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DEVER DE INFORMAR
DEVER DE COLABORAÇÃO DAS PARTES
DOLO
CULPA GRAVE
ENUMERAÇÃO TAXATIVA DAS CAUSAS
EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
ÓNUS DA PROVA
PRINCÍPIO DO INQUISITÓRIO
Sumário
Da responsabilidade da relatora (art.º 663º, nº 7 do CPC).
1. A falta de indicação, no requerimento inicial em que o devedor se apresenta à insolvência, da declaração a que alude o art.º 236.º, n.º 3 do CIRE (“declaração de que o devedor preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes”) não justifica o indeferimento liminar do pedido de exoneração, mesmo que o juiz tenha proferido convite ao aperfeiçoamento do requerimento e o devedor não tenha correspondido a esse convite, constituindo mera irregularidade que não influi na apreciação liminar da admissibilidade do incidente. 2. Efetivamente, o art.º 238.º do CIRE enuncia as causas de indeferimento liminar do pedido de exoneração, não constando desse elenco a mencionada hipótese, que não é suscetível de enquadrar-se em qualquer das alíneas referidas no número 1, sendo que se trata de uma enunciação taxativa, como resulta da formulação dada pelo legislador ao proémio do artigo, mormente pela utilização da expressão “se” (“1- O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se”), sabendo-se que, usualmente, o legislador assinala o caráter meramente exemplificativo de determinada enunciação quando esta é introduzida associada à utilização de determinados advérbios (nomeadamente, designadamente) ou expressões (entre outro(a)s). 3. O indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante com fundamento no disposto na alínea g) do número 1 do art.º 238.º do CIRE pressupõe a verificação de um elemento objetivo, consubstanciado na violação, por ação ou omissão, de determinados deveres (“deveres de informação, apresentação e colaboração”, resultantes do CIRE, “no decurso do processo de insolvência”)” e um elemento de cariz subjetivo, o dolo ou a culpa grave. Na aferição do elemento subjetivo, o legislador exclui, pois, os casos de mera culpa ou negligência, que se traduz na violação de um dever de cuidado, na omissão da diligência exigível ao agente. 4. O interesse juridicamente relevante que o legislador quis proteger com a previsão da referida alínea g), ao sancionar a atuação do devedor insolvente é, em primeira linha, o interesse dos credores, atenta a finalidade do processo de insolvência (art.º 3.º, n.º 1); assim, a violação dos deveres de informação, apresentação e colaboração previstos no CIRE, no decurso do processo é fundamentalmente aquela que tiver repercussão, ou for suscetível de ter repercussão, na satisfação dos créditos, como usualmente acontece, por exemplo, quando está em causa aferir do património do devedor com vista à respetiva apreensão e liquidação, salientando-se no entanto que não se pode retirar dessa asserção que se considere que o preenchimento da referida alínea só se verifica nos casos em que da violação desses deveres resulte efetivo benefício para o devedor e/ou efetivo prejuízo para os credores, porquanto o legislador não faz qualquer alusão a esse elemento na previsão da alínea g). O ponto é que não está aí em causa aferir da conduta do devedor perspetivada em função da necessidade de o tribunal apreciar e decidir do pedido de exoneração em ternos de prolação de despacho de admissão liminar do incidente e com vista à fixação do rendimento indisponível. 5. Desconhecendo o tribunal as circunstâncias pessoais atuais do insolvente, porque este não contribuiu para esse esclarecimento e o tribunal não julgou oportuna indagação oficiosa – num contexto em que entre o momento em que o devedor formulou o pedido de exoneração, alegando os elementos pertinentes e juntando documentos e o da prolação do despacho liminar incidindo sobre o incidente deduzido, decorreram mais de nove anos –, não pode, com o fundamento apontado, proferir despacho de indeferimento liminar do pedido de exoneração; sempre será de atender, então, na falta de indicações específicas atualizadas do devedor sobre as suas necessidades, àquelas despesas que decorrem da normalidade da vida quotidiana para o comum dos cidadãos, no contexto do lugar de residência do insolvente e, quanto aos rendimentos respetivos, com vista à fixação do valor do rendimento indisponível, aos parâmetros que se mostram profusamente assinalados pela doutrina e jurisprudência, tendo em vista o que decorre do art.º 239.º, n.ºs 2 e 3 do CIRE.
Texto Integral
Acordam os juízes da 1ª secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I. RELATÓRIO
1. JL, apelante, apresentou-se à insolvência em 16-01-2015, deduzindo pedido de exoneração do passivo restante. Alega, em síntese, que nasceu em 28-11-1979, é divorciado e não existem filhos do casamento; “não tem bens imóveis ou móveis na sua posse” e trabalha há mais de quinze anos para a «Churrasqueira Marquês», EP Lda, recebendo mensalmente €685,70, estando o vencimento penhorado à ordem de dois processos, a correr termos nos Juízos de execução; no processo 17626/10.7T2SNT, são credores o BBVA, reclamante no processo principal e a Caixa Económica Montepio Geral reclamante no Apenso, num valor aproximado de € 100 000; no processo 10748/10.6T2SNT, em que é credor Crédibom, o montante em dívida ronda os € 13 500, para além do processo de execução 30900/11.6YYLSB, que ainda corre os seus termos na Comarca de Lisboa, Inst. Central, 1ª Sec. Exec. J5, em que é credor o Banco Primus, S.A., num valor aproximado de € 14 046,39, segundo crê.
Do mapa de responsabilidades do Banco de Portugal, resultam ainda duas outras dívidas, em que são credores o Banco BPI, no valor de € 566,78 e a Cofidis no valor de € 750, para além de uma dívida ao Santander, que não constava nem do mapa de responsabilidades do Banco de Portugal, nem existia enquanto processo executivo e que foi adquirida pela GI Capital Solutions, e ascende a € 45.958, 15.
“Estes empréstimos foram contraídos para pagar o divórcio litigioso do ora insolvente, para custear a saúde dos pais, e o rol atingiu proporções gigantescas, entrando o insolvente em sede de incumprimento”.
O Requerente nunca beneficiou da exoneração do passivo.
Juntou vários documentos, nomeadamente certidão do assento de nascimento, cópia do respetivo recibo de remuneração alusivo ao mês de abril de 2014 e certificado do registo criminal.
2. Por decisão proferida em 21-01-2015 foi declarada a insolvência do requerente.
Lê-se ainda nessa decisão como segue:
“A análise do pedido de exoneração do passivo restante dependerá, necessariamente, da alegação concreta por parte do(a) requerente de factos (com os respetivos meios de prova) de que não se verificam motivos para indeferimento liminar do seu pedido a que aludem as várias alíneas do artigo 238.º do CIRE, razão pela qual se convida a requerente a alegar e indicar a prova, em conformidade, caso ainda não o tenha feito”.
3. Em 09-03-2015 realizou-se a assembleia de credores para apreciação do relatório apresentado pelo administrador da insolvência (AI), estando presentes o insolvente, a respetiva patrona e o AI e ausentes os credores.
No decurso dessa assembleia o tribunal proferiu despacho com o seguinte teor:
“Considerando que não foi deliberada a suspensão de liquidação e de acordo com o que dispõe o artigo 158.º, do CIRE, determino que os autos prossigam para a fase de liquidação, dispensando-se a constituição de uma comissão de credores, nos termos propostos pelo Senhor AI. // Nos presentes autos foi pedida a exoneração do pedido restante. // Porém existem valores a apreender. // Não obstante resultar da lei que a exoneração do passivo é ou não admitida liminarmente no prazo de dez dias após a assembleia de credores, a verdade é que não creio que tal regra se deva aplicar quando esteja em causa a venda de bens, cujo valor poderá levar mesmo a que não seja necessário aplicar o instituto da exoneração do passivo. Acresce que, ainda que se proferisse neste momento despacho inicial, caso se verificassem os pressupostos, sempre o referido instituto só se iniciaria após o encerramento do processo, o que implica a venda dos bens – artigo 239.º, n.º 2, do CIRE. // Pelo exposto, não se afigura lógico, nem coerente decidir desde já um instituto que poderá sofrer alterações quando vier a ser executado, implicando que futuramente fosse proferida nova decisão sobre a mesma questão, tornando absolutamente inútil a anteriormente proferida. // Determino pois que o instituto da exoneração do passivo restante pedido seja apreciado apenas depois de se encontrar finda a liquidação. // Notifique” [ [1] ].
4. Em 03-10-2024 foi proferido despacho com o seguinte teor:
“Mostrando-se finda a liquidação, vão os autos à conta. // Valor da causa para efeito de custas: o da liquidação. // Notifique o Sr. Administrador da Insolvência para apresentar contas nos 10 dias subsequentes ao pagamento da conta de custas. // Com vista à apreciação do pedido de exoneração do passivo restante, notifique o insolvente, pessoalmente e através do seu Il. Mandatário, para vir: // - prestar informação atualizada acerca da sua situação socioeconómica, designadamente a respeitante à composição do seu agregado familiar, aos seus rendimentos mensais e às suas despesas mensais fixas, apresentando os respetivos comprovativos documentais; // - juntar certificado de registo criminal atualizado; // - juntar a declaração a que alude o art.º 236.º, n.º 3, do CIRE. // Prazo: 10 (dez) dias”.
Despacho notificado à patrona do insolvente e ao próprio insolvente por comunicação da mesma data (03-10-2024); o insolvente, por si ou por intermédio da respetiva patrona nomeada, nada disse. Em 08-11-2024 foi proferido despacho com o seguinte teor:
“Renova-se o despacho proferido em 03-10-2024, devendo o devedor ser notificado do mesmo, devendo, no prazo de 10 dias juntar aos autos as informações nele contidas, sob pena de, não fazendo, o pedido de exoneração do passivo restante ser liminarmente indeferido (238.º CIRE)”.
Despacho notificado à patrona do insolvente e ao próprio insolvente por comunicação da mesma data (08-11-2024); o insolvente, por si ou por intermédio da respetiva patrona nomeada, nada disse. Em 05-12-2024 proferiu-se despacho com o seguinte teor: “Atento o silêncio (reiterado) do devedor, notifique os credores e o Sr. Administrador da Insolvência, nos termos previstos no art.º 238.º, n.º 2, do CIRE”.
Notificados, por comunicação de 06-12-2024, a Verifivca Portugal SA pronunciou-se pela “não concessão da exoneração do passivo restante” em face do “silêncio do devedor” (requerimento de 12-12-2024) e CA Auto Bank S.p.A. pronunciou-se no sentido de que “seja recusada exoneração do passivo restante (requerimento de 15-12-2024).
O AI nada disse.
5. Em 16-01-2025 foi proferida decisão (decisão recorrida) com o seguinte teor, em síntese:
“Decidindo:
Sob a epígrafe. “Indeferimento liminar”, o artigo 238.º, n.º 1, do CIRE estipula o seguinte: (…)
Na situação dos autos, o insolvente estava obrigado a informar e a comprovar nos autos a sua situação económico-financeira, por forma a que o Tribunal pudesse avaliar o pedido que formulou para beneficiar da exoneração do passivo restante, designadamente para efeitos de fixação do rendimento indisponível.
E estava igualmente obrigado a juntar a declaração a que alude o art.º 236.º, n.º 3, do CIRE e, ainda, o respetivo certificado de registo criminal, para efeitos de se aferir do preenchimento, ou não, da causa de indeferimento liminar a que a alínea f) do citado normativo alude.
Não o fazendo, apesar de notificado para o efeito e de expressamente advertido para as consequências da sua conduta omissiva, o insolvente violou os deveres de colaboração e de informação previstos no artigo 238.º, al. g), do CIRE, o que é fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante.
Assim, porque o insolvente JL não colaborou com o Tribunal ao não prestar as informações que lhe foram solicitadas, como lhe competia, bem sabendo que, não o fazendo, violava os deveres de colaboração e de informação que para ela resultam do CIRE, decido indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante que o mesmo formulou nos autos.
Custas do incidente a cargo do insolvente, que a ele deu causa, fixando-se a taxa de justiça devida no mínimo legal - art.º 539.º, n.º 1 parte do Código de Processo Civil e art.º 7.º, n.º 4, do Regulamento das Custas Processuais e tabela II anexa.
Notifique” [ [2] ].
6. Não se conformando, o insolvente apelou formulando as seguintes conclusões:
“1. Os presentes autos de insolvência foram encerrados por douto despacho de 17 de janeiro de 2025, o qual indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante que o recorrente formulou nos autos, com fundamento na falta de colaboração com o Tribunal ao não prestar as informações que lhe foram solicitadas por carta registada, em 3 de outubro de 2024. 2. O tribunal a quo avaliou de forma errada o silêncio do ora recorrente. 3. O recorrente foi declarado insolvente por sentença datada de 16 de janeiro de 2025, tendo sido determinado em assembleia de credores, realizada em 9 de março de 2015, a prossecução dos autos para a fase de liquidação. 4. A fase de liquidação durou cerca de 9 anos com a venda do quinhão hereditário do ora recorrente em 12 de setembro de 2024. 5. Em 9 de janeiro de 2015, o Sr. Administrador de Insolvência Valadares Salgado informa os autos (req Citius 9.10.2015 Ref.ª 4383352) que iria dar início às diligências para localizar a ex cônjuge do ora recorrente, logrando obter o consentimento daquela para proceder à venda da totalidade do imóvel que era um bem comum do ex casal que, apesar de divorciados, não partilharam os bens que tinham em comum. 6. Em 18 de julho de 2016, o Ilustre Mandatário do credor reclamante Banco Primus SA, dá conhecimento aos autos que o recorrente era herdeiro junto da Herança Indivisa aberta por óbito de ML. 7. Em 16 de março de 2017 o Senhor Administrador de Insolvência Valadares Salgado dá conhecimento aos autos que o recorrente já havia solicitado a intervenção de mandatário, para diligenciar os procedimentos necessários para o agendamento da Escritura de Habilitação de Herdeiros, e o registo de aquisição a favor dos herdeiros, do quinhão hereditário que integrava a herança. (req Citius 16.03.2017 ref.ª 9410250). 8. Em 20 de julho de 2017 o Senhor Administrador de Insolvência Valadares Salgado informa os autos que o recorrente não havia dado seguimento às diligências que se havia comprometido, pelo motivo de não ter disponibilidade financeira para proceder ao respectivo registo de aquisição a favor dos herdeiros, do quinhão hereditário que integrava a herança, tendo a Massa Insolvente dado entrada do processo de inventário com o nº 5963/2017. 9. No período compreendido entre o ano de 2017 e até 29 de agosto de 2023 decorreu o processo de inventário. 10. Em 29 de agosto de 2023, o Sr. Administrador de Insolvência Valadares Salgado dá conhecimento aos autos que o Meritíssimo Juiz titular do processo de inventário considerou ilegítima a Massa Insolvente, pelo que, ficou impossibilitado de proceder à eventual partilha de bens e por conseguinte, concluir a liquidação, mais informando que iria encetar as diligências junto dos credores e aferir de eventual interesse na aquisição do quinhão hereditário do recorrido. 11. Lamentavelmente, o Senhor Administrador de Insolvência Valadares Salgado vem a falecer em 14 de outubro de 2024, e foi substituído pelo Senhor Administrador de Insolvência João Manuel Couto Morais de Almeida. 12. Em 13 de fevereiro de 2024 o Senhor Administrador de Insolvência João Manuel Couto Morais de Almeida, dá conhecimento aos autos que terá contactado a patrona nomeada do recorrente para envio do comprovativo da participação do Imposto de Selo por óbito da mãe do recorrido, tendo vindo a constatar que o mencionado documento encontrava-se nos autos desde 2016. 13. Assim, pelo menos até fevereiro de 2024 não se vislumbra qualquer falta de colaboração do recorrente, até porque o Senhor Administrador de Insolvência Valadares Salgado, apesar de alegar negligência da parte do recorrente não juntou qualquer documento que comprove o que alegou, fosse um extrato detalhado das alegadas chamadas efetuadas ao Insolvente e não atendidas por este ou correspondência devolvida. 14. Em 3 de outubro de 2024 o ora recorrente é notificado pelo tribunal para juntar, no prazo de 10 dias informação atualizada acerca da sua situação socioeconómica, designadamente a respeitante à composição do seu agregado familiar, aos seus rendimentos mensais e às despesas mensais fixas, apresentando os respetivos comprovativos documentais; juntar certificado de registo criminal atualizado e juntar a declaração a que alude o art.º 236º, n.º 3 do CIRE. 15. O ora recorrente mudou de residência em finais de setembro de 2023, ou seja, deixou de residir na morada constante dos autos e em finais de novembro de 2023 foi para a Holanda trabalhar, país onde se encontra até à presente data. 16. Sendo o motivo que o impediu de dar cumprimento ao despacho da Meritíssima Juiz a quo e, por conseguinte, não juntar aos autos os documentos a que se encontrava obrigado. 17. Dos autos não resulta que o recorrente dolosamente ou com grave negligência tenha violado alguma das obrigações que lhe são impostas pelo artigo 239.º, prejudicando por esse facto a satisfação dos créditos sobre a insolvência. 18. É certo que o insolvente tem a obrigação, entre outras - art.º 239º, n.º 4, do CIRE- de informar o tribunal e o administrador de insolvência de qualquer mudança de domicílio ou de condições de emprego, no prazo de 10 dias após a respectiva ocorrência. 19. Neste caso, o indeferimento da exoneração do passivo foi declarado com fundamento na violação pelo recorrente da obrigação que sobre o mesmo impendia e contida no artigo 238.º n.º 1, al. g) do CIRE, presumindo que essa infração foi praticada com dolo ou culpa grave, dada a inexistência de qualquer justificação para a sua conduta. 20. Nos termos e para os efeitos do artigo 243º, nº 1, al. a) do CIRE, releva como recusa da exoneração do passivo restante, que se trate de uma prevaricação dolosa ou com grave negligência e, cumulativamente, que tenha prejudicado a satisfação dos credores da insolvência. 21. Ora, a douta decisão, não faz qualquer alusão ao prejuízo que teria resultado para os créditos da insolvência, o incumprimento do insolvente, ora recorrente. 22. O tribunal a quo limitou-se a concluir que o recorrente não colaborou com o tribunal. 23. A não comunicação de alteração de morada ao tribunal ao administrador de insolvência, não implica, por si só, uma recusa de concessão de exoneração do passivo restante. 24. Deverá assim, com o Douto Suprimento de Vossas Excelências, ser revogada a douta sentença, sendo concedido ao ora recorrente a exoneração do passivo. JUSTIÇA! E.D.”
Não foram apresentadas contra-alegações.
Cumpre apreciar.
II. FUNDAMENTOS DE FACTO
Relevam as vicissitudes processuais supra assinaladas.
III. FUNDAMENTOS DE DIREITO
1. Sendo o objeto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pelo apelante e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras – arts. 635.º e 639.º do CPC – salientando-se, no entanto, que o tribunal não está obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar os seus pontos de vista, sendo o julgador livre na interpretação e aplicação do direito – art.º 5.º, n.º 3 do mesmo diploma.
No caso, impõe-se apenas apreciar da verificação dos pressupostos para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante (i) em face do que dispõe o art.º 236.º, n.º 3 do CIRE, diploma a que aludiremos quando não se fizer menção específica e (ii) em face do que dispõe o art.º 238.º, nº 1, alínea g).
3. No requerimento em que deduz o pedido de exoneração deve constar a declaração do devedor que este “preenche os requisitos e se dispõe a observar todas as condições exigidas nos artigos seguintes” (art.º 236.º, n.º 3). Quid juris se tal não ocorrer?
Entendemos que a falta dessa declaração expressa não justifica o indeferimento liminar do pedido de exoneração, mesmo que o juiz tenha proferido convite ao aperfeiçoamento do requerimento e o devedor não tenha correspondido a esse convite, constituindo mera irregularidade que não influi na apreciação liminar da admissibilidade do incidente.
Efetivamente, o art.º 238.º enuncia as causas de indeferimento liminar do pedido de exoneração, não constando desse elenco a mencionada hipótese, que não é suscetível de enquadrar-se em qualquer das alíneas enunciadas no número 1, sendo que se trata de uma enunciação taxativa [ [3] ], como resulta da formulação dada pelo legislador ao proémio do artigo, mormente pela utilização da expressão se (“1- O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se”), sabendo-se que, usualmente, o legislador assinala o caráter meramente exemplificativo de determinada enunciação quando esta é introduzida associada à utilização de determinados advérbios (nomeadamente, designadamente) ou expressões (entre outro(a)s). Encontramos, pois, no preceito, a nível literal, um elemento indicativo de que estamos perante um elenco fechado de causas de indeferimento, verificando-se um obstáculo à inclusão de outras causas para além das consagradas no número 1 do art.º 238.º [ [4] ].
Afigura-se-nos, ainda, que a exigência dessa declaração expressa é, em larga medida, redundante, porquanto está implícita na dedução do pedido de exoneração que o devedor aceita o compromisso de cumprir os deveres inerentes à concessão desse benefício estando, necessariamente, ciente que se não o fizer verá irremediavelmente comprometida a sua pretensão, motivando a prolação de despacho final de recusa da exoneração. Aliás, trata-se de declaração que não aporta qualquer mais-valia relativamente aos credores e na perspetiva do pagamento dos créditos, ao contrário, do que acontece, por exemplo, com a maioria das exigências que decorrem do art.º 24.º, que relevam exatamente para a aferição quer da identificação do passivo quer da identificação do ativo.
Partilhamos, pois, o entendimento sufragado no acórdão do TRP de 18-11-2010, processo 1826/09.5TJPRT-E. P1 (Relator: Filipe Caroço), remetendo-se para o que bem se escreveu nesse aresto: “Entendem Carvalho Fernandes e João Labareda[4] que a preterição desta formalidade, pela sua essencialidade, justifica que o juiz profira despacho de aperfeiçoamento, cujo incumprimento implicará o indeferimento do pedido por falta de requisitos essenciais, cabendo aplicar analogicamente o art.º 27º, nº l, al. b). // Salvo melhor critério de análise, não havendo dúvida alguma de que se trata de um requisito legal do requerimento, a sua preterição não pode acarretar o indeferimento liminar, mesmo quando tenha sido concedida ao devedor, em despacho de aperfeiçoamento, a possibilidade de corrigir o vício. // Senão vejamos. // A declaração preterida não é objecto de prova, nem meio de prova. // Não está em causa preterição de alegação de factos, não está em causa o preenchimento factual de conceitos jurídicos, nem sequer a preterição de junção de documentos sem os quais o processo não possa prosseguir. O que a norma (art.º 236º, nº 3) exige é pouco mais do que uma declaração de intenção ou compromisso que não dispensam o tribunal do dever funcional de averiguar se, na verdade, em face dos elementos disponíveis no processo, o requerente se encontra em condições de poder beneficiar, primeiro, do “regime de prova” que se abre com o despacho inicial de deferimento do incidente e, depois, cumpridas condições, da efectiva exoneração do passivo restante (art.ºs 237º a 239º, 244º e 245º). // A preterição daquela formalidade processual constitui mera irregularidade, ao contrário da falta de observância dos requisitos, também processuais, que constam dos nºs 1 e 2 do art.º 236º que a lei pune, ali sim, expressamente, com a rejeição do pedido do devedor. // E não estando prevista como causa de rejeição do pedido, a jurisprudência tem considerado, de modo tendencialmente uniforme, que a enumeração do art.º 238º é taxativa quanto aos fundamentos do indeferimento liminar do pedido de exoneração [5]. Também os referidos autores, Carvalho Fernandes e João Labareda numa outra obra [6], acabam por não elencar a preterição da formalidade prevista no nº 3 (ao contrário da referência que fazem ao nº 1 e às al.s b) a g) do nº 1 do art.º 238º) entre as causas de indeferimento liminar. // Aliás, aquela declaração do devedor está implícita no pedido de exoneração, ciente que não poderá deixar de estar, o devedor, de que a exoneração do passivo só lhe será concedida se ele preencher os requisitos e der satisfação às condições exigidas por lei. Nesta medida, a sua expressão sempre seria redundante e, por isso, praticamente desnecessária. // Assim, e ainda que se considere aplicável, subsidiariamente, a norma do art.º 27º, nº 1, al. b), não se justifica, por falta de essencialidade, o recurso ao despacho de aperfeiçoamento. Para usar as palavras dos referidos autores (embora o façam a propósito da não apresentação inicial de documentos [7]), quando está em causa a simples facilitação de produção das consequências que estão ligadas à declaração de insolvência, mas a falta causada pelo devedor não é estruturalmente condicionante da apreciação da sua situação, o tribunal deve revelar-se tolerante. E como acrescentam, mais adiante, o tribunal, perante irregularidades da petição, só deve proferir despacho de aperfeiçoamento quando concorram duas circunstâncias, a saber: // - sanabilidade dos vícios verificados; e // - essencialidade dos elementos em falta, sendo que esta se traduz em o processo não estar legalmente em condições de poder prosseguir, na hipótese de permanência do vício, após o decurso do prazo de cumprimento do despacho de aperfeiçoamento. // Se o tribunal proferir despacho de aperfeiçoamento quando não ocorrem vícios com aquelas características, independentemente de o requerente dar ou não cumprimento ao despacho, o juiz deve mandar prosseguir o processo, por não se verificarem os pressupostos do indeferimento liminar fixados na al. a) do n.º 1. Nestas situações, numa manifestação do dispositivo, o eventual aumento do risco para o requerente de não lograr atingir a satisfação do seu pedido corre por sua própria conta (sib imputet). // Com efeito, fazer decorrer o indeferimento liminar da preterição da mera irregularidade prevista no nº 3 do art.º 236º não só seria contrariar a própria lei, que não prevê essa sanção para o caso, como reverteria em grave, severa e desproporcional sanção, manifestamente inadequada e indesejada também à luz dos princípios do aproveitamento dos actos, da economia e da celeridade processual, sem vantagem para a justa composição do litígio, fim último e inalienável do processo. // Trata-se, no fundo, de um afloramento da regra geral em processo civil de que o despacho de aperfeiçoamento encontra a sua justificação na necessidade de, num Estado de Direito, o exercício da administração da justiça dever basear-se em factores de natureza substancial, passando para segundo plano a interferência do direito adjectivo na tutela dos interesses dos cidadãos que aos tribunais recorrem [8]. // Decorre do exposto não se verificar a causa de indeferimento liminar a que o recorrente se refere com alusão ao art.º 236º, nº 3” [ [5] ].
Conclui-se, pois, que não podia o tribunal de 1ª instância indeferir liminarmente o pedido de exoneração com o fundamento apontado, como fez.
2. Dispõe o art.º 238.º, n.º 1 (“[i]ndeferimento liminar”) como segue:
“1 - O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se: a) For apresentado fora de prazo; b) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver fornecido por escrito, nos três anos anteriores à data do início do processo de insolvência, informações falsas ou incompletas sobre as suas circunstâncias económicas com vista à obtenção de crédito ou de subsídios de instituições públicas ou a fim de evitar pagamentos a instituições dessa natureza; c) O devedor tiver já beneficiado da exoneração do passivo restante nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência; d) O devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica; e) Constarem já no processo, ou forem fornecidos até ao momento da decisão, pelos credores ou pelo administrador da insolvência, elementos que indiciem com toda a probabilidade a existência de culpa do devedor na criação ou agravamento da situação de insolvência, nos termos do artigo 186.º; f) O devedor tiver sido condenado por sentença transitada em julgado por algum dos crimes previstos e punidos nos artigos 227.º a 229.º do Código Penal nos 10 anos anteriores à data da entrada em juízo do pedido de declaração da insolvência ou posteriormente a esta data; g) O devedor, com dolo ou culpa grave, tiver violado os deveres de informação, apresentação e colaboração que para ele resultam do presente Código, no decurso do processo de insolvência”.
Como reiteradamente assinalado pela doutrina e jurisprudência, pese embora a epígrafe do artigo –“[i]ndeferimento liminar”– não estamos, em rigor, perante regulação típica do indeferimento liminar; efetivamente, antes da prolação do despacho de indeferimento impõe-se a audição dos credores e do administrador da insolvência, com eventual produção de prova, o que só não acontecerá, como resulta do disposto no número 3 do preceito, nos casos em que “o pedido for apresentado fora do prazo ou constar já dos autos documento autêntico comprovativo de algum dos factos referidos no número anterior” [ [6] ] [ [7] ].
Como refere Assunção Cristas: “Para que o juiz profira despacho inicial é necessário que o devedor preencha determinados requisitos de ordem substantiva. A saber: // - tenha tido um comportamento anterior ou actual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência (als. b), d), f) e g) do n.º 1 do art.º 238.º); //- não tenha um passado recente (nos 10 anos anteriores) de insolvência e correspondente exoneração do passivo restante (al. c) do n.º 1 do art.º 238.º); //- não tenha tido culpa na criação ou agravamento da situação de insolvência (al. e) do n.º 1 do art.º 238.º)” [ [8] ].
Está aqui em causa apreciar se a conduta do insolvente é suscetível de integrar o fundamento de rejeição liminar do pedido de exoneração do passivo restante reportado na alínea g) do número 1 do referido preceito, isto é, aferir se o devedor, com dolo ou culpa grave, violou os deveres de informação, apresentação e colaboração previstos no CIRE, no decurso do processo de insolvência.
O preenchimento desse tipo exige, pois, a verificação de um elemento objetivo, consubstanciado na violação, por ação ou omissão, de determinados deveres, relevando, no que ao caso interessa, as obrigações enunciadas no art.º 83.º, número 1 [ [9] ] e um elemento de cariz subjetivo, o dolo ou a culpa grave, ponderando o critério a que alude o art.º 487.º, n.º 2 do Cód. Civil [ [10] ]. Na aferição do elemento subjetivo, o legislador exclui os casos de mera culpa ou negligência, que se traduz na violação de um dever de cuidado, na omissão da diligência exigível ao agente [ [11] ]. Se a negligência é grosseira, isto é, cometida por um homem excecionalmente descuidado, sendo associada a um comportamento temerário, então estamos perante uma hipótese de culpa grave, equiparável ao dolo [ [12] ].
A primeira instância considerou preenchida a mencionada alínea e, na ponderação do enquadramento do caso, depois de convocar o referido preceito (artigo 238.º), indica, como já se aludiu, que “o insolvente estava obrigado a informar e a comprovar nos autos a sua situação económico-financeira, por forma a que o Tribunal pudesse avaliar o pedido que formulou para beneficiar da exoneração do passivo restante, designadamente para efeitos de fixação do rendimento indisponível”.
Discorda-se deste juízo valorativo, entendendo-se que na aferição do referido pressuposto de índole subjetiva o processo não reúne os elementos que permitam concluir que o devedor agiu com dolo ou culpa grave.
Em primeiro lugar, afigura-se-nos estar atualmente consolidada como maioritária a orientação de que o condicionalismo a que alude o art.º 238.º é integrado por um conjunto de factos que são impeditivos do direito do devedor à atribuição do benefício da exoneração – e não constitutivos desse direito [ [13] ] – pelo que é sobre os credores e/ou o administrador da insolvência que impende o ónus da prova desses factos (art.º 342.º, n.º 2 do Cód. Civil); donde, em sede de apuramento de facto, a dúvida sobre a verificação de alguma das causas de indeferimento liminar plasmadas no citado preceito, deve ser resolvida a favor do devedor e não contra este. Ora, no caso, nenhum desses intervenientes processuais deduziu oposição invocando qualquer facto suscetível de ser integrado na indicada alínea g). Limitaram-se a, notificados conforme determinado pelo tribunal, indicar que deve ser proferido despacho de indeferimento, nos moldes indicados nos requerimentos referidos no relatório.
Acresce que, não evidenciando os autos qualquer facto pertinente nesta sede, não está ainda assim o tribunal impedido, se entender que tal se justifica, de diligenciar oficiosamente com vista à recolha da informação que entenda oportuna sobre o requerente, atento o princípio do inquisitório, com a especial configuração que resulta do art.º 11.º e que aqui é aplicável considerando que estamos perante um incidente tramitado no próprio processo de insolvência [ [14] ], sendo que, no caso, o tribunal também não deu cumprimento a esse poder/dever, o que, acrescente-se, no caso do certificado do registo criminal – elemento pertinente para a aferição da alínea f), como mencionado no despacho recorrido –, era particularmente simples; assim sendo, não tem qualquer cabimento o indeferimento liminar do pedido de exoneração pela circunstância do devedor não ter junto o certificado de registo criminar atualizado [ [15] ].
Tudo para concluir que no balanceamento entre a posição dos intervenientes processuais (credores/devedor), não se afigura equilibrado exigir que seja o insolvente a diligenciar pela atualização dos elementos que lhe foram pedidos, num contexto em que, aquando da apresentação do requerimento inicial, o insolvente alegou a matéria de facto relevante e juntou os documentos pertinentes.
Ainda, e é este o argumento decisivo, o interesse juridicamente relevante que o legislador quis proteger com a previsão da referida alínea g), ao sancionar a atuação do devedor insolvente é, em primeira linha, o interesse dos credores, atenta a finalidade do processo de insolvência (art.º 3.º, n.º 1); assim, a violação dos deveres de informação, apresentação e colaboração previstos no CIRE, no decurso do processo é fundamentalmente aquela que tiver repercussão, ou for suscetível de ter repercussão, na satisfação dos créditos, como usualmente acontece, por exemplo, quando está em causa aferir do património do devedor com vista à respetiva apreensão e liquidação [ [16] ] [ [17] ] [ [18] ], salientando-se no entanto que não se pode retirar dessa asserção que se considere que o preenchimento da referida alínea só se verifica nos casos em que da violação desses deveres resulte efetivo benefício para o devedor e/ou efetivo prejuízo para os credores, porquanto o legislador não faz qualquer alusão a esse elemento na previsão da alínea g) [ [19] ]. O ponto é que não está aí em causa aferir da conduta do devedor perspetivada em função da necessidade de o tribunal apreciar e decidir do pedido de exoneração, em ternos de prolação de despacho de admissão liminar do incidente e com vista à fixação do rendimento indisponível.
Como refere Letícia Marques Costa, a propósito do preenchimento da referida alínea g): “Julgamos, por isso, que a imposição de tais deveres é deveras útil na prossecução do propósito de satisfação dos direitos dos credores e dos objetivos específicos que se visa alcançar neste tipo processual. // Com efeito, não nos podemos esquecer que estamos perante a insolvência de pessoas singulares e, assim, a recusa de prestação de informações ou de colaboração poderá, e, a nosso ver, bem, influenciar uma decisão de qualificação da insolvência como culposa. De facto, se o insolvente ocultar informação ou dificultar o acesso aos bens integrantes da massa insolvente ou até mesmo alterar a sua residência, sem manifestar tal alteração junto do processo, os interesses dos credores encontram-se perigados. // Efetivamente, ao impor-se, por exemplo, o dever de colaboração com os órgãos do processo ao devedor, alcança-se reflexamente o propósito de assegurar o êxito daquele, em especial, a satisfação dos interesses privados dos credores. De um modo geral, o cumprimento dos referidos deveres facilita o desenrolar do processo, permitindo aos órgãos intervenientes processuais um desempenho mais fácil das suas competências” [ [20] ]. A este propósito, remete-se para o que é referido no acórdão do TRL de 21-12-2023, Processo nº 3511/14.7TBVFX.L1-1), Relatora: Fátima Reis Silva, em caso inteiramente similar ao dos presentes autos: “Sem se arredar completamente a avaliação da conduta dos devedores nos autos quando respeitem a deveres de informação específicos para a exoneração do passivo restante em casos extremos, antes da sua apreciação liminar, o que releva como incumprimento dos deveres de informação, colaboração e apresentação para o efeito previsto, na al. g) do nº1 do art.º 238º do CIRE é o incumprimento que crie entraves à realização dos fins imediatos do processo e não os que criam dificuldades à concessão de um benefício ao próprio devedor. // Nomeadamente, são valoráveis como impeditivas do deferimento liminar da exoneração do passivo restante, as condutas de omissão de informação sobre a existência de património apreensível (Ac. TRP de 22/11/2021, já citado), de não esclarecimento cabal sobre o destino de quantias recebidas (Ac. TRP de 21/03/2022, Carlos Gil -1689/21), não prestação de informações sobre património e circunstancias do seu desaparecimento (TRE de 10/10/2019, Francisco Matos –1567/18) ou o fornecimento de morada errada e não informação sobre rendimentos, localização de veículo apreendido ou titularidade de determinados bens (Ac. TRG de 19/11/2020, Lígia Venade – 3755/19). // Assim, no caso concreto, pese embora verificada uma conduta voluntária repetida de não prestação de informações por parte da recorrente, não podemos tê-la, por se reportar apenas a atualização de elementos antes fornecidos, e dado o espaço de tempo decorrido, de cinco anos, até ao início das notificações não respondidas, como dolosa ou gravemente culposa, pelo que não se encontra preenchida a al. g) do nº1 do art.º 238º do CIRE” (sublinhado nosso).
No caso, o devedor formulou o pedido de exoneração em 16-01-2015 e, como resulta da respetiva petição inicial, alegou os factos alusivos à sua condição pessoal, juntando documentos, nomeadamente o assento de nascimento e o recibo de vencimento; juntou, igualmente, o respetivo certificado de registo criminal. Na assembleia de credores o tribunal entendeu que não se justificava a prolação de despacho liminar, determinando que “o instituto da exoneração do passivo restante pedido seja apreciado apenas depois de se encontrar finda a liquidação” e só em outubro de 2024, isto é, decorridos que se mostravam mais de nove anos, profere despacho convocando o apelante a “prestar informação atualizada acerca da sua situação socioeconómica, designadamente a respeitante à composição do seu agregado familiar, aos seus rendimentos mensais e às suas despesas mensais fixas, apresentando os respetivos comprovativos documentais” e ainda a “juntar certificado de registo criminal atualizado”. E, não tendo o devedor satisfeito o convite, proferiu despacho de não admissão do incidente [ [21] ]. Novamente, remete-se para o que muito sugestivamente se escreveu no mesmo acórdão do TRL de 21-12-2023: “Não podemos ter esta conduta omissiva da devedora – que o é – como dolosa ou gravemente negligente. // Na verdade, a omissão desta informação nem sequer pode ser considerada relevante para os fins do processo: apenas releva negativamente para a própria devedora que não contribui para a fixação concreta do seu próprio rendimento indisponível. Não se sabendo o agregado familiar, conta-se apenas com a própria devedora. Não se sabendo as despesas atuais fixa-se com consideração pelas despesas médias de uma pessoa que vive sozinha. Os rendimentos são os que foram declarados pela própria, e, se considerado necessário, podem ser confirmados junto das entidades conhecidas (a entidade patronal identificada no recibo de vencimento de 2013 junto pela devedora ou, caso a recorrente já se tenha reformado, como anunciou anteriormente e tal entidade patronal certamente confirmaria, a entidade processadora da respetiva pensão). // A devedora não respondeu ao tribunal, mas ao fazê-lo, não criou qualquer dificuldade à localização de património apreensível ou à compreensão das causas da sua insolvência ou ao esclarecimento de questões levantadas quanto a bens ou direitos. Ao não responder ao tribunal colocou-se na situação de, sendo deferida liminarmente a exoneração do passivo restante os deveres, incluindo o de cessão do rendimento disponível, serem quantificados e fixados sem atenção pela sua atual situação, tão só, estado de coisas que apenas a ela, eventualmente, prejudicará”.
Acrescentando-se apenas que, desconhecendo o tribunal as circunstâncias pessoais atuais do insolvente, porque este não contribuiu para esse esclarecimento e o tribunal não julgou oportuna indagação oficiosa, sempre será de atender, então, na falta de indicações específicas atualizadas do devedor sobre as suas necessidades, àquelas despesas que decorrem da normalidade da vida quotidiana para o comum dos cidadãos, no contexto do lugar de residência do insolvente e, quanto aos rendimentos respetivos, com vista à fixação do valor do rendimento indisponível, aos parâmetros que se mostram profusamente assinalados pela doutrina e jurisprudência, que o tribunal de 1ª instância seguramente bem conhece, tendo em vista o que decorre do art.º 239.º, n.ºs 2 e 3.
Saliente-se que, nas alegações de recurso [ [22] ] o apelante tece um longo historial sobre a sua atuação no processo, aludindo a factos e circunstâncias absolutamente irrelevantes para a decisão em apreço (cfr. as conclusões 4.ª a 13.ª), considerando o específico e determinado alcance dos despachos que convocaram o insolvente à prestação de informações e apresentação de documento, que não se prendem com qualquer aspeto relacionado com a matéria alusiva à apreensão/liquidação dos bens do insolvente.
Em suma, procede a pretensão recursiva, com a particularidade que a seguir se assinalará, ainda que com base em fundamentos não inteiramente coincidentes com aqueles invocados nas alegações de recurso.
4. O apelante termina indicando que “[p]elo exposto, nas concretas circunstâncias que se desenham nos autos, o recorrente na sua atuação de não comunicação de alteração de morada e, consequentemente, a não entrega dos documentos ao tribunal não evidencia grave negligência, o que, necessariamente, tem como consequência a procedência do presente recurso e a revogação do despacho que determinou o indeferimento de exoneração do passivo restante, devendo o mesmo ser substituído por outro de decida pela exoneração do passivo restante” (sublinhado nosso).
Como resulta do que se expôs,entende-se que, no contexto apontado, não se pode concluir que o devedor, omitindo prestar as informações referidas e apresentar o documento indicado, agiu com dolo ou culpa grave, pelo que, não estando verificado o referido nexo de imputação subjetiva, impõe-se revogar a decisão recorrida.
A revogação da decisão, no entanto, é feita em função dos específicos fundamentos a que o tribunal de 1ª instância atendeu e apontou para concluir pela verificação dos pressupostos para o indeferimento liminar do pedido (isto é, a falta da declaração a que alude o art.º 236.º, n.º 3 e a violação dos deveres de colaboração e informação, prevista da alínea g) do número 1 do art.º 238.º) e não a quaisquer outras circunstâncias que, podendo eventualmente motivar o indeferimento liminar do incidente, não foram indicadas no despacho recorrido e, portanto, não são objeto de apreciação por esta Relação, que funciona aqui em sistema de cassação [ [23] ], sendo, pois, essa a conformação a que deve obedecer a decisão desta Relação.
*
Pelo exposto, julgando procedente a apelação, revoga-se a decisão recorrida, que deve ser substituída por outra que determine a admissão liminar do pedido de exoneração, sem prejuízo de outras causas de indeferimento liminar que o tribunal de 1ª instância entenda julgar verificadas.
Sem custas.
Notifique.
08-04-2025
Isabel Maria Brás Fonseca
Renata Linhares de Castro
Nuno Teixeira
______________________________________________________ [1] Por requerimento apresentado em 15-02-2016 o credor Banco Primus SA veio aos autos indicar que teve conhecimento de que o insolvente “é herdeiro de ¼ de dois imóveis” que identifica, requerendo a notificação do AI “para informar o que tiver por conveniente quanto à documentação anexa e após tais esclarecimentos os demais Credores (para eventual apreciação da exoneração do passivo)”.
[2] Subsequentemente, proferiu-se ainda despacho com o seguinte teor:
“A liquidação findou pelo montante de € 4.220,87, tendo a massa insolvente sido consumida pelas respetivas dívidas, razão pela qual não houve lugar à realização do rateio final. // Cumpre, assim, encerrar o processo, nos termos do disposto no artigo 230.º, n.º 1, al. f), do CIRE. // E, nos termos do art.º 233.º n.º 6, do CIRE, cumpre igualmente declarar o caráter fortuito da insolvência, dado que, até ao momento, não foi declarado aberto o incidente de qualificação por aplicação do disposto na alínea i), do n.º 1 do art.º 36.º, do CIRE. // Pelo exposto: // 1. Declaro encerrado o presente processo em que foi declarada a insolvência de JL, nos termos do artigo 230.º, n.º 1, al. f) do CIRE. // 2. Cessam todos os efeitos decorrentes da declaração de insolvência, designadamente recuperando o devedor o direito de disposição dos seus bens e a livre gestão do negócio - art.º 233º, n.º 1, al. a), do CIRE. // 3. Cessam as atribuições do Sr. Administrador da Insolvência - art.º 233.º, n.º 1, al. b), do CIRE. // 4. Os credores da insolvência poderão exercer os seus direitos contra o devedor - art.º 233.º, n.º 1, al. c), do CIRE. // 5. Os credores da massa – a existirem - podem reclamar do devedor os seus direitos não satisfeitos - art.º 233.º, n.º 1, al. d), do CIRE. // 6. Determino que o Sr. Administrador da Insolvência proceda à entrega no tribunal, para arquivo, de toda a documentação relativa ao processo em seu poder, bem como os elementos da contabilidade do devedor que não hajam de ser restituídos ao próprio – art.º 233º, n.º 5, do CIRE”.
[3] Como uniformemente têm entendido a doutrina e jurisprudência. Na jurisprudência e a título meramente exemplificativo, cfr. o acórdão do TRG 29-08-2024, processo: 6014/23.5T8VNF-B. G1 Relator: Maria João Matos, acessíveis in www.dgsi.pt, como todos os demais aqui aludidos.
[4] “Quando o legislador tipifica, maxime quando enumera, e não esclarece se a tipologia é taxativa ou enunciativa, haverá que interferir daí o carácter excepcional da previsão, de modo que todos os restantes casos devam ficar excluídos da analogia? // Mas não basta a lei apresentar vários casos para se concluir pelo carácter taxativo desses caos. Pode a lei pretender unicamente enunciar hipóteses. Em princípio, deve até concluir-se pelo carácter enunciativo das tipologias legais, só lhes devendo atribuir outra natureza quando razões especiais nos convençam nesse sentido. Porque o grande princípio da nossa ordem jurídica é o do tratamento idêntico de casos equivalentes” (Oliveira Ascensão, O Direito, Introdução e Teoria Geral, p. 454, Almedina, Coimbra, 2013, p. 454). [5] No mesmo sentido, o acórdão do TRG de 29-03-2012, processo: 101/12.2TBBCL.G1 (Relator: Manuel Bargado).
[6] Na doutrina, cfr., entre outros, Menezes Leitão, CIRE anotado, 2018, Coimbra, Almedina, p. 288 (anotação 2) e Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2021, Coimbra, Almedina, p. 616. [7] “O indeferimento liminar a que a lei se refere não corresponde a um verdadeiro e próprio indeferimento liminar, mas a algo mais, uma vez que os requisitos apresentados por lei obrigam à produção de prova e a um juízo de mérito por parte do juiz. O mérito não é sobre a concessão ou não da exoneração, pois essa análise será feita passados cinco anos. Aqui o mérito está em aferir o preenchimento dos requisitos, substantivos, que se destinam a perceber, se o devedor merece que uma nova oportunidade lhe seja dada. Ainda não é a oportunidade de iniciar a vida de novo, liberado das dívidas, mas a oportunidade de se submeter a um período probatório que, no final, pode resultar num desfecho que lhe seja favorável. Sendo certo que esse desfecho favorável depende totalmente da sua actuação” (Assunção Cristas, Exoneração do devedor pelo Passivo Restante, Themis, Edição Especial – Novo Direito da Insolvência, 2005, pp. 169-170).
[8] Obr cit. p. 170. [9] Artigo 83.º
Dever de apresentação e de colaboração
1 - O devedor insolvente fica obrigado a:
a) Fornecer todas as informações relevantes para o processo que lhe sejam solicitadas pelo administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo tribunal;
b) Apresentar-se pessoalmente no tribunal, sempre que a apresentação seja determinada pelo juiz ou pelo administrador da insolvência, salva a ocorrência de legítimo impedimento ou expressa permissão de se fazer representar por mandatário;
c) Prestar a colaboração que lhe seja requerida pelo administrador da insolvência para efeitos do desempenho das suas funções.
2 - O juiz ordena que o devedor que sem justificação tenha faltado compareça sob custódia, sem prejuízo da multa aplicável.
3 - A recusa de prestação de informações ou de colaboração é livremente apreciada pelo juiz, nomeadamente para efeito da qualificação da insolvência como culposa.
4 - O disposto nos números anteriores é aplicável aos administradores do devedor e membros do seu órgão de fiscalização, se for o caso, bem como às pessoas que tenham desempenhado esses cargos dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência.
5 - O disposto nas alíneas a) e b) do n.º 1 e no n.º 2 é também aplicável aos empregados e prestadores de serviços do devedor, bem como às pessoas que o tenham sido dentro dos dois anos anteriores ao início do processo de insolvência (sublinhado nosso). [10] “O pressuposto da culpa grave deve ser aferido segundo o critério de apreciação enunciado no artigo 487.º, n.º 2, do Código Civil, devendo considerar-se verificado esse pressuposto se estiver em causa uma conduta do agente que só seria susceptível de ser realizada por pessoa especialmente negligente, actuando a maioria das pessoas de modo diverso” (Acórdão do TRC de 07-09-2021, processo: 3/21.1T8CBR-B.C1 (Relator: Arlindo Oliveira, estando aí em causa aferir do pressuposto enunciado na alínea d) do n.º 1 do art.º 238.º).
No acórdão do TRC de 20-03-2018, processo: 4694/15.4T8VIS-D.C1 (Relator: Emídio Santos), concluiu-se que “II- Uma vez que o CIRE não indica o critério de apreciação da culpa para efeitos da alínea g) do n.º 1 do artigo 238.º, é de aplicar, por analogia, o critério do n.º 2 do artigo 487.º do Código Civil. /7 III- A não relacionação do imóvel seria de censurar com culpa grave se, tendo em conta as circunstâncias do caso, fosse de concluir que só uma pessoa especialmente descuidada e desatenta é que incorreria na omissão em que incorreram os insolventes.
[11] Distinguindo -se entre a negligência consciente (“o autor prevê a produção do facto ilícito como possível, mas por leviandade, precipitação, desleixo ou incúria crê na sua não verificação”), e a negligência inconsciente (“em que o agente não chega sequer, por imprevidência, descuido, imperícia ou inaptidão, a conceber a possibilidade de o facto se verificar, podendo e devendo prevê-lo e evitar a sua verificação se usasse da diligência devida”) (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, 1982, vol. I, Coimbra, Almedina, pp. 491- 492). [12] “Segundo outra terminologia, a negligência (culpa em sentido restrito) pode ser levíssima, leve ou grave. Será levíssima quando o agente tenha omitido os deveres de cuidado que só uma pessoa excepcionalmente diligente e prudente teria observado; será leve quando o agente deixar de observar os deveres de cuidado que uma pessoa normalmente diligente teria adoptado; será grave quando tiverem sido omitidos os deveres de cuidado a omissão que só uma pessoa especialmente descuidada e incauta deixaria de respeitar” (acórdão do STJ de 13-12-2007, processo 07S3655 (Relator Sousa Peixoto).
Na doutrina, cfr. Pessoa Jorge, Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, 1972 Cadernos de Ciência Técnica e Fiscal, p. 357, referindo o autor que “a culpa grave ou lata traduz-se na negligência grosseira, só cometida por um homem excepcionalmente descuidado. Considerava-se ainda aplicável à culpa grave o regime do dolo: culpa lata dolo aequiparatur.” [13] Nesse sentido, a título meramente exemplificativo, cfr. os acórdãos do STJ de 19-06-2012, processo:
1239/11.9TBBRG-E.G1.S1 (Relator: Hélder Roque), em que se concluiu como segue: “VII - Os fundamentos determinantes do indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante não assumem uma feição, estritamente, processual, uma vez que contendem com a ponderação de requisitos substantivos, cuja natureza assumem, não se traduzindo em factos constitutivos do direito do devedor a pedir a exoneração do passivo restante, mas antes em factos impeditivos desse direito, razão pela qual compete aos credores e ao administrador da insolvência a sua demonstração”; e de 17-06-2014, processo: 985/12.4T2AVR.C1.S1 (Fernandes do Vale).
Cfr. ainda o acórdão do TRL de 08-07-2021, processo: 2475/20.2T8VFX-B. L1-1, Relator: Paula Cardoso, numa situação em que estava em causa o indeferimento com fundamento na al. d) do n.º 1 do artigo 238.º.
Na doutrina, sobre a matéria, vide Letícia Marques Costa, A insolvência de pessoas singulares, 2021, Teses, Coimbra, Almedina, pp. 133-138.
[14] Em anotação ao acórdão do TRP de 28-09-2010, processo: 995/09.9TJPRT-F.P1 (Relator: Ramos Lopes), Adelaide Menezes Leitão contextualiza a aplicação do princípio do inquisitório previsto no art.º 11.º em sede de prolação do despacho de indeferimento liminar do pedido de exoneração (“ainda que o ónus de alegação dos factos que configuram causas impeditivas da admissão da exoneração do devedor caiba aos credores e ao administrador de insolvência”) referindo que “[e]sta averiguação impõe-se, sobretudo, pela teleologia do instituto de que só deve ter a vantagem da exoneração quem for merecedor dela, o que aponta para uma ideia de justiça que se materializa no instituto ou, nas palavras do acórdão, para um fundamento axiológico de suporte do instituto que assenta numa conduta do devedor lícita, honesta, transparente e conforme á boa fé” (inPré-considerações para exoneração do passivo restante, Cadernos de Direito Privado, n.º 35, julho/setembro, 2011 p. 68).
[15] Concorda-se, pois, com o acórdão do TRP de 16-01-2024, processo n.º 2163/23.8T8OAZ.P1 (Relator: Maria da Luz Seabra, quando aí se conclui que “[a]inda que a devedora seja notificada pelo tribunal para juntar aos autos o CRC e não o faça no prazo que lhe for concedido, o tribunal não deve indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante com fundamento de que a devedora não demonstrou não ter praticado qualquer um dos crimes previstos nos artigos 227º a 229º do Código Penal. // III - Mesmo que o tribunal entenda que aquele documento é essencial à prolação da decisão de deferimento ou indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, não se trata de um documento cuja obtenção dependa exclusivamente da devedora, podendo o tribunal obtê-lo oficiosamente a fim de proferir decisão, estando tal possibilidade expressamente prevista no art.º 8º nº 2 al. a) da Lei nº 37/2015 de 5/5, o qual permite ao juiz aceder à informação do registo criminal, exclusivamente para a decisão do incidente de exoneração do passivo restante do devedor no processo de insolvência de pessoas singulares”.
[16] Na maioria dos casos analisados pelos tribunais a propósito do preenchimento da referida alínea g) foi a este nível que a questão se colocou. Assim, a título meramente exemplificativo:
- Acórdão do TRP de 28-09-2010, supra referido, , em que se concluiu que “II - Preenche a previsão da alínea g) do nº 1 do art.º 238º do C.I.R.E. a circunstância do devedor alegar, na petição inicial com que se apresenta à insolvente, a inexistência de bens susceptíveis de integrar a massa insolvente, o que não corresponde à verdade e bem assim a circunstância de, no decurso do processo, sem disso dar notícia nos autos, negociar com um seu credor novos contratos de mútuo para regularizar débitos anteriores (débitos que não foram por si relacionados), escamoteando a tal credor o facto de se ter já apresentado à insolvência”;
- Acórdão do TRL 06-06-2013, processo: 1048/12.8TBPDL-F.L1-2, Relator: Teresa Albuquerque; concluiu-se que: “II - Os devedores, tendo optado por não revelarem espontaneamente os negócios de cessão dos quinhões hereditários por óbito dos respectivos progenitores e o de cessão de quota em sociedade realizados muito pouco tempo antes da sua apresentação à insolvência, violaram, com culpa grave, os deveres de informação e colaboração a que a boa fé os obriga, e que estão implicados nos deveres a que a al g) do nº 1 do art.º 238º do CIRE se refere, também por esta via não sendo merecedores do beneficio de exoneração do passivo restante”.
- Acórdão STJ de 29-10-2019, processo 1516/15.0T8STS-G.P1.S1 (Relator: Raimundo Queirós); estava em análise uma situação em que “o insolvente, depois de lhe ter sido concedido o benefício de se manter na habitação apreendida nos autos, retirou bens que dele faziam parte, levando a que fosse anulada a venda já concretizada nos autos de insolvência, não obstante o pedido efetuado pelo AI para que o insolvente repusesse a situação do bem”, tendo a Relação entendido que “o devedor com a sua conduta violou culposamente a sua obrigação de colaboração com o AI, não restituindo o bem imóvel conforme se encontrava à data da apreensão, nem procedendo à reposição do imóvel conforme se encontrava antes da retirada dos bens que dele faziam parte, prejudicando, desse modo, o ato de venda já concretizado, levando à sua anulação”, mantendo o STJ essa avaliação.
- Ac. TRC de 08-10-2024, processo: 5015/23.8T8VIS-D.C1, Relator: Maria João Areias, em que se concluiu como segue: “I – O facto de o insolvente se encontrar detido em cumprimento de pena, ainda que seja previsível que os rendimentos de que possa vir a auferir através de trabalho remunerado, não lhe permitirão dispor de qualquer rendimento a ceder, tal não pode constituir um obstáculo à admissão liminar do pedido de exoneração do passivo restante. // 2. A omissão, no requerimento inicial de apresentação à insolvência, da existência do direito a ½ indiviso relativamente a dois prédios rústicos, direitos estes (adquiridos por doação) que nem sequer foram apreendidos para a massa, pelo facto não apresentarem qualquer valor/económico, não integra violação com culpa grave dos deveres de informação e de colaboração, a que se reporta a al. g) do nº1 do art.º 238º CIRE”.
- No acórdão do TRC de 26-11-2024, processo: 311/24.0T8ACB-D.C1 (Relatora: Chandra Gracias), considerou-se preenchida a mencionada alínea g) num caso em que a devedora omitiu ao AI a “transmissão do outro veículo automóvel, agora à sua mãe, escondendo tal facto até temporalmente mais recente do que o anterior, sabendo que na data em que prestou tais declarações ao Administrador Judicial, tal veículo automóvel ainda estava na propriedade da mãe, pessoa com quem e em cuja casa residia”, com o que “[i]mpediu assim o Administrador Judicial de fazer um juízo sobre a necessidade da resolução deste negócio e defraudou (ainda mais) a garantia patrimonial dos credores”.
[17] Noutros casos a violação dos deveres de informação e colaboração coloca-se a nível da definição dos créditos. Assim:
- Acórdão do TRL 25-06-2013, processo: 3365/12.8TJLSB.L1-7, Relator: Rosa Ribeiro Coelho em que se concluiu que “I – A falsa indicação, na relação a que alude o art.º 24º, nº 1, a) do CIRE, da data de vencimento da quase totalidade dos créditos aí indicados, seguida da falta de esclarecimento, por duas vezes solicitado pelo tribunal, representa violação gravemente culposa dos deveres de informação e colaboração a que os devedores estão sujeitos. // II – Tal violação constitui, nos termos da alínea g) do nº 1 do 238º do CIRE, fundamento para o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante”.
- Acórdão do TRC de 10-12-2019, processo: 43/19.0T8VLF-E.C1 (Relator: Arlindo Oliveira), em que se concluiu que “ 1.- A actuação omissiva dos devedores, ao não indicarem a totalidade dos seus créditos e credores constitui violação culposa dos mencionados deveres de informação e colaboração, encontrando-se, por isso, comprovados os requisitos previstos na al. g), do n.º 1, do artigo 238.º, do CIRE, e justificada a decisão de indeferimento liminar do pedido de exoneração formulado pelos devedores”.
[18] Ainda noutro contexto, concluiu-se no acórdão do TRC de 19-10-2020, processo: 6505/19.2T8CBR-E.C1
Relator: Maria Catarina Gonçalves: “II – A violação dos deveres de informação e colaboração que é susceptível de determinar – ao abrigo da alínea g) do nº 1 do art.º 238.º do CIRE – o indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo não ocorre apenas quando o devedor viola a obrigação expressamente prevista no art.º 83º do citado diploma (não prestando a informação ou colaboração que lhe seja solicitada pelo administrador da insolvência, pela assembleia de credores, pela comissão de credores ou pelo tribunal); a violação daqueles deveres também ocorre quando o devedor, sem justificação, não junte algum dos elementos (de carácter informativo) que são exigidos pelo art.º 24.º ou quando alegue factos referentes a essas matérias que não sejam verdadeiros, podendo ainda concluir-se pela violação desses deveres quando, de um modo geral, o devedor omita a alegação ou altere a verdade de factos relevantes com desrespeito pelos deveres de cooperação e boa-fé processual previstos nos arts. 7.º e 8.º do CPC. // III – Nessas circunstâncias, a falta de alegação pelo devedor, no requerimento inicial, de uma doação que havia celebrado nos três anos anteriores ao início do processo de insolvência configura uma violação dos citados deveres (por ser um facto relevante para o processo de insolvência) e essa omissão, desde que dolosa ou gravemente negligente, determina o indeferimento liminar da exoneração do passivo restante.// IV – Para que a falta de alegação desse facto, no requerimento inicial, possa ser configurada como dolosa ou gravemente negligente é necessário que o devedor tivesse a consciência do dever de alegar esse facto ou que estivesse em condições de tomar essa consciência se tivesse adoptado os cuidados elementares que só uma pessoa particularmente descuidada deixaria de observar. // V – Não resultando provado que o devedor tivesse consciência desse dever; estando em causa um facto cuja necessidade de alegação no requerimento inicial não era expressamente imposta pela lei (não estava em causa um facto que se reportasse aos elementos que, em conformidade com o disposto no art.º 24.º, tinham que instruir a petição inicial e não existia qualquer outra disposição legal que impusesse de modo expresso o dever de o alegar no requerimento inicial) e não se podendo ter como manifestamente infundada ou irrazoável determinada leitura/interpretação da lei no sentido de não existir o dever de alegação daquele facto no requerimento inicial, não há bases para concluir que a violação daqueles deveres é imputável a dolo ou negligência grave do devedor”.
[19] Concorda-se, pois, com o entendimento expresso no acórdão do TRC de 30-03-2020, processo: 2846/18.4T8VIS-D.C1 (Relator: Emídio Santos), quando aí se refere que “[t]ambém não é requisito de relevância da violação do dever de informação para efeitos da alínea g) que, de tal violação, resulte um benefício para o devedor ou um prejuízo para os credores, pois tal exigência também não tem o mais leve apoio na letra da lei. Está-se perante um caso em que a lei se basta com o desvalor da acção”.
Entendeu-se nesse aresto que “I - A violação dos deveres de informação tida em vista pela alínea g) do n.º 1 do artigo 238.º não compreende apenas a recusa de fornecimento de informações a pedido do administrador da insolvência, da assembleia de credores, da comissão de credores ou do tribunal. Ela abrange também os casos em que o devedor presta falsas informações, no exercício dos seus poderes processuais, designadamente no requerimento de apresentação à insolvência. // II – O dever imposto ao devedor, pela alínea e) do n.º 1 do artigo 24.º do CIRE, de juntar com a petição em que pede a declaração de insolvência a relação de todos os bens e direitos de que seja titular é um dever de conteúdo informativo, cuja violação é susceptível de constituir causa de indeferimento liminar de exoneração do passivo restante”.
[20] Obr. cit. p. 132. [21] No referido acórdão do TRL de 21-12-2023, explicita-se o enquadramento legislativo pertinente ao momento de prolação do despacho liminar alusivo ao pedido de exoneração, na sequência da entrada em vigor do Dec. Lei n.º 79/2017 de 30/06 e o regime transitório aí fixado (art.º 6.º, n.º 6), concluindo-se que “a partir de julho de 2017, deveria o tribunal ter providenciado pela prolação do despacho de exoneração do passivo restante, o que não fez”.
[22]Em que o apelante dá nota da sua alteração de residência.
[23] Amâncio Ferreira refere que, na perspetiva da finalidade do recuso, se podem configurar três sistemas, a saber, o sistema da substituição, o sistema da cassação e um sistema intermédio, concluindo que “[n]o processo civil português, há lugar para os três sistemas” (Manual dos Recursos em Processo Civil, 2006, Coimbra, Almedina, p. 185).