mesmo, mais globalmente, em comparação com a realidade da Europa continental.
24. Não se podendo ignorar que as necessidades de consumo energéticos no Reino Unido são muito superiores, no inverno, às da maioria das regiões de Portugal, devido ao clima frio e às temperaturas negativas que aí se registam.
25. A insuficiência do valor do rendimento indisponível pode comprometer irreversivelmente a saúde da Recorrente por via da poupança no aquecimento.
26. Acresce que, resulta do conhecimento geral e das regras da experiência comum a indispensabilidade, nos dias de hoje, não só de eletricidade, água e gás, mas igualmente e cada vez mais, de telecomunicações (internet, telemóvel, etc.) que, no caso da Recorrente, assumem um papel indispensável à sua inserção na sociedade, cuja situação de insolvência, em parte, comprometeu e também à manutenção do contacto com a família que vive em Portugal. - Despesas referentes a “council tax”
27. Errou, igualmente, o Tribunal “a quo” ao ter desconsiderado a existência da despesa referente a “council tax” invocada pela Recorrente no valor médio mensal de EUR 123,01 (equivalente a 104,00 libras), uma vez que é do conhecimento comum a obrigatoriedade de pagamento deste imposto municipal e resultava o mesmo comprovado por via do Doc. n.º 9 junto com o requerimento inicial de 12/07/2024. - Despesas referentes a saúde
28. As despesas referentes a saúde, invocadas pela Recorrente, no valor médio mensal de EUR 177,42 (equivalente a 150,00 libras), em Londres, Reino Unido, estão, no caso concreto, plenamente justificadas à luz do princípio de uma subsistência condigna e da concreta situação da Recorrente e comprovadas por via do Doc. n.º 10 junto, como exemplo, com o requerimento inicial de 12/07/2024)
29. A saúde física e psicológica da Recorrente atravessa presentemente uma fase vulnerável, designadamente em resultado do acidente grave sofrido no Metro de Londres, com consequente deslocação de coluna e anca, que levou a Recorrente a ser submetida a diversas cirurgias, à respetiva reaprendizagem do andar e recuperação progressiva de autonomia no dia-a-dia.
30. A isto, ainda acrescem as circunstâncias específicas da Recorrente relacionadas com a sua situação de insolvência por se trata de uma situação que sempre motiva estresse acrescido, assume-se, igualmente, como um fator propiciador da ocorrência de patologias graves nos meses e anos imediatos.
31. O acompanhamento médico que a saúde e a condição da Recorrente requerem (consultas médicas e toma de medicamentos frequentes) não se mostra exequível à luz do valor de rendimento indisponível atribuído pelo Tribunal “a quo”.
32. Além do mais, resulta amplamente reconhecido que as necessidades de saúde preventiva, as patologias crónicas, e os cuidados de saúde ou continuados têm da parte do Serviço Nacional de Saúde de Reino Unido, uma cobertura financeira parcial e limitada. - Despesas referentes ao colégio de uma das suas irmãs
33. A Recorrente ainda alegou e comprovou (Doc. n.º 11 junto com o requerimento inicial de 12/07/2024) despesas no valor médio mensal de EUR 473,16 (equivalente a 400,00 libras) pagas a título de colégio de uma das suas irmãs, em Londres, Reino Unido, o que deveria ter sido devidamente valorizado,
34. Tendo em conta que ficou provado na Primeira Instância que “a insolvente presta assistência às duas irmãs, que se encontram ambas institucionalizadas, por patologias relativas a autismo e gigantismo” (sublinhado e negrito nossos) (cfr. despacho de 20/11/2024, ora recorrido).
35. EM SUMA, a desconsideração do valor das despesas com habitação, alimentação, higiene, vestuário e calçado, eletricidade, água, gás e telecomunicações, “council tax”, saúde e, ainda, colégio frequentado por uma das suas irmãs, alegadas e comprovadas pela Recorrente são, pois, os concretos pontos de facto que a Recorrente considera incorretamente julgados (cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. a) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE).
36. Os documentos n.º 7, 8, 9, 10 e 11 do requerimento inicial de 12/07/2024 em conjunto com a notoriedade do valor de todas as referidas despesas, que sempre dispensaria a apresentação de provas, impõe uma decisão diversa da recorrida (cfr. art.º 412.º, n.º 1 do CPC e art.º 640.º, n.º 1, al. b) do CPC, ambos ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE).
37. A alteração da matéria de facto, ora requerida, assume decisiva relevância ao conduzir a uma decisão diversa, uma vez que levaria necessariamente à fixação do montante de EUR 3.345,12 (equivalente a 2.826,96 libras) como o montante necessário para o sustento minimamente digno da Insolvente, ora Recorrente.
38. Face ao exposto, deve ser dada como provada a necessidade, para o sustento minimamente digno da Recorrente, das despesas por si suportadas e acima invocadas, no valor médio mensal global de EUR 3.345,12 (equivalente a 2.826,96 libras) (cfr. art.º 640.º, n.º 1, al. c) do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE), o que se requer.
39. De notar que os factos e despesas alegados são também factos que o Tribunal deve conhecer enquanto instituição consciente da realidade social existente e que impunham, por isso, uma decisão diversa nos termos acima mencionados.
40. O montante correspondente a 2,5 vezes o salário mínimo português (2,5 SMN = EUR 2.050,00) (fixado como rendimento indisponível pelo Tribunal “a quo”) não assegura o sustento minimamente digno da Recorrente.
- DA ERRADA INTERPRETAÇÃO E APLICAÇÃO DA LEI
41. A Lei exclui do rendimento disponível, entre outros, o que seja razoavelmente necessário para o sustento minimamente digno do Insolvente e do seu agregado familiar, podendo exceder o limite de três vezes o salário mínimo nacional mediante decisão fundamentada do juiz (cfr. art.º 239.º, n.º 3, alínea b), subalínea i) do CIRE).
42. Encontrando-se a Recorrente presentemente a viver no Reino Unido (e, também, na altura da prolação do despacho – conforme resulta elencado na secção dos factos provados), deveriam os 2,5 mencionados salários mínimos ter tido, antes, por referência 2,5 vezes o valor equivalente ao considerado minimamente necessário ao sustento minimamente digno no Reino Unido.
43. O Tribunal “a quo” não atendeu a determinados factos carreados aos autos, nomeadamente, atinentes ao custo de vida no Reino Unido, que nem careceria de prova ou de alegação por se tratar de um facto do conhecimento geral (facto notório) (cfr. art.º 412.º, n.º 1 do CPC ex vi art.º 17.º, n.º 1 do CIRE) (cfr., no mesmo sentido, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21/02/2019, acima transcrito parcialmente).
44. Basta ver que, o valor considerado como minimamente necessário ao sustento minimamente digno no Reino Unido reporta-se - com base num valor hora de 11,44 libras (13,88 euros) aplicado a trabalhadores maiores de 21 anos e tendo por referência o período de 8 (oito) horas de trabalho diárias durante 22 (vinte e dois) dias úteis - a um valor mensal de EUR 2.442,88 contra um valor mensal de apenas EUR 820,00 em Portugal (2024)!
45. Significa isto que o valor considerado minimamente necessário ao sustento minimamente digno de uma pessoa no Reino Unido, atendendo ao respetivo custo de vida, é superior em mais de 198 % em relação ao considerado minimamente necessário em Portugal.
46. O conceito de salário mínimo visa satisfazer um sustento minimamente digno e, por isso, encontra-se intimamente ligado ao conceito de custo de vida.
47. Daqui resulta que o valor a excluir do rendimento disponível nos termos da subalínea i) da alínea b) do n.º 3 do art.º 239.º do CIRE deve aferir-se em função do valor mínimo necessário ao sustento minimamente digno assim considerado no país onde o devedor esteja a viver em cada momento (tornando-se irrelevante se a Recorrente se encontra a trabalhar no Reino Unido a curto, médio ou longo prazo) (cfr., no mesmo sentido, por exemplo, os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 22/03/2018 e de 02/11/2017 e, ainda, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21/02/2019, todos acima parcialmente transcritos).
48. Ainda que este douto Tribunal desconsiderasse o acima descrito facto notório referente ao valor mínimo necessário ao sustento minimamente digno no Reino Unido – o que apenas se admite por mero dever de patrocínio –, sempre se teria de chegar à mesma conclusão pelo valor das despesas apresentadas pela Recorrente.
49. O montante correspondente a 2,5 vezes o salário mínimo português (EUR 2.050,00) mostra-se insuficiente atendendo às despesas a que a Recorrente tem atualmente de fazer face mensalmente, que ascendem a um total médio de EUR 3.345,12 (equivalente a 2.826,96 libras).
50. O valor das despesas necessárias e atendíveis a que a Recorrente tem de fazer face todos os meses ultrapassa o montante que lhe foi conferido pelo Tribunal “a quo” como o necessário para o seu sustento minimamente digno.
51. Só a despesa com a habitação perfaz o valor mensal de EUR 1.596,78 (equivalente a 1.350,00 libras), pelo que, tendo em conta o valor do rendimento indisponível fixado pelo Tribunal “a quo” ( 2,5 SMN = EUR 2.050,00 ), sobra à Recorrente apenas o valor mensal de EUR 453,22 (EUR 2.050,00 – EUR 1.596,78 = EUR 453,22) (!!) para, em Londres, Reino Unido, proceder ao pagamento de: alimentação, higiene, vestuário, calçado, eletricidade, água, gás e telecomunicações, council tax, consultas médicas, medicamentos, colégio frequentado por uma das suas irmãs, mostrando-se, assim, completamente impossível à Recorrente fazer face às suas despesas do dia-a-dia.
52. O Tribunal “a quo” não fez a devida ponderação casuística das circunstâncias particulares da devedora, pois, face à situação factual particular da Recorrente e de modo a garantir a conformidade constitucional e prosseguir o espírito da Lei, deveria ter-lhe sido atribuído, a título de rendimento indisponível, pelo menos o montante equivalente a EUR 3.345,12 (correspondente a 2.826,96 libras), por se mostrar ser este o montante mínimo necessário para assegurar o seu sustento minimamente digno.
53. A figura do salário mínimo nacional, perspetivada em todas as suas aplicações, visa reconhecer que há um mínimo de rendimento que deverá ser assegurado a cada indivíduo, mas esse mínimo pode e deve ser reconsiderado quando existam despesas atendíveis que justifiquem o seu aumento.
54. Não restam dúvidas de que, tendo em conta as despesas concretamente alegadas pela Recorrente (cuja apreciação casuística impunha a fixação do total do valor indisponível em, pelo menos, EUR 3.345,12 – equivalente a 2.826,96 libras), a determinação que foi feita pelo Tribunal “a quo” do valor do rendimento indisponível – em apenas EUR 2.050,00 – viola o princípio da proporcionalidade, constitucionalmente consagrado (cfr. artigo 18.º, n.º 2 da Constituição).
55. Face a tudo quanto antecede, a decisão ora recorrida viola as disposições conjugadas dos artigos 239.º, n.º 3, alínea b), subalínea i) do CIRE, e 1.º da Constituição da República Portuguesa, pois não permite que a Recorrente veja o seu sustento minimamente condigno assegurado,
56. Razão pela qual deverá ser substituída por outra que, aumentando o valor considerado necessário para o sustento minimamente digno da Recorrente para o montante equivalente a EUR 3.345,12 (correspondente a 2.826,96 libras), permita assegurar a subsistência condigna da Recorrente e do seu agregado familiar.”
Não foram apresentadas contra-alegações.
O recurso foi admitido por despacho de 27/01/2025 (ref.ª 441875080).
Cumpre apreciar.
*
2. Objeto do recurso
Como resulta do disposto nos arts. 608º, n.º 2, aplicável ex vi art.º 663º n.º 2, 635º n.ºs 3 e 4, 639.º n.ºs 1 a 3 e 641.º n.º 2, alínea b), todos do Código de Processo Civil, sem prejuízo do conhecimento das questões de que deva conhecer-se ex officio e daquelas cuja solução fique prejudicada pela solução dada a outras, este Tribunal só poderá conhecer das que constem nas conclusões que, assim, definem e delimitam o objeto do recurso. Frisa-se, porém, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5º, nº3 do mesmo diploma.
Consideradas as conclusões acima transcritas são as seguintes as questões a decidir:
- impugnação da matéria de facto;
- determinação do montante relativo ao sustento minimamente digno da devedora e do seu agregado familiar, para os efeitos da exoneração do passivo restante.
*
3. Fundamentos de facto:
O tribunal recorrido deu como assentes os seguintes factos[1]:
“1 - A Insolvente, nascida em 14-02-1974, é divorciada, sendo o seu agregado familiar composto apenas pela própria.
2 - A insolvente presta assistência às duas irmãs, que se encontram ambas institucionalizadas, por patologias relativas a autismo e gigantismo.
3 - A Requerente esteve desempregada, tendo emigrado para Reino Unido, no sentido de conseguir exercer uma atividade profissional remunerada, trabalhando atualmente em Londres como gestora de conflitos na empresa ADP OK, auferindo um rendimento mensal de 3.300 libras.
4 - Suporta as seguintes despesas correntes médias:
a) Despesa mensal com a habitação, no valor de 1.350,00 libras
b) Despesas com alimentação, no valor médio mensal de 300,00 libras
c) Despesas com vestuário e higiene, no valor médio mensal de 100,00 libras
d) Despesas de eletricidade, água, gás e telecomunicações, no valor médio mensal de 422,96 libras
e) Despesa com o Council Tax, no valor mensal de 104,00 libras
f) Despesas com saúde, no valor médio mensal de 150,00 libras
g) Despesas com o colégio de uma das suas irmãs, no valor mensal de 400,00 libras
5 - No total médio mensal de 2.826,96 libras (equivalente a €3.345,12).
6 - Foram reconhecidos provisoriamente créditos sobre a insolvente no montante global de 289.593,31 €.”
*
Com relevo para a decisão do presente recurso, mostram-se ainda assentes, com base nos termos dos autos, nos documentos juntos ao processo e na ausência de impugnação por parte dos interessados, os seguintes factos:
7 - Foi proferida em 27/01/2025, sentença de verificação e graduação de créditos tendo sido verificados créditos reclamados por três credores, todos créditos comuns no valor global de € 289.593,31.
*
4. Impugnação da matéria de facto
Nos termos do disposto no nº1 do art.º 640º do CPC, quando seja impugnada a decisão proferida sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida.
c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
Nos termos do disposto no art.º 639.º nº1 do CPC «O recorrente deve apresentar a sua alegação, na qual conclui, de forma sintética, pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou a anulação da decisão.»
Este é um ónus do recorrente e o seu cumprimento permite ao tribunal superior apreender, com clareza, os fundamentos do recurso. A importância e papel das conclusões retiram-se com clareza desta norma, da previsão de rejeição dos recursos em que não sejam formuladas conclusões (art.º 641º nº 2, al. b) do CPC) e da previsão de aperfeiçoamento nos casos de deficiência, obscuridade, complexidade ou incompletude (nº3 do referido art.º 639.º). Relativamente à impugnação da decisão sobre a matéria de facto, porém, o art.º 640º já citado, tem uma solução diversa daquela: o incumprimento do nº1 dá lugar à rejeição do recurso, total ou parcialmente, não existindo possibilidade de despacho de aperfeiçoamento[2] - cfr. arts. 635º nº 4 e 641º nº 1, al. b), ambos do CPC.
A recorrente não indica qualquer ponto de facto que considere incorretamente julgado, invocando, em relação a cada facto dado como provado na sentença a respetiva “desconsideração” (cfr. pontos 40, 66, 85, 113, 120, 135 e 143 da motivação) e em sede de conclusões que não lhes foi dada a devida relevância (cfr. cls. 2) ou que foram desconsideradas ou não valoradas (cfr. cls. 8, 15, 27 e 33).
Indicou os meios probatórios que impunham decisão diversa – cls. 36 (documentos e notoriedade).
Não indicou qual a decisão que deveria ter sido proferida em relação a cada um dos pontos de facto dados como provados[3] indicando sim, em relação a cada uma das despesas e em geral que deveriam ter conduzido a uma decisão final sobre o montante do sustento minimamente digno da recorrente de € 3.345,12 (pontos 42, 68, 87, 114, 122, 137 e 145 da motivação e 37 e conclusão 37).
Lendo, quer a motivação, quer as conclusões, resulta claro que a presente impugnação não se dirige à matéria de facto, no sentido técnico do termo, ou seja, não se pretende qualquer eliminação, alteração ou aditamento da matéria de facto provada e/ou não provada, dirigindo-se apenas à decisão de direito de não consideração de todas as despesas alegadas, provadas ou não provadas.
Embora formalmente a recorrente tenha indicado tratar-se de impugnação da matéria de facto (nºs 41, 66, 85, 112, 120, 135 e 143 da motivação e conclusão 36), e tenha indicado meios de prova que, na sua opinião impunham diversa decisão, não indicou nem os pontos de facto que considera indevidamente julgados nem decisão que deveria ter sido proferida.
O que bem se compreende, já que todas as despesas a que se refere a impugnação da matéria de facto deduzida pela recorrente foram dadas como provadas nas alíneas a) a g) do ponto 4 da decisão de facto proferida pelo tribunal a quo, e nos exatos montantes alegados. Não pretendendo a recorrente a sua não prova é muito claro que não estamos ante uma impugnação da matéria de facto, mas antes de discordância dos fundamentos da decisão, a conhecer na sede própria.
Assim, não há qualquer impugnação da matéria de facto a conhecer, devendo a desconsideração ou não valorização das despesas alegadas e dadas como provadas, ser discutida em sede de fundamentos jurídicos.
*
5. Apreciação do mérito do recurso:
A exoneração do passivo restante é um instituto introduzido, de forma inovatória, em 2004, pelo Código da Insolvência e da Recuperação de Empresa, e que confere aos devedores pessoas singulares uma oportunidade de começar de novo – o fresh start.
Nos termos do disposto no art.º 235.º do CIRE: «Se o devedor for uma pessoa singular, pode ser-lhe concedida a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos três anos posteriores ao encerramento deste nos termos das disposições do presente capítulo.»
“A principal vantagem da exoneração é a libertação do devedor das dívidas que ficaram por pagar no processo de insolvência, permitindo-lhe encetar uma vida nova.”[4]
É, antes de mais, uma medida de proteção do devedor mas que joga com dois interesses conflituantes: a lógica de segunda oportunidade e a proteção imediata dos interesses dos credores atuais do insolvente.
Não esqueçamos que o processo de insolvência «…tem como finalidade a satisfação dos credores…» como se prescreve logo no art.º 1º do CIRE. Este instituto posterga essa finalidade em nome não apenas do benefício direto (exoneração e segunda oportunidade) do devedor, mas de uma série de interesses de índole mais geral: a possibilidade de exoneração estimula a apresentação tempestiva dos devedores à insolvência, permite a tendencial uniformização entre os efeitos da insolvência para pessoas jurídicas e pessoas singulares e, em última análise, beneficia a economia em geral, provocando, a contração do crédito mas gerando maior responsabilidade na concessão do mesmo.[5]
Essa tensão entre dois interesses opostos, reflete-se, mas várias normas que regulam a exoneração, desde logo na opção do nosso legislador pelo regime do earned start, ou reabilitação (por contraposição ao fresh start puro), ou seja, fazendo o devedor passar por um período de prova e concedendo o benefício apenas se o devedor o merecer.
É também o modelo eleito a nível europeu, como resulta da Diretiva 2019/1023 do Parlamento Europeu e do Conselho de 20 de junho de 2019 (sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas)[6], transposta entre nós pela Lei nº 9/2022 de 11 de janeiro, e que, em matéria de exoneração ou perdão, na linguagem da diretiva, previu o acesso ao perdão total da dívida aos empresários, deixando aos Estados a opção de o aplicar aos consumidores (cfr. considerando 21), após um prazo não superior a três anos, possibilitando a reserva a devedores de boa-fé e à verificação do cumprimento de determinadas condições – cfr. arts. 20º a 24º da diretiva, em especial o artigo 22º.
A ponderação destes interesses contrapostos deve ser considerada como guião para a interpretação das normas dos arts. 235º e ss. do CIRE, como resulta, entre outros, do Ac. STJ de 02-02-2016 (Fonseca Ramos – 3562/14) e TRP de 15-09-2015 (José Igreja de Matos – 24/14)[7], entre as quais o art.º 238º.
Estabelece o art.º 239º nº3 do CIRE que integram o rendimento disponível do devedor, a ceder ao fiduciário durante o período de cessão de rendimentos (sublinhado nosso): «…todos os rendimentos que advenham a qualquer título ao devedor, com exclusão: a) Dos créditos a que se refere o artigo 115.º cedidos a terceiro, pelo período em que a cessão se mantenha eficaz; b) Do que seja razoavelmente necessário para: i) O sustento minimamente digno do devedor e do seu agregado familiar, não devendo exceder, salvo decisão fundamentada do juiz em contrário, três vezes o salário mínimo nacional; ii) O exercício pelo devedor da sua actividade profissional; iii) Outras despesas ressalvadas pelo juiz no despacho inicial ou em momento posterior, a requerimento do devedor. (…)».
Razoavelmente necessário e sustento minimamente digno são conceitos indeterminados a preencher pelo juiz, com apelo ao conceito fundamental de dignidade humana, consagrado nos arts. 1º e 26º da Constituição da República Portuguesa.
Temos que ter presente, no momento da fixação do rendimento disponível que estaremos, porque ultrapassada a decisão liminar, ante um devedor de boa-fé (a inexistência desta levaria, idealmente, na economia normativa, ao indeferimento liminar do pedido[8]) e que jogar a sua dignidade com o sacrifício que vai ser imposto aos seus credores implica um sacrifício da sua parte: “com esta afirmação pretende-se dizer que o devedor insolvente não deve manter o mesmo nível de vida anterior, devendo sacrificar-se numa medida razoável perante os factos apresentados ao juiz; mas o devedor também não deve ser penalizado como se fosse culpado pela sua insolvência.”[9]
A determinação da medida do sacrifício razoável tem levado à indagação da existência de um limite mínimo, não determinado por lei.
O legislador estabeleceu apenas o limite máximo do sustento minimamente digno, fixando-o no triplo do salário mínimo nacional/regional – valor que pode, fundamentadamente, ser excedido.
O limite mínimo, que não foi objetivado no preceito, deve situar-se no montante equivalente a um salário mínimo nacional, valor de referência em sede de penhora, nos termos do art.º 738.º, nº3 do CPC, por similitude de razões, sem que isso signifique ser esse valor o critério base de aferição do que seja a quantia razoavelmente necessária para o sustento minimamente digno do devedor.
Na verdade, e tal como referido no Ac. TRL de 09/04/2013 (Isabel Fonseca – 4595/11) “mal se compreenderia que o legislador estabelecesse em sede de insolvência parâmetros de composição dos interesses dos credores versus do insolvente, substancialmente diferentes daqueles que regem a ação executiva, sabendo-se, como se sabe, que a insolvência mais não configura senão uma execução universal (art.º 1º).”
Como refere criticamente Ana Filipa Conceição, tem sido afirmada a ideia de que um salário mínimo nacional por insolvente é um mínimo de sobrevivência adequado, quando a lei impõe, rigorosamente uma averiguação casuística[10].
Concordamos com o raciocínio mas não podemos deixar de frisar que, e seguindo a linha condutora do Ac. STJ de 02-02-2016, citado acima, o que é muitas vezes decidido é que o salário mínimo nacional é o limiar mínimo abaixo do qual não deve passar-se, no exato sentido de que não poderá nunca, sejam quais forem as condições do insolvente e do seu agregado, fixar como sustento minimamente digno do devedor menos que um salário mínimo por devedor, nomeadamente rejeitando que o Rendimento Social de Inserção possa cumprir esse papel – cfr. também os Acs. TRC de 06/07/2016 (Falcão de Magalhães - 3347/15), TRE de 04/12/14 (Cristina Cerdeira - 1956/11), TRP de 22/05/19 (Maria Cecília Agante - 1756/16), TRL de 27/02/18 ou TRP de 16/09/14 (Maria Amália Santos – 1940/12).
Refira-se, também que é recorrente a menção à falta de prova de elementos que permitam uma apreciação mais casuística, o que justificará, que, por um lado se busque um limiar mínimo abstrato e, por outro, que esse limiar mínimo venha tantas vezes a ser fixado.
Finalmente, e com o Ac. TRP de 16/09/14 (Maria Amália Santos – 1940/12), dada a tensão entre interesses contrapostos que no instituto se fazem sentir, diremos que não tem apoio legal a tese de que o rendimento mínimo necessário para o sustento do devedor seja sempre o das despesas por ele suportadas[11]. Em alguns casos poderá ser, noutros nem tanto, mas sempre sem aderirmos à tese de que há que proceder a uma adequação comportamental punitiva pelo facto de ter chegado a uma situação de insolvência.
No nosso caso concreto temos uma insolvente, que aufere rendimentos mensais de 3.300 libras inglesas, vivendo e trabalhando no Reino Unido.
A recorrente defende que a quantia excluída da cessão de rendimentos deve ser fixada tem como referência, não o salário mínimo nacional (português), mas antes o salário mínimo inglês, dado que o custo de vida no Reino Unido é muito superior ao de Portugal. Mais defende que não poderá ser fixada em montante inferior ao das suas despesas, ou seja, em € 3.345,12.
Concordamos, como já referido, que a remuneração mínima garantida pode não ser o mínimo, e que as despesas apuradas podem elevar (nunca baixar), esse mínimo de sobrevivência, no caso concreto. Mas, como já referimos e frisamos, isso não quer dizer que o mínimo de sobrevivência seja sempre igual às despesas apresentadas.
Tal como frequentemente acolhido nos nossos tribunais, a denominada “escala de Oxford”, tem servido de referência, mas não de modelo exato para a fixação da medida do rendimento mínimo de sobrevivência com dignidade. É um ponto de referência, uma escala de equivalência que pode servir como padrão, mas que não afasta a necessidade de apuro casuístico – ver neste sentido, entre outros, o Ac. TRC de 21/01/2020 (Maria João Areias) ou o Ac. TRG de 17/05/2018 (António Barroca Penha), ou TRL de 27/09/2018 (António Santos)[12].
Tendemos a concordar com o uso da escala para determinar a capitação dos rendimentos de um agregado familiar como um patamar mínimo: na maioria dos casos a atribuição do índice 100 ao 1º adulto, 0,7 ao 2º adulto e 0,5 por cada criança corresponderá, fazendo coincidir o índice 100 à retribuição mínima mensal garantida[13], o vulgarmente designado salário mínimo nacional, ao patamar mínimo de sobrevivência com respeito pela dignidade.
No caso a questão passa em primeiro lugar pela determinação de se podemos atender à remuneração mínima garantida vigente no Reino Unido ou se teremos que nos ater à RMMG nacional, atento que se apurou que a insolvente reside e trabalha no Reino Unido, país onde existe remuneração mínima fixada por lei e onde, de acordo com as despesas apuradas, o custo de vida é muito mais alto que em Portugal.
Isto porque, de acordo com a conceção acima exposta sobre a ligação umbilical entre o rendimento indisponível para cessão e o princípio da dignidade humana, apurado um custo de vida mais alto, teremos que fixar um rendimento indisponível para cessão mais alto, sob pena de condenar o devedor a três anos de pobreza punitiva.
Trata-se de questão que tem vindo a ser tratada pela jurisprudência de forma essencialmente uniforme, reconhecendo-se a necessidade de atender ao custo de vida do local onde o insolvente faz a sua vida quotidiana, ainda que temporariamente.
Além dos arestos citados pela recorrente, os Acs. TRP de 21/12/2019 (Aristides Rodrigues de Almeida – 176/11), TRL de 22/03/2018 (Pedro Martins – 24815/15) e TRL de 02/11/2017 (Pedro Martins – 191/08)[14], podemos ainda citar o Ac. TRP de 02/12/2021 (Filipe Caroço – 633/15) no qual se reconhece expressamente que a mudança para um outro país, com rendimento mensal garantido e custo de vida diferentes de Portugal justificam a revisão do quantitativo da cessão (desde que requerida em tempo), o Ac. TRE de 24/02/2022 (Isabel de Matos Peixoto Imaginário - 53/21), no qual se decidiu que residindo o Insolvente na Irlanda, país onde se encontrava a trabalhar, o valor de uma das RMMG que integram o rendimento indisponível para efeitos de cessão ao fiduciário deve ser aferida por referência àquela que vigorar naquele país e o Ac. TRG de 17/02/2020 (Rosália Cunha – 2142/12), no qual se decidiu “Residindo os insolventes fora do território nacional, a fixação do rendimento indisponível deve ser feita por referência ao salário mínimo vigente no país onde residem, e não ao salário mínimo nacional, justificando-se que o rendimento possa ser fixado em montante superior a três salários mínimos nacionais em conformidade com o previsto na parte final da subalínea i), da al. b), do nº 3, do art.º 239º, do CIRE.”
Concordamos integralmente com esta jurisprudência, considerando que o máximo indicativo de três salários mínimos se refere à realidade portuguesa, podendo ser ultrapassado quando o padrão de referência seja outro: a remuneração mensal mínima garantida de outro país com outro custo de vida, sempre que se mostre que o devedor aí reside e faz a sua vida quotidiana.
Trata-se, efetivamente, de uma questão de respeito pelo núcleo mínimo de dignidade humana material. A solução deve, como já vimos, ser casuística, embora guiada por padrões e bitolas estatuídas para o fim visado, como é o caso da consideração da remuneração mínima garantida como limiar abaixo do qual não se pode descer ou dos critérios de capitação.
Se, no caso, a insolvente reside no Reino Unido, onde ganha um salário razoável (pelos padrões portugueses, alto) mas suporta custos mais elevados com as despesas essenciais, como habitação, alimentação, energia, transportes ou saúde, do que os que suportaria em Portugal, podemos e devemos transportar os padrões e bitolas e olhar ao salário mínimo nacional inglês, que é fixado já tendo em conta a realidade do país.
No Reino Unido vigora um quadro normativo que cumpre funções similares à RMMG, tendo por base o National Minimum Wage (NMW), incluindo o National Living Wage (NLW).
Desde 1 de abril de 2024 e até março de 2025, o valor do NMW, para pessoas com idade superior a 21 anos é de £11.44, valor fixado por cada hora de trabalho[15], ou seja, ponderando o período de trabalho de 40 horas semanais, é de £2.013,44 mensais, o que é um montante muito mais elevado que o fixado em Portugal, de € 870,00 mensais em 2025, tendo por referência o período normal de trabalho, que é 8 horas diárias e 40 horas semanais (arts. 198.º e 203.º do Código do Trabalho), isto é, um valor de € 4,94/hora[16].
Ponderando as despesas apresentadas entende-se adequado fixar em 1,5 NMW, o montante indisponível para cessão em relação à insolvente, enquanto se mantiver no Reino Unido.
Caso durante o período de cessão venha a residir – por períodos mais prolongados que o mero gozo de férias – em Portugal, o montante já fixado[17] de 2,5 vezes a RMMG nacional mostra-se perfeitamente adequado ao nível do custo de vida em solo português, atentos os constrangimentos necessários ao estilo de vida da insolvente exoneranda.
Nestes termos, procedendo, embora não integralmente, as conclusões do recurso, impõe-se a revogação correspondente da decisão recorrida.
*
A requerente deverá suportar, porque da ação tira proveito, as custas correspondentes (artº 527º nº 1 do CPC), sem prejuízo do disposto no nº1 do art.º 248º do CIRE.
*
6. Decisão
Pelo exposto, acordam as juízas desta Relação em, julgando parcialmente procedente a apelação:
a) Fixar como rendimento indisponível a quantia correspondente a uma vez e meia o National Minimum Wage, enquanto a devedora residir no Reino Unido;
b) Manter a decisão recorrida, de fixar como rendimento indisponível 2,5 a RMMG sempre que a insolvente, durante o período de cessão, resida em Portugal por períodos mais prolongados que o gozo de férias.
Custas pela recorrente, que do recurso tirou proveito, sem prejuízo do disposto no art.º 248º nº1 do CIRE.
Notifique.
*
Lisboa, 8 de abril de 2025
Fátima Reis Silva
Ana Rute Pereira
Paula Cardoso
_______________________________________________________ [1] Numeração introduzida por este Tribunal com o fim de facilitar a compreensão. [2] Neste sentido acórdão do STJ de 27-10-2016, Ac. TRL de 12/11/2019, ambos disponíveis in http://www.dgsi.pt/ e António Abrantes Santos Geraldes in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 5ª edição, Almedina, pg. 167. [3] Na sentença não foi consignada a existência de matéria de facto não provada). [4] Catarina Serra in Lições de Direito da Insolvência, 3ª edição, Almedina, 2025, pg. 773. [5] Neste sentido Catarina Serra, local citado, pg. 776. [6] Texto disponível in https://eur-lex.europa.eu/legal-content/PT/TXT/PDF/?uri=CELEX:32019L1023&from=PT [7] Todos disponíveis em www.dgsi.pt, como os demais citados sem referência. [8] Neste sentido, ou seja, de que o conjunto de requisitos ou condições de acesso à exoneração previstos no art.º 238º do CIRE se destinam a comprovar a boa-fé do devedor Ana Filipa Conceição in A jurisprudência portuguesa sobre exoneração do passivo restante”, Julgar Online, junho de 2016, pg. 11. [9] Local citado na nota anterior, pg. 12. [10] Local citado nas notas anteriores, pg. 12. [11] No mesmo sentido, entre outros os Acs. TRP 12/04/2021 (Pedro Damião Cunha - 2221/20), TRC de 04/02/2020 (Barateiro Martins - 2614/19) ou TRC de 14/01/2020 (Maria João Areias - 2037/19). [12] Todos disponíveis, tal como os demais citados sem referência, em www.dgsi.pt. [13] Fixada, para 2025, em Portugal Continental em € 870,00, nos termos do Decreto-Lei n.º 112/2024 de 19 de dezembro, sendo em 2024 no valor de € 820,00. [14] Este disponível em www.outrosacordaostrp, consultado em 24/03/2025. [15] Informação disponível no site https://www.gov.uk/national-minimum-wage-rates, consultado em 24/03/2025. [16] À taxa de câmbio média atual do euro (cfr. o site bpstat.bportugal.pt) a quantia de 2.103,44 libras equivale a 2.513,33€. [17] E abaixo do qual não podemos descer nos termos do art.º 635º nº5 do CPC.