IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO
CONCLUSÕES
DIVÓRCIO
BEM COMUM
CASA DE MORADA DE FAMÍLIA
ARRENDAMENTO
RENDA
Sumário

1. Há lugar à rejeição da impugnação da decisão da matéria de facto quando nas conclusões do recurso não vêm especificados os pontos concretos da decisão que estarão errados.
2. Os poderes/deveres que emergem do disposto no art.º 662º do Código de Processo Civil só devem ser accionados na medida em que o recorrente tenha dado cumprimento ao ónus de impugnação a que respeita o art.º 640º do Código de Processo Civil, desde logo especificando nas conclusões do recurso os pontos concretos da decisão que estão julgados erradamente.
3. O critério para a determinação da renda no arrendamento constituído nos termos do art.º 1793º do Código Civil não passa apenas pela consideração do valor locativo do imóvel, mas igualmente pela comparação entre as condições económicas de cada um dos ex-cônjuges.
4. Perante um património imobiliário comum que permite concluir pelo desafogo financeiro e económico do ex‑casal, o apuramento do valor da renda mensal não se deve ater a quaisquer condicionantes económicas de um ou de outro dos ex‑cônjuges, mas tão só ao valor locativo do imóvel em questão.
(Sumário elaborado ao abrigo do disposto no art.º 663º, nº 7, do Código de Processo Civil)

Texto Integral

Acordam no Tribunal da Relação de Lisboa os juízes abaixo assinados:

Por apenso à acção de divórcio que V. intentou contra M., em que foi decretado o divórcio entre ambos e declarado dissolvido o casamento, com efeitos fixados em 31/7/2018, veio em 13/9/2021 M. requerer a atribuição do uso exclusivo da casa de morada de família, bem como a condenação de V. a pagar as despesas correspondentes a metade do valor das prestações mensais do empréstimo contraído pelo ex-casal para a aquisição do imóvel, seguros, IMI e quaisquer outras prestações até à partilha e/ou eventual venda.
Sustenta para tanto que:
• Em Julho de 2018 o requerido optou por sair do imóvel onde habitava com a requerente e os três filhos do casal, passando a residir com uma nova companheira e depois com a sua mãe;
• No imóvel continua a residir a requerente e os referidos três filhos, todos maiores, não obstante um deles ainda se encontrar a estudar;
• É a requerente que paga as prestações mensais do empréstimo bancário concedido para aquisição do imóvel, pagando ainda os seguros e os IMI’s de todo o património comum do ex-casal;
• Uma vez que ao requerido caberá metade do valor do imóvel, em partilha subsequente ao divórcio, deve o mesmo suportar metade das despesas suportadas pela requerente com a casa de morada de família.
O requerido foi citado e procedeu-se a tentativa de conciliação, na qual não foi possível a obtenção de acordo relativamente à atribuição do uso da casa de morada de família.
Notificado para tanto, o requerido apresentou contestação onde confirma que não vive na casa de morada de família desde 2018, mais alegando, em síntese, que:
• Esteve a residir com os seus pais desde Julho de 2018 até Novembro de 2021;
• A requerente aufere o rendimento mensal de € 5.000,00 gerado pelo património comum do ex‑casal, tendo despesas com o mesmo de € 2.600,00;
• Só a partir de Março de 2021 o requerido passou a auferir rendas referentes a dois dos imóveis que integram tal património comum, as quais deixou, entretanto, de receber porque os arrendamentos já terminaram;
• Todos os três filhos do ex-casal já trabalham;
• Os seus rendimentos mensais como condutor TVDE não ultrapassam € 100,00;
• A requerente deve pagar-lhe uma renda mensal pelo uso da casa de morada de família, em valor não inferior a € 1.200,00, atentos os meios económicos da mesma.
Conclui pedindo a fixação do referido valor mensal da renda, caso seja atribuído à requerente o uso da casa de morada de família.
Após a produção da prova indicada pelas partes foi proferida sentença, com o seguinte dispositivo:
Pelo exposto:
- Atribuo à requerente (…) o direito à utilização da casa de morada de família, sita na Avenida (…), Almada, mediante o pagamento ao requerido de uma renda mensal no valor de € 1.200 (mil e duzentos euros).
- Indefiro o pedido de condenação do requerido no pagamento de metade de despesas com o imóvel, por não ser este o meio próprio para o efeito.
Custas em partes iguais, pela requerente e pelo requerido”.
A requerente recorre desta sentença, terminando a sua alegação com as seguintes conclusões, que aqui se reproduzem:
1. Na fixação da “renda” a pagar pela Apelante ao Apelado, o Tribunal a quo, em erro de direito, desconsiderou diversos factos, como a situação patrimonial dos ex-cônjuges, nomeadamente, os seus rendimentos e encargos, a idade, o estado de saúde, o interesse dos filhos e ademais razões, com vista à tomada da justa decisão;
2. O Tribunal a quo ignorou ainda o facto alegado pela Apelante de ser a única que suporta o pagamento da prestação do empréstimo e de todas as despesas inerentes ao bem;
3. Em suma, a instrução da causa foi insuficiente, pois não foram apurados todos os factos necessários para a boa decisão da causa;
4. Termos em que o Tribunal ad quem deverá revogar a douta decisão recorrida e ordenar a produção de prova tida por necessária e conveniente com vista ao apuramento dos factos que permitam a valoração prudencial das circunstâncias pessoais e patrimoniais dos cônjuges e, assim, fixar o montante da compensação devida ao cônjuge excluído da utilização da casa de morada de família, bem comum do casal.
5. Uma vez que a Recorrente é obrigada a pagar uma renda ao Recorrido pela utilização do imóvel em questão, e tendo em conta que o Recorrido não procederá ao pagamento dos encargos associados ao imóvel de forma voluntária, o que se presume por ser uma situação existente há mais de 6 anos, deve o Recorrido ser condenado na proporção da sua responsabilidade (50%) ao pagamento tanto do empréstimo como demais despesas inerentes ao imóvel correspondente à casa de morada de família.
6. Nestes termos, deverá revogar-se a douta sentença recorrida e, em sua substituição, julgar-se procedente o pedido de condenação do Recorrido no pagamento de metade das despesas do imóvel ou diminuir o valor fixado de renda face a todos os encargos dispendiosos por parte da Recorrente.
O requerido não apresentou alegação de resposta.
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Sendo o objecto do recurso balizado pelas conclusões do apelante, nos termos preceituados pelos art.º 635º, nº 4, e 639º, nº 1, ambos do Código de Processo Civil, as questões submetidas a recurso, tal como se encontram delimitadas pelas aludidas conclusões, prendem-se com a alteração da decisão de facto e com a consequente alteração do valor da renda a pagar pela requerente, bem como pelo reconhecimento do seu direito a receber do requerido metade dos valores que despende com o imóvel que constitui a casa de morada de família.
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Na sentença recorrida considerou-se como provada a seguinte matéria de facto:
1. A requerente e o requerido casaram um com o outro em ...-...-1990.
2. Na constância do matrimónio nasceram três filhos, actualmente maiores de idade.
3. Por sentença proferida no processo de divórcio ao qual o presente foi apenso foi decretado o divórcio entre a requerente e o requerido e declarado dissolvido o respectivo casamento entre eles celebrado.
4. A casa onde vivia a família situa-se na Avenida (…), Almada.
5. A casa onde vivia a família foi adquirida por ambos na constância do matrimónio com recurso a empréstimo bancário.
6. O requerido deixou de residir na casa de morada de família em 2018.
7. A requerente manteve-se a residir na casa de morada de família juntamente com os seus filhos.
8. No Laudo Pericial conclui-se que “o valor locativo presumível do imóvel é estimado em cerca de: 5.200€/mês (Cinco mil e duzentos euros por mês)”.
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Na sentença recorrida ficou ainda consignado que “não se provaram todos os factos que não se compaginam com os acima dados como provados”.
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Nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 607º, nº 4, ex vi art.º 663º, nº 2, ambos do Código de Processo Civil, importa ainda considerar como provado, por resultar de prova documental e do acordo das partes, que:
9. O casamento referido em 1. foi celebrado sem precedência de convenção antenupcial.
10. O património comum do ex-casal é constituído, além do mais, pelos seguintes imóveis e direitos sobre imóveis:
• Fracção autónoma designada pela letra D, correspondente ao 1º esquerdo, para habitação, do prédio urbano sito na R. (…), concelho de Almada, com o valor patrimonial de € 56.297,47;
• Fracção autónoma designada pela letra D, correspondente ao 1º esquerdo, para habitação, do prédio urbano sito na R. (…), concelho de Almada, com o valor patrimonial de € 27.727,14;
• Fracção autónoma designada pela letra A, correspondente ao rés do chão esquerdo, para habitação, do prédio urbano sito na Av. (…), concelho de Almada, com o valor patrimonial de € 49.684,25;
• Fracção autónoma designada pelas letras AB, correspondente ao estacionamento coberto e fechado/garagem AB, do prédio urbano sito na R. (…), concelho de Almada, com o valor patrimonial de € 5.410,00;
• Fracção autónoma designada pelas letras AC, correspondente ao estacionamento coberto e fechado/garagem AC, do prédio urbano sito na R. (…), concelho de Almada, com o valor patrimonial de € 5.410,00;
• O prédio urbano identificado em 4. e 5., com o valor patrimonial de € 258.033,69;
• O direito de aquisição, decorrente do contrato de locação financeira imobiliária celebrado com a Caixa Económica Montepio Geral em 26/1/2012, da fracção autónoma designada pela letra A, correspondente ao primeiro andar esquerdo, destinado a comércio – restaurante, (…), do prédio urbano sito na Av. (…), concelho de Almada, com o valor patrimonial de € 120.811,55;
• O direito de aquisição, decorrente do contrato de locação financeira imobiliária celebrado com a Caixa Económica Montepio Geral em 26/1/2012, do prédio urbano correspondente a parcela de terreno para jardim esplanada, com a área de 345 m2, sito na Av. (…), concelho de Almada, com o valor patrimonial de € 2.169,21.
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Decorre da conjugação dos art.º 635º, nº 4, 639º, nº 1 e 640º, nº 1 e 2, todos do Código de Processo Civil, que quem impugna a decisão da matéria de facto deve, nas conclusões do recurso, especificar quais os pontos concretos da decisão em causa que estão errados e, ao menos no corpo das alegações, deve, sob pena de rejeição, identificar com precisão quais os elementos de prova que fundamentam essa pretensão, sendo que, se esses elementos de prova forem pessoais, deverá ser feita a indicação com exactidão das passagens da gravação em que se funda o recurso (reforçando a lei a cominação para a omissão de tal ónus, pois que repete que tal tem de ser feito sob pena de imediata rejeição na parte respectiva) e qual a concreta decisão que deve ser tomada quanto aos pontos de facto em questão.
A respeito do disposto no referido art.º 640º do Código de Processo Civil, refere António Santos Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, 2020, pág. 196-197):
a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões.
b) Deve ainda especificar, na motivação, os meios de prova, constantes do processo ou que nele tenham sido registados, que, no seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos.
c) Relativamente a pontos de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em prova gravada, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre-lhe indicar, com exactidão, as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos.
(…)
e) O recorrente deixará expressa, na motivação, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou incongruente”.
E, mais adiante, afirma (pág. 199-200) a “rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto, designadamente quando se verifique a “falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto”, a “falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados”, a “falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou neles registados”, a “falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda”, bem como quando se verifique a “falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”, concluindo que a observância dos requisitos acima elencados visa impedir “que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo”.
Do mesmo modo, António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 770) afirmam que “cumpre ao recorrente indicar os pontos de facto que impugna, pretensão esta que, delimitando o objecto do recurso, deve ser inserida também nas conclusões (art. 635º)”, mais afirmando que “relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, o recorrente tem o ónus de indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda, sem prejuízo de poder apresentar a respectiva transcrição”.
E, do mesmo modo, vem entendendo o Supremo Tribunal de Justiça (como no acórdão de 29/10/2015, relatado por Lopes do Rego e disponível em www.dgsi.pt) que do nº 1 do art.º 640º do Código de Processo Civil resulta “um ónus primário ou fundamental de delimitação do objecto e de fundamentação concludente da impugnação (…) e um ónus secundário – tendente, não propriamente a fundamentar e delimitar o recurso, mas a possibilitar um acesso mais ou menos facilitado pela Relação aos meios de prova gravados relevantes (…)”.
Por outro lado, e impondo-se a especificação dos pontos concretos da decisão que estão erradamente julgados, bem como da concreta decisão que deve ser tomada quanto aos factos em questão, há-de a mesma reportar-se, em primeira linha, ao conjunto de factos constitutivos da causa de pedir e das excepções invocadas. É que, face ao disposto no nº 1 do art.º 5º do Código de Processo Civil, a decisão da matéria de facto tem por objecto, desde logo, os factos essenciais alegados pelas partes, quer integrantes da causa de pedir, quer integrantes das excepções invocadas. Todavia, e porque do nº 2 do mesmo art.º 5º resulta que o tribunal deve ainda considerar os factos instrumentais, bem como os factos complementares e concretizadores daqueles que as partes hajam alegado, e que resultem da instrução da causa, daí decorre que na decisão da matéria de facto devem esses factos ser tidos em consideração.
Reconduzindo tais considerações ao caso concreto, torna-se evidente que a requerente omitiu o cumprimento do referido ónus, na sua vertente primária de delimitação do objecto da impugnação da decisão de facto.
Com efeito, e não obstante a requerente concluir que o tribunal recorrido “desconsiderou diversos factos, como a situação patrimonial dos ex-cônjuges, nomeadamente, os seus rendimentos e encargos, a idade, o estado de saúde, o interesse dos filhos e ademais razões”, daí não resulta a necessária concretização de quais os pontos de facto que deveriam integral o elenco de factos provados (e não provados), ainda que por remissão para os pontos de facto dos articulados apresentados pelas partes, ou mesmo para factualidade que haja resultado da instrução da causa (isto é, para factos que resultem do teor dos documentos apresentados, dos depoimentos prestados, ou mesmo da perícia realizada). Pelo contrário, a “situação patrimonial dos ex-cônjuges, nomeadamente, os seus rendimentos e encargos, a idade, o estado de saúde, o interesse dos filhos” são critérios normativos que carecem de ser preenchidos com recurso a factualidade concreta, que se desconhece qual seja, porque a requerente não a concretizou.
Do mesmo modo, o disposto no nº 2 do art.º 662º do Código de Processo Civil não tem o alcance visado pela requerente, relativamente à alteração oficiosa da factualidade apurada na instância recorrida, nomeadamente através da produção de novos meios de prova.
É que a oficiosidade referida naquele nº 2 do art.º 662º do Código de Processo Civil respeita à formulação de um juízo autónomo relativamente aos elementos probatórios, mas no âmbito do objecto do recurso, delimitado nos termos do art.º 640º do Código de Processo Civil. Ou seja, e recorrendo à doutrina de António Santos Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 6ª edição actualizada, 2020, pág. 331), “Com a redacção do art.º 662º pretendeu-se que ficasse claro que (…), sem prejuízo do ónus de impugnação que recai sobre o recorrente e que está concretizado nos termos previstos no art.º 640º, quando esteja em causa a impugnação de determinados factos cuja prova tenha sido sustentada em meios de prova submetidos a livre apreciação, a Relação deve alterar a decisão da matéria de facto sempre que, no seu juízo autónomo, os elementos de prova que se mostrem acessíveis determinem uma solução diversa, designadamente em resultado da reponderação dos documentos, depoimentos e relatórios periciais, complementados ou não pelas regras da experiência”.
Dito de forma mais simples, os poderes/deveres que emergem do disposto no art.º 662º do Código de Processo Civil só devem ser accionados na medida em que o recorrente tenha dado cumprimento ao ónus de impugnação a que respeita o art.º 640º do Código de Processo Civil, desde logo especificando nas conclusões do recurso os pontos concretos da decisão que estão julgados erradamente.
O que é manifesto que não sucedeu, quanto às referidas “circunstâncias pessoais e patrimoniais” das partes, como já acima se referiu.
Do mesmo modo, ainda, parece a requerente entender que a actividade instrutória cabe ao tribunal, e não às partes, como que convocando o princípio do inquisitório (previsto no art.º 411º do Código de Processo Civil) numa interpretação que não é de acolher. Com efeito, e como afirmam António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, vol. I, 2018, pág. 483‑484), o princípio do inquisitório “coexiste com os princípios do dispositivo, da preclusão e da autorresponsabilidade das partes, de modo que não poderá ser invocado para, de forma automática, superar eventuais falhas de instrução que sejam de imputar a alguma das partes, designadamente quando esteja precludida a apresentação de meios de prova”. Ou seja, o princípio do inquisitório não deve ser entendido em termos absolutos, mas interligado com a actividade desenvolvida pelas partes, desde logo no que respeita ao cumprimento do ónus de impugnação acima referido, no que à instância recursiva respeita. O que significa, no caso concreto, que a constatada omissão da requerente de cumprimento deste ónus de impugnação não deve ser suprida por qualquer intervenção oficiosa deste tribunal de recurso, a coberto do referido princípio do inquisitório, e no que respeita à afirmação dos concretos factos que deveriam constar como provados na sentença recorrida.
Do mesmo modo, a requerente conclui que o tribunal recorrido ignorou “o facto alegado pela Apelante de ser a única que suporta o pagamento da prestação do empréstimo e de todas as despesas inerentes ao bem”.
Todavia, e para além de constar da fundamentação de facto que não se provaram todos os restantes factos não compagináveis com os factos provados, do mesmo modo está justificada na sentença recorrida a razão de ser do “desprezo” pelo facto em questão. É que, ficando aí decidido que não havia lugar a conhecer da pretensão da requerente, quanto ao pagamento de metade da referida prestação e de todas as restantes despesas inerentes ao imóvel que constitui a casa de morada de família, por não ser o incidente de atribuição do direito ao uso da casa de morada de família “o meio próprio para o efeito”, a circunstância de tais encargos serem suportados exclusivamente pela requerente apresenta-se como irrelevante para o conhecimento da questão da atribuição do direito ao uso exclusivo da casa de morada de família pela requerente e da determinação da renda devida pela mesma ao requerido.
Ou seja, ainda que nesta parte se pudesse concluir que o referido ónus estava cumprido pela requerente, na sua dimensão primária, a factualidade em questão não apresenta qualquer relevo para a decisão relativa ao valor da renda. Pelo que, nessa medida, não há que a considerar no elenco de factos provados, assim se tornando inútil estar a conhecer da impugnação, nesta parte.
Em suma, face à rejeição da impugnação genericamente apresentada pela requerente, e face ainda à irrelevância da alteração concretamente pretendida, não há que efectuar qualquer alteração à decisão de facto.
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No caso dos autos resulta consensual que, perante a dissolução do vínculo conjugal, com a correspondente cessação do dever de coabitação entre os ex‑cônjuges, a utilização da casa de morada de família ficou atribuída à requerente.
Assim, não se suscitando qualquer controvérsia quanto a esse direito da requerente à utilização exclusiva da casa de morada de família, e tendo presente que a mesma corresponde a imóvel que constitui bem comum do ex‑casal, resulta do art.º 1793º do Código Civil que tal atribuição há‑de ser efectuada mediante a constituição de um arrendamento para habitação, devendo o tribunal definir as condições desse arrendamento, desde logo o valor da renda mensal devida pela requerente (arrendatária) ao requerido (senhorio).
Por outro lado, e estando em causa a protecção da habitação, na sua dimensão familiar, o Tribunal Constitucional já se pronunciou pela conformidade constitucional do nº 1 do art.º 1793º do Código Civil (e reflexamente pela conformidade constitucional do art.º 990º do Código de Processo Civil, que mais não representa que a adjectivação das normas de direito substantivo constantes do referido art.º 1793º e bem ainda do art.º 1105º, ambos do Código Civil), como no acórdão 127/2013, de 27/2/2013 (relatado por Vítor Gomes e disponível em www.tribunalconstitucional.pt), onde ficou afirmado que as “medidas respeitantes à “casa de morada de família” respeitam à “política de família com carácter global e integrado” que ao Estado incumbe executar para protecção da família [alínea g) do n.º 2 do artigo 67.º da CRP]. Trata-se, de medidas que, de um modo geral, visam defender a estabilidade da habitação familiar no interesse dos cônjuges e dos filhos, “tanto no decurso da vida conjugal em termos normais, como nas situações de crise provocadas, quer pelo divórcio ou pela separação judicial de pessoas e bens, quer pelo falecimento de algum dos cônjuges”, a que as regras de direito comum não dariam satisfação adequada ou conduziriam a resultados indesejáveis (Pereira Coelho, Revista de Legislação e Jurisprudência, Ano 122.º, pág. 137)”. Nessa senda, sustenta-se nesse acórdão que, para além da possibilidade de concentração ou transmissão de um arrendamento pré-existente, a “novidade do artigo 1793.º foi ter o legislador alargado a protecção à “casa de morada de família” a outras hipóteses que não a de esta se estabelecer em casa arrendada. Com efeito, ocorrendo divórcio ou separação judicial e residindo a família em casa que seja bem próprio de um dos cônjuges, segundo as regras comuns, o outro ficaria privado da habitação em que vivera, mesmo que fosse o mais carecido dessa habitação e os filhos do casal lhe tivessem sido confiados. O mesmo poderia suceder, em consequência da partilha subsequente ao divórcio, se a casa de morada de família constituísse bem comum.
Foi a necessidade de reconhecer a situação criada pelo casamento quanto à morada de família, para lá da dissolução do vínculo conjugal, que ditou o inovador regime do artigo 1793.º do Código Civil. O tribunal pode dar de arrendamento a qualquer dos cônjuges, a seu pedido, a casa de morada de família, quer esta seja bem comum do casal, quer próprio do outro (…), considerando, nomeadamente, as necessidades de cada um deles e o interesse dos filhos do casal”, e permitindo-se “a constituição de uma relação locativa cujo facto genético é um acto de autoridade do Estado, uma decisão judicial. Há a constituição forçada de um arrendamento, que fica sujeito às regras do arrendamento para habitação, designadamente a fixação e obrigação de pagamento de renda, podendo o tribunal definir, ouvidos os cônjuges, as condições do “contrato” (qualificação legal a que podem ser colocadas reservas: cfr. Pinto Furtado, Manual do Arrendamento Urbano, pág. 28), bem como “fazer caducar o arrendamento, a requerimento do senhorio quando circunstâncias supervenientes o justifiquem” (n.º 2 do artigo 1793.º)”.
Ou seja, desde logo é de afirmar que o critério para a determinação da renda devida por esse arrendamento constituído por decisão judicial não passa apenas pela consideração do valor locativo do imóvel, mas igualmente pela comparação entre as condições económicas de cada um dos ex-cônjuges.
Sucede, todavia, que no caso concreto nada resulta provado no que respeita às condições pessoais de cada um dos ex-cônjuges, para efeitos de determinação do valor da renda mensal devida pela requerente ao requerido.
Não obstante, está demonstrada a extensão do património imobiliário comum do ex‑casal (e respectivo valor), a partir de onde se consegue antever a inexistência de dificuldades económicas relevantes e susceptíveis de condicionar o pagamento de uma renda pela requerente ao requerido, se fixada segundo as regras normais do mercado.
E não obsta a tal entendimento a circunstância de a requerente residir na casa de morada de família com os três filhos do ex‑casal, tendo presente que todos eles são actualmente maiores de idade, e sem que esteja demonstrada qualquer dependência económica dos mesmos, relativamente aos seus progenitores.
Ou, dito de outra forma, perante o referido património imobiliário é de concluir pelo desafogo financeiro e económico do ex‑casal, a determinar que o apuramento do valor da renda mensal em apreço não se atenha a quaisquer condicionantes económicas de um ou de outro dos ex-cônjuges, mas tão só ao valor locativo do imóvel em questão, enquanto expressão das regras normais de mercado.
Assim, não deixa de se acompanhar a jurisprudência referida pela requerente na sua alegação de recurso, no que respeita à necessidade de ponderar a situação patrimonial do arrendatário. Mas, do mesmo modo, constata-se que, no caso concreto dos autos, tal ponderação não conduz a afastar o recurso ao valor locativo do imóvel, como elemento preponderante para a fixação do valor da renda mensal devida pela requerente. Pelo que é de concluir que a determinação da mesma renda mensal no valor de € 1.200,00 respeita os critérios de equidade, conveniência e oportunidade que a requerente reclama, desde logo tendo presente que o valor locativo mensal do imóvel corresponde a cerca de € 5.200,00 (mais de quatro vezes o valor da renda mensal fixada), e não esquecendo que se trata de um bem comum do ex‑casal, e não de um bem próprio do requerido (o que significa que qualquer valor locativo seria sempre considerado pela metade).
O que equivale a concluir que, nesta parte, improcedem as conclusões do recurso da requerente, sendo de manter a renda mensal de € 1.200,00 fixada na sentença recorrida.
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Relativamente ao reconhecimento do direito da requerente a receber do requerido a metade dos valores despendidos com o imóvel que constitui a casa de morada de família, ficou referido na sentença recorrida que o presente procedimento não constitui o meio próprio para esse reconhecimento.
Como resulta do disposto no art.º 990º do Código de Processo Civil, o procedimento especial aí regulado (e de que a requerente lançou mão) destina-se a exercitar o direito à atribuição da casa de morada de família, desde logo nos termos do art.º 1793º do Código Civil. Já o invocado direito de crédito da requerente deve ser exercitado em sede do processo especial de inventário para partilha do património comum do ex‑casal. Com efeito, na medida em que a requerente invoca que se trata de obrigações de ambos os cônjuges e que respeitam a um bem comum, mas que foram satisfeitas apenas por si, estar-se-á perante um crédito da requerente sobre o requerido determinado pela extinção da comunhão conjugal, a considerar nas operações de liquidação dos aspectos patrimoniais dessa comunhão.
Assim sendo, está-se perante um pedido a que corresponde uma forma processual diversa da forma processual utilizada pela requerente para o exercício do direito à atribuição da casa de morada de família.
O que equivale a afirmar que a requerente escolheu a forma de processo errada para exercitar esse direito de crédito, e sem que se pudessem aproveitar os actos praticados no âmbito deste processo especial para a tramitação do processo especial de inventário, pela manifesta incompatibilidade entre os actos próprios de uma e de outra das formas processuais em questão. Ou seja, no que respeita ao segundo pedido formulado pela requerente verifica-se a invalidade de todo o processado para tal finalidade, a determinar a abstenção do conhecimento desse pedido, tendo presente o disposto no art.º 278º, nº 1, al. b), do Código de Processo Civil.
Pelo que não é de censurar a decisão do tribunal requerido, quando não conheceu do segundo pedido formulado pela requerente, em face do constatado erro na forma do processo aplicável a tal pretensão, assim improcedendo, também nesta parte, as conclusões do recurso da requerente.
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DECISÃO
Em face do exposto julga-se improcedente o recurso e mantém-se a sentença recorrida.
Custas do recurso pela requerente.

10 de Abril de 2025
António Moreira
Susana Mesquita Gonçalves
Fernando Caetano Besteiro