CONTRATO DE COMPRA E VENDA
INCUMPRIMENTO
RESOLUÇÃO
DETERIORAÇÃO
INTERESSE POSITIVO
Sumário

I. Determinadas figuras contratuais podem originar efeitos reais e obrigacionais, o que ocorre precisamente com a compra e venda, da qual derivam efeitos meramente obrigacionais (a obrigação de entrega da coisa e a obrigação de pagamento do preço) e o efeito real (da transmissão da propriedade), sendo que o contrato aperfeiçoa-se independentemente da produção desses efeitos, mediante o mútuo consenso dos contraentes.
II. A existência do direito à resolução pressupõe em regra a verificação de um fundamento que será na maioria dos casos o incumprimento de uma obrigação, no caso do contrato de compra e venda do veículo tal advém da discrepância do bem vendido entre o descrito no anúncio e a realidade do mesmo.
III. A resolução opera por meio de uma declaração receptícia e produz efeitos quando chega ao destinatário ou deste é conhecida, sendo que a “contestação” judicial da resolução apenas se destina a aferir judicialmente da respectiva licitude, mas a sentença não deixa de ser meramente declarativa e não constitutiva.
IV. A resolução não dá origem a um novo contrato, pelo qual se pretende dissolver o anterior, mas cria uma relação legal que obriga as partes a devolverem o que receberam; trata-se de uma obrigação ex lege de reposição do status qua ante.
V. Com a destruição do vínculo, tem sido entendido que cada uma das partes fica na situação de depositário da coisa que recebeu, com a obrigação de a conservar e entregar, pelo que perante a destruição do veículo objecto do contrato, haverá que considerar a forma como decorreu a resolução e todo o comportamento da ré/vendedora na sequência da mesma, o que nos leva a considerar que competia à ré assegurar, neste caso, a retirada do veículo do local onde o mesmo se encontrava, facto que o Autor propugnou desde a resolução.
VI. A vingar a confusão das prestações do A. e ré, na sequência da impossibilidade posterior da restituição do veículo, seria premiar o comportamento da ré, que não teria de devolver o valor do veículo, ficando o Autor sem possibilidade de obter o valor pago.
VII. Tal determina que o perecimento ou deterioração do bem decorre de causa imputável à ré, afastando a regra geral do artº 796º do CC, ou ainda que pretendendo a ré fazer-se valer do seu comportamento desconforme, fundamento da resolução, para obter uma vantagem, o não pagamento da restituição do preço poderá ter por base o abuso de direito e os ditames da boa fé, na tipologia do tu quoque.
VIII. Não pode neste caso o Autor pretender obter um valor indemnizatório relativo à privação de uso, pois tal dano visa o interesse dito positivo ou interesse do cumprimento (ou dano de não cumprimento), representando aquilo que o credor teria se o negócio tivesse sido cumprido com exactidão, não podendo tal pretensão ser cumulada com a resolução e os seus efeitos.
(Sumário elaborado pela relatora)

Texto Integral

Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. Relatório:
S… intentou ação declarativa de condenação, com processo comum contra A… E R…, LDA, pedindo a condenação da R. a:
a) reconhecer a resolução do contrato de compra e venda do veículo de matrícula …;
b) restituir-lhe a quantia de € 4.650,00 acrescido de juros de mora, a contar da data da resolução (17.07.2021) até integral pagamento;
c) recolher a viatura na sua residência;
d) pagar-lhe uma compensação pelos danos decorrentes da privação do uso da viatura desde a data da entrega da viatura até à data da restituição do preço pago, a liquidar em execução de sentença, sendo que o valor já vencido na data da propositura da ação ascende a € 681,10;
e) pagar-lhe os custos acrescidos com a entrega da viatura, no montante de € 20,64, acrescida de juros de mora, contados desde a data da despesa (03.08.2021) até integral pagamento;
f) pagar-lhe os custos com o parqueamento da viatura, no montante de € 72,66 e as despesas que venha a incorrer até à recolha da viatura, a liquidar em execução de sentença, acrescido de juros de mora, contados desde a data em que ocorreram as despesas até ao seu integral pagamento.
Em abono das suas pretensões, invoca, em síntese, que, em Julho de 2021 viu no site standvirtual, um anúncio que publicitava a venda de uma viatura da marca BMW, modelo 520 Touring 2.0 135 cv Pack M, com 238.000 km, pelo preço de € 4.500,00. Mais refere que, por indicação da R., os detalhes da negociação foram acordados em 23.07.2021, através do Whatsapp e do número de telefone publicitado pela R., no referido anúncio. Por outro lado, o A. refere que tendo questionado a R. sobre os detalhes da viatura, esta confirmou que as informações estavam no anúncio. O A. aceitou comprar a viatura pelo valor indicado, tendo ainda acordado com a R. que, por mais € 100, a viatura seria entregue em casa do A., no prazo de 2 dias, tendo pago à R. a quantia de € 2.325,00, em 23.07.2021 e € 2.325,00, em 26.07.2021.
Sucede que, após vários adiamentos por parte da R., o veículo só foi entregue ao A., em 04.08.2021, tendo este que a recolher no mercado abastecedor de Lisboa pois a empresa contratada para efectuar o transporte recusou-se a entregar o veículo na casa do A.. Porém, quando o A. recebeu a viatura verificou que a mesma apresentava 399.935 km e não os 238.000 km anunciados. Face a esta desconformidade, o A. entrou logo em contacto com um funcionário da R. que se desculpou dizendo que havia um erro no anúncio e como forma de compensar o A. propôs que este aceitasse uma estadia de 5 noites no Algarve ou Madeira, oferta esta que o A. não aceitou.
Em face das desconformidades apresentadas pela viatura, no que respeita à quilometragem, o A. enviou cartas registadas com aviso de recepção, em 16.08.2021, a resolver o contrato de compra e venda da viatura, indicando ainda o local onde a viatura podia ser recolhida e os dados bancários para a R. efectuar o depósito do preço pago. Em resposta, a R. enviou-lhe uma carta em que se recusou a receber a viatura e a devolver o preço pago.
Em consequência desta situação, o A. sofreu vários prejuízos pois exerce a profissão de músico, necessitando de se deslocar com frequência em Lisboa e para outras localidades no país e no estrangeiro. Ao ter desembolsado a quantia que dispunha para a compra da viatura à R., viu-se impossibilitado de usar esse montante para a compra de outra, vendo-se obrigado a recorrer a viaturas de aluguer, com um custo mensal de € 583,93 ou transportes públicos nas suas deslocações diárias. Por outro lado, o A. teve de suportar o custo da deslocação ao MARL para recolher a viatura (€ 20,64), além de ter de suportar os custos com o estacionamento da viatura da R.., na via pública, junto da sua habitação, no montante global de € 72,66.
Regularmente citada, a R. contestou, invocando a incompetência territorial, por entender que o tribunal competente é o do domicilio da R., por aplicação do disposto no art. 71º, nº1 do CPC., o qual se situa em …. Alega também que o veículo foi vendido ao A. que analisou as suas características, inspecionou e experimentou a viatura, tendo a R. fornecido todas as informações solicitadas, estando a mesma em bom estado e em boas condições de funcionamento, compatível com a antiguidade e quilometragem. O veículo foi vendido ao A. com 398.000,00km, com 20 anos de idade, conforme consta da declaração de circulação que a R. entregou ao A., em 02.08.2021, pelo preço de € 4.500,00. Mais alega que, durante as negociações, o A. foi informado que o veículo automóvel tinha 398.000,00km e do estado geral do veículo, tendo este aceite realizar o contrato nessas condições e entrou na sua posse, sem quaisquer reservas. Apenas em 16 de Agosto de 2021 é que o A. veio pedir a resolução do contrato, o que a R. não aceitou considerando que não foi invocado qualquer defeito ou avaria do veículo automóvel, inexistindo assim qualquer fundamento legal para tal resolução contratual.
Entende também a R. que não há fundamento para o pedido de privação do uso porquanto o veículo estava em boas condições de funcionamento e circulação pelo que a invocada privação do uso apenas pode ser imputada ao próprio A.. Conclui, assim, pela improcedência da ação.
Notificado para se pronunciar sobre a matéria de excepção, o A. pronunciou-se pelo seu indeferimento, considerando que o lugar onde a obrigação deveria ser cumprida era o domicilio do A., que reside em Lisboa. O A. formulou ainda um pedido de condenação da R. como litigante de má-fé, em multa e indemnização, por negar factos que sabe serem verdade, além de alegar factos falsos com o intuito de entorpecer a justiça e eximir-se das suas obrigações.
Por sua vez, a R. contestou o pedido de condenação como litigante de má-fé, concluindo pela sua improcedência e formulou um pedido de condenação do A. como litigante de má-fé, por ter alegado factos falsos e alterado conscientemente a verdade dos mesmos, com o único intuito de prejudicar a R.. Pede assim que o A. seja condenado em multa e numa indemnização não inferior a € 5.000,00.
Notificado para se pronunciar, o A. conclui pela improcedência de tal pedido de condenação.
Realizado o julgamento foi proferida sentença que julgou parcialmente procedente a acção, com o seguinte dispositivo:
«a) Declara-se a resolução do contrato de compra e venda celebrado entre o A. S… e a R. A… E R…, LDA, relativamente ao veículo de matricula …, marca BMW, modelo 520 Touring 2.0 135 cv Pack M, condenando-se a R. a restituir ao A. a quantia de € 4.650,00 (quatro mil, seiscentos e cinquenta euros), mediante a entrega da viatura à R., por parte do A., quantia esta acrescida de juros de mora, a contar da data da citação até integral pagamento.
b) Absolve-se a R. do demais peticionado.
c) Julgam-se improcedentes o pedido de condenação do A. e da R. como litigante de má-fé, respectivamente.»
Inconformado veio o Autor recorrer, concluindo que:
«IV.I – da Impugnação da factualidade provada
IV.I.I – Ponto 1 da factualidade não provada
1. No ponto 1 da factualidade não provada foi dado por não assente que “A viatura encontra-se aparcada na via pública junto da residência do A. e implica despesas com o estacionamento, existindo uma maior probabilidade de sofrer danos provocados por terceiros e que o A. não tem forma de impedir”;
2. Contudo, resulta da missiva remetida pelo Recorrente à Recorrida em 16/08/2021 - junta como doc. 5 da PI – que, pelo menos até aquela data a viatura se encontrava aparcada na morada ali indicada, isto é, na via pública, junto à residência daquele;
3. Resulta ainda dos registos fotográficos juntos pelo Recorrente no seu requerimento de 20/01/2022 que também nessa data a viatura ainda ali se encontrava aparcada;
4. Nessa medida, tais elementos probatórios permitem concluir que, pelo menos até 20/01/2022 a viatura se encontrou aparcada na via pública, junto à residência do Recorrente;
5. Quanto às despesas decorrentes desse aparcamento e da probabilidade de ocorrência de danos, trata-se de factualidade que, conforme decorre do disposto no art. 412º do CPC, sendo do conhecimento geral, não carece de prova;
6. Nessa medida, enquanto factos notórios que são, deveriam sempre ter-se como provados;
7. Assim, face à prova produzida, a matéria constante do ponto 1 da factualidade não provada deverá ser dada como provada, com a seguinte redacção:
“Até 20/01/2022 a viatura encontrava-se aparcada na via pública junta da residência do A. o que implicou despesas com estacionamento, existindo uma maior probabilidade de
sofrer danos provocados por terceiros que o A. não tinha forma de impedir”.
IV.I.II – Ponto 2 da factualidade não provada
8. No ponto 2 da factualidade não provada entendeu dar como não assente que “Foi para fazer face a tais deslocações que o A. Adquiriu a viatura referida nos presentes autos (art. 38º da petição inicial)”;
9. Tal factualidade está em manifesta contradição com aquela que o Tribunal a quo deu como assente no ponto 23 da factualidade provada, onde reconhece que “o A. exerce a profissão de músico, necessitando de um carro para se deslocar, para o exercício da sua profissão”;
10. Considerando o evidente paralelismo entre uma e outra factualidade, não se poderá nunca ter uma como assente enquanto se dá outra como não provada.
11. Em face disto, considerando a decisão transposta para o ponto 23 da factualidade provada, deverá igualmente ser dado como provada a matéria dada por não assente no ponto 2 dos factos não provados;
IV.I.III – Ponto 3 da factualidade não provada
12. Foi julgado como não provado (ponto 3 dessa factualidade) que “o A. tem necessidade
de recorrer ao aluguer de viaturas ou transportes públicos para fazer as deslocações que necessita não só na sua profissão como do dia-a-dia”;
13. Ora, na senda do que acima já se disse a respeito do ponto 1 da factualidade não provada, tendo sido julgado como provado que a viatura ficou aparcada, também estes factos aqui dados como não provados configuram factos notórios nos termos do disposto no art. 412º do CPC, que deveriam ter sido julgados como provados;
IV.I.IV – Do ponto 4 da factualidade não provada
14. No ponto 4 da factualidade não provada deu o Tribunal a quo como não assente que “o A. fez uma pesquisa pelo custo mensal do aluguer de uma viatura e verificou que o preço mais barato para a viatura mais barata é de € 583,93, correspondente a um custo mínimo diário de € 19,46 (arts. 41º e 42º da petição inicial”;
15. Contudo, tal factualidade resulta clara do doc. 11 junto com a PI – o que, só por si,
impunha que estes factos fossem julgados como provados;
16. Documento este que, apesar de impugnado, não tem qualquer característica que ponha em causa a sua credibilidade;
17. Acresce que tal documento configura um print do site www.rentalcars.com, possibilitando a sua consulta por qualquer interessado e a confirmação da informação que dele decorre no que ao preço do aluguer de viaturas diz respeito;
18. Por fim, resulta do conhecimento comum que o aluguer mensal de uma viatura importa o pagamento de valores semelhantes aqueles constantes do referido documento;
19. Em face do exposto, e por força do doc. 11 junto com a PI, impõe-se que a factualidade constante do ponto 4 da factualidade não provada seja julgada como provada;
IV.II – Da decisão de Direito
20. Sem prescindir da requerida alteração do julgamento da matéria de facto, como se passará a demonstrar, a factualidade provada impunha um diferente julgamento da causa;
IV.II.I – Da restituição do preço condicionada à restituição da viatura
21. A sentença recorrida, apesar de ter reconhecido a resolução do contrato, condicionou a obrigação da Ré restituir o preço à restituição da viatura;
22. Ora, do disposto no art. 289º do CC, aplicável por força do disposto no art. 433º do mesmo diploma, decorre que a obrigação de restituição do que houver sido prestado é uma obrigação simultânea;
23. Não existe no ordenamento jurídico qualquer norma que determine que, no caso da resolução do contrato de compra e venda, a restituição do objecto da compra e venda deve preceder a devolução do preço ou esta última ficar condicionada à primeira, pelo que ao decidir como decidiu o Tribunal a quo violou o disposto nos arts. arts. 433º e 289º do CC;
24. Além de ilegal esta decisão do Tribunal a quo, afigura-se materialmente injusta, na medida em que penaliza a parte honesta e já lesada, obrigando-a a cumprir primeiro, enquanto beneficia a parte incumpridora, que é assim injustificadamente premiada;
25. In casu acresce que, conforme reconhecido pela sentença recorrida (pontos 20 e 21 da factualidade provada) o Recorrente tentou cumprir com a obrigação de entrega da viatura, tendo essa entrega sido recusada pela Recorrida (ponto 22 da factualidade provada).
26. Desta forma, quanto à obrigação de restituição da viatura, a ali credora dessa obrigação (ora Recorrida) constituiu-se em mora nos termos do disposto no art. 813º do CC;
27. Pelo que menos sentido faz estabelecer uma condição que, além de ilegal, apenas ainda não foi concretizada por manifesta mora do credor;
28. A tudo isto soma-se uma questão superveniente que se prende com a impossibilidade objectiva do Recorrente concretizar a entrega da viatura (sem que tal lhe possa ser imputável);
29. Face à sentença o Recorrente procurou obter informações sobre o paradeiro da viatura, tendo sido informado pela Polícia Municipal de Lisboa, por email de 11/12/2024, que a viatura havia sido removida por estacionamento irregular e, não tendo sido levantada pelo proprietário – a Recorrida – foi objecto de um processo de apropriação pela Câmara Municipal de Lisboa e, após, enviada para abate (anexando a esse email o respectivo certificado do abate);
30. Email e anexo esse que, pelos motivos expostos, requer a junção nos termos do disposto nos arts. 651º e 425º do CPC;
31. Daqui se terá de concluir, em face desta impossibilidade objectiva superveniente (cujo risco corre por conta da Recorrida credora nos termos do disposto no art. 815º do CC), que das obrigações decorrentes da resolução contratual, apenas subsiste a obrigação da Recorrida restituir a quantia recebida, sem que a mesma se encontre sujeita a qualquer condição prévia, seja de que natureza for;
32. Face ao supra exposto, verifica-se que, ao condicionar a restituição do preço à restituição da viatura, a sentença recorrida violou o disposto no art. 289º, 433º, 814º e 815º do CC;
33. Tal facto deverá levar à anulação da sentença recorrida e à sua substituição por outra que verifique e declare a resolução do contrato de compra e venda celebrado entre as partes e a determinar, sem mais, a restituição de tudo quanto foi prestado, acrescido de juros de mora contados desde a data da resolução;
IV.II.II – Da indemnização pela privação do uso
34. Entendeu o Tribunal a quo que, apesar de o Recorrente ter direito à indemnização dos danos pela privação do uso da viatura nos termos do disposto no art. 12º da Lei nº 24/96, não lhe poderia atribuir qualquer indemnização porquanto: o Não fez prova dos danos concretos do não uso da viatura; e o Não tinha direito a esta indemnização pois não se provou que a viatura tinha um defeito que a impedisse de circular e que o Autor não circulou com a mesma por sua opção.
35. Quanto à prova dos danos conforme decorre da factualidade provada, o Autor alocou a quantia aqui em causa para a aquisição da viatura (conforme pontos 11 e 13 da factualidade provada) e que o fez por se tratar de um bem essencial ao exercício da sua profissão (cfr. ponto 23 da factualidade provada);
36. Conforme decorre do que se irá alegar nas conclusões seguintes, com a resolução do contrato estava o Autor impedido de usar a viatura, porquanto esta não era sua;
37. A isto acresce que, face à recusa em restituir o preço pago (ponto 22 da factualidade
provada), ficou o Autor impossibilitado de usar tal montante para a aquisição de outra viatura;
38. Ora, tal factualidade é suficiente para concluir que o Autor ficou impossibilitado de usar a viatura;
39. A isto acresce que, como é unanimemente reconhecido jurisprudencial e doutrinalmente, a compensação pelo dano de privação do uso não está dependente da alegação e prova de um prejuízo concreto;
40. Ao lesado basta demonstrar – como fez o Autor – que com a conduta da Recorrida ficou impossibilitado de utilizar a viatura (assim como de dispor da quantia para adquirir outra de características idênticas);
41. Tendo ainda logrado demonstrar necessitar da viatura para o exercício da sua actividade (cfr ponto 23 da factualidade provada);
42. Tão pouco lhe era exigível que tivesse concretizado e provado o valor desse aluguer, porquanto, por força do disposto no art. 566º, nº 3 do CC, independentemente da prova do valor do aluguer da viatura, o valor do não uso sempre deveria ser calculado de acordo com critérios de equidade;
43. Por outro lado, quanto ao entendimento sufragado pela sentença recorrida, que o facto da viatura estar em condições de funcionamento permitia o Autor utilizá-la, como se demonstrará, tal entendimento está manifestamente errado;
44. Isto porque, com a resolução do contrato de compra e venda, nos termos do disposto no art. 289º, nº 1 do CC, aplicável por força do disposto no art. 433º, o Recorrente não era proprietário da viatura;
45. Não sendo seu proprietário, por força do disposto no art. 1305º do CC, não tinha o Recorrente qualquer legitimidade legal para usar a referida viatura;
46. Nesta medida, verifica-se que, contrariamente ao exposto pelo Tribunal a quo o Recorrente não usou a viatura pois estava legalmente impedido de a usar e não por qualquer opção sua;
47. A isto acresce que a utilização da viatura, sem qualquer título que o legitime, poderia importar a sua responsabilidade civil, responsabilidade criminal e poderia ainda importar a improcedência da presente acção por essa utilização culminar numa manifesta situação de abuso de direito;
48. Face ao supra exposto, verifica-se que a sentença recorrida violou do disposto no art. 12º da Lei nº 24/96 e nos arts. art. 289º, nº 1, 566º, nº 3 e 1305º do CC, pelo que deve a mesma ser revogada e substituída por outra que condene a Ré/Recorrida no pagamento dos danos peticionados;
IV.II.III – Da litigância de má-fé
49. Entendeu o Tribunal a quo absolver a Ré do pedido de condenação como litigante de má-fé, porquanto entendeu que esta apenas exerceu os direitos de defesa que lhe assistiam;
50. Contudo, não pode o Recorrente conformar-se com tal entendimento porquanto o caso sub judice é um caso paradigmático do preenchimento do disposto no 542º, nº 2, a) e b) do CPC;
51. Isto porque, a Recorrida assenta toda a sua defesa na tese de que o Recorrente analisou e experimentou o carro, assim como que foi expressamente informado que o mesmo tinha 398.000km (arts. 24º, 30º e 31º da contestação);
52. Procurando desta forma dizer que não houve qualquer desconformidade ou que, existindo, o Recorrente foi informado da mesma ainda antes da conclusão do negócio – o que, a verificar-se, invalidaria a resolução do negócio e a necessária improcedência da acção;
53. Da análise da prova produzida resulta evidente que a Recorrida mentiu ostensiva e intencionalmente;
54. Foi inequívoca e documentalmente comprovado (com particular enfoque no doc. 4 junto com a PI) que esta versão da Recorrida se tratava de uma mentira descarada, com o único intento de enganar o Tribunal e procurar obstar à procedência da acção;
55. Mentira essa que o próprio Tribunal reconheceu;
56. Reconhecimento que decorre da própria decisão de facto, ao dar como não provada toda essa factualidade (ao mesmo tempo que julgou provada a versão do Recorrente, diametralmente oposta);
57. Como decorre da própria fundamentação da sentença, onde expressamente declara que a versão da Recorrida não merece credibilidade, seja por ser conflituante com a prova produzida, seja por se mostrar em frontal colisão com as mais elementares regras da lógica e da experiência, ficando evidenciado que a Ré, de forma deliberada mentiu ao Tribunal;
58. Falsidade esta que, conforme é evidente carretou custos quer para o Autor como para o Tribunal, que teve de despender tempo e recursos a produzir prova sobre factos que a Ré sabia serem falsos;
59. Nesta medida, até para o correcto funcionamento dos Tribunais e no sentido de desincentivar este tipo de litigância, não pode a parte deixar de ser sancionada através da condenação como litigante de má-fé;
60. Face ao supra alegado, não podemos deixar de concluir que a conduta da Ré se insere na previsão constante das alíneas a) e b) do nº 2 do art. 542º do CPC, impondo-se assim a condenação da Recorrida como litigante de má-fé e, nessa decorrência no pagamento de uma indemnização ao Recorrente, a fixar nos termos do disposto no art. 543º do CPC;
61. Ao decidir como decidiu o tribunal a quo violou as normas dos artigos 289º, 376º, 433º, 566º, nº 3 , 813º, 814º, 815º e 1305º do CC, artigo 12º da Lei nº 24/96 e dos artigos 412º, 542º, nº 2 als. a) e b), 543º e 607º, nº 5 do CPC.
Nestes termos,
Deve o presente recurso ser julgado provado e procedente, anulando-se a sentença recorrida e substituindo-se esta por outra que:
a) Altere a factualidade nos termos acima impugnados;
b) Admita a junção dos documentos juntos ao abrigo do disposto nos arts. 651º e 425º do CPC.
c) Declare a resolução do contrato celebrado entre as partes e condene a Recorrida, sem qualquer condição, na restituição da quantia recebida acrescida de juros de mora;
d) Condene a Recorrida no pagamento de indemnização pelo dano da privação do uso;
e) Condene a Recorrida como litigante de má-fé e, nessa decorrência, a pagar ao Recorrente indemnização a calcular nos termos do disposto no art. 543º do CPC.
Também a ré recorreu, concluindo que:
«1ª – A Recorrente não pode conformar-se com a douta Sentença proferida pelo Tribunal “a quo”, na parte, em que deu como parcialmente procedente a ação e declarou a resolução do contrato de compra e venda do veículo automóvel, ocorrido no dia 23-07-2021 entre as partes (A. e Ré).
2ª – No modesto entender da Recorrente, a fundamentação da douta Sentença, não avaliou adequadamente a prova produzida, quer a documental, quer a testemunhal, o que configura erro de julgamento, não tendo retirado as devidas consequências.
3ª – Interpõe-se o presente Recurso de Apelação da Sentença proferida a fls…, sendo que o objeto do Recurso é impugnação da Matéria de Facto e de Direito, sendo que a mesma é, salvo o devido respeito, deficiente na sua fundamentação, está ferida de nulidade e também porque a mesma traduz errónea e deficiente interpretação e aplicação da Lei ao caso dos autos, ofendendo os mais elementares princípios de Justiça.
4ª – A ora Recorrente, não se conforma com a Sentença proferida e aqui posta em crise, desde logo, porque, salvo o devido respeito, a mesma se baseou uma errónea apreciação da prova, contém contradições entre os factos provados (entre estes e os não provados), por deficiente fundamentação e também a mesma traduz uma deficiente interpretação e aplicação da Lei.
5ª – O Tribunal recorrido não considerou, nem valorou o depoimento das testemunhas, nem do Legal Representante da Ré, os quais, conjugados com a restante prova documental constante dos autos, são de molde a alterar os factos dados como provados, sendo que, os factos não provados, aqueles que foram alegados na Contestação da Ré, devem ser elevados à categoria de provados.
6ª – O Tribunal recorrido formou a sua convicção no depoimento da testemunha da Ré ( D…), no entanto, atendeu o tribunal “a quo” apenas a determinadas partes das declarações desta testemunha, tendo declarado que não merecia credibilidade o depoimento da mesma testemunha em relação aos factos 7; 8 e 9 que consequentemente o tribunal “a quo” deu como não provados.
7ª – O tribunal “a quo” apenas atribui credibilidade às declarações da Testemunha da Ré (D…) na parte em que as mesmas eram favoráveis ao Autor, não tendo atribuído qualquer credibilidade às declarações da mesma testemunha quando as mesmas eram favoráveis à Ré, o que, desde logo, viola o princípio da igualdade, mediação, oralidade, reciprocidade e da livre apreciação da prova, que deve ser fundamentada de molde a ser compreendida pelo Homem Médio, “bónus pater familiae” e suscetível de reapreciação pelo Tribunal “ad quem”.
8ª – Salvo o devido respeito, o tribunal recorrido, não fundamentou de forma suficiente, o motivo pelo qual apenas valorou as declarações, como isentas e imparciais referentes a determinados factos e não atribuiu credibilidade ao depoimento da mesma testemunha ( D…) em relação aos factos 7; 8 e 9, tendo o tribunal “a quo” fundamentado que se baseava “nas regras da experiência comum”, concluindo assim que essa parte das declarações não mereciam credibilidade.
9ª – Ao contrário da douta Sentença recorrida, resulta das regras de experiência comum que quando determinada pessoa tem a intenção de comprar um veículo automóvel usado, a mesma desloca-se até ao local onde se encontra o veículo automóvel, de modo a visualizar presencialmente e experimentar o veículo automóvel, por forma a detetar se o veículo tem algum defeito de funcionamento/ estético e/ou mecânico que não seja do conhecimento do comprador, e por fim fazer um juízo sobre se, naquele estado de uso e conservação, mantém o interesse no veículo e o pretende comprar, ou se pelo contrário não mantém o interesse naquele veículo e por esse motivo não pretende comprar o mesmo.
10ª- Trata-se de um veículo automóvel, um bem de um valor económico considerável, com bastante uso, pelo menos o uso inerente à sua utilização/antiguidade e quilometragem percorrida, por isso, resulta das regras da experiência comum que o comprador de um veículo automóvel usado pretenda, antes de proceder à compra definitiva do veículo, visualizar e experimentar e negociar presencialmente o mesmo, tudo ao contrário do constante da Sentença recorrida, pois, apesar da testemunha da Ré e do Legal Representante da mesma, confirmarem que nas negociações prévias à aquisição, o A. visualizou presencialmente e experimentou o veículo automóvel, negociando o preço, tal prova, foi pelo Tribunal “a quo” desconsiderada, em detrimento da Ré, apenas servindo para a prova dos factos alegados pelo A.
11ª – Já pelo contrário na nossa modesta opinião, não nos parece provável que uma pessoa interessada em comprar determinado veículo automóvel usado, como foi o caso do A., realize a compra do veículo sem se deslocar até ao Stand onde o veículo se encontra, por forma a poder visualizar e experimentar presencialmente este, não se trata da compra de um veículo novo, com 0 (zero) quilómetros, no qual já se sabe que, em principio, o veículo
não irá padecer de qualquer defeito de funcionamento, estético e/ ou mecânico.
12ª – Na nossa modesta opinião, não cuidou o tribunal recorrido de fundamentar suficientemente a sua decisão de apenas atribuir credibilidade a parte das declarações da testemunha D…, e por outro lado também não fundamenta suficientemente, o tribunal “a quo”, o motivo pelo qual não atribuiu credibilidade às declarações da mesma testemunha, mas agora na parte em que estas seriam favoráveis à Ré, provando os factos alegados em sede de Contestação.
13ª – Ora , a prova testemunhal deve ser analisada em conjunto com a prova documental e pericial constante dos autos, de forma livre, objectiva e imparcial, mas sempre fundamentada e com base nas regras da experiência comum, e de acordo com a livre convicção do Juiz, uma livre convicção que não pode ser arbitrária, nem subjetiva e, por isso, deve ser motivada e suscetível de apreciação superior.
14ª – Da prova documental junta aos autos, pelo Autor consta uma alegada captura de ecrã, na qual se pode visualizar um anúncio, no site “Standvirtual” no qual consta anunciado o alegado veículo automóvel, alegando o A. na sua Petição Inicial que foi este anúncio que visualizou, tendo juntado a captura de ecrã como sendo o doc. nº3 junto com a sua Petição Inicial.
15ª – Na referida captura de ecrã, é possível verificar-se no canto superior esquerdo do mencionado doc. nº3 junto com a Petição Inicial que o veículo presente nesse anúncio está anunciado pelo valor de 4.460,00€ ( quatro mil quatrocentos e sessenta euros).
16ª – A testemunha arrolada pela Ré (D...), nas suas declarações, assim como o próprio Autor, na sua petição inicial, afirmaram que o Autor negociou o preço, com a Ré, tendo a Ré aceite reduzir o preço do veículo automóvel.
17ª – No artigo 10º da Petição Inicial o Autor afirma ter adquirido a viatura pelo valor de 4.500,00€ ( quatro mil e quinhentos euros).
18ª – O facto do alegado veículo constar no doc. nº3, junto com a Petição Inicial, anunciado pelo valor de 4.460,00€, afirmando o Autor, que após negociações com a Ré, aceitou pagar o preço de 4.500,00€ não se compatibiliza minimamente com as regras da experiência comum, pois ditam estas, que quando o A., como comprador, negoceia o preço de um veículo automóvel que se encontra anunciado, a negociação é sempre realizada no sentido de que o veículo seja adquirido por um valor inferior ao valor pelo qual estaria anunciada a venda, sendo que no caso sub judice, segundo a tese do A., sucedeu exatamente o contrário, ou seja, o alegado veículo estava anunciado por 4.460,00€ e após o Autor ter negociado o valor deste com a Ré, o valor do veículo não só não desceu, pelo contrário ainda aumentou para 4.500,00€ e o A. aceitou esse preço, superior ao anúncio.
19ª – Assim sendo, a única justificação possível desta desconformidade é que o A. laborou em lapso, relativamente ao veículo automóvel que visualizou no anúncio e o veículo automóvel que o mesmo visualizou presencialmente e experimentou no Stand da Ré (e este sim, foi o veículo efectivamente transacionado entre as partes), só esse lapso ou confusão podem justificar o facto do mesmo, após negociações ter pago um preço superior ao valor pelo qual o veículo estava anunciado, o que se coaduna com a tese do A., de ter negociado a redução do preço referente ao veículo que efetivamente adquiriu por 4.500,00 €.
20ª – Tal facto, apesar da sua relevância para a boa decisão da causa, não foi tido em conta pelo tribunal “a quo”, não se pronunciando o mesmo, na douta sentença, quando a este, omitindo pronúncia, quanto a tal facto relevante, o que leva à nulidade insanável da douta Sentença recorrida.
21ª - De acordo com a nossa melhor jurisprudência veja-se:“(…)I - Seja na selecção dos factos assentes, seja na selecção dos factos controvertidos, o juiz deve ter em conta todos os factos relevantes segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito e não apenas os factos que relevam para a solução da questão de direito que tem como aplicável.(…)” cfr. Acórdão do STJ, 18-12-2012, in www.dgsi.pt
22ª - Impugnam-se os factos provados nº 16 e 18, porque não corresponde à prova produzida.
23ª - Devem ser dados como provados os factos nº 7); nº 8); e nº 9), que o Tribunal “a quo” julgou como não provados, porquanto o Autor experimentou o veículo no stand da Ré, assim como também experimentou o mesmo no ato da entrega, tinha conhecimento por ter experimentado e visualizado previamente a viatura de que esta tinha 398.000 quilómetros, tendo sido com base nestes pressupostos que o Autor aceitou negociar e comprar à Ré o mencionado veículo.
24ª - Não podia, salvo o devido respeito, o Tribunal “a quo” ter dado como provado o factualismo constante dos factos nº 16 e nº 18, devendo tais factos ser elevados à categoria de não provados.
25ª – Decidiu a douta sentença de que ora se recorre: “(…) a) Declara-se a resolução do contrato de compra e venda celebrado entre o A. S… e a R. A… E R…, LDA, relativamente ao veículo de matricula …, marca BMW, modelo 520 Touring 2.0 135 cv Pack M, condenando-se a R. a restituir ao A. a quantia de € 4.650,00 (quatro mil, seiscentos e cinquenta euros), mediante a entrega da viatura à R., por parte do A., quantia esta acrescida de juros de mora, a contar da data da citação até integral pagamento. (…)”.
26ª- Sucede que tal como consta dos autos, o veículo automóvel em causa, durante o decorrer dos autos, enquanto estava em posse do Autor, tendo este a obrigação de o guardar e acondicionar, não o fez, deixou-o, segundo o A., ao abandono, imobilizado na via pública, tendo sido vandalizado, tendo inclusivamente sido incendiado, ficando carbonizado, sem qualquer utilidade económica, atenta a sua característica de perecível.
27ª - Assim sendo, além do veículo automóvel, na data da Sentença, não ter valor económico, não existe possibilidade do Autor restituir o veículo à Ré.
28ª - Sendo o negócio de compra e venda um negócio de prestações recíprocas, a resolução do mesmo também requer que as prestações recíprocas realizadas pelas partes, sejam reciprocamente, restituídas entre as partes, com efeitos retroativos à data da aquisição.
29ª- No presente caso, a Ré apenas poderia restituir ao Autor a quantia de 4.650,00€, quando o Autor também lhe restituísse o veículo automóvel, objeto dos presentes autos, sendo que este teria de ser restituído à Ré no mesmo estado em que lhe havia sido entregue por esta, ou seja, num estado de boa conservação, totalmente funcional e sem qualquer defeito, isto é, em circulação pelos seus próprios meios e em conformidade com o fim a que se destina.
30ª- Sucede que, à data da Sentença, conforme consta dos autos, o veículo objeto dos presentes autos, enquanto se encontrava na posse do Autor, foi vandalizado e inclusivamente incinerado, encontrando-se totalmente destruído e inutilizado, tendo um valor comercial nulo, sendo que a Ré, desconhece o paradeiro do veículo, desconhece se o mesmo já terá sido recolhido pela Câmara Municipal do Município onde se encontrava quando foi vandalizado e incinerado e/ ou se terá sido enviado para abate, desconhecendo o destino efetivo do veículo automóvel. Sendo certo que o A. deve entregar tal veículo automóvel à Ré, para a concretização da Resolução do Contrato de Compra e Venda.
31ª- Assim sendo, demonstra-se impossível a restituição em espécie por parte do Autor, porquanto o mesmo jamais conseguirá entregar à Ré o veículo automóvel no mesmo estado em que este lhe foi entregue pela Ré, aquando da concretização do negócio de compra e venda.
32ª- Mesmo que o Autor, por algum meio, conseguisse entregar à Ré, o que resta do mencionado veículo automóvel, que à data da Sentença se encontrava totalmente vandalizado, incinerado, e inutilizável, jamais se estaria a verificar a uma justa resolução do contrato porquanto não se iria verificar um verdadeiro retroagir das prestações reciprocas realizadas pelas parte aquando da celebração do negócio de compra e venda, pois, a Ré iria proceder à entrega do preço pago pelo Autor, mantendo a exata quantia e
qualidade da prestação realizada pelo Autor, no entanto, por outro lado, o Autor ao entregar à Ré o veículo automóvel, totalmente inoperacional, inutilizável, vandalizado e incinerado, sem circular pelos seus próprios meios, sem possibilidade de qualquer recuperação e/ou reparação, não estaria a entregar à Ré a exata prestação que havia sido realizada por esta, aquando da compra e venda do veículo automóvel, porquanto, o veículo automóvel ( se assim se poderá chamar ao que restasse do veículo), não tem um mínimo de equiparação tanto a nível de quantidade (pois faltam componentes do veículo que certamente terão sido furtados aquando da sua vandalização, não circulando e estando desconforme com o fim a que se destina), nem tem um mínimo de equiparação a nível
de qualidade (pois o veículo encontra-se vandalizado, incinerado, inutilizável e com um valor venal e comercial nulo) com a prestação (veículo automóvel, sem qualquer defeito estético e ou mecânico, totalmente operacional) que havia sido realizada pela Ré aquando da concretização do negócio de compra e venda com o Autor.
33ª - A resolução do contrato nos precisos termos constantes da douta sentença de que se recorre, seria extremamente e injustamente onerosa para a Ré, sendo que inclusivamente se iria verificar um enriquecimento sem causa por parte do Autor, porquanto o bem que este iria restituir à Ré, atualmente tem um valor comercial nulo, sendo que na altura da realização do negócio de compra e venda, o bem teria um valor comercial de 4.650,00€, ficando a Ré privada do bem e do valor económico correspondente, empobrecendo, na exata medida do enriquecimento sem causa e ilícito do A.
34ª - Assim sendo, procedendo agora o Autor à restituição à Ré do veículo automóvel, atualmente, sem valor comercial, porquanto totalmente destruído, vandalizado, incinerado e inutilizável, restituindo a Ré, por sua vez, ao Autor, o valor de 4.650,00€, que o Autor havia pago pelo veículo quando este estava em perfeitas condições de funcionamento e utilização e em conformidade com o fim a que se destinava, está patente nesta situação um Enriquecimento Sem Causa, nos termos do art. 473º do Código Civil, por parte do Autor, pois este iria enriquecer à custa da Ré, locupletando-se injustamente com o valor de 4.650,00€, empobrecendo a Ré, pelo menos, na mesma e exata medida.
Neste sentido e de acordo com a nossa jurisprudência, veja-se: “(…) 3. Em razão do referido em 4.2., e com fundamento no instituto do enriquecimento sem causa, pertinente é que, ao montante do preço a restituir pelo vendedor, seja descontado o valor objectivo do uso - pelo comprador – da coisa vendida e/ou desvalorização desta última, se necessário calculado com recurso ao princípio da equidade, e conforme o disposto no artigo 566º, nº 3, do Código Civil.(…)”, cfr. Acórdão do TRG, em 12-07-2016, in www.dgsi.pt.
35ª- Posto isto, não sendo possível a restituição em espécie por parte do Autor, por impossibilidade de restituir o veículo automóvel, deverá o mesmo proceder à restituição do valor equivalente em moeda corrente, isto é, o valor de 4.650,00 €.
36ª- Tendo a Ré de restituir ao Autor a quantia de 4.650,00€ (uma vez que foi o preço que o Autor pagou pelo veículo) e não conseguindo o Autor proceder à restituição em espécie do veículo automóvel à Ré, terá então o Autor de proceder à restituição do valor equivalente em moeda corrente, ou seja, terá o Autor de restituir à Ré o valor de 4.650,00€, sendo que neste caso tendo cada uma das partes de restituir à contraparte o mesmo valor estamos perante a figura da “Confusão” presente no art. 868º do Código Civil, sendo ambas as partes, e reciprocamente, Devedores e Credores, pelo que, deste modo ficam extintas as obrigações de restituição de ambas as partes.
Neste sentido e de acordo com a nossa melhor jurisprudência, veja-se: “(…) Consequentemente, resolvido o contrato deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente.(…)”, cfr. Acórdão do STJ, em 12-03-2009, in www.dgsi.pt .
Também neste sentido veja-se:
“(…) 4. A resolução tem efeito retroativo, devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente, e faz-se por declaração à outra parte – art.ºs 289.º/1, 432.º/1, 433.º e 436.º/1, todos do C. Civil.(…)”, cfr. Acórdão do TRE, em 17-12-2020, in www.dgsi.pt .
Ainda neste sentido veja-se:
“ (…) I. Declarado nulo um negócio as partes, na impossibilidade de restituição em espécie, estão obrigadas à restituição do equivalente em valor.(…)”, cfr. Acórdão do STJ, em 05-07-2007, in www.dgsi.pt .
De acordo com a nossa melhor jurisprudência e doutrina, veja-se também:
“(…) IV - Resolvido o contrato deve ser restituído tudo o que tiver sido prestado ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente. (…)”, cfr. Acórdão do TRE, 24-03-2022, in www.dgsi.pt .
37ª- Assim, e salvo o devido respeito, a douta Sentença recorrida padece de Nulidade insanável, por omissão de fundamentação, pois a matéria de facto provada, contraditória entre si, é insuficiente para a procedência da Ação, nos termos aí decididos.
38ª- Na nossa modesta opinião, a decisão recorrida está ferida de nulidade, aqui e ora tempestivamente arguida, nos termos do artºs 615, nº 1, als. b) e d), do C.P.C., por ter omitido Decisão, sobre questões de facto que urgia decidir, o que deve ser declarado com todos os efeitos legais e com todas as legais consequências.
39ª- Deve ser declarada nula, revogada a Decisão recorrida e substituída por outra que aprecie toda a prova, considerando que o veículo automóvel se encontrava em bom estado e boas condições de funcionamento e em conformidade com o fim a que se destinava (ressalvando o uso advindo da sua utilização, durante os anos que mesmo já detinha), considerando, ainda, que o Autor tinha perfeito conhecimento dos quilómetros do veículo que comprou e sua antiguidade e estado geral, e considerando também que a restituição do veículo automóvel, que estava na posse do A. (por falta de acondicionamento do mesmo, que alegadamente o abandonou, imobilizado na via pública), foi vandalizado, incinerado e inutilizado, demonstrando-se impossível a entrega à Ré, pelo que o cumprimento da sentença, seria extremamente oneroso para a Ré, e constituiria uma situação de Enriquecimento sem causa a favor do Autor.
40ª – Termos em que a Sentença recorrida deve ser revogada e substituída por outra que julgue a ação totalmente improcedente por não provada e absolva a Ré de todos os pedidos.
41ª – A Decisão recorrida, para além de outras normas e princípios, violou as disposições legais constantes dos artºs 640; 615; 620; 621; 692; 694 e 696, todos do C.P.C.».
A ré contra alegou, com as seguintes conclusões:
«1ª - O presente Recurso de Apelação interposto pelo Recorrente, da douta Sentença proferida nos autos, no dia 22/11/2024, por com a mesma não se ter conformado.
2ª - Elenca o Recorrente várias razões para a sua discordância com a composição material do litígio repercutida na Decisão, apresenta Conclusões que delimitam o objeto do Recurso.
3ª - Desde já se deixa expresso que, na nossa modesta opinião, não assiste qualquer razão ao Recorrente, devendo a decisão ser alterada, mas nos termos do alegado e requerido nas alegações de recurso apresentadas pela ora Recorrida.
4ª - Com efeito, não se vislumbra qualquer incorreção da douta decisão recorrida no sentido alegado pelo aqui Recorrente, sendo que desde já a Recorrida expressa adesão à sua fundamentação de facto e de Direito da Sentença, nas partes que não sejam contrárias à alegações de Recurso já produzidas pela ora Recorrida, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
5ª - Salvo o devido respeito, carece de razão o Recorrente, na sua Motivação.
6ª - Contrariamente ao alegado pelo Recorrente, bem andou o tribunal a quo ao considerar como não provado a factualidade descrita no ponto 1 da factualidade não provada.
7ª – O Recorrente não conseguiu provar tal factualidade, assim como não corresponderia à verdade a factualidade alegada, porquanto poderia e deveria o Recorrente ter diligenciado no sentido de impedir que o veículo permanecesse num estado de completo abandono, sujeito a ser vandalizado e inclusivamente incinerado, tal como veio a suceder, no entanto optou o Recorrente de livre vontade por não diligenciar neste sentido, sendo que as sequelas que se vieram a refletir no estado do veículo, que se encontra completamente inutilizável, são consequência direta da falta de diligência do Recorrente.
8ª – Também não conseguiu o Recorrente provar que o veículo estaria efetivamente aparcado na via pública junto da residência do A., e tão pouco logrou provar as alegadas despesas e/ou valor despendido com as mesmas, pelo que carece totalmente de razão o Recorrente ao alegar que a factualidade vertida no ponto 1 da factualidade não provada, deveria na verdade de ser dada como provada, mesmo que segundo a redação proposta pelo Recorrente.
9ª - O facto de ter sido dado como provado que o Recorrente exerce a profissão de músico e que necessitava efetivamente de um veículo para se deslocar, para o exercício da sua profissão, não impede que não seja dado como provado que foi exatamente para concretizar esse fim que o Recorrente adquiriu a viatura objeto dos presentes autos.
10ª - A verdade é que na nossa modesta opinião não conseguiu o Recorrente fazer prova bastante de que efetivamente o veículo que o mesmo adquiriu à Recorrida, teria como fim possibilitar a deslocação do mesmo no âmbito do exercício da sua profissão, como músico, tendo apenas logrado provar que o A. exercia esta profissão e que necessita de um carro para as suas deslocações no exercício desta profissão.
11ª - Poderia o Recorrente ter adquirido o mencionado veículo e utilizar o mesmo apenas para as suas viagens de lazer ao fim de semana, não o destinando às suas deslocações profissionais.
12ª - Assim sendo, na nossa modesta opinião, o simples facto do Recorrente necessitar de um veículo automóvel para as suas deslocações profissionais, não determina automaticamente que a compra do veículo automóvel objeto dos presentes autos tenha sido realizada com o propósito de utilizar o mesmo para tais deslocações, sendo necessário que o Recorrido tivesse provado tal ligação entre a necessidade e a compra, o que na nossa opinião não sucedeu.
13ª - Consideramos assim, que não existe qualquer contradição entre o ponto 2 da factualidade não provada e o ponto 23 da factualidade provada.
14ª - Alega o Recorrente que a factualidade vertida no Ponto 3 da factualidade não provada, também deveria de ser dado como provada, no entanto, mais uma vez, no nosso entender, tal alegação carece de razão porquanto pressupõe que seja dada como provada a factualidade vertida no ponto 1 da factualidade não provada constante da sentença, o que não sucedeu.
15ª – Alegou o Recorrente que a factualidade vertida no ponto 4 da factualidade não provada deveria de ser dada como provada.
16ª - Na nossa modesta opinião, carece de razão a alegação do arguido porquanto não se conhece a genuinidade do documento que o Recorrente juntou como prova, tendo também por esse motivo o mesmo sido impugnado pela aqui Recorrida.
17ª - Não é pela simples demonstração do alegado valor por dia de um carro de aluguer que se justifica se efetivamente o Recorrente despendeu desses valores, sendo para tal necessário a junção de comprovativos de pagamentos das alegadas despesas.
18ª - No que diz respeito à decisão de direito, mormente no que diz respeito ao facto do tribunal à quo, na douta sentença ter condicionado restituição da quantia paga à restituição do veículo automóvel objeto dos presentes autos, mais uma vez carece o Recorrente, de razão nas suas alegações.
19ª - No presente caso, a Recorrida apenas poderia restituir ao Recorrente a quantia de 4.650,00€, quando o Recorrente também lhe restituísse o veículo automóvel, objeto dos presentes autos, sendo que este teria de ser restituído à Recorrida no mesmo estado em que lhe havia sido entregue por esta, ou seja, num estado de boa conservação, totalmente
funcional e sem qualquer defeito, isto é, em conformidade com o fim a que se destina, isto é, em bom estado de funcionamento e circulação pelos seus próprios meios.
20ª - À data da prolação da Sentença recorrida, conforme consta dos autos, o referido veículo, enquanto se encontrava na posse do Recorrente, foi vandalizado e inclusivamente incinerado, encontrando-se totalmente inutilizado, tendo um valor venal nulo, sendo que a Recorrida, desconhece onde se encontrava imobilizado o veículo, quando foi vandalizado e incinerado, tendo agora o Recorrente, em sede de alegações informado que o mesmo já foi enviado para abate.
21ª - Demonstra-se impossível a restituição em espécie por parte do Recorrente, porquanto o mesmo jamais conseguirá entregar à Recorrida o veículo automóvel no mesmo estado em que este lhe foi entregue pela Recorrida, aquando da concretização do negócio de compra e venda.
22ª - A resolução do contrato nos precisos termos constantes da douta sentença de que se recorre, seria extremamente e injustamente onerosa para a Recorrida, sendo que inclusivamente se iria verificar um enriquecimento sem causa por parte do Recorrente, porquanto o bem que este iria restituir à Recorrida, atualmente tem um valor comercial e/ou venal nulo, sendo que na altura da realização do negócio de compra e venda, o bem teria um valor comercial de 4.650,00€.
23ª - Assim sendo, procedendo agora o Recorrente a restituir à Recorrida o veículo automóvel abatido, atualmente com um valor venal nulo, restituindo a Recorrida, por sua vez, ao Recorrente, o valor de 4.650,00€, que o Recorrente havia pago pelo veículo quando este estava em perfeitas condições mecânicas e estéticas, sem qualquer defeito que o impedisse de circular pelos seus próprios meios ou que lhe reduzisse o valor, patente está nesta situação um Enriquecimento Sem Causa, nos termos do art. 473º do Código Civil, por parte do Recorrente, pois este iria enriquecer à custa da Recorrida, locupletando-se injustamente do valor de 4.650,00€, porquanto, foi por falta de acondicionamento e de diligência por parte do Recorrente, que o veículo foi vandalizado e abatido.
24ª - Não sendo possível a restituição em espécie por parte do Recorrente (pois que inexiste o veículo automóvel), deverá o mesmo proceder à restituição do valor equivalente em moeda corrente.
25ª - Na impossibilidade do Recorrente restituir à Recorrida o veículo automóvel, no estado em que o mesmo se encontrava à data da aquisição, deve o Recorrente restituir o valor equivalente (4.650,00 €).
26ª - Tendo a Recorrida de restituir ao Recorrente a quantia de 4.650,00€ uma vez que foi o preço que o Recorrente pagou pelo veículo e não conseguindo o Recorrente proceder à restituição em espécie do veículo à Recorrida, terá então o Recorrente de proceder à restituição do valor equivalente em moeda corrente, ou seja, terá o Recorrente de restituir à Recorrida 4.650,00€, sendo que neste caso tendo cada uma das partes de restituir à contraparte o mesmo valor estamos perante a figura da “Confusão” presente no art. 868º do Código Civil, sendo ambas as partes Devedores e Credores, pelo deste modo ficam extintas as obrigações (crédito e débito) de restituição de ambas as partes.
27ª - Deve ser declarada nula, revogada a Decisão recorrida e substituída por outra que aprecie toda a prova e no final julgue a acção improcedente, por não provada, considerando que o Recorrente tinha conhecimento dos quilómetros do veículo que comprou, e que o mesmo se encontrava conforme ao fim a que se destinava, encontrando-se em perfeitas condições de funcionamento e utilização, e considerando também que a
restituição do veículo automóvel, tendo em conta que o mesmo se encontra vandalizado, incinerado e inutilizável, demonstra-se impossível, seria extremamente onerosa para a Recorrida, e constituiria uma situação de Enriquecimento sem causa favorável ao Recorrente.
28ª - Alega o Recorrente que a Recorrida deveria de ser condenada em litigância de má-fé, no entanto, na nossa modesta opinião, tais alegações são infundamentadas e por esse motivo carecem de razão.
29ª - Ao contrário do alegado pelo Recorrente, a Recorrida sempre cumpriu todos os princípios processuais, nomeadamente o de cooperação, de colaboração, de boa-fé processual e de respeito aos intervenientes processuais.
30ª - Em todos os articulados deduzidos pela Recorrida, assim como em todos os atos processuais, esta no exercício do seu direito alegou os factos, e expôs a sua versão dos mesmos, aduzindo as suas razões e argumentos e juntou documentos, sem nunca, agir com dolo, ou intenção manifestamente reprovável, ou com intenção de entorpecer a Justiça ou de eximir-se das suas obrigações, ou de alguma forma faltar à verdade.
31ª - A Recorrida, defende séria e convictamente o seu direito alegando os factos espelhados na Contestação, demais articulados e atos processuais.
32ª - Quem litiga de má-fé nos presentes autos, não é a Recorrida, mas sim o Recorrente, invertendo e omitindo deliberadamente a verdade dos factos que são do seu conhecimento pessoal, de modo a confundir os autos, entorpecer a ação da justiça e/ ou a impedir a descoberta da verdade.
33ª - A Recorrida sempre agiu de boa-fé, e no espírito de cumprimento da Lei, apenas pretende defender convicta e de forma séria a verdade dos factos espelhada na sua posição processual.
34ª - Salvo o devido respeito, não estão preenchidos, no âmbito dos autos, os pressupostos patentes no artº 543, do C.P.C.
35ª - A Recorrida não agiu com intenção de obter para si um benefício ilegítimo, esta defende séria e convictamente a verdade expressa nos seus articulados.
36ª - A Recorrida litiga de boa-fé, no respeito pela verdade e no cumprimento do dever de probidade e de cooperação, artºs 7 e 8, do C.P.C.
37ª - A Recorrida , conscientemente, não pretende convencer o Tribunal de um facto ou de uma pretensão que sabe ser ilegítima, distorcendo a realidade por si conhecida, nem nunca fez do processo um uso manifestamente reprovável ou deduziu pretensão, cuja falta de fundamento não devia ignorar.
38ª - Pelo que, não deverá a Recorrida, mas sim o Recorrente ser condenado em multa e indemnização a favor da Recorrida a ser fixada nos termos do preceituado no artº 543, do C.P.C. .
39ª - Os factos que o Recorrente alega nos seus articulados, são desprovidos de qualquer fundamento, conforme se pode aferir e comprovar não só da prova documental já junta, bem como da prova testemunhal arrolada e produzida, demonstrando atitude totalmente contrária aos ditames da boa-fé.
40ª - Assim, deverá o Recorrente ser condenada em multa e indemnização a favor da Recorrida, que a reembolse de todas as despesas e prejuízos que resultarem da presente lide, equitativa e judicialmente fixadas (artºs 542 e 543, do C.P.C.).
41ª – A decisão recorrida não viola os normativos legais indicados pelo Recorrente, nas suas conclusões, carecendo este de qualquer razão.
42ª- Salvo o devido respeito, por melhor e mais douta opinião, não assiste qualquer razão ao Recorrente, devendo o recurso ser julgado improcedente por não provado.
43ª- Sendo a decisão ser alterada, nos termos do alegado e requerido nas alegações de recurso apresentadas pela Ré/Recorrente e ora Recorrida, com a referência 50891994, datada de 02-01-2025, que por razões de economia processual, o seu teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
44ª- Deve ser Rejeitado este Recurso, nos termos suprarreferidos, ou, caso assim não se entenda, ser negado provimento ao presente Recurso, sendo alterada a douta sentença recorrida e substituída por outra nos termos requeridos no recurso interposto pela Ré e ora Recorrida.».
Admitidos os recursos neste tribunal e colhidos os vistos, cumpre decidir.
*
Questões a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Donde, as questões a apreciar e a decidir são as seguintes:
I. Aferir se deve ser considerada a junção de um documento apresentado em sede de recurso, considerando a factualidade que do mesmo resulta;
II. Aferir se do elenco dos factos contidos na sentença e a subsumir ao direito, deva ser considerado que:
a) A matéria contida nos pontos 1, 2, 3 e 4 dos factos não provados, figurem como provados, nos termos propugnados pelo A.
b) A matéria contida nos pontos 7, 8 e 9 dos factos não provados, passem a contar como factos provados, e dar como não provados os factos contidos nos pontos 16 e 18 do elenco dos factos provados.
c) Devam considerar-se factos que advém da junção de documentos juntos neste recurso.
III. Se é de considerar que face à resolução do contrato de compra e venda, ocorre ainda a impossibilidade objectiva de restituição do veículo por parte do A. e uma vez que o risco corre por conta da recorrida, ser apenas considerado que a ré deve ser condenada a restituir o valor pago pelo A., sem que esta condenação esteja subordinada à restituição do veículo;
IV. Decidir, face à factualidade provada, que é devido ao A. o valor indemnizatório decorrente da privação do uso do veículo, atenta a circunstância de o A. ter alocado o valor à aquisição do veículo à ré, ficando impossibilitado e o usar por força da resolução;
V. Decidir pela condenação da ré como litigante de má fé, dado não ter logrado provar que o A. analisou o veículo aferindo as características do mesmo, do que se conclui pela mentira ostensiva e intencional;
VI. Declarar a nulidade da sentença por omissão de pronúncia, quanto a factos essenciais para a decisão e decidir pela absolvição da ré com base nesses mesmos factos;
VII. Aferir e decidir que se verifica o enriquecimento sem causa do Autor, caso se conclua pela condenação da ré a restituir o valor do veículo, dada a impossibilidade de restituição do veículo pelo Autor, ou concluir pela confusão de ambas as prestações, dado coincidindo o valor a restituir pela ré com o valor do veículo a ser pago pelo Autor.
*
II. Fundamentação:
No Tribunal recorrido foram considerados provados os seguintes Factos:
1. A R. tem o NIPC … e é uma sociedade comercial que tem como objecto social o comércio a retalho, reparação, lavagem de automóveis usados, entre outros (art. 1º da petição inicial e arts. 15º e 17º da contestação).
2. No exercício da sua atividade de compra e venda de automóveis, a R. usa o nome comercial de “R…” (art. 2º da petição inicial e art.18º da contestação).
3. O A., em Julho de 2021, viu no site standvirtual.com um anúncio, no qual a R. publicitava a venda de uma viatura, no estado de usada, de marca BMW, modelo 520 Touring 2.0 135 cv Pack M (art. 3º da petição inicial).
4. O veículo indicado no anúncio indicado no Facto Provado 3. tinha a matrícula …(art. 4º da petição inicial).
5. No referido anúncio era indicado que a viatura tinha 238.000 km (art. 5º da petição inicial).
6. Tendo interesse em adquirir a referida viatura nas condições supra referidas, o A. entrou em contacto com a R. (art. 6º da petição inicial).
7. Por indicação da Ré, os detalhes do negócio foram acordados no dia 23/07/2021, através da aplicação Whatsapp e do número …, número este que se encontra publicitado no site da R. (www…..pt) como um dos números de contato (arts. 7º e 8º da petição inicial).
8. O A. questionou a R. sobre os detalhes da viatura, tendo a R. expressamente confirmado que “as informações são as que estão no anúncio” (art. 9º da petição inicial).
9. Face a tal informação, o A. aceitou adquirir a viatura pelo preço de € 4.500,00 (art. 10º da petição inicial).
10. O A. e a R. acordaram que, pelo montante de € 100,00, a viatura seria entregue na morada do A. dentro de 2 dias (art. 11º da petição inicial).
11. Nos termos acordados, no dia 23.07.2021, o A. procedeu ao pagamento de metade do valor do preço da viatura e do serviço de entrega, no montante global de € 2.325,00, através de transferência bancária para a conta com o IBAN PT…, indicada pela R. (art. 12º da petição inicial).
12. Face a este documento, a R. enviou ao A. um documento que denominou “Declaração de Reserva” (art. 13º da petição inicial).
13. No dia 26.07.2021, o A. procedeu ao pagamento do remanescente do preço, no montante de € 2.325,00, através de transferência para a conta com o IBAN PT…, indicada pela R. (art. 14º da petição inicial).
14. Após vários adiamentos por parte da R., a viatura foi entregue ao A. no dia 04/08/2021 (art. 15º da petição inicial).
15. Contrariamente ao acordado a transportadora contratada pela R. não entregou a viatura no dia 04/07/2021 no domicílio do Autor, tendo este recolhido a mesma no Mercado Abastecedor de Lisboa (art. 16º da petição inicial).
16. Quando o A. recebeu a viatura verificou que o conta-quilómetros marcava que a viatura já tinha andado 399.935 km e não os 238.000 km anunciado (art. 17º da petição inicial).
17. Face a esta desconformidade o A. não assinou os documentos para o registo da transferência da propriedade que acompanhavam a viatura e contactou a R., tendo trocado mensagens pelo whatsapp, tendo informado a R. que para si era inaceitável que a viatura tivesse quase o dobro da quilometragem indicada no anúncio (arts. 18º, 19º, 20º e 21º da petição inicial).
18. A R. respondeu afirmando que tinha sido cometido um erro no anúncio e, como forma de compensar o A. propôs que este aceitasse uma estadia de cinco noites no Algarve ou Madeira, proposta esta que o A. não aceitou (arts. 22º e 23º da petição inicial).
19. A quilometragem é importante para aferir do estado de uma viatura usada e dos seus componentes, uma vez que é o um dos indicadores da sua utilização (art. 24º da petição inicial).
20. Face à desconformidade apresentada pela viatura, o A., em 16.08.2021 enviou à R. carta registada com aviso de receção que esta recebeu no dia 17.07.2021, tendo declarado que não mantinha interesse na aquisição da viatura nas condições em que lhe foi entregue e que declarava resolvido o contrato de compra e venda da viatura, com efeitos imediatos (art. 27º da petição inicial).
21. Nessa carta, o A. indicava ainda onde a viatura poderia ser recolhida e os dados da conta para a qual deveria ser devolvido o preço pago (art. 28º da petição inicial).
22. Em resposta a esta carta, a R. enviou uma carta ao A., datada de 18.08.2021, na qual se recusou a receber a viatura e devolver o preço (art. 29º da petição inicial).
23. O A. exerce a profissão de músico, necessitando de um carro para se deslocar, para o exercício da sua profissão (arts. 35º, 36º, 37º da petição inicial).
23ª) Foi para fazer face a tais deslocações que o A. adquiriu a viatura referida nos presentes autos. * Aditado nesta decisão
24. O veiculo automóvel 01-75-RH teve a sua primeira matrícula em Março de 2001, matrícula essa que se encontra cancelada desde 20.09.2022 (art. 25º da contestação e Certidão do Registo Automóvel junta aos autos, em 24.06.2024).
25. No dia 18 de Agosto de 2021, por carta registada com aviso de receção, a R. informou o A. que não aceitava o pedido de resolução porque o veículo automóvel entregue estava em conformidade com as negociações e estava em boas condições de funcionamento (art. 42º da contestação).
26. O veículo foi vendido com a inspeção técnica periódica, sem anotação de qualquer anomalia (art. 74º da contestação).
*Aditados nesta decisão:
27. A viatura em causa após a entrega ao Autor foi aparcada na via pública, junto da residência do Autor, e em data não apurada, foi removida pela Camara Municipal de Lisboa, por estacionamento irregular, tendo tal entidade informado que: “o veículo não foi levantado pelo proprietário, decorreu o processo de apropriação pela Camara de Lisboa e após conclusão do processo foi o veículo abatido”;
28. Do certificado de veículo em fim de vida, certificou-se o abate do veículo a 20/09/2022.
29. O veículo de matrícula …, com cancelamento registado desde 20/09/2022, tinha como proprietário registado anterior ao cancelamento “A… e R…, Lda”.
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Não se provaram os seguintes factos:
1. A viatura encontra-se aparcada na via pública junto da residência do A. e implica despesas com o estacionamento, existindo uma maior probabilidade de sofrer danos provocados por terceiros e que o A. não tem forma de impedir (arts. 32º e 33º da petição inicial).*Eliminado nesta decisão
2. Foi para fazer face a tais deslocações que o A. adquiriu a viatura referida nos presentes autos (art. 38º da petição inicial).
3. O A. tem necessidade de recorrer ao aluguer de viaturas ou a transportes públicos para fazer as deslocações que necessita não só na sua profissão como do dia-a-dia (art. 40º da petição inicial).
4. O A. fez uma pesquisa pelo custo mensal do aluguer de uma viatura e verificou que o preço mais barato para a viatura mais barata é de € 583,93, correspondente a um custo mínimo diário de € 19,46 (arts. 41º e 42º da petição inicial).
5. O A. teve de suportar o custo de deslocação ao MARL para recolher a viatura, no montante de € 20,64 (art. 43º da petição inicial).
6. Até ao momento, o A. teve de suportar custos com o estacionamento da viatura dos autos, na via pública, junto à sua habitação, no montante global de € 72,66 (art. 44º da petição inicial).
7. O A. experimentou o veículo …(art. 24º, parte inicial da contestação).
8. O A. foi informado, durante as negociações que o veículo automóvel tinha 398.000,00 km e este aceitou realizar o contrato nessas condições (arts. 30º e 31º da contestação).
9. O A. sempre teve conhecimento dos quilómetros que o veículo tinha e do seu estado geral de usado e foi com base nesses pressupostos que foi fixado o preço (art. 37º da contestação).
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Da junção do documento:
Em sede de recurso juntou o Autor dois documentos que permitem aferir do local e estado do veículo objecto do contrato em causa nos autos, pedindo a sua junção e a consideração do que dos mesmos resulta, ou seja, que o veículo foi removido pela entidade camarária e vai ser objecto de abate ou destruição, concluindo assim, pela impossibilidade de restituição do mesmo.
Solicita, assim, a junção ao abrigo do disposto nos artç 651º e 425º ambos do Código de Processo Civil.
Apreciando.
Estabelece o artº 651.º do CPC que:
“1 - As partes apenas podem juntar documentos às alegações nas situações excecionais a que se refere o artigo 425.º ou no caso de a junção se ter tornado necessária em virtude do julgamento proferido na 1.ª instância.
2 - As partes podem juntar pareceres de jurisconsultos até ao início do prazo para a elaboração do projeto de acórdão”.
Por seu turno, o art. 425.º do CPC estabelece: “Depois do encerramento da discussão só são admitidos, no caso de recurso, os documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”.
Quanto ao sentido da expressão legal “documentos cuja apresentação não tenha sido possível até àquele momento”, explicam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, que, ultrapassado o limite temporal do n.º 2 do art. 423.º, “apenas são admitidos documentos não tenha sido possível, atenta a verificação de um impedimento que não pôde ser ultrapassado em devido tempo, ou quando se trate de documentos objetiva ou subjetivamente supervenientes, isto é, que apenas foram produzidos ou vieram ao conhecimento da parte depois daquele momento.” ( in “Código de Processo Civil Anotado, vol I”, pág. 499).
Paulo Ramos de Faria e Ana Luísa Loureiro precisam que “atualmente, na norma de dilação prevista no nº 3, esse impedimento (que se prolongou para além do prazo previsto no nº 2) apenas legitima a apresentação imediata, logo que cesse a impossibilidade de apresentação, não podendo a parte aguardar pelo derradeiro momento pressuposto pela norma de dilação – o encerramento da discussão em primeira instância (art. 425.º).” – in “Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil”, 2014, 2.ª edição, Almedina, pág. 370.Obra citada, pág. 370.
É em nosso entender inquestionável que a junção de prova documental “deve ocorrer preferencialmente na 1ª instância, regime que se compreende na medida em que os documentos visam demonstrar certos factos, antes de o tribunal proceder à sua integração jurídica” (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, pág. 191).
Logo, havendo recurso, como acontece no caso, em face do preceituado nos artigos 425º e 651º n.º 1 do Código de Processo Civil, a admissibilidade da junção de documentos com as alegações assume caracter excepcional e ocorre apenas em duas situações: a) se a junção do documento não foi possível até àquele momento, isto é, nos casos de impossibilidade objectiva ou subjectiva de junção anterior do documento ou b) se a junção do documento se tornou necessária em virtude do julgamento proferido pela 1ª Instância. A parte que pretenda juntar documentos, designadamente com as alegações de recurso, deve justificar o carácter superveniente da junção, seja ela de ordem objectiva seja ela de ordem subjectiva (cfr. Abrantes Geraldes, ob. cit, pág.191).
Quanto à impossibilidade objectiva a mesma decorre de o documento só ter sido produzido após o prazo-limite previsto no artigo 423º n.º 2 do Código de Processo Civil e a prova da impossibilidade da sua junção aos autos pela parte até àquele prazo limite decorre naturalmente da análise do teor do próprio documento.
Quanto à impossibilidade subjectiva a mesma decorre da parte só ter tido conhecimento da existência do documento ou dos factos a que o mesmo se reporta após o decurso daquele prazo limite, apesar do documento respeitar a factos anteriores ao decurso desse prazo e poder ser anterior ao mesmo; nesta, a prova da impossibilidade da junção do documento no prazo previsto no referido artigo 423º n.º 2 não se basta com a mera alegação que a parte só teve conhecimento da existência do documento após o decurso do prazo, antes deverá ser alegado e provado que o desconhecimento em relação à existência do documento não ficou a dever-se a negligência da parte, uma vez que a impossibilidade pressupõe que o desconhecimento da existência do documento não derive de culpa sua.
Relativamente à junção de documento em fase de recurso com fundamento de que essa junção se tornou necessária em virtude do julgamento proferido pela 1ª Instância tem a mesma como pressuposto que essa decisão contenha elementos de novidade, isto é, que tenha sido, de todo, surpreendente para o apresentante do documento, face ao que seria de esperar em face dos elementos do processo; é o que ocorre designadamente nos casos em que a decisão se baseou em meios de prova cuja junção foi oficiosamente determinada pelo tribunal, em momento processual em que já não era possível à parte carrear para os autos o documento, ou em que se fundou em preceito jurídico ou interpretação do mesmo, com a qual aquele não podia justificada e razoavelmente contar.
Donde, se o documento era necessário para fundamentar a acção ou a defesa antes de ser proferida a decisão da 1ª Instância e se esta se baseou nos meios de prova com que as partes razoavelmente podiam contar não se pode dizer que a junção aos autos do documento com as alegações ocorre em virtude do julgamento realizado pela 1ª Instância.
Outrossim, deve ser recusada a junção de documentos para provar factos que já antes da decisão a parte sabia estarem sujeitos a prova, não podendo servir de pretexto a mera surpresa quanto ao resultado (neste sentido os Acórdãos do STJ de 27/06/2000, in CJ/STJ, ano VIII, tomo II, página 131 e de 18/02/2003, in CJ/STJ, ano XI, tomo I, página 103 e seguintes onde se afirma que “Não é lícito juntar, com as alegações de recurso de apelação, documento relativo a factos articulados e de que a parte podia dispor antes do encerramento da causa na 1.ª instância. Na verdade, o artigo 706.º do CPC (com a mesma redacção, no que a este particular interessa, do artigo 693.º-B actual), ao admitir a junção só tornada necessária em virtude do julgamento proferido em 1.ª instância, não abrange a hipótese da parte pretender juntar à alegação documento que já poderia e deveria ter apresentado em 1.ª instância (Alberto dos Reis, Código Processo Civil Anotado, vol. IV, pág. 10; Antunes Varela, R.L.J. 115-94)”, os quais mantêm actualidade em face da redacção dos preceitos do actual Código de Processo Civil.
No caso concreto, os documentos cuja junção é requerida pelo Autor, e sobre a qual o réu não se opõe, aliás, corrobora que os factos que advém dos mesmos sejam considerados, datam de momento posterior aos articulados e um dos mesmos é posterior à sentença proferida.
O email junto, proveniente da Camara Municipal de Lisboa, data de 11/12/2024, e deste resulta que “o veículo de matrícula …, marca BMW, foi por nós removido por estacionamento irregular. Como o veículo não foi levantado pelo proprietário, decorreu o processo de apropriação pela Camara de Lisboa e após conclusão do processo foi o veículo abatido, conforme cópia do certificado de abate”. Foi junto com este o certificado de veículo em fim de vida, datado de 20/09/2022.
Resulta evidente que tais documentos devem ser admitidos, dada a sua superveniência quer objectiva, quer subjectiva, devendo considerarem-se os factos que dos mesmos resulta, quer alterando em conformidade o ponto 1 dos factos não provados, na parte atinente ao estacionamento do veículo, que advém do próprio email, quer ainda aditando o que resulta de tais documentos.
Será assim, de admitir os documentos e aditar aos factos provados os seguintes:
27. A viatura em causa após a entrega ao Autor foi aparcada na via pública, junto da residência do Autor, e em data não apurada, foi removida pela Camara Municipal de Lisboa, por estacionamento irregular, tendo tal entidade informado que: “o veículo não foi levantado pelo proprietário, decorreu o processo de apropriação pela Camara de Lisboa e após conclusão do processo foi o veículo abatido”;
28. Do certificado de veículo em fim de vida, certificou-se o abate do veículo a 20/09/2022.
Acresce que é de eliminar na íntegra o ponto 1., pois o mesmo só contém, na parte que excede e que não resulta já do ponto 27., matéria conclusiva (probabilidade de sofrer danos, não tendo o Autor forma de impedir), sendo que as eventuais despesas com o estacionamento já resultam do ponto 5. dado como não provado, ponto esse circunstanciado e não conclusivo, o qual não foi objecto de impugnação por parte do recorrente, nem resulta da prova produzida qualquer custo imputado ao Autor.
Acresce que encerrado o julgamento, foi solicitado pelo tribunal oficiosamente que “(…)seja oficiada a Conservatória do Registo Automóvel, solicitando o envio de certidão comprovativa de todas as inscrições referentes à viatura de matricula …, da marca BMW e modelo 520 Touring 2.0 135 cv Pack M, bem como a indicação do motivo que determinou o cancelamento da matrícula e a respetiva data.”. Reaberta a audiência para o efeito, foi junta certidão, a 24/06/2024, da qual resulta quer o já contido no ponto 24., no que diz respeito ao cancelamento da matrícula, mas também que:
-O veículo de matrícula …, com cancelamento registado desde 20/09/2022, tinha como proprietário registado anterior ao cancelamento “A… e R…, Lda”.
Haverá igualmente que aditar tal facto passando a constar como facto sob 29. dos factos provados.
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Da impugnação da decisão de matéria de facto:
No âmbito da impugnação da a matéria de facto vigora o artº 640.º do C.P.C. nos termos do qual:«(…), deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. E nos termos do nº 2 no caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
Refere Abrantes Geraldes ( in Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª Ed., Almedina, 2017, pp. 158-159) que: «A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em algumas das seguintes situações: a) Falta de conclusão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635.º, n.º 4, e 641.º, n.º 2, al. b)); b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art. 640.º, n.º 1, al. a));c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.); d) Falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda; e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação».
Em caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o recorrente deve identificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, não podendo limitar-se a indicar os depoimentos prestados e a listar documentos, sem fazer a indispensável referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham para cada um desses pontos de facto fosse julgado provado ou não provado. A apresentação das transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º do C.P.C.( Cfr. Acs. do S.T.J. de 19.02.2015, Proc. n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1 (Tomé Gomes) e Proc. n.º 405/09.1TMCBR.C1.S1 (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), in www.dgsi.pt. ).
O ónus a cargo do recorrente que impugne a decisão relativa à matéria de facto, consagrado no art. 640.º do C.P.C., impõe, sob pena de rejeição, a identificação, com precisão, nas conclusões da alegação do recurso, os pontos de facto que são objeto de impugnação. Acresce que o mesmo preceito exige ao recorrente a concretização dos pontos de facto a alterar, assim como dos meios de prova que permite pôr em causa o sentido da decisão da 1ª instância e justificam a alteração da mesma e, ainda, a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre os pontos de facto impugnados. Não obstante, este conjunto de exigências reporta-se especificamente à fundamentação do recurso, não se impondo ao recorrente que, nas suas conclusões, reproduza tudo o que alegou acerca dos requisitos enunciados no art. 640.º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C. Versando o recurso sobre a impugnação da decisão relativa à matéria de facto, importa que nas conclusões se proceda à indicação dos pontos de facto incorretamente julgados e que se pretende ver modificados (Cfr. Ac. do STJ de 03.12.2015, , in www.dgsi.pt. ).
Salienta-se que o STJ. «tem vindo a sedimentar como predominante o entendimento de que as conclusões não têm que reproduzir (obviamente) todos os elementos do corpo das alegações e, mais concretamente, que a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações e mesmo as respostas pretendidas não têm de constar das conclusões, diversamente do que sucede, por razões de objetividade e de certeza, com os concretos de facto sobre que incide a impugnação.»( Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 771; cfr. ainda os Acs. do S.T.J. citados pelos Autores).
Assim, se o recorrente impugna determinados pontos da matéria de facto, mas não impugna outros pontos da mesma matéria, estes não poderão ser alterados, sob pena de a decisão da Relação ficar a padecer de nulidade, nos termos do art. 615.º, n.º 1, al. d), 2ª parte, do C.P.C. É, assim, dentro destes limites objetivos que o art. 662.º do C.P.C. atribui à Relação competências vinculadas de exercício oficioso quanto aos termos em que pode ser feita a alteração da matéria de facto, o mesmo é dizer, quanto ao modus operandi de tal alteração.
Por outro lado, não se deverá proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objecto de impugnação não forem susceptíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2º, nº 1, 137º e 138º, todos do C.P.C., neste sentido, entre outros, Acórdão do STJ de 17/05/2017, in www.dgsi.pt).
Quanto ao modus operandi, importa ter presente que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido, tendo porém presente o princípio a observar em casos de dúvida, consagrado no artigo 414º do C.P.C., de que a «dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita». Conforme é realçado por Ana Luísa Geraldes («Impugnação», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I. Coimbra, 2013, pág. 609 e 610), em «caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte». E mais à frente remata: «O que o controlo de facto em sede de recurso não pode fazer é, sem mais, e infundadamente, aniquilar a livre apreciação da prova do julgador construída dialecticamente na base dos referidos princípios da imediação e da oralidade.»
Assim, apesar de se garantir um duplo grau de jurisdição, tal deve ser enquadrado com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no artº 607 nº 5 do C. P. Civil, sendo certo que decorrendo a produção de prova perante o juiz de 1ª instância, este beneficia dos princípios da oralidade e da mediação, a que o tribunal de recurso não pode já recorrer.
De acordo com Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 347, “Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final (…) estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal (…) Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência”.
Assim, para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes.
Porém, e apesar da apreciação em primeira instância construída com recurso à imediação e oralidade, tal não impede a «Relação de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das provas, tal como a 1ª instância, sem estar de modo algum limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida(…) Dito de outra forma, impõe-se à Relação que analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, de modo a apreciar a sua convicção autónoma, que deve ser devidamente fundamentada» (Luís Filipe Sousa, Prova Testemunhal, Alm. 2013, pág. 389).
Feito este enquadramento, haverá que aferir quais os pontos concretos que devem ser apreciados por este tribunal, principiando pela impugnação levada a cabo pelo Autor.
Pretende o Autor que se dê como provada a factualidade contida nos pontos 1, 2, 3 e 4 dos factos não provados. Considerando o supra exposto não haverá que apreciar o contido no ponto 1 dos factos não provados, pelo que quanto aos demais importa apreciar a prova.
Do ponto 2 dos factos não provados resulta que não se considerou que “2. Foi para fazer face a tais deslocações que o A. adquiriu a viatura referida nos presentes autos”. Insurge-se o recorrente Autor com tal resposta negativa, dizendo eu a mesma até está em contradição com o ponto 23, do qual resulta a necessidade do Autor de possuir um veículo para se deslocar no exercício da sua profissão de músico.
Percepcionado o depoimento de AP…, amigo do autor, este confirmou que o A. é músico e tem necessidade de se deslocar pelo país, com equipamento, confirmando que adquiriu o veículo dada tal necessidade. Com efeito, não nos parece que resultando que o A. necessitava do veículo para se deslocar, não se conclua que o veículo adquirido se destinava para tal fim, o que até foi confirmado pela testemunha aludida.
Deste modo, deverá considerar-se provado o contido no ponto 2. Dos factos não provados, que passará para o elenco dos provados, nos seguintes termos:
23A) Foi para fazer face a tais deslocações que o A. adquiriu a viatura referida nos presentes autos.
No entanto, soçobra a alteração quanto ao contido nos pontos 3 e 4 dos factos não provados, pois não constituem factos notórios a forma como o Autor se desloca no exercício da sua profissão, podendo sê-lo nomeadamente com a ajuda de terceiros, nem nenhuma prova foi feita quanto a tais factos ( ponto 3.), nem sequer o depoimento da testemunha referida. No que concerne a despesas com o eventual estacionamento na via pública do veículo ( ponto 4.), também nenhum documento foi junto que ateste a mesma, desconhecendo-se se o local do estacionamento está ou não sujeito a pagamento, ou sequer se o Autor solicitou ou não dístico de residente, ou qualquer outra circunstância que ateste o valor gasto. É certo que o veículo foi recolhido pela CML por “estacionamento irregular”, mas tal não determina por si só ausência de pagamento, mas sim igualmente a situação de estacionamento ininterrupto no mesmo local, nos termos definidos no Regulamento Geral de Estacionamento e Paragem na Via Pública, aprovado pela CML. Por outro lado, não resulta que o veículo em causa esteja registado em nome do Autor, aliás o mesmo nem sequer assinou a documentação junta relativa á posse, pelo que o eventual custo com o estacionamento pode nunca lhe ser assacado. Aliás, o Tribunal solicitou oficiosamente a certidão do registo do veículo, resultando que a matrícula do mesmo foi cancelada a 20/09/2022, e o proprietário registado era a ré.
Quanto ao valor do aluguer de um veículo, um print informático não é de molde por si só a comprovar tal facto, pelo que improcede a alteração do ponto 4.
Vejamos, assim, a impugnação dos factos levada a cabo pela ré.
Insurge-se a ré com a resposta negativa relativamente aos pontos 7, 8 e 9, dos factos não provados, dizendo que a prova de tais factos advém do depoimento da testemunha D..., sendo que o Tribunal apenas deu credibilidade a tal depoimento na parte favorável ao Autor, considerando o depoimento desacreditado na parte restante. Contesta ainda em termos recursórios a prova dos pontos 16 e 18 dos factos provados, que no entende do recorrente merecem resposta negativa.
Mais aludiu que da cópia do anúncio junto pelo Autor resulta que o veículo estava anunciado pelo valor de 4.450€, pelo que não é verosímil que o valor da compra tenha sido superior, o que determina que há um lapso no veículo do anúncio e no adquirido pelo Autor. Acaba por concluir em 19º e 20º que a omissão de tal facto constitui uma omissão insanável da sentença.
Antes de abordarmos a questão da nulidade, a qual será abordada infra, haverá que considerar que a ré não impugnou o facto contido nos pontos 3. e 4. dos factos provados, dos quais resulta que:
3. O A., em Julho de 2021, viu no site standvirtual.com um anúncio, no qual a R. publicitava a venda de uma viatura, no estado de usada, de marca BMW, modelo 520 Touring 2.0 135 cv Pack M (art. 3º da petição inicial).
4. O veículo indicado no anúncio indicado no Facto Provado 3. tinha a matrícula …(art. 4º da petição inicial).
No que concerne à prova documental da cópia do anúncio junta como doc. 3 com a petição inicial, na descrição do veículo não consta o preço do mesmo, nem sequer a matrícula, mas apenas a descrição das características e foto. A questão do valor só surge no âmbito da pesquisa do motor de busca Google, na parte superior esquerda onde consta como “Usados BMW 520 – 4 450 Euros”. Por outro lado, no primeiro vídeo enviado pela ré ao autor via WhatsApp, surge a imagem do veículo idêntico ao que surge no anúncio, mas em que figura no vidro dianteiro a informação que o valor da venda será de 5.650€. Todavia, em tal vídeo não surge perceptível as indicações no painel do veículo, nomeadamente para aferir da quilometragem, mas já surge visível a matrícula do mesmo. A par de tal documentação é de extrema relevância o teor das mensagens trocadas entre o A. e o vendedor da ré, pois estas é que assumem contemporaneidade com os factos e a forma como o negócio foi feito. Tal troca de mensagens ocorreu no âmbito da plataforma WhatsApp, cuja cópia foi junta, com a respectiva tradução.
Quanto à prova produzida em audiência, resulta das declarações de …, legal representante da ré, que os contactos entre o A. e a ré não foram com o próprio, mas sim através do funcionário D..., dizendo que o A. foi à loja em …, em Julho de 2021 ou 2022, e só depois fez a reserva do veículo. Este foi entregue em Lisboa, através de reboque. O veículo estava anunciado no site e outros portais, têm cerca de 400 veículos à venda e tinham mais ou menos 4 com características semelhantes. Referiu que o valor era cerca de 6 mil euros e foi reduzido para 5.500€, afirmou que nessa altura teve intervenção, o veículo tinha cerca de 390.000 Km e era de 2001. Entende que o A. fez uma confusão entre o veículo que escolheu e o que teria visto na internet, mas o cliente recebeu todas as informações do veículo inclusive da quilometragem, tendo enviado vídeos, e antes da reserva utilizou ou experimentou o veículo.
Do depoimento da testemunha D…, funcionário da ré de final de 2021 a 2022, confirmou que o Autor foi cliente da ré, confirmando que venderam um veículo da marca BMW, de cor preto, o valor era cerca de 6 mil euros e foi negociado. Afirmou que lhe referiu todas as características do veículo e que o A. visitou o stand, pois tinham vários veículos semelhantes, experimentou ou pelo menos pôs a trabalhar o veículo e esteve indeciso. Só contactou mais tarde para efectuar a reserva. Acabou por referir que o valor pelo qual estava anunciada a venda, confrontado com um valor mais próximo dos cinco mil, referiu que não crê, dizendo que este veículo estaria à venda pelos 6 mil euros. Afirmou que era um veículo “muito completo” com muitos extras, mas que nunca a venda seria superior ao valor anunciado, mas sim o inverso. Desconhece a forma como foi entregue o veículo, pois apenas procedeu à venda. A contradição ocorre desde logo pela data que diz aludir que começou a trabalhar para a ré, em Dezembro de 2021, mediante contrato de trabalho, quando a venda ocorreu no Verão de 2021, confrontado com esta situação acabou por dizer que deve estar baralhado com as datas. Afirmou que a negociação foi através de telefone, pois era dos poucos que falavam inglês. Lido o contacto telefónico utilizado no anúncio, referiu que o número não seria do próprio. Afirmou que a reserva do A. foi feita cerca de duas semanas depois da visita. Confirmou que as informações que surgem nos vários sites, advém da informação prestada pelo próprio site da ré relativamente ao veículo. A troca de mensagens com o A. foi através do próprio, mas insistiu que o cliente viu o veículo quando “lá esteve”, confrontado com a contradição que advém de tal informação com o teor das mensagens, escudou-se na circunstância de serem vendidos muitos veículos, dizendo que “não se pode lembrar de tudo”. Afirmou que enviou vídeos para o cliente A., normalmente enviava do interior e do exterior do veículo, reiterou que no anuncio o valor seria de cerca de 6 mil euros, mas venderam por 5.500€. Confirmou que o veículo foi entregue em Lisboa, local onde o cliente vivia.
Do confronto de toda a prova somos em concluir como o Tribunal a quo quando fundamenta que “o Tribunal atendeu aos documentos juntos, nomeadamente, o anúncio de venda do veículo a que se referem os autos e publicado no site “standvirtual” , as mensagens e vídeos trocados entre o A. e a R. (na pessoa da testemunha D..., por ser o único que falava e escrevia em inglês, tal como a testemunha referiu no seu depoimento), as certidões permanentes e certidão do registo automóvel, as fotos e a documentação que acompanhou a viatura e as cartas juntos aos autos. Apesar da R. ter impugnado parte das mensagens e vídeos trocados com o A., via Whatsapp, tendo inclusivamente, invocado que se tratava de prova nula e ilícita, entendemos que não lhe assiste razão, conforme decisão acima. Por outro lado, a própria testemunha da R. confirmou que trocou mensagens via Whatsapp com o A., através do número de telefone da R. utilizado para o efeito, confirmando-se assim o seu teor.(…). No que respeita aos Factos Não Provados 7., 8. e 9., a testemunha D... declarou que o A. foi visitar o stand da R. a Matosinhos, viu o carro e colocou-o a trabalhar. No entanto, estas declarações não merecem credibilidade considerando que confirmou que a negociação da compra foi feita pelo telefone, além de ter confirmado a maioria das mensagens trocadas via Whatsapp (não se recordando de outras), resultando dessas mensagens que o A. nunca viu pessoalmente, nem entrou nele até ter ido buscar o carro ao MARL. Por outro lado, das regras da experiência comum resulta contraditório que, atenta (grande) distância física entre Lisboa e …, o A. tenha ido ver o veículo antes da compra e simultaneamente tenha solicitado que o veículo fosse entregue em Lisboa.”.
É certo que o legal representante da ré também pretendeu escudar-se na circunstância de o A. ter experimentado e visto o veículo antes da compra, mas sem circunstanciar de onde advém tal informação, nomeadamente se teve ou não contacto com o Autor, de que forma e em que data, limitando-se a dizer que tal ocorreu com o vendedor, ou seja, a referida testemunha D.... Quanto a este depoimento confrontado com o teor das conversas tidas com o Autor não é verosímil que o Autor tenha visto o veículo e a primeira pergunta seja no sentido de perguntar as características do veículo. Não temos dúvidas que a negociação do preço terá ocorrido via telefone, pois o valor do veículo exposto no stand, como resulta do vídeo junto, seria de 5.650€. Da troca de mensagens entre o vendedor e o A. resulta que do teor da primeira mensagem escrita já teria existido outra forma de abordagem. Na verdade, a primeira msg é do vendedor da ré do seguinte teor “Olá. Vou enviar a informação em breve” (cf. doc. traduzido junto a 21/12/2023) . Desta não resulta que o A. já tivesse visitado o stand ou experimentado o veículo, aliás, não é consentânea com a existência de tal facto a forma como se respondeu, mas sim que o A. já tivesse abordado via telefone a ré, pois o contacto via whastApp foi feito nos termos aludidos pressupondo uma conversa prévia. Na ausência de resposta o A. voltou a insistir no dia seguinte pela obtenção de “informação sobre o 520d hoje”. Em resposta nesse mesmo dia o vendedor limita-se a dizer “As informações estão no anúncio”, enviando vídeo. Neste não resulta evidente a quilometragem do veículo, pois não se focou o painel, mas sim essencialmente o exterior, onde consta anunciado o preço de 5.650€. A msg seguinte do Autor já pressupõe ter existido uma conversa quanto ao valor, pois já o A. refere que “o preço de 4.500 inclui pneus novos, correias (…)”. Depois de acordarem o transporte e custo do mesmo, é via msg que o A. aceita adquirir o veículo, figurando como resposta da ré o valor de 4.650€, desde que o A. prescindisse da garantia, como veio a ocorrer. Do teor das mensagens resulta que tal negociação ocorreu no dia 23/07. Sendo que resulta das msg que decorrente de contratempos no transporte o veículo só foi entregue a 5/08/2021. Nessa mesma data o A. reclama junto da ré a desconformidade do veículo, sugerindo logo a devolução do valor, com a entrega do veículo, ou ainda a redução do preço, mas igualmente que não assinaria nem o termo de posse, nem os documentos relativos ao registo de propriedade, informando sim o local onde o veículo estaria estacionado para o irem buscar. Volta a insistir por mensagens de 9/09 e 10/08. O vendedor da ré respondeu mas sem invocar a solução inicialmente, sugerindo apenas que: ”Há algumas possibilidades para ti: Como compraste o carro como estava no anúncio online, nas condições que aí visto, o que podemos fazer é oferecer-te um Voucher de férias(…)”. Face à não aceitação e insistência do A. e sem admitir a falsidade da informação acabou por dizer “Alguém cometeu um erro…Ás vezes acontece! Dá uma hipótese ao carro”, e em resposta o A. manteve o propósito de devolver o carro dizendo que se preparava para remeter a questão para tribunal, mas sendo peremptório em afirmar que “não há maneira de eu ficar com o carro”.
Mas de relevância ainda para manter quer as respostas negativas aos pontos 7, 8 e 9 e positivas aos pontos 16 e 18, é o teor da carta de resolução enviada pelo A. á ré, logo a 16/08/2021, onde além de requerer a devolução do valor, informa onde o veículo pode ser recolhido. Mas essencialmente na resposta da ré, a 18/08, onde confessa que a venda foi feita via telefone, whastApp e através dos vídeos juntos, em momento algum alude que o A. tenha estado presencialmente no stand, sem aceitar, porém, a resolução.
Improcede, assim, a alteração factual pugnada pela ré.
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Da nulidade da sentença – artº 615º alínea d):
Pretende a ré que se considere a nulidade da sentença pelo facto de constar da cópia do anúncio junto pelo Autor que o veículo estava anunciado pelo valor de 4.450€, e que afinal a compra tenha sido feita por um valor superior, o que determina, no seu entender, que há um lapso no veículo do anúncio e no adquirido pelo Autor. Acaba por concluir em 19º e 20º que a omissão de tal facto constitui uma omissão insanável da sentença.
Antes de mais, importa ter presente que as causas de nulidade da sentença são de enumeração taxativa, discriminadas no nº1, do artº 615º do Código de Processo Civil, pelo que qualquer vício invocado como consubstanciando uma nulidade da sentença, para o ser, deve necessariamente integrar a previsão de qualquer uma das alíneas do nº1, da citada disposição legal.
Além disso, no âmbito de tais nulidades não se deve confundir o erro material ou erro no julgar do tribunal a quo, com o mero error in procedendo, pois a simples discordância quanto ao decidido não integra necessariamente qualquer nulidade prevista no artº 615º, do CPC, dado que o “regime das nulidades destina-se apenas a remover aspetos de ordem formal que inquinem a decisão, não sendo adequado para manifestar discordância e pugnar pela alteração do decidido”. ( cf. Ac. do STJ de 18/2/2021, proc. nº 1695/17.1T8PDL-A.L2.S1 ).
Deste modo, a arguição de nulidades destina-se apenas a sanar vícios de ordem formal que eventualmente inquinem a decisão, não podendo servir para as partes manifestarem discordâncias e pugnarem pela alteração do sentido decisório a seu favor. Daqui se conclui que os vícios do artº 615º,nº1, do CPC, são meros vícios formais, decorrentes da infração das regras que disciplinam a elaboração da sentença e respeitantes ao modo como o juiz exerceu a sua actividade, ditando a anulação da decisão por ser formalmente irregular, os quais distinguem-se claramente do erro de julgamento , sendo este último um erro de carácter substantivo e que tem lugar quando na decisão proferida a lei é mal aplicada ou há um erro quanto à questão de facto e/ou de direito apreciada.
Donde, é manifesto que não se consegue vislumbrar na sentença recorrida o vício da alínea d), do nº1, do artº 615º, do CPC, dispositivo este que dispõe que é nula a sentença quando o “ O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”.
Com efeito, o convocado pelo recorrente poderia consistir ou omissão de facto ou alteração dos factos, nomeadamente o contido nos pontos 3. e 4. dos factos provados, no sentido de considerar a ausência de coincidência entre o veículo anunciado e o adquirido.
Na esteira de Alberto dos Reis ( in “Código do Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra Editora, págs. 143-145) não se devem confundir factos (fundamentos ou argumentos) com questões (a que se reportam os artigos 608.º, n.º 2, e 615º, n.º 1, alínea d), do CPC) a resolver, pois que uma coisa é não tomar conhecimento de determinado facto invocado pela parte, outra completamente distinta, é não tomar conhecimento de determinada questão submetida à apreciação do tribunal. Dir-se-á que as questões a que alude a alínea d), do nº1, do artº 615º, do CPC, mais não são do que as que alude o nº2, do artº 607º, e artº 608º, ambos do mesmo diploma legal, e que ao Tribunal cumpre solucionar, delimitando-se e resultando as mesmas da análise da causa de pedir apresentada pelo demandante e do seu confronto/articulação com o pedido que na acção/incidente é formulado.
Porém, o contido na alínea d) do artº 615º consubstanciador da nulidade não pode reputar-se aos factos, mas sim a “questões jurídicas” ainda carecidas de resolução, logo, manifesto se nos afigura, desde logo, que a omissão de julgamento pelo tribunal a quo de concretos pontos de facto que pretensamente deveriam – no entender da apelante – integrar a decisão de facto– como vimos supra – não é susceptível de corresponder à nulidade da decisão.
Acresce que da prova produzida resulta igualmente evidente que tal discrepância entre o veículo descrito no anúncio e o adquirido não ocorre, como aliás foi considerado pelo Tribunal recorrido e não foi objecto de impugnação neste recurso.
Saliente-se, em suma, que não inclui a invalidade apontada à sentença um qualquer erro de julgamento, seja de facto e/ou de direito, confundindo-se o error in procedendo com o error in judicando, o que determina a improcedência, nesta parte, do recurso, inexistindo a nulidade apontada, sendo a nulidade arguida com base no mesmo preceito mas tendo por base a alínea b) apreciada infra.
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III. O Direito:
Nesta apelação figuram como recorrente quer o Autor, quer a ré, mas considerando que esta pretende que se considere que não se verificam os fundamentos que presidem a uma justa resolução do contrato, assente na ausência dos seus pressupostos, mas igualmente na comprovação da impossibilidade de os efeitos do contrato retroagirem, dada a impossibilidade de devolução pelo Autor do veículo, o qual foi inutilizado, entendemos que será de apreciar primeiramente tal recurso.
Porém, sem cuidar, por ora, do alegado quanto à impossibilidade de o A. proceder à prestação corresponder à devolução do veículo, a qual vem invocada por ambas as partes, pelo que importa aferir do contrato e a possibilidade da sua resolução.
Não há dúvidas, nem é posto em causa, que entre o A. e a R. foi celebrado um contrato de compra e venda do veículo automóvel, de matrícula …, marca BMW, modelo 520 Touring 2.0 135 cv Pack M, pelo valor de € 4.650,00.
Conforme dispõe o artº 874º do Código Civil, a “compra e venda é o contrato pelo qual se transmite a propriedade de uma coisa, ou outro direito, mediante um preço”, pelo que tal contrato tem como “efeitos essenciais”, segundo estipula o artº 879º do Código Civil : “a) A transmissão da propriedade da coisa ou da titularidade do direito ; b) A obrigação de entregar a coisa ; c) A obrigação de pagar o preço”.
Resulta, portanto, da tipicidade legal na compra e venda que a propriedade da coisa vendida se transmite para o adquirente pelo contrato, constituindo a transmissão do domínio sobre a coisa, por conseguinte, um dos efeitos essenciais do negócio jurídico, ao lado das obrigações de entrega da coisa e de pagamento do preço. O contrato é nominado, típico, sinalagmático e bivinculante.
Do tipo legal de tal contrato de da compra e venda resulta ainda que se trata de um contrato consensual quoad constitutionem, isto é, quanto ao aperfeiçoamento do vínculo, que se atinge, mediante o acordo de vontades das partes, sem prejuízo, obviamente, da observância da forma legal a que eventualmente esteja sujeita a emissão das declarações de vontade. Logo, ao contrário dos contratos reais cuja verificação depende da tradição da coisa, sendo esta um “elemento formativo do próprio contrato real, elevanado-se, a posse nela peevista, à qualidade de publicidade espontâ constitutiva” ( Menezes Cordeito in “Direito das Obrigações” 1º vol, 1988, AAFDL, pág. 421), a compra e venda será sim um contrato “quoad effectum”, quer dizer produz efeitos relativamente aos direitos reais (cf. Acórdão do S.T.J. de 18/9/2003, consultado na “internet” em www.dgsi.pt). Retomando as liçoes de Menezes Cordeiro, em função da natureza dos efeitos produzidos pelos contratos e para evitar confusão entre os contratos reais quoad constitucionem e quoad effectum, haverá que distinguir contratos obrigacionais, reais- ou com eficácia real quoad effectum – mas igualmente familiares, sucessórios, de personalidade, ou ainda comerciais, agrários, económicos, de trabalho etc. ( in ob. cit. pág. 422). Caracterizando-se tais contratos pela produção de efeitos reais, tais como a constituição, transmissão ou extinção de direitos reais, exactamente. Neste sentido depõe inclusive o artº 408º nº 1 do Código Civil, segundo o qual “a constituição ou transferência de direitos reais sobre coisa determinada dá-se por mero efeito do contrato, salvas as excepções previstas na lei”. O nosso direito perfilhou, assim, a solução da eficácia real imediata desses contratos consagrada no Código Civil, em detrimento da eficácia meramente obrigacional oriunda da tradição romanística.
Determinadas figuras contratuais podem, em todo o caso, originar efeitos reais e obrigacionais, o que ocorre precisamente com a compra e venda, da qual derivam efeitos meramente obrigacionais (a obrigação de entrega da coisa e a obrigação de pagamento do preço) e o efeito real (da transmissão da propriedade).
Porém, como referimos o contrato aperfeiçoa-se independentemente da produção desses efeitos, mediante o mútuo consenso dos contraentes. A obrigação de pagar o preço, por exemplo, é apenas um efeito obrigacional do contrato, em nada influindo na sua perfeição e tão-pouco condicionando a eficácia translativa. Este efeito real, por seu turno, de transferência do domínio sobre a coisa, do vendedor para o comprador, verifica-se desde logo pela mera celebração do contrato e no momento desta (artº 408º nº 1 do Código Civil).
Em suma, uma vez celebrado o contrato de compra e venda, desencadeiam-se efeitos simultaneamente reais e obrigacionais. O efeito real consiste na transferência da propriedade da coisa, que se verifica no momento do contrato e por efeito deste, se ela aí estiver já identificada; os efeitos obrigacionais consistem o vendedor encontra-se obrigado, pelo contrato, a efectuar a entrega da coisa vendida e, por seu turno, o comprador está obrigado ao pagamento do preço.
Resulta dos autos que o Autor não assinou a documentação que a ré lhe remeteu, nomeadamente a que visava o registo do veículo, pois, recebido o veículo e constatando a discrepância encarregou-se logo de anunciar que ou a ré reduziria o preço do veículo, ou devolveria o valor, com a entrega do veículo. Afirmando logo que não procederia à assinatura da documentação entregue.
Manifestamente o contrato de compra e venda de veículo automóvel encontra-se submetido ao princípio da liberdade de forma ou da consensualidade, pelo que pode ser celebrado verbalmente ou por escrito, e este fica concluído mal se forme o mútuo consenso entre vendedor e comprador, operando-se, nesse momento e por efeito da sua celebração, os seus efeitos reais (transferência do direito de propriedade sobre o veículo do vendedor para o comprador) e obrigacionais (constituição do vendedor na obrigação de entregar o veículo ao comprador, e constituição deste na obrigação de pagar ao primeiro o preço de compra do veículo, nas condições que foram acordadas). Donde, o registo não tem natureza constitutiva dos direitos que a ele se encontrem sujeitos, constituindo mera presunção ilidível (mediante prova em contrário), de que o direito registado existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define. (neste sentido, entre outros, Ac. da RG de 18/04/2024, proc. nº3621/22.7T8VNF.G1, in www.dgsi.pt).
Como deixámos referidos resulta da certidão do registo do veículo que o mesmo tem apenas registo da propriedade da ré, sem que tenha sido efetuado qualquer registo a favor do Autor. Porém, tal não determina a incompletude do contrato, devendo tal questão ser apreciada apenas no âmbito do comportamento das partes e eventualmente nas obrigações que resultam no âmbito da cessação do contrato.
Aqui chegados, haverá que abordar o que determinou a cessação, defendendo a ré recorrente que não ocorreu justa causa de resolução do contrato por parte do Autor.
• Da resolução do contrato
Advém da ausência de concretização da alteração dos factos contidos na sentença recorrida, igualmente na improcedência da resolução sem fundamento propugnada pela ré.
Somos assim, em corroborar a decisão sob recurso quando expõe que: “(…) se apurou que, em Julho de 2021, o A. viu no site “standvirtual.com” um anúncio em que era indicado que a viatura tinha 238.000 Km, quando na realidade tinha 399.935 Km, conforme reconhecido pela R., sendo que o A. verificou esse facto quando a viatura lhe foi entregue, em Lisboa, em 04 Agosto de 2021. Verificando esta discrepância nos quilómetros da viatura, o A. não assinou os documentos de transferência da propriedade da viatura e contactou a R., que lhe referiu que se tinha tratado de um erro no anúncio.
Tendo presente estes factos e considerando que o A. é uma pessoa singular, que não exerce qualquer atividade económica, e a R., pessoa coletiva cuja atividade comercial respeita à comercialização de veículos automóveis, entre outras, entende-se que tem aplicação o regime previsto no Decreto-Lei nº 67/2003 de 08.03, que regula a venda de bens de consumo e as respetivas garantias.
A este propósito cumpre referir que o referido diploma legal, foi revogado pelo Decreto-Lei nº 84/2021 de 18 de Outubro, que entrou em vigor no dia 01 de Janeiro de 2022, só sendo aplicável aos contratos de compra e venda de bens móveis celebrados após a sua entrada em vigor (arts. 53º, nº1 e 55º do Decreto-Lei nº 84/2021 de 18 de Outubro) e, consequentemente o regime aplicável aos autos é o que decorre do Decreto-Lei nº 67/2003.
Tal como resulta do art. 1º-A do mencionado Decreto-Lei nº 67/2003, o mesmo aplica-se aos contratos de compra e venda celebrado entre profissionais e consumidores. Por sua vez, o art. 1º-B, al. a) define o conceito de “Consumidor - aquele a quem sejam fornecidos bens, prestados serviços ou transmitidos quaisquer direitos, destinados a uso não profissional, por pessoa que exerça com carácter profissional uma actividade económica que vise a obtenção de benefícios, nos termos do n.º 1 do artigo 2.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho”; a al. b), “Bem de consumo – qualquer bem imóvel ou móvel corpóreo, incluindo bens em segunda mão”; a al. c), “Vendedor- qualquer pessoa singular ou coletiva que, ao abrigo de um contrato, vende bens de consumo no âmbito da sua atividade profissional”.
Estabelece o art. 2º, nº1 do mesmo diploma legal que “o vendedor tem o dever de entregar ao consumidor bens que sejam conformes com o contrato de compra e venda”, presumindo-se que “os bens de consumo não são conforme com o contrato se se verificar algum dos seguintes factos: a) Não serem conformes com a descrição que deles é feita pelo vendedor (…)” (art. 2º, nº2 do referido Decreto-Lei).
Por outro lado, o art. 3º, nº1 preceitua que “o vendedor responde perante o consumidor por qualquer falta de conformidade que exista no momento em que o bem lhe é entregue”, sendo que “as faltas de conformidade que se manifestem num prazo de dois ou cinco anos a contar da data de entrega da coisa móvel corpórea ou de coisa imóvel, respetivamente, presumem-se existentes já nessa data, salvo quando for incompatível com a natureza da coisa ou com as características da falta de conformidade” (art. 3º, nº2).
No caso em apreço, e como se mencionou acima, o veículo dos autos encontrava-se anunciado num site de venda de carros, sendo indicado que tinha 238.000 Km, quando na realidade tinha 399.935 Km (facto este que o A. verificou quando a viatura lhe foi entregue), ou seja, tinha mais 161.935 km. Verifica-se assim que houve uma discrepância entre o anúncio sobre os quilómetros que a viatura marcava e os efetivamente percorridos, o que corresponde a uma falta de conformidade entre o que foi vendido e o bem entregue. Por outro lado, como essa discrepância manifestou-se antes de decorridos 2 anos sobre a data da entrega do veículo, presume-se que essa discrepância era existente na data entrega do veículo.
Considerando que estamos perante uma presunção legal, no que respeita à verificação da falta de conformidade, caberia à R. ilidir a mesma (art. 350º, nº2 do Código Civil), o que não sucedeu.
Entende-se assim que o A. tem direito à resolução do contrato, nos termos do disposto no art. 4º, nº1 do citado Decreto-Lei, resolução essa que tem os mesmos efeitos que a anulabilidade (art. 433º e 289º do Código Civil) e, consequentemente o A. tem direito à devolução do preço pago (€ 4.650,00), mediante a entrega do veículo em questão à R..”.
Com efeito, a existência do direito à resolução pressupõe em regra a verificação de um fundamento que será na maioria dos casos o incumprimento de uma obrigação, o que por força de aplicação do diploma referido advém da discrepância do bem vendido entre o descrito no anúncio e a realidade do mesmo. É certo que tal possibilidade estaria arredada caso se tivesse provado que o Autor tinha conhecimento das reais características do veículo antes da sua aquisição, assentando a sua vontade de contratar nessas mesmas condições concretas do bem adquirido, o que não ocorreu nos autos.
Conclui-se, deste modo, pela improcedência, nesta parte, do recurso da ré, confirmando-se a possibilidade de resolução do contrato. A questão que opõe ambos os recorrentes é a relativa às consequências dessa mesma resolução, ou seja, que prestações são devidas a cada uma das partes na sequência da cessação do contrato e que repercussões as mesmas têm no desfecho da acção.
• Das consequencias da resolução do contrato de compra e venda
Insurge-se o autor com a decisão que apesar de ter reconhecido a resolução do contrato, condicionou a obrigação da Ré restituir o preço à restituição da viatura, por parte do Autor. Entende que não existe no ordenamento jurídico qualquer norma que determine que, no caso da resolução do contrato de compra e venda, a restituição do objecto da compra e venda deva preceder a devolução do preço ou esta última ficar condicionada à primeira, concluindo pela violação do disposto nos arts. arts. 433º e 289º do CC.
Discorre ainda sobre a injustiça material de tal decisão, a qual acaba por beneficiar a parte incumpridora, que é assim injustificadamente premiada. Foca ainda o seu recurso na circunstância de resultar dos factos que o Autor/recorrente tentou, logo aquando da resolução, cumprir com a obrigação de entrega da viatura, tendo essa entrega sido recusada pela Recorrida, finalizando por dizer que nessa obrigação é que a ré se constituiu em mora nos termos do disposto no art. 813º do CC.
Por outro lado, também defende que face à impossibilidade objectiva do Recorrente concretizar a entrega da viatura, sem que tal lhe possa ser imputável, o risco correria por conta da Ré credora nos termos do disposto no art. 815º do CC, pelo que das obrigações decorrentes da resolução contratual, apenas subsiste a obrigação da Ré em restituir a quantia recebida, sem que a mesma se encontre sujeita a qualquer condição prévia, seja de que natureza for.
Em sentido inverso, veio a ré no seu recurso assumir a impossibilidade de restituição do veículo, mas assacar que com essa impossibilidade se conclua pela confusão de ambas as prestações que advém para ambas as partes, dizendo ainda que dado que a ré ficará privada do bem e do valor económico, sempre existirá um empobrecimento da mesma, na exacta medida do enriquecimento sem causa e ilícito do A., nos termos do art. 473º do Código Civil. Socorre-se de decisões jurisprudenciais em que tal instituto é utilizado no sentido de “ ao montante do preço a restituir pelo vendedor, seja descontado o valor objectivo do uso - pelo comprador – da coisa vendida e/ou desvalorização desta última, se necessário calculado com recurso ao princípio da equidade, e conforme o disposto no artigo 566º, nº 3, do Código Civil.(…)”(cfr. Acórdão do TRG, em 12-07-2016, in www.dgsi.pt.). Imputa, assim, a impossibilidade de restituição ao Autor com a consequente restituição do valor equivalente em moeda corrente, ou seja, terá o Autor de restituir à Ré o valor de 4.650,00€, fazendo alusão à aplicação da confusão como forma de extinção das obrigações prevista no art. 868º do Código Civil.
Por fim, entende a ré que a Sentença recorrida padece de Nulidade insanável, por contraditória nos termos do artºs 615, nº 1, alínea b) do Código de Processo Civil.
Apreciando desde logo a nulidade que se prende com a decisão tomada e a impossibilidade de restituição anunciada pelas partes neste recurso.
Além do supra aludido a propósito da nulidade da sentença com base na alínea d) do artº 615º, dispõe a alínea b) do memso preceito que é nula a sentença quando “ Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão”.
O vício referido, como é consensual e pacífico, apenas existe quando, na sentença “se omite ou se mostre de todo ininteligível o quadro factual em que era suposto assentar. Situação diferente é aquela em que os factos especificados são insuficientes para suportar a solução jurídica adotada, ou seja, quando a fundamentação de facto se mostra medíocre e, portanto, passível de um juízo de mérito negativo. Já A falta de fundamentação de direito existe quando, não obstante a indicação do universo factual, na sentença, não se revela qualquer enquadramento jurídico ainda que implícito, de forma a deixar, no mínimo, ininteligível os fundamentos da decisão” ( cf. entre outros Acs. do STJ de 29/3/2022, Proc. nº 19655/15.5T8PRT.P3.S1, e de 7/9/2022, proc. nº 2930/18.4T8BRG.G1.S2, ambos in www.dgsi.pt).
A sentença recorrida em momento algum considerou a impossibilidade da prestação de restituição, pois nem sequer tal questão tinha ainda sido suscitada pelas partes. Mas ainda que pudesse já considerar o facto que advinha da certidão do registo relativamente ao veículo, de onde resultava o cancelamento da matrícula, tal não determinaria a nulidade da sentença, mas sim a ausência de consideração desse facto com a subsequente aplicação do direito.
Frise-se que o entendimento que considere a fundamentação de facto insuficiente para a prolação de uma decisão de mérito justa, nada tem já que ver com uma irregularidade formal subsumível ao nº1, do artº 615º, do CPC. Pelo que reiterando o já referido, ainda que se considere que a decisão de facto se mostra amputada de factualidade que da mesma deveria também constar , mas erradamente não consta, indiscutível é que em caso algum a deficiência em causa deva integrar a previsão do nº1, alínea b) do artº 615º, do CPC. Pelo que não é no âmbito da nulidade que tal deva ser apreciado, a qual não se verifica, mas sim no acerto ou não da decisão tomada, tendo por base os factos que resultam da sentença e os ora trazidos ao Tribunal, cujo aditamento foi incluido nesta decisão. Improcede, desta sorte a nulidade.
Analisando então a resolução e o que a mesma determina, considerando os factos em causa.
Não surgem dúvidas que no que concerne ao modo de efectivação da resolução, consagra a lei no artº 436º do CC uma regra de liberdade de forma, ao determinar que o direito se exerce “mediante declaração à outra parte.”. É certo que existem alguns desvios a essa norma, nomeadamente nos casos em que a lei impõe a intervenção de um órgão judicial, seja para decretar a resolução (como ocorre no arrendamento), seja para apreciar a declaração de resolução emitida por um das partes, a par ainda dos casos em que a resolução- efeito opera automaticamente da lei ( cf. Joana Farrajota in “A resolução do contrato sem fundamento”, pág. 31). No entanto, no caso sob apreciação a resolução opera por meio de uma declaração receptícia e produz efeitos quando chega ao destinatário ou deste é conhecida, sendo que a “contestação” judicial da resolução apenas se destina a aferir judicialmente da respectiva licitude, mas a sentença não deixa de ser meramente declarativa e não constitutiva. Como afirmam alguns autores resolver um contrato é um enunciado performativo, no sentido em que não se limita a descrever uma acção, mas cumpre ou realiza a acção que descreve (Carlos Ferreira de Almeida, in “Texto e Enunciado na Teoria do Negócio Jurídico, Vol I, pág. 121 e ss).
No caso sob apreciação e, concluindo-se pela possibilidade de resolução, entendemos que a mesma se operou, pois resultou demonstrado que quando o A. recebeu a viatura verificou que o conta-quilómetros marcava que a viatura já tinha andado 399.935 km e não os 238.000 km anunciados. Face a esta desconformidade o A. não assinou os documentos para o registo da transferência da propriedade que acompanhavam a viatura e contactou a R., tendo trocado mensagens pelo whatsapp, tendo informado a R. que para si era inaceitável que a viatura tivesse quase o dobro da quilometragem indicada no anúncio. A R. respondeu afirmando que tinha sido cometido um erro no anúncio e, como forma de compensar o A. propôs que este aceitasse uma estadia de cinco noites no Algarve ou Madeira, proposta esta que o A. não aceitou.
Notoriamente e em cumprimento do disposto no artº 436º do CC, o A. face à desconformidade apresentada pela viatura, em 16/08/2021 enviou à R. carta registada com aviso de recepção que esta recebeu no dia 17/07/2021, tendo declarado que não mantinha interesse na aquisição da viatura nas condições em que lhe foi entregue e que declarava resolvido o contrato de compra e venda da viatura, com efeitos imediatos.
Nessa mesma carta, o A. indicava ainda onde a viatura poderia ser recolhida e os dados da conta para a qual deveria ser devolvido o preço pago. Em resposta a esta carta, a R. enviou uma carta ao A., datada de 18/08/2021, na qual se recusou a receber a viatura e devolver o preço. Importa ainda ter presente que o A., ao receber o veículo e aferida a desconformidade do mesmo, não assinou os documentos para o registo da transferência da propriedade que acompanhavam a viatura e contactou a R., tendo trocado mensagens pelo whatsapp, tendo informado a R. que para si era inaceitável que a viatura tivesse quase o dobro da quilometragem indicada no anúncio.
Consentâneo com tal ocorrência é o dado que sempre o veículo a nível registal teve a sua propriedade inscrita a favor da ré, mormente tendo em conta as eventuais interpelações a nível administrativo.
Mas que dizer das obrigações pós-contratuais em razão da situação jurídica extinta? Não temos dúvidas em considerar que a resolução determina a imediata cessação do vínculo produzindo o efeito extintivo logo que a declaração de vontade chega ao poder do destinatário. Quanto aos seus efeitos recorre-se ao regime da nulidade e da anulabilidade do negócio, por força do artº 433º do CC, na parte compatível, mas em que se afirma quer a retroactividade, ou seja, determina a reconstituição do estado anterior à celebração do contrato, quer à restituição, no sentido que cada uma das partes terá de restituir à contraparte tudo o que indevidamente mantenha em consequência da cessão. Como bem alude Pedro Romano Martinez “(a) resolução com eficácia retroactiva pressupõe a constituição de uma nova relação jurídica, derivada da anterior, com obrigações de devolução recíprocas; as partes ficam mutuamente adstritas a devolver as prestações que hajam recebido em cumprimento do contrato (…). A resolução não dá origem a um novo contrato, pelo qual se pretende dissolver o anterior, mas cria uma relação legal que obriga as partes a devolverem o que receberam; trata-se de uma obrigação ex lege de reposição do status qua ante.”.” ( in “Da cessação do Contrato”, pág. 188 e ss. ). Evidente que no caso que ora nos ocupa também relevará saber se os deveres de restituição são sinalagmáticos, e se funcionam de forma idêntica, mas de sinal contrário, aos da relação precedente, como parece ter sido o entendimento da decisão recorrida. Ora, do disposto no artº 289º do CC, para o qual remete o regime do artº 433º, resulta que “deve ser restituído uto o que tiver sido prestado, acrescentando-se no artº 290º que “as obrigações recíprocas de restituição (..) devem ser cumpridas simultaneamente”. Logo, o dever de restituir tem como principio geral o previsto no artº 563º do CC, apontando para a obrigação de restituir in natura, e não sendo possível restituir a prestação em espécie deve a parte entregar o valor correspondente – cf. artº 289º nº 1 do CC.
Não obstante e sem cuidar, por ora, da questão do risco na constituição de tais obrigações pós-contrato, face à relação anterior extinta, estarão sempre presentes as regras da boa fé.
No âmbito da distribuição do risco contratual em geral e tendo por base os ensinamentos de Baptista Machado, que partindo da impossibilidade da prestação ou da impossibilidade de efectivação do resultado da prestação, sendo esta a impossibilidade de cumprir, refere que “as duas grandes regras sobre a distribuição do risco contratual dizem-nos que o devedor corre «o risco de prestação» e o credor o «risco de utilização»” ( in Obra Dispersa, vol I, pág. 257 e ss.).
No tocante ao risco na resolução, o artº 432º nº 2 estabelece como regra que este corre por conta daquele que invoca a resolução, pois neste preceito prevê-se que a parte lesada não pode resolver o contrato se não estiver em condições de restituir o que houver recebido, salvo se a impossibilidade de devolução se ficou a dever a culpa de qualquer uma das partes, mas neste caso não são aplicáveis as regras do risco, as quais vigoram se a perda da coisa for casual ( v. Pedro Romano Martinez in “Cumprimento defeituoso, em especial na compra e venda e empreitada”, pág. 335). Porém, tal risco ocorre a montante da resolução, pois tendo esta operado validamente deixa de fazer sentido tal aplicação, sendo de aplicar as regras gerais sobre a repartição do risco, mormente o disposto nos artº 795º e 815º do CC, mas essencialmente o previsto no artº 796º do CC.
A propósito de tais regras, tem sido entendido que “nos contratos que impliquem a transmissão da propriedade sobre a coisa, o risco do perecimento ou deterioração corre, em princípio, por conta do adquirente” e que “tal teoria prevalece mesmo sobre a figura da resolução do contrato por alteração anormal das circunstâncias” ( neste sentido Ac. do STJ de 9/01/2003, proc. nº 02B4143, in www.dgsi.pt).
Têm entendido a doutrina e a jurisprudência que os efeitos restitutórios na sequência da invalidade do contrato (declaração de nulidade ou anulação) são norteados pelo princípio da restituição integral a fim de cada uma das partes ser colocada na situação em que estaria se o contrato não tivesse sido celebrado, devendo este princípio aplicar-se à resolução do contrato com as necessárias adaptações.
A propósito expõe-se no Ac. do STJ de 30/05/2023 (proc. nº 135/21.6T8LRA.C1.S1, in www.dgsi.pt) que: “A liquidação do contrato como efeito da sua extinção deve ter em conta «(...) o princípio da justiça comutativa, no sentido de se manter, relativamente às obrigações de restituição, a mesma correspectividade que as partes procuraram entre as prestações realizadas em execução do negócio inválido. Tal solução é exigida pela moderna concepção de contrato como troca económica de bens, assente no princípio da confiança ou da boa fé, que regula não só a conclusão do contrato mas também a troca das prestações e a restituição das prestações executadas durante o período intermédio entre a conclusão do contrato e a sua anulação ou declaração de nulidade» (cfr. Maria Clara Sottomayor, «A obrigação de restituir o preço e o princípio do nominalismo das obrigações pecuniárias», Estudos em Homenagem ao Professor Doutor Jorge Ribeiro de Faria, Universidade do Porto, 2003, p. 554; Hörster, H. E./Eva Sónia Moreira da Silva, A Parte Geral do Código Civil português, Almedina, Coimbra, 2022, p. 658, n.º 1017).
A esta luz devem entrar no juízo de ponderação acerca do conteúdo dos deveres de restituição os princípios do equilíbrio das prestações e da reciprocidade das obrigações (cfr. Acórdão de 22-06-2021, proc. n.º 1901/17.2T8VRL.G1.S1).
Na feliz expressão da doutrina francesa (CARBONNIER, Droit Civil,Tome 4, Les Obligations, PUF, Paris, 1992, p. 207; MALAURIE/AYNES, Cours de droit civil, Tome VI, Les Obligations, Éditions Cujas, 1997, p. 330), os efeitos da anulação correspondem a um “contrato sinalagmático de sentido inverso”.
Assim, no caso do contrato de compra e venda executado anulado por sentença judicial, como afirmam H. E. Hörster/Eva Moreira da Silva (ob. cit., p. 657, n.º 1015)“(...) a situação corresponde, de uma maneira inversa, aos efeitos do contrato de compra e venda”, verificando-se a retransmissão automática da propriedade para o vendedor, a cargo de quem fica o cumprimento da obrigação de restituir o preço, que tem como pólo oposto a obrigação do comprador de entregar a coisa. Os deveres de restituição são o reflexo de cada um dos efeitos previstos nas três alíneas do artigo 879º do Código Civil (ibidem, p. 657, n.º 1015). Nestes termos, o vendedor passa a assumir a qualidade dupla de proprietário e de devedor do preço e o comprador a qualidade de possuidor de coisa alheia e de credor do preço. No caso da nulidade do contrato de compra e venda, embora para efeitos práticos a solução seja a mesma – obrigação de restituir a coisa a cargo do comprador e obrigação do vendedor de devolver o preço recebido – a fundamentação jurídica é distinta pois a sentença meramente declara ou constata a nulidade, não operando a retransmissão da propriedade que se entende nunca ter saído da esfera jurídica do alienante, nem havendo efeitos jurídicos a destruir, salvo os efeitos negociais laterais por força de disposição legal (Ibidem, p. 657, n,ºs 1015 e 1016).”.
Donde, a regra básica face ao disposto no artº 796º do CC é que o risco transfere-se no momento da transmissão do direito real sobre a coisa, porém, há ainda que considerar os comportamento indevidos, como é o caso de mora do devedor ( artº 807º) ou de mora do credor ( artº 815º) mas também concatenados as situações de impossibilidade ( artº 790º em especial artº 795º do CC). Como vimos a resolução implica a destruição do vínculo, pelo que tem sido entendido que cada um das partes fica na situação de depositário da coisa que recebeu, com a obrigação de a conservar e entregar, mas cabe perguntar se o risco relativo à prestação a devolver se assume a partir da resolução do contrato (data em que se constitui o dever de restituir as prestações) ou se se ficciona que esteve sempre na esfera jurídica do respectivo credor. Mas aqui chegados não há que olvidar que a parte que se encontra obrigada à devolução só responde pela perda ou deterioração da poisa se tiver procedido com culpa.
Volvendo ao caso dos autos, em primeiro lugar, a ré não formulou qualquer pedido relacionado com a eventual restituição do veículo, ou sequer o seu valor, mas considerando a aplicação do regime da nulidade ou da anulação, haverá que considerar tais efeitos. Por outro lado, o direito real sobre o veículo transferiu-se para o A. com a celebração do contrato de compra e venda – artº 408º do CC, mas resolvido o contrato pelo Autor ficciona-se que o bem nunca esteve na sua propriedade. No entanto, tal não nos permite afastar o regime do risco por conta do adquirente previsto no artº 796º do CC, o que determinaria a considerar a impossibilidade de restituição do veículo pelo próprio, com a consideração que seria devido à ré pelo Autor o valor correspondente.
Acresce que in casu não haverá que considerar as eventuais utilidades extraídas pelo comprador na vigência do contrato de compra e venda, ainda que não se desconheça que a jurisprudência tem entendido que as mesmas devam ser atendidas, mas face ás circunstancias do caso. Assim se decidiu no Ac. do STJ de 14/10/2021 (proc. nº2927/18.4T8VCT.G1.S1, endereço da net a que vemos fazendo referencia ), no qual se sumariou que: “I. Declarada a resolução do contrato de compra e venda de veículo automóvel com fundamento em defeito que não foi reparado, em regra, o comprador tem o direito de receber a quantia correspondente ao preço que pagou, nos termos dos arts. 433º, 434º, nº 1, e 289º, nº 1, do CC. II. A ponderação do eventual enriquecimento do comprador pela utilização do veículo não dispensa o vendedor da alegação oportuna da matéria de facto pertinente, o que deve ser feito nos articulados, sendo extemporânea a alegação dessa questão apenas no recurso de apelação. III. A apreciação dessa questão por parte da Relação, com efeitos na redução do valor da prestação, afeta o acórdão proferido, na medida em que envolve uma pronúncia sobre matéria de que não podia conhecer, por não integrar o objeto do processo. IV. A eventual ponderação das utilidades extraídas pelo comprador na vigência do contrato de compra e venda que é objeto de resolução não pode deixar de ter em conta as circunstâncias em que ocorreu a utilização e o comportamento do vendedor antes e na pendência da ação. V. Deve ser recusada uma solução que reduza o valor da quantia a entregar ao comprador que exerceu o direito de resolução do contrato num caso em que a utilização do veículo automóvel foi marcada, desde o início, por sucessivas avarias que obrigaram a pelo menos 24 deslocações à oficina da vendedora que nunca permitiram nem permitem uma utilização normal do veículo e em que, além disso, o vendedor negou na ação qualquer responsabilidade e opôs-se ao pedido de resolução do contrato por fundamentos que não foram atendidos pelo tribunal.”.
No caso sob apreciação o Autor não utilizou o veículo, aliás, nem sequer cuidou em registar o mesmo em seu nome ou assinar a documentação que lhe permitiria circular legalmente com o mesmo, figurando que o veículo sempre permaneceu registado em nome da ré. Porém, sempre as dúvidas quanto à sua posse podem surgir, mas aqui afastamo-nos do entendimento do Tribunal a quo, pois perante a destruição do veículo, ou cancelamento da matrícula operada pelas entidades administrativas, logo, em 2022, a tal será alheio o comportamento (ainda que indirecto) do autor. Aliás, a forma como decorreu a resolução logo após a venda e todo o comportamento da ré na sequência da mesma nos leva a considerar que competia à ré assegurar, neste caso, pela retirada do veículo do local onde o mesmo se encontrava, facto que o Autor propugnou desde sempre, sem sequer assinar os “documentos de posse” do mesmo. Tal determina que se possa considerar que a deterioração da coisa possa ser imputável ao alienante, afastando o risco do adquirente do artº 796º do CC. Mas ainda que assim não se entenda sempre nas obrigações pós extinção do contrato devem as partes actuar de boa fé.
Na verdade, tendo por referência o disposto no art. 334º do C.Civil, «o abuso do direito pressupõe um excesso ou desrespeito dos respectivos limites axiológico-materiais, traduzido na violação qualificada do princípio da confiança, sendo que, para que tal aconteça, não se torna necessário que o agente tenha consciência do carácter abusivo do seu procedimento, bastando que este o seja na realidade». (Galvão Telles in “Obrigações”, pág. 6). Nesta linha de entendimento, sublinha Baptista Machado (in “Tutela de Confiança”, RLJ, Anos 117º e 118º, a págs. 322 e 323 e 171 e 172, respectivamente), que, para se concluir por tal actuação dita abusiva torna-se necessária a verificação cumulativa de três pressupostos: uma situação objectiva de confiança digna de tutela jurídica e tipicamente consubstanciada numa conduta anterior que, objectivamente considerada, seja de molde a despertar noutrem a convicção de que o agente no futuro se comportará coerentemente de determinada maneira; que, face à situação de confiança criada, a outra parte aja ou deixe de agir, advindo-lhe danos, se a sua confiança legítima vier a ser frustrada; ou seja, frustrada a boa-fé da parte que confiou.
Importa ter presente os ensinamentos do prof. Menezes Cordeiro (in “Tratado de Direito Civil Português”, Parte Geral, Tomo I, págs. 249-269) que sintetiza em seis tipologias as situações em que tem sido colocada a ocorrência do abuso do direito, sendo que estas tipologias nos permitem, igualmente, enquadrar parâmetros de actuação aptos a concretizar os conceitos jurídicos indeterminados em que está ancorado o instituto do abuso do direito. A saber: a exceptio doli, o venire contra factum proprium, as inalegabilidades formais, a supressio e a surrectio, o tu quoque e o desequilíbrio no exercício de posições jurídicas.
A exceptio doli traduzia-se numa actuação dolosa do titular na formação da sua situação jurídica ou no momento da própria discussão da causa. No venire contra factum proprium está em causa uma actuação do titular contraditória com um comportamento passado. Trata-se, em suma, de tutelar a confiança gerada numa das partes pelo comportamento anterior da outra. Em terceiro lugar, verifica-se uma inalegabilidade formal quando alguém alega de forma desconforme com a boa-fé, designadamente por lhe ter dado causa, a nulidade formal de um negócio. A supressio e a surrectio que são figuras baseadas nos mesmos fenómenos – decurso do tempo, boa-fé e tutela da confiança – mas de sentido inverso. No primeiro caso, o decurso de um longo período de tempo sem o exercício de um direito faz com que o seu titular perca a faculdade do seu exercício. No segundo caso, a manutenção de uma situação durante um longo período de tempo faz surgir numa pessoa uma faculdade jurídica que de outro modo não teria.
O tu quoque traduz-se na inadmissibilidade do titular do direito aproveitar-se de uma violação de uma norma jurídica exigindo a outrem que actue em consonância com as consequências resultantes dessa violação. Por fim, temos o desequilíbrio, ou seja, o exercício de um direito que devido a circunstâncias extraordinárias dá origem a resultados totalmente estranhos ao que é admissível pelo sistema, quer por contrariar a confiança ou aquilo que o outro podia razoavelmente esperar, quer por dar origem a uma desproporção manifesta e objectiva entre os benefícios recolhidos pelo titular ao exercer o direito e os sacrifícios impostos à outra parte resultantes desse exercício (aqui se incluem o exercício danoso inútil, a exigência injustificada de coisa que de imediato se tem de restituir e o puro desequilíbrio objectivo).
Temos presente que todas estas situações não são mais do que tipologias de comportamento em que historicamente se tem ancorado o raciocínio do abuso do direito, sendo que nem todas têm actual justificação e muitas delas se reconduzem, no fim de contas, a outras figuras, designadamente ao venire contra factum proprium, mas de qualquer forma permitem deixar mais claros os parâmetros em que se move o instituto invocado.
Ora, permitir à ré beneficiar da sua inercia que decorre da restituição que devia ter operado face à resolução, saliente-se com destruição do vínculo ex nunc, seria beneficiar a mesma no âmbito de uma situação criada pela própria, o erro na identificação das características do veículo, erro esse que nos termos legais determina a cessação do vínculo por resolução. Donde, a vingar a confusão das prestações do A. e ré, na sequencia da impossibilidade posterior da restituição do veículo, seria premiar o comportamento da ré, que não teria de devolver o valor do veículo, quando foi a própria que criou tal situação, tendo sido alertada ab initio pelo Autor, informando que o veículo ficaria à sua disposição, na via pública, não decorrendo pelo Autor a responsabilidade pelo seu destino.
Donde, ou se entende que o perecimento ou deterioração do bem decorre de causa imputável à ré, ou ainda que pretendendo a ré fazer-se valer do seu comportamento desconforme, fundamento da resolução, para obter uma vantagem, o não pagamento da restituição do preço, o que poderia constituir a violação dos ditames da boa fé, na aludida tipologia do tu quoque.
Deste modo procede, nesta parte, o recurso do Autor, improcedendo em consequência o recurso da ré, devendo a ré ser condenada a restituir o valor pago pelo Autor, mas sem que este pagamento fique condicionado ou subordinado à restituição pelo A. do veículo adquirido.
• Do pagamento da indemnização pela privação do uso
O Autor insurge-se igualmente com a parte decisória da sentença recorrida que absolveu a ré do pedido indemnizatório correspondente aos alegados prejuízos decorrente da privação do uso do veículo. Na sentença conclui-se que “o A. não logrou fazer prova sobre os danos que alega ter sofrido, seja na vertente da privação do uso, seja nas despesas que teve de suportar relativamente a estacionamentos, nem com os custos acrescido com a entrega da viatura. Ainda sobre a privação do uso cumpre referir que não foi alegado, nem provado que a viatura tivesse alguma avaria de funcionamento. O facto dos quilómetros anunciados não corresponderem aos quilómetros efetivamente percorridos, só por si, não constituem qualquer perigo para a circulação da viatura, determinando a sua paragem. Tratou-se de uma opção do A.”.
Com efeito, face ao disposto no art. 12º da Lei nº 24/96 de 31.07 “o consumidor tem direito à indemnização dos danos patrimoniais e não patrimoniais resultantes de fornecimento de bens ou prestação de serviços defeituosos”.
Outrossim, o artº 801º nº 2 do CC prevê que além do direito a resolver o contrato, a parte lesada pode pedir uma indemnização, mas há que considerar que se discute o respectivo valor atendendo à destruição do víncluo ex tunc. Com efeito, no artº 801.º, n.º 2 dispõe-se que «Tendo a obrigação por fonte um contrato bilateral, o credor, independentemente do direito à indemnização, pode resolver o contrato e, se já tiver realizado a sua prestação, exigir a restituição dela por inteiro.».
Como bem alude Pedro Romano Martinez ( in ob. cit. pág. 201- 205) a indemnização, em caso de resolução, deve ser entendida como o valor devido por uma das partes à outra em razão de o contrato ter sido dissolvido e a que acresce à prestação devolvida, mas não a substitui. Pois ou a indemnização coloca o lesado na situação que existiria se não tivesse celebrado o contrato – interesse contratual negativo, ou colocar a parte lesada em circunstâncias idênticas se o contrato houvesse sido pontualmente cumprido – interesse contratual positivo. No sentido de permitir esta última manifesta-se Baptista Machado (in ob. cit. pág. 210-2111) dizendo que a resolução não faz desaparecer a relação contratual, antes a converte numa relaçao de liquidação, ainda que admita esta na situação em que é o processo de liquidação que em bom rigor desencadeia e precede a resolução.
A propósito refere Vaz Serra, «Por vezes a anulação do contrato deixa de pé certos danos, que ela não pode atingir. É o que sucede quando o prejudicado, por ter celebrado o contrato usurário, sofreu danos, que a anulação só por si não elimina (v. g., despesas feitas contando com a eficácia do contrato; dano resultantes do facto de não ter celebrado outro contrato vantajoso). Este dano é o chamado dano contratual negativo ou de confiança, isto é, aquele que o contraente não teria tido, caso não tivesse feito o contrato.
Porém, a doutrina e a jurisprudência dividem-se acerca da indemnização dos danos resultantes do designado interesse contratual positivo, ou seja, os valores que o credor teria conseguido se o contrato fosse válido (e cumprido)» ( in “A Mora do Devedor”, em Boletim do Ministério da Justiça, n.º 48, maio - 1955, pág. 182).
Assim, relativamente a esta problemática surgem duas teorias principais, uma que exclui a indemnização pelo interesse contratual positivo, por se considerar que os efeitos da resolução do contrato são incompatíveis com o direito à indemnização pelo interesse positivo, porquanto se pretende nestes casos obter, e se obtém efetivamente, a supressão dos efeitos do contrato e ao mesmo tempo pretende-se obter os benefícios que esse contrato traria ao credor, como se a resolução não tivesse existido, ou seja, como se o contrato resolvido não tivesse sido resolvido e tivesse sido cumprido ( neste sentido, entre outros, Pereira Coelho, in “Obrigações, sumários”, pág. 230; Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Vol. II, pág. 104; J. Almeida Costa, Direito das Obrigações, 3ª Ed, pág. 763 ).
Com vimos autores há que têm admitido a indemnização por danos surgidos na órbita do interesse contratual positivo ( além do já aludido também Galvão Teles, “Direito das Obrigações, 7.ª ed. 463; Ana Prata, Cláusulas de Exclusão e Limitação da Responsabilidade Contratual, 479; Paulo Mota Pinto, in “Interesse Contratual Negativo e Interesse Contratual Positivo, Vol. II. Coimbra Editora).
A juisprudência recente tem igualmente admitido tal possibilidade de indemnização, nomeadamente no Acórdão do STJ de 10/12/2020 (no processo n.º 15940/16.7T8LSB.L1.S1) no qual se sumariou que:«1. A resolução do contrato é cumulável com a indemnização pelo interesse contratual positivo. 2. Indemnizar pelo interesse contratual positivo, traduz-se, na prática, em aplicar o princípio geral da obrigação de indemnizar consagrado no artigo 562.º do Código Civil. 3. Em favor do cúmulo depõem ainda a Convenção das Nações Unidas sobre a venda internacional de mercadorias de 11 de Abril de 1980, aprovada para adesão em 23 de Julho de 2020, e a Directiva 2019/771/UE, de 20 de Maio de 2019». Mas igualmente no Acórdão do STJ de 28/10/2021 (Proc. n.º 1778/15.2T8CSC.L1.S1) no qual se conclui que:«A resolução do contrato é compatível com a indemnização pelo interesse contratual positivo, na medida em que vise a reparação de prejuízos resultantes do não cumprimento definitivo do contrato resolvido não cobertos pela eficácia retroativa da resolução do contrato e desde que não revele desequilíbrio grave na relação de liquidação ou se traduza em benefício injustificado para o credor, ponderado à luz do princípio da boa fé.»
Assenta o pedido do autor, quanto ao aludido dano de privação de uso em tal interesse dito positivo ou interesse do cumprimento (ou dano de não cumprimento), quer dizer, o dano que ao credor é causado com o não-cumprimento ou com o cumprimento defeituoso ou tardio da obrigação, representando, portanto aquilo que o credor teria se o negócio tivesse sido cumprido com exactidão. No caso da nulidade do negócio, o interesse positivo consiste naquilo que o credor teria se o negócio fosse válido. A este contrapõe-se o dano sofrido pelo credor em consequência de ter acreditado na validade do negócio e que não teria, por isso, tido se tivesse sabido que ele não era válido, ou seja, o dano resultante da celebração do negócio.
A propósito de tal indemnização e a proximidade de tais problemáticas importa ter presente o aludido por Paulo Mota Pinto ( in “Interesse contratual negativo e Interesse contratual positivo”, Vol II, pág. 1640 e ss.) ao aludir às consequencias, no plano da distribuição de riscos e vantagens entre devedor e credor, o que nos pode levar a considerar no âmbito da indemnização assente no interesse contratual positivo “permitiria ao credor transferir para o devedor inadimplente prejuízos resultantes de outras melhores oportunidades que o credor deixara passar ao celebrar o contrato não cumprido, sem qualquer limite que não fosse o da causalidade. A celebração de um contrato proporcionar-lhe-ia, assim, para o caso do seu não cumprimento, uma verdadeira garantia contra outras perdas, transformando o devedor num seu “segurador forçado”, mesmo para além daquela situação em que o credor estaria se o contrato tivesse sido cumprido”. Conclui assim, que a solução é de “remédio sinalagmático”, facilitando a liquidação a operar, mas possibilitando uma indemnização apenas pela diferença de valor entre a prestação, por um lado, e a contraprestação, por outro, pelo designado “método da diferença”. Concluindo que neste caso o credor “apenas poderá liquidar uma indemnização pelo interesse contratual positivo que inclua o valor da sua contraprestação (já realizada ou a realizar), o credor que resolve há-se poder também exigir uma indemnização por não cumprimento, embora ficando limitado ao “método da diferença”.
Somos em considerar a possibilidade de o direito a ser indemnizada pelos danos sofridos possa ocorrer no âmbito do interesse contratual negativo (danos que o contraente não teria tido, caso não tivesse celebrado o contrato) e eventualmente por danos relativos ao interesse contratual positivo – os valores que o credor teria conseguido se o contrato fosse válido e fosse cumprido (artigo 801.º, n.º 2, do Código Civil) –, mas neste último caso o pedido não procede se for incompatível na prática com os pedidos formulados no âmbito do interesse contratual negativo.
Tem assim, sido entendido que para que se possa antever a admissibilidade da indemnização quanto a estes danos, situados na esfera do interesse contratual positivo, tem sido delimitada pelos seguintes vetores:
- A indemnização há de respeitar o equilíbrio das prestações, ou seja, não pode provocar um desequilíbrio grave na relação de liquidação.
- Deve respeitar o princípio da boa fé.
- Não se pode traduzir num benefício injustificado para o credor.
Como se pondera no acórdão do STJ de 12/02/2009 (proc. n.º 8B4052 ) a propósito de tal temática «(…) não podemos perder de vista que estes são casos de excepção, sob pena de vir a perder relevância uma figura como a resolução que a lei tem como proeminente em toda a relação contratual. Se se considerasse que o que resolve o contrato tem sempre direito a indemnização correspondente ao interesse que tinha com o cumprimento deste, estaríamos a, em termos práticos, ignorar tal figura no que a uma das partes respeita, gerando um desequilíbrio entre as partes inadmissível, ou usando a expressão de Menezes Leitão (ob. e loc. citados) transformando “o contrato de sinalagmático em unilateral, uma vez que determinaria uma sua liquidação num só sentido.”.»
Porquanto, ainda que possamos admitir em certos casos a possibilidade de indemnização pelo interesse contratual positivo, mesmo perante a resolução do contrato, o que ocorre nos autos é que o pedido de indemnização formulado pelo Autor assenta apenas na utilidade que o objecto da compra e venda lhe iria proporcionar, ou seja, não decorre do comportamento da ré qualquer impossibilidade de uso e fruição, mas ainda que esta pudesse existir, nomeadamente por ausência de documentação administrativa necessária, mas por recusa por parte do Autor em assinar a mesma, face à resolução, tal dano não pode ser considerado como consequência directa do incumprimento assacado à ré. Nem o “dano” nos termos enunciados poderá ser equacionado, sob pena de desequilíbrio na liquidação a operar face à cessação do contrato. Aliás, o que se tem discutido na doutrina e na jurisprudência é normalmente a consideração de um valor correspondente ao período de uso e fruição do veículo pelo vendedor, até se operarem as obrigações de liquidação decorrentes da resolução, a deduzir no valor a restituir pelo comprador (neste sentido, entre outros, Ac. do STJ de 14/10/2021, proc. nº 2927/18.4T8VCT.G1.S1, no qual se alude a tal possibilidade, ainda que no caso concreto se entenda de afastar tal hipótese).
Daqui resulta que a absolvição nesta parte da ré não advém da ausência de prova de um eventual valor a considerar para efeitos da privação do uso de veículo, pois neste sempre poderíamos considerar a equidade – cf. artº 566º nº 3 do CC – o que ocorre é a ausência de dano indemnizável neste caso. Tal resulta ainda mais evidente se considerarmos o pedido do Autor, pois este, tendo por base o valor do aluguer de um veículo do mesmo tipo, conclui que o valor mensal devido pela ré seria de 583,93€. Liquida o valor correspondente à data da propositura da acção – a 30/08/2021- ou seja, data próxima da resolução, dizendo que desde 26/07/2021 até essa data seria devido o valor de 681,10€. A considerar o tal valor correspondente ao valor mensal aludido, o valor indemnizatório a ter em conta seria até final de 2022 de 9.342,88€, e nos dois anos seguintes – 2023 e 2024 – o valor de 14.014,32€, quando o valor do veículo foi de 4.650€.
Está, assim, arredada a possibilidade de ao Autor ser atribuído um valor indemnizatório correspondente à privação do uso de um veículo perante a resolução do contrato de compra e venda do mesmo, pois, com a resolução o Autor pretende que se “desfaça” tal contrato ou vínculo, colocando as partes na situação em que estariam se o contrato não tivesse sido celebrado. Pelo que soçobra igualmente a obrigação concedida pela venda do veículo quanto ao seu uso e fruição, aliás, tal poderá moldar o incumprimento do contrato tendo em conta o fim do mesmo, relacionado com o seu objecto ou utilidade, mas não constitui o escopo ou obrigação principal de tal contrato. Basta pensar que mesmo na compra e venda de um veículo nem sempre está subjacente a este o seu uso e fruição quanto à possibilidade de ser utilizado nas deslocações, basta pensar num veículo de colecção, cujo objectivo na aquisição é apenas possuir tal “objecto” sem que se retire do mesmo a utilidade concreta.
• Da litigância de má fé
Resta, por fim, aferir do desacerto ou não da decisão quando conclui pela inexistência de preenchimento da previsão do artº 542º do CPC, quer por banda do autor, quer da ré.
Insurge-se o autor com tal entendimento dizendo que tal advém da circunstância de a Recorrida assentar toda a sua defesa na tese de que o Recorrente analisou e experimentou o carro, assim como que foi expressamente informado que o mesmo tinha 398.000km, afirmando que “da análise da prova produzida resulta evidente que a Recorrida mentiu ostensiva e intencionalmente”. Assentou ainda que tal reconhecimento decorre da própria decisão de facto, ao dar como não provada toda essa factualidade. Pelo que entende que se deva concluir que a conduta da Ré se insere na previsão constante das alíneas a) e b) do nº 2 do art. 542º do CPC, impondo-se assim a condenação da Recorrida como litigante de má-fé e, nessa decorrência no pagamento de uma indemnização ao Recorrente, a fixar nos termos do disposto no art. 543º do Código de Processo Civil.
Na resposta a tal alegação veio a ré propugnar pela improcedência do recurso, defendendo aliás que deva considerar-se a alteração factual nos termos pretendidos no seu recurso, provando-se tais factos sempre cumpriu todos os princípios processuais, nomeadamente o de cooperação, de colaboração, de boa-fé processual e de respeito aos intervenientes processuais. Pois, defende, que sempre alegou os factos, e expôs a sua versão dos mesmos, aduzindo as suas razões e argumentos e juntou documentos, sem nunca, agir com dolo, ou intenção manifestamente reprovável, ou com intenção de entorpecer a Justiça ou de eximir-se das suas obrigações, ou de alguma forma faltar à verdade, dado que “defende séria e convictamente o seu direito alegando os factos espelhados na Contestação, demais articulados e actos processuais.”.
Por fim, assaca ao comportamento do recorrente a omissão deliberada da verdade dos factos que são do seu conhecimento pessoal, de modo a confundir os autos, entorpecer a ação da justiça e/ ou a impedir a descoberta da verdade, pelo que entende que, não deverá a Recorrida, mas sim o Recorrente ser condenado em multa e indemnização a favor da Recorrida a ser fixada nos termos do preceituado no artº 543º do Código de Processo Civil.
Resulta da posição assumida por ambas as partes, ainda que diametralmente oposta, que entendem que a litigância de má fé advém da prova dos factos relativos à forma com decorreu o negócio, defendendo a ré que se dê como provado o que foi alegado pela mesma e nessa medida que se considere a má fé do Autor, defendendo este o inverso, ou seja, a prova da sua versão o que levaria à litigância de má fé da ré.
O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto (art.º 607.º n.º 5, CPC). Tal princípio determina que a livre apreciação da prova não consente que o julgador forme a sua convicção arbitrariamente, antes lhe impondo um processo de valoração racional, dirigido à formação de um prudente juízo crítico global, o qual deve assentar na ponderação conjugada dos diversos meios de prova, aferidos segundo regras da experiência, atendendo aos princípios de racionalidade lógica e considerando as circunstâncias do caso. O resultado desse processo deve ter respaldo na prova produzida e tal deve decorrer, em termos suficientemente claros e objectivos, da fundamentação da decisão sobre a matéria de facto.
Porquanto esse resultado não pressupõe uma certeza absoluta, que seria praticamente inatingível na demanda pela reconstituição de uma determinada realidade passada, objectivo da produção e julgamento da prova. Como elucidam Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, para que um facto se considere provado é necessário que, à luz de critérios de razoabilidade, se crie no espírito do julgador um estado de convicção, assente na certeza relativa do facto. A prova “assenta na certeza subjectiva da realidade do facto, ou seja, no (alto) grau de probabilidade de verificação do facto, suficiente para as necessidades práticas da vida” ( in “Manual de Processo Civil, 2.ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, p. 436).
Essa certeza subjectiva, com alto grau de probabilidade, há-de resultar da conjugação de todos os meios de prova produzidos sobre um mesmo facto, ponderando-se a coerência que exista num determinado sentido e aferindo-se esse resultado convergente em termos de razoabilidade e lógica. Se pelo contrário, existir insuficiência, contradição ou incoerência entre os meios de prova produzidos, ou mesmo se o sentido da prova produzida se apresentar como irrazoável ou ilógico, então haverá uma dúvida séria e incontornável quanto à probabilidade dos factos em causa serem certos, obstando a que se considere o facto provado, ou ainda socorrendo-nos da norma do artº 414º quanto à forma como deve ser encarada a dúvida. A tudo isso acrescem as normas do ónus de prova.
Tudo se passa no âmbito da prova e sua análise, como bem se decidiu neste Tribunal e secção, em Acórdão proferido a 12/09/2024 ( Proc. nº4613/16.0T8ALM-B.L1 Relator: Adeodato Brotas, in rl.mj.pt/sumários6ª, sumário publicado no caderno temático – Litigância de má fé- caderno 15, no mesmo endereço): (…)3- Para efeitos do tipo de ilícito previsto no art° 542° n° 2, al. a) do CPC, não basta que a pretensão deduzida, a defesa apresentada ou o recurso interposto seja considerado improcedente, exige-se que seja invocada uma posição jurídica impensável, desrazoável, baseada numa interpretação de uma norma ou de um instituto jurídico totalmente contrária à opinião comum dos Doutores e da jurisprudência sedimentada. Ou seja, a simples sustentação de posições jurídicas que não correspondem à boa interpretação da lei não constitui, por si só, litigância de má-fé. 4- No que respeita à alínea c) do n° 2 do art° 542°, o preceito refere-se à prática de uma omissão grave do dever de cooperação. Esta dupla qualificação “omissão” e “grave” aponta, claramente, para uma restrição na aplicação do tipo: se a parte omite dolosa ou negligentemente uma conduta que era devida em cumprimento de um dever de cooperação, a sua conduta não pode, imediatamente, ser qualificada como típica. Para que a sua actuação possa vir a ser qualificada como ilícita deverá a omissão ser grave. 5- Relativamente ao tipo de ilícito da al. d) do n° 2 do art° 542°, o comportamento da parte tem de ser, não apenas reprovável mas, manifestamente reprovável e, além disso, exige-se que seja um comportamento finalístico: a parte instrumentaliza o processo ou os meios processuais para alcançar um fim, seja este o de atingir um objectivo ilegal, o impedir a descoberta da verdade, o de entorpecer a acção da justiça ou o de protelar o trânsito em julgado da decisão.
Alegou a A. a forma como o negócio decorreu dizendo que apenas teve contacto com o veículo quando o mesmo lhe foi entregue após a compra, ao invés, alegou a ré que o A. visitou as instalações da ré num momento anterior e teve oportunidade de ver o veículo objecto da compra. Quer pelo Tribunal recorrido, quer por este Tribunal se entendeu que resultava da prova, em termos de verosimilhança, a prova da versão do Autor. Porém, tal não determina a má fé para efeitos do artº 452º do Código de Processo Civil.
Com efeito, o tipo central de responsabilidade civil por comportamento processual não se limita a qualificar uma qualquer conduta lesiva de bens jurídicos como consubstanciando litigância de má-fé, pois descreve também as condutas que merecem um juízo de ilicitude (cf. Acórdão do STJ, proc. nº 1246/20.0T8STB.E1.S1, datado de 15/2/2022, in www.dgsi.pt). Paula Costa e Silva ( in “A litigância de má fé” pág. 599 e ss.) considera ainda que a má fé processual é fonte de responsabilidade civil, pelo que as regras previstas no artº 456º do Código de Processo Civil não são regras de procedimento, mas sim regras materiais relativas ao ilícito cometido aquando da prática de actos ou omissão de deveres processuais.
Donde, a verificação dos pressupostos que desencadeiem a condenação de uma parte como litigante de má fé consubstancia um verdadeiro juízo de censura sobre a sua atitude processual, em face do constatado uso que tenha feito dos mecanismos jurídicos postos ao seu dispor, com o vincado intuito de moralizar a actividade judiciária, sendo que, tanto pode revestir um caracter substancial (dedução de pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ser ignorada, alteração da verdade dos factos e/ou omissão de factos relevantes para a decisão da causa) como instrumental (seja porque se pratica grave omissão do dever de cooperação, seja porque se faz do processo ou dos meios processuais uso manifestamente reprovável).
Destarte, e em decorrência do exposto, existirá litigância de má fé sempre que se possa afirmar a reprovação e censura dos comportamentos da parte que, de forma dolosa ou, pelo menos, gravemente negligente, pretendeu convencer o tribunal de pretensão cuja falta de fundamento não devia ignorar, alterou a versão dos factos relativos ao litígio ou que faz do processo ou meios processuais uso manifestamente reprovável, sendo por isso evidente que a simples proposição de uma acção, que venha a ser julgada sem fundamento, ou a contestação deduzida a pedido que venha a ser julgado procedente, não constituem, de per si, actuação dolosa ou gravemente negligente da parte.
No caso dos autos falhará desde logo a integração do comportamento processual em qualquer um dos parâmetros do artº 456º do Código de Processo Civil. Afastada a ilicitude do comportamento da ré, por ausência de comportamentos da parte que poderiam fundamentar a litigância de má fé, pois a utilização dos meios processuais ao seu dispor não constitui qualquer actuação contrária ao direito, ou sequer em abuso de direito, por ausência de factos consubstanciadores da mesma, em nada relevando as decisões contrárias à posição da ré proferidas naquela acção.
Assim, nada há a apontar à decisão recorrida ao afastar a responsabilidade da ré no âmbito do instituto da litigância de má fé.
Deste modo, improcede o recurso nesta parte, pois não configura a actuação das partes a possibilidade de convocar a litigância de má fé de ambas.
Face a todas as nuances da presente decisão e a assunção por ambas as partes da posição de recorrentes, a responsabilidade quanto a custas será de ambas, em partes iguais.
*
IV. Decisão:
Por todo o exposto, Acorda-se em:
a) Julgar parcialmente procedente o recurso de apelação interposto pelo Autor e, consequentemente, mantem-se a declaração de resolução do contrato, bem como a condenação da ré a restituir ao Autor a quantia de € 4.650,00, quantia esta acrescida de juros de mora, a contar da data da citação até integral pagamento, revogando-se a decisão na parte em que condicionou tal pagamento à entrega da viatura à R., e mantendo-se, no mais, a decisão recorrida;
b) Julgar improcedente o recurso interposto pela ré.
Custas pelo A. e ré, na proporção de metade cada.
Registe e notifique.

Lisboa, 10 de Abril de 2025
Gabriela de Fátima Marques
João Brasão
Vera Antunes