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ACÇÃO DE SIMPLES APRECIAÇÃO NEGATIVA
CAUSA DE PEDIR
ÓNUS DE PROVA
UNIÃO DE FACTO
Sumário
I. A causa de pedir nas acções de simples apreciação negativa consubstancia-se na inexistência do direito e nos factos materiais pretensamente cometidos pelo demandado que determinaram o estado de incerteza. II. No caso de ação de simples apreciação ou declaração negativa, o réu fica com o ónus da prova dos factos em que assenta o direito que se arroga (cf. artº 343º nº 1 do CC), porém, para que o direito do réu lhe seja reconhecido é necessário que o titular do direito formule tal pedido, nomeadamente através de um pedido reconvencional. III. A protecção por morte dos beneficiários abrangidos pelo regime de segurança social pela atribuição da pensão de sobrevivência é extensivo às pessoas que vivam em união de facto, devendo efectuar-se prova da união de facto por mais de 2 anos à data do óbito do beneficiário, tendo deixado de se exigir a prova da necessidade de alimentos. IV. O decurso dos dois anos faz presumir que a convivência em comum já adquiriu uma certa estabilidade, satisfazendo-se, assim, as exigências da segurança jurídica, afastando, assim, a concessão de alimentos ao membro sobrevivo de uma relação fugaz ou efémera. (Sumário elaborado pela relatora)
Texto Integral
Acordam os Juízes na 6ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. Relatório:
Instituto de Segurança Social/Centro Nacional de Pensões, IP, intentou a presente acção declarativa sob a forma comum, contra BB e AA, pedindo que seja: - Julgada não reconhecida a vivência em situação de união de facto entre a Ré BB e o beneficiário CC; - Julgada não reconhecida a vivência em situação de união de facto entre a Ré AA e o beneficiário CC.
Alega a Autora, para o efeito, e em síntese, que CC, falecido em .../02/2019, era o beneficiário do ISS, IP/CNP, ora Autor e que, em consequência do falecimento do referido beneficiário, veio a Ré BB, em 22.02.2019, requerer as prestações por morte, na qualidade de “unida de facto”. Por sua vez, veio 2ª Ré AA requerer as prestações por morte, na qualidade de “unida de facto”. Sopesando a existência de dois requerimentos de prestações por morte, por morte do beneficiário falecido CC e o facto de ambas as Rés invocarem que a vivência em união de facto com o beneficiário falecido, por período superior a dois anos até à data da morte do mesmo, levantam-se sérias dúvidas ao Autor, saber qual das versões alegadas pelas respectivas Rés corresponde à verdade.
As Rés foram citadas, sendo que apenas a 2ª ré, AA, veio contestar, defendendo que entre janeiro de 2016 até data do falecimento do beneficiário, estava a viver e conviver em união de facto com o mesmo. Concluindo pela procedência parcial, no sentido de “ser reconhecida tão somente a vivência em situação de união de facto” da própria e “não reconhecida a vivência em situação de união de facto entre a 1ª Ré e o beneficiário falecido”.
Dispensada a audiência prévia, fixado o objecto do litígio e enunciados os temas de prova, foi realizado o julgamento, e de seguida proferida sentença com o seguinte dispositivo decisório: “julga-se a presente ação procedente por provada, e, em consequência,
- Julga-se não reconhecida a vivência em situação de união de facto entre a Ré BB e o beneficiário CC, falecido em .../02/2019;
- Julga-se reconhecida a vivência em situação de união de facto entre a Ré AA e o beneficiário CC, falecido em .../02/2019, com efeitos a 31.12.2016.
Inconformada veio a Autora recorrer, formulando as seguintes conclusões:
«1. Tratando-se de uma ação de simples apreciação negativa, ao julgar a acção procedente, deveria a MM.ª Juiz julgar não reconhecida a união de facto com as duas Rés e não apenas com uma, pois assim sendo e concluindo da forma como concluiu, deveria, sim, julgar a ação parcialmente procedente, pelo que a sentença é nula, nos termos do art.º 615º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil.
2. O facto 6 da matéria dada como provada, deveria ter a seguinte redação:
6. O falecido (beneficiário), entre meados de 2018 até data do seu falecimento e a 2.ª Ré estavam a viver e a partilhar leito, mesa e habitação, na Rua ..., tendo esta partido para o Brasil, em finais do mesmo ano, apenas regressando após o óbito daquele (.../02/2019).
3. Deverá ser eliminado o ponto 8 e 10.
4. Da prova produzida nenhuma testemunha assegurou, com um elevado grau de certeza, o relato de factos concretos que possam assegurar que a R. AA e o beneficiário falecido, à data do óbito deste, vivessem numa situação de união de facto, há mais de 2 anos.
5. Contudo, o Tribunal recorrido entendeu que “As testemunhas melhor infra identificadas são todas clientes do café no explorado pela 2.ª Ré e no qual trabalhava CC. Todas as testemunhas os identificaram como um casal, que assim se apresentava e era visto pelos clientes, que trabalhavam em conjunto no café, viviam na mesma casa, sendo o CC acompanhado pela 2.ª Ré na doença, que se prolongou no tempo. Com respeito à duração da relação DD, Situa a aquisição do café "um ano talvez para trás em 2018" e ". Vi o Sr. CC a adoecer gradativamente. (…) Quando ele chegou ao café tava saudável". EE
FF, declarou que a 2.ª Ré e o falecido estavam no café "há uns dois anos" e declarou ainda ter conhecimento CC ainda com saúde e degradação do estado de saúde. GG, indagada sobre há quanto tempo a Ré e o falecido estavam no café respondeu "2016" e indagada para justificar essa data disse "Porque eu me lembro de ele estar doente em 2018 e de comentar "Nestes dois anos o CC só tem vindo a piorar. Em 2018 ele já estava doente. EE, irmã de CC declarou que o irmão lhe apresentou a 2.ª Ré como sua namorada em outubro de 2018 e que esteve na casa sita na ... em ..., onde passou a noite que antecedeu o óbito do seu irmão, tendo sido informada que o estado de saúde do irmão piorara. Este encontrava-se com HH, filho da 2.ª Ré.
6. Salienta “ainda que as testemunhas possam situar o conhecimento que têm da relação entre a 2.ª Ré e o falecido CC a 31.12.2016 (dois anos anteriores ao ano de 2018, sem que tenham situado em que período do ano de 2018 fazem recuar os dois anos de relação, mas ditando os documentos médicos que nessa data CC e encontrava num estado de doença grave e situemos o conhecimento das testemunhas a 31.12.2018), temos documentos médicos dirigidos para a morada sita na R. ... referindo um Pneumonia – internamento 6/2017/ e situando todas as testemunhas que conheciam ao falecido do café que o conheceram ainda de boa saúde torna-se credível que em 31.12.2016 que o CC e a 2.ª Ré vivessem juntos em casa cujos contratos se encontravam em nome da 2.ª Ré e se apresentassem no café como se marido e mulher fossem.”
7. De acordo com o Ac. do Tribunal da Relação, proferido no âmbito do Processo n.º Proc. Nº 176/19.3T8CBC.G1, de 23/07/2020, “nesta sua função de reapreciação da decisão de facto não opera apenas em casos de erros manifestos de apreciação, mas também pode formar uma convicção diversa da 1ª instância sobre os pontos de facto impugnados, o que deve levar a nova decisão que contenha esse resultado, fundamentadamente, e se assim se impuser”.
8. Contudo da análise da prova, parece que, salvo o devido respeito, não teve em consideração que a presente ação, que se reporta ao artº. 6º, nº. 3, da Lei nº.7/2001 de 11/5.
9. É que o Tribunal, salvo o devido respeito, não fez uma exaustiva análise do depoimento das testemunhas arroladas, apenas remetendo o seu depoimento para os documentos juntos, os quais, por si só, não fazem nem podem fazer prova de qualquer União de Facto.
10. A única testemunha que referiu que viviam desde o ano de 2016, foi a testemunha GG, mas de uma forma muito ténue, pois fez uma referência que quando o beneficiário estava doente, em 2018, lhe disseram que estava assim há dois anos. Mas pergunta-se …. Nessa altura já o conhecia? Já frequentava a casa, onde apenas foi umas duas ou três vezes e nem tão pouco soube descrever ao Tribunal em que andar morava. Não tomou refeições com casal?
11. Como pode o Tribunal recorrido dar como adquirido que o mesmo residia e vivia em União de Facto há mais de 2 anos com a requerente de prestações por morte, AA? Vamos atribuir mais uma prestação social, com base num depoimento de uma testemunha, com um depoimento fraco, confuso, cujo o conhecimento é indireto, não presenciou factos, sendo a prova suportada com documentos médicos, de acompanhamentos a consultas?
12. Segundo a nossa modesta opinião, não houve uma única testemunha que tenha relatados factos que possam consistir numa verdadeira união de facto. Por exemplo, que frequentassem em festas e refeições juntos… Que se apresentavam perante a sociedade como um casal… até podemos aceitar. Mas… onde está a partilha de recursos? A entreajuda? O trato sexual? A comparticipação nas despesas?
13. Nem sequer resultou provado que mantiveram trato sexual, que tomavam refeições juntos com regularidade e que era reconhecida a relação afetiva pela família de ambos (durante dois anos)
14. Nenhuma das testemunhas era frequente visita da casa. Foram lá uma ou duas vezes, ficaram à porta, ajudaram a R. AA nas compras. O HH, filho da Ré AA, apenas veio para Portugal em Julho de 2018, sendo que o beneficiário faleceu em fevereiro de 2019, o que nem tão pouco perfaz o requisito de dois anos exigido para a convivência em comum, ou seja, o seu depoimento não assegura, em, momento algum, que a vivência em comum tenha durado 2 anos, pois só assistiu à relação, presencialmente, pouco mais de 6 meses (sendo que nesse período o sua mãe esteve uma parte ausente no Brasil).
15. Como efeito, na explicitação do que se deve entender por “viver em condições análogas às dos cônjuges”, a doutrina e jurisprudência concluem que só se verifica essa realidade quando exista uma comunhão de vida nos aspectos essenciais da vida de ambos os intervenientes, como se estes fossem casados.
16. O que é realmente essencial para afirmar que duas pessoas vivem em união de facto, é estar demonstrado que elas têm um projeto de vida em comum, análogo à dos cônjuges, concretizado por uma comunhão plena de vida, concretizada em comunhão de mesa, leito e habitação. E que, nos termos e para os efeitos da Lei 7/2001, de 11 de Maio, essa união de facto, como se efetivamente de marido e mulher se tratassem, perdure por um período
temporal superior a dois anos, antes do falecimento de um dos membros da união – o que não é de todo este caso.
17. Não está demonstrado que a recorrida AA e CC adquiriram em conjunto bens para a habitação, partilhavam as despesas comuns da habitação, (sendo irrelevante se a casa, onde eventualmente pernoitavam, ser bem próprio de um e de outro) ou se tinham qualquer património comum, como organizavam o dia a dia.
18. Consideramos que da prova produzida não se pode concluir que resultam provados factos para se aceitar a existência de uma economia comum, elemento essencial para se concluir pela união de facto, - comunhão de vida nos aspetos essenciais da vida de ambos os intervenientes, como se estes fossem casados.
19. Não significa que se está a negar a existência de um relacionamento afetivo, íntimo, entre a Recorrida e o falecido, no âmbito do qual ambos partilharam passeios e até se acompanhavam nas consultas.
20. Porém, não decorre da prova recolhida a partilha de todos os momentos de vida, seja a nível familiar, seja a nível económico. Apenas resulta que exploravam um café em conjunto, mas não resulta a compartilha nem das despesas domésticas, pessoais e familiares, tais como de alimentação, vestuário, higiene, transportes, saúde e lazer.
21. Aqueles que vivam numa situação análoga à dos cônjuges têm uma situação de economia comum, ou seja, têm despesas do agregado que são pagas com os rendimentos de ambos e a perda desses rendimentos pode ser devastadora para a parte sobreviva. Daí a razão de ser da Pensão de Sobrevivência.
22. Da prova produzida não existem elementos essenciais que se possa dar como certa a vivência numa situação de união de Facto. Com efeito, o conceito de “união de facto” ou de vivência “em condições análogas às dos cônjuges” –expressões do artigo 2020.º, nº 1 do Código Civil, na sua anterior redação –tem de ser preenchido por via da alegação e prova de factos concretos que caracterizem o modo de vida próprio dos cônjuges, como sejam, a partilha da mesma habitação, cama, mesa e economia: tem que haver um esforço
conjunto, a contribuição para as despesas comuns, colaboração na vida quotidiana.
23. Por outro lado, a união de facto requer exclusividade, exigida pela vivência “em condições análogas à dos cônjuges”, visa-se uma “ficção de casamento” para que a lei lhe atribua relevância jurídica. Para tal é necessário que a relação seja vista, para aqueles que rodeiam os membros da união de facto e com eles convivam, como uma relação em tudo semelhante ao casamento, em que as pessoas sejam como tal vistas e tratadas.
24. A caracterização destas situações estáveis, consolidadas, notórias, de convivência de casa e pucarinho exige como elemento essencial a comunhão de residência, a comunhão de habitação.
25. Ora, nem do depoimento das testemunhas, cujo excerto se encontra transcrito, nem dos documentos que a MM.ª Juiz se suporta quanto ao período temporal, pode resultar que houvesse um contributo fixo ou variável para despesas comuns do casal, para a comunhão de vida (comunhão de cama, mesa e habitação) e para a economia comum baseada na entreajuda ou partilha de recursos.
26. Ou seja, da prova produzida o que resulta é que tinham uma relação de grande afetividade e de grande cumplicidade, eventualmente viviam juntos desde o verão/outono de 2018, como afirmou a irmão do beneficiário falecido EE,
27. Daqui resulta que não se pode concluir que existisse entre ambos uma comunhão plena de vida, tal como exigida pela lei, durante dois anos, e sem prejuízo do relacionamento íntimo e afetivo que mantinham.
28. A jurisprudência aponta no mesmo sentido. Veja-se, por exemplo, por recente Acórdão uniformizador de jurisprudência do STJ, n.º 7/2017, de 11/05/2017, ao afirmar na sua fundamentação que: “no que concerne à união de facto pode dizer-se, reflectindo uma realidade evidente, que ela se constitui quando duas pessoas se "juntam" e passam a viver em comunhão de leito, mesa e habitação”. disponível para consulta em http://www.dgsi.pt/
29. Deste modo deveria o doutro Tribunal “A quo” julgar a ação totalmente procedente, por provada e, em consequência não reconhecer a alegada união de facto entre a Ré AA e o beneficiário falecido CC.
30. Não o fazendo, violou os artigos 343º, n.º 1, 668º, 712º, nº2 do CPC, e 473º e segs. do CC, art.º 4º, n.º 1 do DL n.º 322/90, de 18/10, bem como art.º 1º, n.º 2, da Lei n.º 7/2001.
Nestes termos e nos mais de Direito, que V. Ex.as, Venerandos Desembargadores suprirão, deverá o presente recurso ser julgado procedente, de acordo com as conclusões anteriores, revogando-se a decisão recorrida, substituindo-a por outra que não reconheça a alegada União de Facto, assim se fazendo a acostumada Justiça.».
O recurso foi admitido sem que o Tribunal recorrido tenha apreciado a nulidade da sentença arguida em sede de recurso, pelo que recebidos os autos a 11/11/2024, a 12/11/2024, foi proferido o seguinte despacho: “Atenta a arguição da nulidade da sentença apontada em sede de recurso, mormente na sua 1ª conclusão, e o disposto no artº 617º nº 1 e nº 5 primeira parte do Código de Processo Civil, determino que os autos baixem à 1ª Instância, a título devolutivo, para que o Juiz a quo se pronuncie quanto à nulidade em causa.”.
Recebidos os autos foi apreciada a nulidade, por despacho proferido a 20/01/2025, nos seguintes termos:” (...) Atento o teor do segmento decisório verifica-se que assiste razão à recorrente quando conclui que deveria escrever-se o "parcialmente" na parte decisória porquanto, na verdade, a ação foi julgada parcialmente procedente, tendo em consideração a matéria provada e a fundamentação de Direito. A não inserção desse segmento deveu-se a mero lapso de escrita que se reconhece. Em conformidade com o disposto no artigo 617.º, n.º 2 do CPC supre-se a nulidade apontada, passando o segmento decisório a constar nos seguintes termos: "Nestes termos e com tais fundamentos julga-se a presente ação parcialmente procedente por provada, e, em consequência: - Julga-se não reconhecida a vivência em situação de união de facto entre a Ré BB e o beneficiário CC, falecido em .../02/2019; - Julga-se reconhecida a vivência em situação de união de facto entre a Ré AA e o beneficiário CC, falecido em .../02/2019, com efeitos a 31.12.2016.".
Mediante solicitação de informação por este Tribunal a 21/03/2025, foi ordenada por despacho proferido nesse mesmo dia a subida dos autos.
Admitido o recurso neste tribunal e colhidos os vistos, cumpre decidir.
* Questões a decidir:
O objecto do recurso é definido pelas conclusões do recorrente (art.ºs 5.º, 635.º n.º3 e 639.º n.ºs 1 e 3, do CPC), para além do que é de conhecimento oficioso, e porque os recursos não visam criar decisões sobre matéria nova, ele é delimitado pelo conteúdo da decisão recorrida.
Deste modo, as questões a apreciar e a decidir são as seguintes:
a) Aferir se a decisão apelada é nula, nos termos previstos no artigo 615.º, n.º 1, alínea c) do Código de Processo Civil, aferindo-se da decisão em conformidade;
b) Aferir se é de alterar o ponto 6. dos factos provados e dar como não provado a factualidade contida nos pontos 8. e 10.;
c) Decidir se, igualmente em razão da factualidade alterada nesta decisão, se impõe revogar a Decisão recorrida, sendo substituída por outra que julgue a acção procedente, declarando não reconhecida a vivência em situação de união de facto entre ambas as rés e o beneficiário CC.
*
II. Fundamentação:
No Tribunal recorrido foram considerados provados os seguintes Factos:
1. CC, falecido em .../02/2019, era o beneficiário nº .../00 do ISS, IP/CNP [do art.º 1.º - petição inicial].
2. Em consequência, do falecimento do referido beneficiário, veio a Ré BB, em 22.02.2019, requerer as prestações por morte, na qualidade de “unida de facto”. [do art.º 2.º - petição inicial]
3. Dos documentos que a Ré apresentou junto dos serviços do Autor, consta um atestado emitido pela ... Julião da Barra, ..., datado de 13.06.2019, onde se escreve (…) “Mais se atesta que a requerente viveu em regime de União de Facto com CC, portador do cartão de cidadão n.º 6261984 e NIF 11055442, na ..., ... ..., desde Junho de 2000 a Maio de 2017 e na ..., ... Oeiras, de Maio de 2017 até a data do seu falecimento em Fevereiro de 2009, com eles residia também o filho de ambos II.”. [do art.º 4.º - petição inicial]
4. A Ré BB também preencheu e assinou uma declaração, sob compromisso de honra, que viveu com o beneficiário falecido em união de facto há mais de dois anos, à data do falecimento. [do art.º 5.º - petição inicial]
5. Por requerimento que deu entrada nos Serviços do A., em 21.05.2019, em consequência, do falecimento do mesmo beneficiário, veio 2.ª Ré AA, requerer as prestações por morte, na qualidade de “unida de facto”. [do art.º 6.º - petição inicial]
6. O falecido (beneficiário), entre 31.12.2016 até data do seu falecimento e a 2.ª Ré estavam a viver e a partilhar leito, mesa e habitação, na Rua .... [do art.º 7.º e 12.º - contestação]*Alterado nesta decisão, passando a ter a seguinte redacção:
6. O falecido (beneficiário) e a 2ª Ré, entre meados de 2017 até data do seu falecimento, estavam a viver e a partilhar leito, mesa e habitação, na ....
7. A 2.ª Ré também partilhava com o sr. CC o ambiente de trabalho, pois a 2.ª Ré é proprietária do ..., sito no ..., no qual o falecido lhe auxiliava diariamente. [do art.º 13.º - petição inicial]
8. Tais factos mantiveram-se entre o Beneficiário e a 2.ª Ré até o momento do óbito de CC. [do art.º 14.º - petição inicial]
9. CC passou a apresentar problemas de saúde. Inicialmente uma pneumonia, que lhe gerava a necessidade de cuidados ambulatoriais recorrentes. Posteriormente em decorrência de uma queda que o fez partir uma vertebra, o falecido teve de ser submetido a um procedimento para colocação de uma placa, a qual ficou mal posicionada, de modo a gerar inúmeras complicações ao seu estado de saúde. [do art.º 17.º - petição inicial]
10. Tudo isso a contar sempre com o apoio e cuidado da 2ª Ré, que além de administrar os remédios que tinha de tomar, muitas vezes o auxiliou com a higienização dos pontos, com a higienização pessoal, também gerindo as datas de consultas, exames e análises que seu companheiro tinha de realizar. [do art.º 18.º - petição inicial]
11. CC, na Ação de Regulação das Responsabilidades Parentais, movida pela sra. BB, em favor do filho de ambos. Citação essa que requeiro igualmente a juntada (Doc. 5 – Processo n.º 3497/17.6T8CSC – Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Oeste – Juízo de Família e Menores de Cascais – Juiz .... [do art.º 22.º - petição inicial]
12. BB, em 13.11.2017, iniciou um processo para a regulação das responsabilidades parentais entre ela, o filho e o pai (CC). [do art.º 23.º-I - contestação]
13. II. No documento de citação havia a indicação do domicílio do requerido na ... [do art.º 23 -II.º - contestação]
14. No corpo da citação nos deparamos com o requerimento da sra. ..., no qual, de próprio punho, afirma: “o requerente encontra-se separado da requerida desde ano 2015 agosto”. [do art.º 23 -III.º - contestação]
15. Por fim, também no requerimento que consta na mencionada citação, preenchido pela 1ª Ré, indica-se a morada de trabalho do beneficiário: “Morada: JJ. ...”. [do art.º 23 -IV.º - contestação]
16. Na data do seu falecimento, o Beneficiário estava em casa (na referida morada), na companhia do filho da 2.ª R. AA, que estava em viagem, tendo sido o HH (filho da 2ª Ré), quem solicitou ajuda médica. [do art.º 24 - contestação].
*
Foi considerado como não provado:
- Que a data do artigo 7.º da contestação seja de janeiro de 2016
- Do artigo 12.º - contestação - juntamente com o filho da 2.ª Ré, HH.
* Da impugnação da decisão de matéria de facto:
Precederia o conhecimento da impugnação dos factos a ter em conta a nulidade da sentença, porém, entendemos que em termos de metodologia e considerando o que se discute tendo por base a natureza da acção quanto ao seu fim – acção de simples apreciação negativa – haverá utilidade em apreciar primeiramente a alteração dos factos propugnada em termos de recurso.
Neste âmbito, entende a recorrente que deve ser alterada a resposta ao facto contido em 6 da matéria dada como provada, e eliminados os pontos 8 e 10., que passariam, desta forma, a ser não provados. Conclui que da prova produzida nenhuma testemunha assegurou, com um elevado grau de certeza, o relato de factos concretos que possam assegurar que a R. AA e o beneficiário falecido, à data do óbito deste, vivessem numa situação de união de facto, há mais de 2 anos.
Quando seja impugnada a matéria de facto estabelece o art. 640.º do C.P.C.:«(…), deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. E nos termos do nº 2 no caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respectiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes; b) Independentemente dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe ao recorrido designar os meios de prova que infirmem as conclusões do recorrente e, se os depoimentos tiverem sido gravados, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda e proceder, querendo, à transcrição dos excertos que considere importantes.
Refere Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 4ª Ed., Almedina, 2017, pp. 158-159: «A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em algumas das seguintes situações: a) Falta de conclusão sobre a impugnação da decisão da matéria de facto (arts. 635.º, n.º 4, e 641.º, n.º 2, al. b)); b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados (art. 640.º, n.º 1, al. a));c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.); d) Falta de indicação exacta, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda; e) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação».
Em caso de impugnação da decisão sobre a matéria de facto, o recorrente deve identificar os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, não podendo limitar-se a indicar os depoimentos prestados e a listar documentos, sem fazer a indispensável referência àqueles pontos de facto, especificando os concretos meios de prova que impunham para cada um desses pontos de facto fosse julgado provado ou não provado. A apresentação das transcrições globais dos depoimentos das testemunhas não satisfaz a exigência determinada pela al. a) do n.º 2 do art. 640.º do C.P.C.( Cfr. Acs. do S.T.J. de 19.02.2015, Proc. n.º 299/05.6TBMGD.P2.S1 (Tomé Gomes) e Proc. n.º 405/09.1TMCBR.C1.S1 (Maria dos Prazeres Pizarro Beleza), in www.dgsi.pt. ).
Salienta-se ainda que o S.T.J. “tem vindo a sedimentar como predominante o entendimento de que as conclusões não têm que reproduzir (obviamente) todos os elementos do corpo das alegações e, mais concretamente, que a especificação dos meios de prova, a indicação das passagens das gravações e mesmo as respostas pretendidas não têm de constar das conclusões, diversamente do que sucede, por razões de objectividade e de certeza, com os concretos de facto sobre que incide a impugnação.”( Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 771; cfr. ainda os Acs. do S.T.J. citados pelos Autores).
Assim, se o recorrente impugna determinados pontos da matéria de facto, mas não impugna outros pontos da mesma matéria, estes não poderão ser alterados, sob pena de a decisão da Relação ficar a padecer de nulidade, nos termos do artº 615.º, n.º 1, al. d), 2ª parte, do C.P.C. É, assim, dentro destes limites objectivos que o artº 662.º do C.P.C. atribui à Relação competências vinculadas de exercício oficioso quanto aos termos em que pode ser feita a alteração da matéria de facto, o mesmo é dizer, quanto ao modus operandi de tal alteração.
Acresce que não se deverá proceder à reapreciação da matéria de facto quando os factos objecto de impugnação não forem susceptíveis, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, de ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma actividade processual que se sabe ser inútil, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processuais (arts. 2º, nº 1, 137º e 138º, todos do C.P.C.)
Feito este enquadramento, não nos merecem dúvidas sobre o cumprimento pela recorrente das normas adjectivas expostas, pelo que cumprirá aferir se da análise da prova importará proceder à alteração dos factos nos termos defendidos pela recorrente, a saber, alteração do ponto 6. e eliminação dos pontos 8. e 10.
O ponto 6., 8 e 10 têm a seguinte redacção:
6. O falecido (beneficiário), entre 31.12.2016 até data do seu falecimento e a 2.ª Ré estavam a viver e a partilhar leito, mesa e habitação, na Rua José Henriques Coelho, n.º 5 – 6º C, 2770-103 Paço de Arcos. [do art.º 7.º e 12.º - contestação]
8. Tais factos mantiveram-se entre o Beneficiário e a 2.ª Ré até o momento do óbito de CC. [do art.º 14.º - petição inicial]
10. Tudo isso a contar sempre com o apoio e cuidado da 2ª Ré, que além de administrar os remédios que tinha de tomar, muitas vezes o auxiliou com a higienização dos pontos, com a higienização pessoal, também gerindo as datas de consultas, exames e análises que seu companheiro tinha de realizar. [do art.º 18.º - petição inicial]
A recorrente pretende que o ponto 6. passe a ter a seguinte redacção:
6. O falecido (beneficiário), entre meados de 2018 até data do seu falecimento e a 2.ª Ré estavam a viver e a partilhar leito, mesa e habitação, na Rua ..., tendo esta partido para o Brasil, em finais do mesmo ano, apenas regressando após o óbito daquele (.../02/2019).
Antes de abordarmos o que fundamenta a possibilidade de se obter tal alterabilidade importa ter presente que no nosso ordenamento jurídico vigora o princípio da liberdade de julgamento ou da livre convicção, face ao qual o tribunal aprecia livremente as provas, sem qualquer grau de hierarquização e fixa a matéria de facto em sintonia com a convicção firmada acerca de cada facto controvertido, tendo porém presente o princípio a observar em casos de dúvida, consagrado no artigo 414º do C.P.C., de que a «dúvida sobre a realidade de um facto e sobre a repartição do ónus da prova resolve-se contra a parte a quem o facto aproveita». Conforme é realçado por Ana Luísa Geraldes («Impugnação», in Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor José Lebre de Freitas, Vol. I. Coimbra, 2013, pág. 609 e 610), em «caso de dúvida, face a depoimentos contraditórios entre si e à fragilidade da prova produzida, deverá prevalecer a decisão proferida pela 1ª instância, em observância dos princípios da imediação, da oralidade e da livre apreciação da prova, com a consequente improcedência do recurso nesta parte». E mais à frente remata: «O que o controlo de facto em sede de recurso não pode fazer é, sem mais, e infundadamente, aniquilar a livre apreciação da prova do julgador construída dialecticamente na base dos referidos princípios da imediação e da oralidade.»
Assim, apesar de se garantir um duplo grau de jurisdição, tal deve ser enquadrado com o princípio da livre apreciação da prova pelo julgador, previsto no artº 607 nº 5 do C. P. Civil, sendo certo que decorrendo a produção de prova perante o juiz de 1ª instância, este beneficia dos princípios da oralidade e da mediação, a que o tribunal de recurso não pode já recorrer.
De acordo com Miguel Teixeira de Sousa, in “Estudos Sobre o Novo Processo Civil”, pág. 347, “Algumas das provas que permitem o julgamento da matéria de facto controvertida e a generalidade daquelas que são produzidas na audiência final (…) estão sujeitas à livre apreciação do Tribunal (…) Esta apreciação baseia-se na prudente convicção do Tribunal sobre a prova produzida (art.º 655.º, n.º1), ou seja, as regras da ciência e do raciocínio e em máximas da experiência”.
Donde, para que a decisão da 1ª instância seja alterada haverá que averiguar se algo de “anormal” se passou na formação dessa apontada “convicção”, ou seja, ter-se-á que demonstrar que na formação da convicção do julgador de 1ª instância, retratada nas respostas que se deram aos factos, foram violadas regras que lhe deviam ter estado subjacentes, nomeadamente face às regras da experiência, da ciência e da lógica, da sua conformidade com os meios probatórios produzidos, ou com outros factos que deu como assentes.
Porém, e apesar da apreciação em primeira instância construída com recurso à imediação e oralidade, tal não impede a «Relação de formar a sua própria convicção, no gozo pleno do princípio da livre apreciação das provas, tal como a 1ª instância, sem estar de modo algum limitada pela convicção que serviu de base à decisão recorrida(…) Dito de outra forma, impõe-se à Relação que analise criticamente as provas indicadas em fundamento da impugnação, de modo a apreciar a sua convicção autónoma, que deve ser devidamente fundamentada» (Luís Filipe Sousa, Prova Testemunhal, Alm. 2013, pág. 389).
Há que salientar que face ao fim da acção, tratando-se de uma acção de simples apreciação negativa, compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga (nº 1 do Artigo 343º do Código Civil). Com efeito, neste tipo de acções, o ónus probatório é, assim, repartido: i) o autor justifica na petição a necessidade de recurso à via judicial com base na arrogância extrajudicial do réu; ii) o réu deverá demonstrar os factos constitutivos do direito que se arroga e iii) feita essa prova, cabe ao autor demonstrar a existência de factos impeditivos ou extintivos do direito do réu (cf. Luís Filipe Sousa, Direito Probatório Material Comentado, 3ª ed., Almedina, 2023, pág. 41).
Logo, competiria às rés fazer prova do direito que se arrogam, direito esse que a A. pede que não seja reconhecido em relação a ambas as rés, e que o Tribunal acabou por “confirmar” em relação à 2ª ré, ao invés de declarar apenas improcedente quanto a esta, sendo que esta questão será abordada infra, na apreciação da nulidade da sentença. Porém, tendo por base o ónus imposto às rés haverá que lançar mão do princípio inserto no artº 414º do Código de Processo Civil, frise-se, em caso de dúvida decidir-se-á contra a parte a quem o facto aproveita.
Competiria, assim, à ré/recorrida nos autos fazer prova dos factos integradores da união de facto com o falecido, nos dois anos anteriores ao seu falecimento.
Apreciando e percepcionados todos os depoimentos prestados, resulta que a testemunha EE, irmã do falecido, referiu que não era frequente ir a sua casa, mas que sabe que este morava em ..., no momento em que faleceu referiu que na véspera foi com o mesmo ao Hospital, nunca subiu à casa dele, ou talvez uma vez, normalmente encontravam-se ou à porta, ou no café junto da casa. Confirmou que o seu irmão tinha uma namorada que era a AA, a 2ª ré, não sabe o tempo de namoro, mas no Verão de 2018 é que conheceu a AA, foi-lhe apresentada nessa altura, o falecido teve vários internamentos, nomeadamente no ... e na Clínica de Stº António, visitou-o nos internamentos, nunca viu nem a AA nem a BB ( 1ª ré), no Hospital. O irmão referia-lhe que viviam juntos, o próprio e a AA, passando a viver na mesma casa, na morada que aludiu. Já tinha deixado de viver com a mãe do filho, a 1ª ré. Aludiu que quem tratou do funeral foi a própria juntamente com os demais irmãos, pois a AA não estava em Portugal, estava ausente no Brasil, apenas estava o filho da AA, HH. Disse que no Natal de 2018 o irmão lhe disse que o passou com o HH, não se recorda bem, mas crê que a AA estaria já no Brasil. Relativamente aos esclarecimentos do mandatário da 1ª ré nada resultou sobre o que se discute nestes autos quanto a datas, pois o relacionamento com a 1ª ré foi muito anterior, tal resulta evidente na acção intentada pela 1ª ré no âmbito do exercício das responsabilidades parentais do filho do falecido e da 1ª ré. De seguida confirmou que o falecido trabalhava juntamente com a AA num estabelecimento comercial, num café, como namorada só lhe foi apresentada em 2018, nos anos de 2016 e 2017 nada sabe, apenas confirmou que tal ocorreu desde 2018.
KK, disse conhecer a ré AA por ser cliente do café explorado pela mesma, já frequentava o mesmo antes de ser explorado pela ré, também conheceu o falecido, mas apenas do café, pois o mesmo trabalhava lá, diziam que eram marido e mulher e que viviam juntos. Aludiu que em 2019 foi a altura em que começaram a explorar o estabelecimento, o que não poderá corresponder pois CC faleceu logo em Fevereiro desse ano. Foi ainda dizendo, porém, que seria há cerca de 4 anos, o que corresponderia a 2020. Aludiu que ambos apareceram logo a explorar o café, em casal. Afirmou que chegou a ir levar o falecido a casa, cerca de duas vezes, sendo que este morava numa cave ou r/c, pois levou-o até à porta. A testemunha foi confusa no seu depoimento, quer quanto a datas, quer o local de residência, que nunca se situou num r/c ou cave.
DD, também afirmou ser cliente do café explorado pela ré e o falecido, exploravam juntos, dizendo que eram companheiros ou um casal, e que afirmavam viver juntos muito próximo do café. Situou o falecimento antes da pandemia, em 2019, conheceu-os cerca de um ano antes, em 2018, pois este café teve “muitas trespassagens”. Confirmou a doença do falecido, invocando um desmaio no estabelecimento, alegou um passeio/excursão em casal, onde o falecido e a ré AA se apresentaram como casal, não conseguiu precisar a data. O falecido comentou um dia que tinha uma ex-mulher e o filho, situando tal informação em meados de 2018. A AA ausentou-se por razões de ordem familiar. Disse que não compareceu ao funeral, pois o contacto era apenas como cliente do café.
FF, afirmou ser amiga da AA, dizendo que a conhece da “rua”, ou concretamente que explorava o café da rua onde reside, afirmando que afinal era cliente do café, mas afirmando que a AA e o falecido viviam juntos em “união de facto”. Nunca foi visita de casa, apenas aludiu que a situação de casal era afirmada por estes, crê que a AA e o falecido estiveram cerca de dois anos a explorar o café, mas por esclarecimento do mandatário da A. não conseguiu precisar em que baseia tal período temporal, acabando por dizer que o café teve vários trespasses. Chegou a ver o filho do falecido no café, apenas os conhece efectivamente do estabelecimento explorado por ambos. Aludiu que, entretanto, o Sr. CC começou a ter a saúde mais debilitada e era acompanhado pela ré AA, esta teve de se ausentar por motivos pessoais, deslocando-se ao Brasil, que coincidiu com a altura em que o Sr. CC acabou por falecer. Nada soube precisar quanto a divisão de despesas ou de que forma viviam, pois nunca visitou a casa, nem era amiga de casa, apenas cliente de café. Foi peremptória em afirmar que viviam “em união de facto” e que tal ocorria há cerca de “dois anos”, mas sem indicar em concreto de onde retira tal conclusão, dizendo que a ré e o falecido assim se intitulavam no café.
GG, amiga da ré AA, cliente também do café, foi dizendo que mora num prédio junto de tal estabelecimento, afirmou que ambos eram donos, intitulando-se marido e mulher e dizendo que viviam juntos, indo juntos ao supermercado e idas ao médico. Afirmou que visitou a casa, que tinha apenas um quarto, juntos apenas “do café, conversa do café”, nem sequer eram amigos nas redes sociais, passou a ser apenas da AA depois do falecimento de CC, aliás, disse que visitou a casa da AA, mas numa outra casa após o falecimento do Sr. CC. Referiu que o café era explorado pela ré e o falecido desde 2016, mas sem aludir porque motivo situa a exploração nessa data.
HH, filho da ré AA, afirmou que passou a viver em Portugal em Julho de 2018, sendo que o Sr. CC era o “marido da minha mãe”, já o conhecia, pois viviam juntos, mas não se recorda a data, dizendo “há uns dois/três anos”. Afirmou que em 2018 chegaram a mudar de andar no mesmo prédio, do 6º para o 2º. Não conseguiu precisar quando é que começaram a explorar o café, a sua mãe deslocou-se para o Brasil, “para resolver documentos”. Conheceu a irmã do Sr. CC, mas apenas a viu no hospital.
Como resulta claro dos depoimentos prestados, a comprovação da comunhão de mesa, leito e habitação, não resulta totalmente e de forma clara dos mesmos. Pois nenhuma das testemunhas, além do filho da ré, era visita de casa, porém, apresentando-se a ré e o falecido como marido e mulher e das fotos juntas, cremos que poderemos considerar tal vivência como marido e mulher, comprovado igualmente pelo depoimento do filho da ré e essencialmente pelo depoimento da irmã do falecido. Pois, as demais testemunhas eram apenas clientes do café, informando apenas como a ré AA e o falecido se apresentavam socialmente, mas sem que consigam afirmar com certeza a forma como viviam. Todavia, a dúvida já surge quanto ao tempo em que tal convivência ocorreu até ao falecimento de CC, sendo irrelevante a consideração da ida da ré AA para o Brasil, pois esta ida foi apenas momentânea, motivada por razões de ordem pessoal, mas com o intuito de regresso, inexistindo com essa ida a quebra no relacionamento havido entre a própria e o falecido. No entanto, dúvidas já surgem sobre o prazo ad quem, ou seja, o começo da convivência como marido e mulher entre a ré AA e o falecido, sem prejuízo da existência de um relacionamento amoroso prévio.
Como resulta evidente, nenhuma das testemunhas conseguiu circunstanciar tal período temporal, nem sequer o filho da ré, o qual, aliás, passou a viver em Portugal na habitação do “casal”, mas apenas em Julho de 2018, dizendo que já estariam juntos mas sem indicar desde quando, ou pelo menos indicar como explicaria o período temporal de tal relacionamento, nada tendo referido. Nada releva a convocação “certeira”, por forma a preencher a estatuição legal, da testemunha GG, afirmando apenas que foi em 2016, tentando explicar que em 2018 já o Sr. CC ficou doente, e que crê que já estariam há dois anos a explorar o café. Todas as demais testemunhas, clientes do café, em momento algum situam tal em 2016, dizendo que foi mais ou menos há 4 anos, desde a data do depoimento, nunca há sete/oito anos como ocorreria se tal se situasse em 2016.
Tal poderia ficar esclarecido pelo teor da documentação junta, mas esta não é de molde a situar o começo do relacionamento como sendo de comunhão de mesa, cama e habitação, em 2016. Senão vejamos.
A Autora juntou como primeiros documentos com o seu articulado, cópia de mensagens recebidas, alegadamente pela própria, no seu telemóvel, relativas a marcações de consultas médicas de CC. Tais marcações reportam-se às seguintes datas: 9/10/2018, 22/10/2018, 23/10/2018 e uma de 4/11/2019, sendo que nesta data já CC teria falecido. Logo, nenhuma se situa em 2016 ou 2017. Juntou a ré fotos, onde aparece juntamente com o aludido CC, em situações que indicia um relacionamento amoroso com o mesmo, porém, tais fotos não estão datadas, nem nenhuma testemunha aludiu a uma qualquer data. Na última foto aparece um bolo de aniversário, onde consta o “1º aniversário do ...”, nome do estabelecimento explorado por esta, juntamente com CC, conforme foi referido pelas testemunhas e resulta do ponto 9.. Mas não foi junto qualquer bolo comemorativo de outros aniversários do mesmo “...”, o que mais nos leva a considerar que apenas existiu essa comemoração, e muito provavelmente esta se situou em 2018, tendo a exploração sido iniciada em 2017, dado que CC faleceu no dia 1 de Fevereiro de 2019. Por outro lado, foram juntos recibos e relatórios médicos do falecido, situados entre Janeiro de 2018 a Novembro do mesmo ano, sempre na morada indicada como sendo igualmente a morada da ré AA, como sendo a ..., mas sendo de Janeiro a Julho como sendo o 6º C e de Outubro e Novembro o 2º E, última morada do falecido. Sendo que tal mudança de fracção no mesmo prédio foi esclarecida pelo filho da ré, dizendo que passou a residir com o casal em Julho de 2018, inicialmente no 6º C e depois no 2º E, do mesmo prédio. A par desta alteração de fracção, tais documentos também só situam a residência do falecido naquele local a partir de 2017/2018 e não em data anterior.
Juntou ainda a ré cópia do registo central do contribuinte relativo à própria e não igualmente de CC, mas dos documentos juntos resulta que o domicilio para efeitos fiscais da ré, a 21/12/2017, se situava na referida morada no nº 6º C, e a ré alterou tal domicílio a 6/11/2018, para o 2º E. Foi ainda junto um atestado da junta de freguesia de ..., mas onde se atesta a morada apenas da ré naquela freguesia, no 6º C, em Julho de 2017, mas não em 2016. Por fim, juntou cópias de facturas enviadas para a mesma morada, mas correspondente ao 6º C, uma de Setembro de 2017 e outra de Setembro de 2018, foi ainda junta uma outra já de 2020, mas cuja morada corresponderá ao estabelecimento. Da junção de tal documentação resulta evidente que a ré logo que proceda à alteração de morada, fá-lo junto da autoridade tributária, como acontece quando mudou de fracção no mesmo edifício, pelo que não resulta dos autos que a ré juntamente com o falecido, residissem juntos fora do prédio em causa, que fica situado próximo do estabelecimento comercial explorado por ambos. A maioria das testemunhas ouvidas, o conhecimento relativamente ao relacionamento da ré com o beneficiário da A. advém do facto de serem clientes do café. Por outro lado, nem a irmã do falecido, nem o filho da ré referiram que o casal tenha vivido numa outra morada, referindo apenas esta. Donde, apenas resulta da prova que a ré e o falecido passaram a residir juntos em meados ou pelo menos em Julho de 2017, por ausência de prova de data anterior, frise-se, competindo a mesma à ré, prova essa que além dos requisitos da união de facto, que esta tivesse uma data anterior de convivência como se marido e mulher se tratasse.
Na motivação ao ponto 6. fundamenta o juiz a quo que: “Ainda que as testemunhas possam situar o conhecimento que têm da relação entre a 2.ª Ré e o falecido CC a 31.12.2016 (dois anos anteriores ao ano de 2018, sem que tenham situado em que período do ano de 2018 fazem recuar os dois anos de relação, mas ditando os documentos médicos que nessa data CC e encontrava num estado de doença grave e situemos o conhecimento das testemunhas a 31.12.2018), temos documentos médicos dirigidos para a morada sita na R. ... referindo um Pneumonia – internamento 6/2017/ e situando todas as testemunhas que conheciam ao falecido do café que o conheceram ainda de boa saúde torna-se credível que em 31.12.2016 que o CC e a 2.ª Ré vivessem juntos em casa cujos contratos se encontravam em nome da 2.ª Ré e se apresentassem no café como se marido e mulher fossem.”.
Não podemos acompanhar tal raciocínio no tocante à data, nada nos permite concluir que vivessem juntos na mesma morada, em 31/12/2016, nem tal resulta dos depoimentos prestados, nem sequer da documentação nos termos sobreditos. No entanto, também não resulta a prova dos factos contidos no ponto 6. conforme o proposto pela ré, mas sim a alteração dos factos de forma a conter a data de 2017 que resulta da documentação, ou seja, em meados desse ano, e não em 2016, e muito menos em 31/12/2016, data que não resulta manifestamente de qualquer prova. Com efeito, da prova resulta que na data do falecimento já o casal residia no 2º E do mesmo prédio, e não no 6ºC, bem como a circunstância de a ré se ter ausentado para o Brasil, mas apenas em férias ou momentaneamente. Destarte, da análise da prova resulta a seguinte redacção quanto ao ponto 6.:
6. O falecido (beneficiário) e a 2ª Ré, entre meados de 2017 até data do seu falecimento, estavam a viver e a partilhar leito, mesa e habitação, na ....
Face a tal alteração é igualmente de manter os pontos 8. e 10., da conjugação da prova produzida nos termos sobreditos resulta a prova de tais factos, ainda que correlacionado com o ora dado como demonstrado.
Procede, assim, parcialmente a impugnação dos factos requerida em sede de recurso pela Autora.
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III. O Direito:
Ainda que os factos a subsumir ao direito sejam diferenciados dos considerados pelo Tribunal a quo, haverá que considerar primeiramente a nulidade da sentença apontada pela recorrente. Da nulidade da sentença
Começa a recorrente por enunciar a nulidade da sentença, dizendo que tratando-se de uma ação de simples apreciação negativa, ao julgar a acção procedente, deveria o juiz a quo julgar não reconhecer a união de facto em relação às duas Rés e não apenas com uma, pois “concluindo da forma como concluiu, deveria, sim, julgar a acção parcialmente procedente, pelo que a sentença é nula, nos termos do art.º 615º, n.º 1, al. c) do Código de Processo Civil.”.
Na tentativa de se lograr suprir tal nulidade foram os autos remetidos à 1ª instância, mas nesta apenas se alterou a indicação de “procedente” para “parcialmente procedente”. Entendemos, contudo, que a nulidade da sentença ocorre pela condenação inserta no dispositivo da sentença, face ao fim desta acção e os pedidos formulados nos autos, saliente-se, de apreciação negativa apenas pela Autora, inexistindo pedido reconvencional formulado pela ré/constestante, ora recorrida.
Importa, ter presente que a nulidade da sentença além do carácter taxativo do elenco previsto no artº 615º do Código de Processo Civil, tais nulidade são de carácter formal, tendo sempre presente que a simples discordância quanto ao decidido não integra necessariamente qualquer nulidade prevista no artº 615º, do CPC, tal como se alude no Ac. do STJ de 18.2.2021 (Proc. nº 1695/17.1T8PDL-A.L2.S1, in www.dgsi.pt) o “ regime das nulidades destina-se apenas a remover aspectos de ordem formal que inquinem a decisão, não sendo adequado para manifestar discordância e pugnar pela alteração do decidido”.
Dir-se-á que a arguição de nulidades destina-se apenas a sanar vícios de ordem formal que eventualmente inquinem a decisão, não podendo servir para as partes manifestarem discordâncias e pugnarem pela alteração do sentido decisório a seu favor, pelo que os vícios do artº 615º nº1, do CPC, são meros vícios formais, relacionados com a infração das regras que disciplinam a elaboração da sentença e respeitantes ao modo como o juiz exerceu a sua actividade, ditando a anulação da decisão por ser formalmente irregular, pelo que não estará em causa o erro de julgamento, sendo este último um erro de carácter substantivo e que tem lugar quando na decisão proferida a lei é mal aplicada ou há um erro quanto à questão de facto e/ou de direito apreciada.
No caso, convoca o recorrente a nulidade com fundamento no disposto na alínea c) do artº 615º, do CPC, normativo este que reza que é nula a sentença quando os seus “fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível”.
No que concerne à invocada nulidade, ou seja, a oposição entre os fundamentos e a decisão que determina a nulidade da decisão, consubstancia um vício real de raciocínio do julgador que se traduz no facto de a fundamentação (i.e. as premissas do silogismo judiciário) se mostrar incongruente com a decisão (conclusão) que dela deve logicamente decorrer. No que concerne à ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível, a Doutrina considera ser obscura uma sentença/acórdão quando esta for ininteligível, isto é, não compreensível quanto à sua explanação ou fundamentação, ou ambígua, ou seja, quando o seu sentido não for claro e certo. Ensinava o Prof. Alberto dos Reis, “(..) A sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível: é ambígua quando nalguma passagem se preste a interpretações diferentes. Num caso não se sabe o que o juiz quis dizer; no outro hesita-se entre dois sentidos diferentes e porventura opostos. É evidente que, em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade. Se determinado passo é susceptível de duas interpretações diversas, não se sabe, ao certo, qual o pensamento do juiz.” ( in Código de Processo Civil Anotado, Vol-V, Coimbra1984, pág. 151 em anotação ao art. 670º do Código de 1939).
Dito ainda de uma outra forma, e como ensinam Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora (In Manual de Processo Civil, 1984, Coimbra editora, pág. 671), na alínea c), do nº1, do pretérito artº 668º do CPC, a lei refere-se à contradição real entre os fundamentos e a decisão e não a hipóteses de contradição aparente, resultantes de simples erro material, seja na fundamentação, seja na decisão, logo, “há um vício real no raciocínio do julgador ( e não um simples lapsus calami do autor da sentença ): a fundamentação aponta num sentido ; a decisão segue caminho oposto ou, pelo menos, direcção diferente”.
A sentença ao colocar como premissa a “procedência”, quando decidiu pela afirmação do direito que a 2ª ré se arrogava, logo, julgando improcedente um dos pedidos da Autora, frise-se, de simples apreciação negativa, não se limitou a errar na premissa, a qual deveria ser “parcialmente procedente”, mas sim a decidir o que não foi peticionado nos autos, determinando quer a ambiguidade da decisão, quer ainda uma condenação além do pedido ( cf. artº 615º alínea e) do Código de Processo Civil).
Na base do processo civil está sempre um conflito de interesses, mas o litígio resulta da pretensão formulada em juízo, independentemente de ser contestada ou de o réu se recusar a satisfazê-la. O pedido do autor, conformando o objecto do processo, condiciona o conteúdo da decisão de mérito, com que o tribunal lhe responderá. O juiz, na sentença, deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, não podendo ocupar-se de outras, e não pode condenar em quantidade superior ou em objecto diverso do que se pedir, sob pena de nulidade - artigos 608.º, n.º 2, 609.º, n.º 1, e 615.º, n.º 1, alíneas d) e e).
As acções caracterizam-se igualmente pelo seu fim, tal como se encontra previsto no artº 10º do Código de Processo Civil, como alude Miguel Teixeira de Sousa em anotação a tal preceito ( in CPC ONLINE, CPC - LIVRO I, blog do IPPC): “ O n.º 1 estabelece que, quanto ao fim (isto é, quanto à tutela pretendida pelo demandante), as acções processuais civis podem ser acções declarativas ou executivas. A distinção traça-se, grosso modo, da seguinte forma: as acções declarativas são acções que visam o reconhecimento de um direito; as acções executivas são acções que têm por fim assegurar a satisfação de um direito. (b) Segundo o disposto no n.º 2, as acções declarativas podem ser, de acordo com o seu fim, acções de simples apreciação, acções de condenação e acções constitutivas (Kisch, Beiträge zur Urteilslehre (1903)).(…). 6. (a) As acções de simples apreciação visam obter unicamente a declaração da existência ou da inexistência de um direito ou de um facto (n.º 3, al. a)) (Wach, FG Windscheid (1888), 76). As acções de simples apreciação podem ser positivas (se visam a declaração da existência de um direito ou de um facto) ou negativas (se se destinam à declaração da inexistência de um direito ou de um facto). (b) As acções de simples apreciação são admissíveis se houver uma incerteza objectiva sobre o direito ou o facto: nas acções de simples apreciação positiva, a incerteza é criada pela negação pelo demandado do direito ou do facto; nas acções de apreciação negativa, a incerteza é originada pela afirmação pelo demandado do direito ou do facto. (c) A incerteza objectiva assegura o interesse processual das partes, porque justifica a utilidade da tutela jurídica. (d) Não é admissível a acção de simples apreciação em que se visa obter a declaração da existência ou inexistência de um crédito ou de uma obrigação de uma das partes perante um terceiro (Zöller/Greger (2020), § 256, 3b). Esta acção só seria admissível com a presença do terceiro em juízo, mas não há nenhuma justificação para demandar um terceiro que é completamente estranho ao litígio entre as partes.”.
Donde, nas ações de simples apreciação visa-se obter a declaração da existência ou inexistência de um direito ou de um facto, porém, estas não exigem, embora também não excluam, a efectiva e actual violação ou lesão do direito.
A classificação de uma acção como de simples apreciação positiva ou negativa depende do pedido, ou seja, da providência requerida pelo autor; na acção de simples apreciação não se exige a prestação de uma coisa ou de um facto, não podendo a acção ser título executivo quanto ao objecto da acção.
A causa de pedir nas acções de simples apreciação negativa consubstancia-se na inexistência do direito e nos factos materiais pretensamente cometidos pelo demandado que determinaram o estado de incerteza (cfr. Antunes Varela, in “Manual de Processo Civil”, 2.ª edição, pág. 187, e Abrantes Geraldes, in “Temas da Reforma do Processo Civil”, I Vol., 2.ª ed., 1999, pág. 204).
A questão que se coloca é saber se perante uma acção de simples apreciação negativa, como é o caso, estará subjacente à improcedência da acção a afirmação do direito do réu. Sobre tal questão duas posições têm surgido na doutrina e na jurisprudência. Na primeira defende-se que a acção de simples apreciação (positiva ou negativa) destina-se a definir uma situação jurídica tornada incerta, pelo que não sendo admissível uma situação de non liquet, opera-se uma autêntica inversão do ónus da prova, pois que, nestas acções, caberá aos demandados provar que o seu direito existe (não é ao demandante que incumbe provar que não existe). Mas, se assim é, dessa tarefa probatória resultará, não só a improcedência da acção de simples apreciação negativa, mas, também, a procedência da pretensão do réu, sem que haja necessidade de dedução de reconvenção. Tal é a posição assumida pela maioria da jurisprudência, nomeadamente no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 24/10/2006 ( proc. nº06A1980, endereço da net www.dgsi.pt, de que fazem parte todas as citações jurisprudências, sem indicação de sitio diferenciado), com o seguinte sumário, na parte relevante: “V - Um non liquet probatório nas ações de simples apreciação negativa terá sempre que resolver-se em desfavor do réu. Já, pelo contrário, a improcedência deste tipo de ação implica, sem margem para dúvidas, o reconhecimento da existência do direito que o réu se arroga, que fica definitivamente estabelecida, perante o autor. VI - Por isso mesmo, fica prejudicada a proposição pelo réu de ulterior ação de simples apreciação positiva (arts. 494.º, al. i), 497.º, n.ºs 1 e 2, e 498.º, do CPC) e se revela redundante a dedução de reconvenção, a que não pode atribuir-se mais valia alguma em relação à simples procedência da defesa deduzida em ação de simples apreciação negativa, não passando, nesse caso, de puro reverso da pretensão do autor, que se limita a pedir a declaração da inexistência de direito que o réu invoca.
Igual entendimento foi seguido no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 21/3/2013, (proc. nº 2173/07), do mesmo Tribunal Superior em Acórdão proferido a 25/2/2014 (proc. nº 251/09), bem como no Acórdão de 29/04/2014 ( proc. nº251/09).
Tais decisões consideram que constituindo a acção de simples apreciação negativa a negação do direito, não terá qualquer utilidade o pedido reconvencional que, contido nos limites da acção, vise o reconhecimento do direito da ré, uma vez que este já será a consequência normal e necessária da improcedência da acção (no mesmo sentido ainda, vejam-se ainda os Acórdãos do STJ de 30/01/2003 – proc. nº 02B3949, e de 19/12/2018, proc. nº 742/16).
A segunda posição jurisprudencial, entende que, não atentando em todas as nuances que este tipo de acções coloca, haverá que conjugar a questão com o princípio do dispositivo e com os limites da condenação.
Neste sentido se pronunciou o STJ, no Acórdão de 23/1/2001 (proc. nº A3364, in www.colectaneadejurisprudencia.com) referindo que: «Há duas coisas diferentes a distinguir:
a) alegar, na contestação, factos donde resulta a existência do direito que o réu se arroga é uma coisa ("matéria de contestação por impugnação, portanto contestação-defesa, tendente à absolvição do réu do pedido reconvencional");
b) alegar na contestação esse facto, para assim satisfazer o ónus probatório necessário à defesa, mas também pedir, com base nos mesmos factos, o reconhecimento pelo tribunal do direito deles decorrente é outra coisa ("matéria não só de contestação-defesa, tendente à absolvição do réu do pedido reconvencional, como também de contestação-reconvenção, tendente à condenação do autor no pedido reconvencional").
Em sentido convergente com esta corrente haverá que trazer à colação o decidido neste Tribunal da Relação de Lisboa, em Acórdão de 8/10/2024 (proc. nº 7906/23.7T8LSB-A.L1-7), no qual se sumariou que: II. A maioria da jurisprudência vem entendendo que, na ação de simples apreciação negativa, a formulação de pedido reconvencional é dispensável por ser redundante. III. Todavia, não se acompanha essa jurisprudência, entendendo-se que é de admitir a formulação de pedido reconvencional porquanto: numa ação de simples apreciação negativa, a contestação pode ter um âmbito mais restrito visando, apenas, a improcedência da ação ou, pelo contrário, um âmbito mais abrangente visando também o reconhecimento definitivo do direito a que o réu se arroga; o tribunal não pode declarar a existência de um direito sem que seja formulado pedido expresso nesse sentido (principio do pedido; artigo 3º, nº1, do Código de Processo Civil ); o tribunal não pode condenar em objeto diverso do pedido (Artigo 609º, nº1, do Código de Processo Civil ); a atribuição do ónus da prova ao réu não vale como uma reconvenção “oculta”; uma decisão de improcedência vale apenas como decisão negativa, não podendo ser convolada numa decisão positiva, ou seja, uma decisão de improcedência contra uma parte não pode transformar-se numa decisão de procedência a favor de outra parte.
Com efeito, alude-se igualmente em tal aresto que “(…)o que o art.º 343º do CC estabelece é apenas a inversão do ónus da prova, num caso especial em que se reconhece que ao autor (parte em princípio onerada com ele: art.º 342º, nº 1, do CC) é particularmente difícil fazer a prova, pelo que, numa ação de declaração negativa, como é a presente ação negatória de servidão, ao autor basta fazer a prova da propriedade, cabendo ao réu fazer a prova da servidão (Pires de Lima e Antunes Varela, "Código Civil Anotado", vol. I, 4ª ed., pág. 307, na esteira, aliás, de Andrade, ob. cit., pág. 190).
Ora, as regras do ónus da prova apenas repartem este ónus, em termos de se saber como decidir num caso de non liquet probatório: as regras do ónus da prova repartem esse ónus, "mas decerto que dentro do princípio do pedido", porque o tribunal não pode decidir sem pedido nem contra o pedido.
No caso de ação de simples apreciação ou declaração negativa, o réu fica com o ónus da prova dos factos em que assenta o direito que se arroga, "não para que esse direito lhe seja reconhecido e o autor condenado a respeitá-lo, mas para que não seja declarada a sua inexistência, pela procedência da ação". Para que o direito do réu lhe seja reconhecido e a outra parte seja "condenada" a respeitá-lo é necessário que o titular do direito o "peça" diretamente, através de uma ação de declaração positiva, ou através de um pedido reconvencional, em ação de declaração negativa contra ele proposta.
Só assim se compagina a inversão do ónus probatório nas ações de declaração negativa com o princípio do pedido, que rege todas as ações: art.º 3º, nº 1, do CPC.
Ora, como nas ações de declaração negativa o que está pedido é o reconhecimento de que o direito "não existe", nunca nela se poderá concluir que o direito "existe", visto que o tribunal não pode condenar em objeto diverso do pedido: art.º 661º, nº 1, do CPC.
Por isso, para se poder, numa ação destas, reconhecer que o direito (do réu) existe e condenar (o autor) nesse reconhecimento, é preciso que esteja formulado o pedido correspondente, que, pela natureza das coisas, só se pode formular em reconvenção.”.
Igual entendimento tem sido explanado por Miguel Teixeira de Sousa ( in blog do IPPC, nomeadamente sob o tema “Acções de apreciação negativa e ónus da prova”, de 18/03/2014, mas igualmente em anotação critica ao Ac. da RP 14/5/2020- proc. nº 2134/18.6T8AVR-A.P1), escrevendo: “1. O art. 343.º, n.º 1, CC estabelece que, nas acções de apreciação ou declaração negativa, compete ao réu a prova dos factos constitutivos do direito que se arroga. Supõe-se que se pode dizer que, na jurisprudência, é maioritária a orientação segundo a qual este preceito implica uma inversão do ónus da prova: nas acções de simples apreciação negativa, não cabe ao autor alegar e provar, pela negativa, que o direito ou facto não existe, mas compete ao réu, que vinha arrogando extrajudicialmente a existência desse direito ou facto, alegar e provar pela positiva, tal existência (RC 12/6/2007; RC 19/1/2010; RC 22/3/2011; RL 14/4/2001; RC 24/5/2011; RC 8/11/2011; RC 11/9/2012; RC 16/10/2012 ; RG 4/12/2012; RL 4/7/2013). Supõe-se também que é a atribuição do ónus da prova ao réu que justifica a "fuga para a acção de apreciação negativa" que se detecta em alguma jurisprudência.(…) 3. Do exposto pode concluir-se que o STJ considera que a atribuição ao réu, nos temos do art. 343.º, n.º 1, CC, do ónus da prova dos factos constitutivos torna inútil a dedução de um pedido reconvencional por esse demandado, dado que o que essa parte vai obter através da prova daqueles factos é o mesmo que poderia conseguir através da procedência desse pedido reconvencional. Quer isto dizer que o STJ entende que a aplicação do art. 343.º, n.º 1, CC conduz a uma consequência que é equivalente à da procedência de um pedido reconvencional. Repare-se que este argumento reversível: se a aplicação do art. 343.º, n.º 1, CC provoca um efeito equivalente ao da procedência de um pedido reconvencional, então cabe perguntar por que razão aquele preceito não é aplicável apenas quando tenha sido deduzido um pedido reconvencional pelo demandado numa acção de apreciação negativa.
Os parâmetros processuais habituais orientam-se pela necessidade de utilizar um meio processual (contestação, alegação, apresentação de prova, interposição de recurso, etc.) para obter a produção um efeito em juízo: sem meio admissível e adequado não há a produção do efeito pretendido. Sendo assim, o STJ só pode impedir o réu de uma acção de apreciação negativa de formular um pedido reconvencional se pressupuser que a atribuição do ónus da prova do facto constitutivo ao réu vale, ela mesma, como uma reconvenção “oculta”. É porque a atribuição desse ónus coloca o réu na posição de reconvinte que esta parte não pode deduzir explicitamente um pedido reconvencional: sem esta coincidência, não se perceberia por que razão aquela atribuição impederia este pedido. Dito de outra forma: o STJ entende que, mesmo sem a dedução explícita deste pedido, o réu torna-se necessariamente reconvinte quando lhe é imposta, não a contraprova ou a prova do contrário dos factos alegados pelo autor, mas a prova de factos constitutivos que também lhe incumbe alegar.
Acresce ainda que esta construção leva a concluir que a improcedência da acção de apreciação negativa só pode ser conseguida através da procedência de uma “contra-acção” baseada num facto constitutivo. Quer dizer: ao impor-se ao réu a prova do facto constitutivo como forma de obstar à procedência da acção de apreciação negativa, não se permite que esta parte se limite a impugnar os factos impeditivos, modificativos ou extintivos alegados pelo autor e procure obter apenas a improcedência da acção com base na não veracidade desses factos.
Esta verificação tem consequências – talvez inesperadas – que devem ser salientadas. Se a única forma de o réu de uma acção de apreciação negativa obter a improcedência da acção é através da prova do facto constitutivo do direito de que se arroga, então a causa de pedir alegada pelo autor não tem nenhuma relevância, porque, mesmo que o réu impugne os factos alegados pelo autor, ainda assim aquela parte só consegue obter a improcedência da causa se alegar e provar o facto constitutivo do direito de que alega ser titular. Numa palavra, a ser assim, o regime decalca na actualidade as acções de jactância medievais, apoiadas nas fontes romanas (provocatio ex lege diffamari; provocatio ex lege si contendat) (cf. o trecho de Chiovenda no n.º 4).
Pelo exposto, não parece que possa ser este o regime legal e, por isso, não parece que o art. 343.º, n.º 1, CC deva ser o único preceito a regular a distribuição do ónus da prova numa acção de apreciação negativa. A solução reside antes em entender que:
i) O autor tem o ónus de alegar – e, em caso de impugnação pelo réu, provar – os factos impeditivos, modificativos ou extintivos que constituem a causa de pedir do seu pedido de declaração da inexistência de um direito ou facto;
ii) O réu pode limitar-se a impugnar os factos alegados pelo autor e a procurar obter (apenas) a improcedência da causa com base na contraprova ou na prova do contrário daqueles factos;
iii) O réu pode ainda, além de procurar obter a improcedência da causa, pretender obter o reconhecimento do seu direito; nesta hipótese, deve deduzir o respectivo pedido reconvencional, aplicando-se então (mas apenas então) o disposto no art. 343.º, n.º 1, CC.
Porque o conhecimento dos “clássicos” é sempre importante (até porque, não raramente, se encontra neles o que as gerações seguintes esqueceram), tem interesse conhecer o que, a propósito do ónus da prova nas acções de simples apreciação, escreveu Chiovenda: “Também no que respeita ao ónus da prova, a acção de simples apreciação não difere [...] de qualquer outra acção; o autor é aquele que pede a actuação da lei; e o ónus da prova pertence-lhe, de acordo com as regras gerais. Isto é mais claro na acção de apreciação positiva. Mas é igualmente verdade na negativa: nesta última, ele deverá provar a inexistência de uma vontade da lei, sem que se possa distinguir, como alguém faz, entre o caso em que se negue que um direito jamais tenha nascido, no qual a prova dos factos constitutivos incumbirá ao réu, e o caso no qual se negue que exista actualmente, no qual o autor da declaração deverá provar os factos extintivos. Neste ponto deve acentuar-se a diferença fundamental entre a acção de apreciação e os juízos de jactância. E reincide-se em todos os inconvenientes da coacção a agir (nemo invitus agere cogatur), quando se dá ao autor da acção de apreciação negativa o tratamento de que gozaria se fosse réu. É suficiente benefício, para o autor, poder obter do processo, por sua própria iniciativa, a certeza jurídica, sem que seja preciso agravar a posição do réu, constrangendo-o a uma prova para a qual forçosamente não está preparado” (N. Dig. It. II (1937), 131 s.).”.
O mesmo professor, em anotação crítica ao Acórdão da Relação do Porto (de14/5/2020- proc. nº 2134/18.6T8AVR-A.P1, supra citado), em publicação datada de 3/12/2020, volta a reafirmar e a argumentar: “Uma das regras fundamentais do processo civil é a de que uma decisão de improcedência vale apenas como decisão negativa e, por isso, nunca pode ser transformada numa decisão positiva. Se, por exemplo, o autor pede a declaração de que é credor ou é proprietário e a ação é julgada improcedente, é claro que só fica julgado que o autor não é credor ou proprietário. Nada fica definido de positivo para o réu, desde logo porque não teria qualquer sentido que, pelo facto de o autor não ser credor ou proprietário, o réu fosse credor ou proprietário (!).
Esta regra tem de se manter nas ações de apreciação negativa. Sendo assim, uma decisão de improcedência de uma ação de apreciação negativa só significa que não é declarado que o réu não é credor ou não é proprietário, não podendo ser transformada numa decisão que reconhece o réu como credor ou como proprietário.
Todas estas soluções assentam na seguinte circunstância: a parte onerada tem de provar os factos que alega que se tenham tornado controvertidos; se a parte não fizer prova desses factos, o tribunal profere uma decisão contra essa parte (art.º 414.º CPC); ora, uma decisão contra uma parte não se pode transformar numa decisão a favor da outra parte ou, mais em concreto, uma decisão de improcedência contra uma parte não se pode transformar numa decisão de procedência a favor da outra parte. Por isso, uma decisão que não dá à parte onerada o que ela pede (reconhecimento da propriedade, por exemplo) não pode transformar-se em dar à parte contrária o que ela não pede (ou que só pode obter através da formulação de um pedido reconvencional). Em suma: uma decisão de improcedência só pode ser uma decisão que obsta ao efeito que o autor pede, nunca uma decisão que cria o efeito contrário do que o autor pede.”.
Tal posição, na doutrina foi ainda assumida por Paulo Pimenta (in Processo Civil Declarativo, 2ª ed., p. 43), ao afirmar que: “A acção de simples apreciação negativa apenas improcede se o réu demonstrar os factos constitutivos do seu direito e o autor não lhe opuser com sucesso factos impeditivos ou extintivos. Nesse caso, o tribunal limita-se a não declarar a inexistência do direito (era essa a pretensão do autor). Por outro lado, é de notar que o tribunal só declarará na sentença o direito que o réu logrou demonstrar na hipótese de este formular pedido expresso nesse sentido, já em via reconvencional (art.º 266º).”.
Do exposto e inexistindo pedido reconvencional formulado por nenhuma das rés, não poderia o Tribunal a quo dar como “procedente” o pedido da ré, ou parcialmente procedente o pedido da Autora, ao considerar “não reconhecida a vivência em situação de união de facto” entre a 1ª Ré e o beneficiário” e “julgar reconhecida a vivência em situação de união de facto” entre a 2ª Ré a e o mesmo beneficiário, bastando neste caso ser suficiente julgar improcedente o pedido da Autora em relação à 2ª ré. Pelo que seguindo tal corrente a nulidade ocorreria por violação do princípio do dispositivo ou condenação ultra petitum.
Porém, tal nulidade poderia ser sanada neste âmbito recursório – cf. artº 665º do Código de Processo Civil- alterando-se o dispositivo em conformidade, considerando o pedido da Autora improcedente em relação à 2ª ré, sem afirmação do direito, dada a inexistência de pedido reconvencional.
No entanto, a questão que se coloca é saber se face à subsunção dos factos ao direito, se se verifica ou não o direito que a 2ª ré se arroga perante a Autora. O que nos leva a abordar: Da verificação dos requisitos da união de facto exigidos para a atribuição da pensão de sobrevivência e do subsídio por morte
A Lei 7/2001, de 11/05 alterada pela Lei 23/2010 de 30/08 e mais recentemente pela Lei n.º 71/2018, de 31/12 actualmente define a união de facto ao estabelecer no seu artigo 1.º, n.º 2 que “a união de facto é a situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos”.
No caso dos autos, o A. foi confrontado com duas pretensões relativas ao mesmo beneficiário apresentadas por duas diferentes mulheres, cada uma a invocar a existência de uma situação de união de facto, tendo instaurado a presente acção para dirimir as dúvidas que a situação suscita.
A união de facto constitui uma realidade sociológica cada vez mais frequente sustentada numa multiplicidade de factores ou de circunstâncias de ordem objectiva e subjectiva, à qual o direito vem atribuindo paulatinamente certos efeitos jurídicos. Não prosseguindo o legislador o objectivo de estabelecer uma total equiparação da união de facto ao casamento, a opção passa pelo reconhecimento de certos direitos ou consequências jurídicas, como ocorre relativamente ao recebimento de prestações da segurança social por morte do outro elemento da união de facto que seja beneficiário. Refere Rossana Martinho Cruz (in “União de facto: a pertinência do registo, a problemática da separação de pessoas e bens e a contagem do prazo de convivência”, em Casamento e União de Facto: Questões da Jurisdição Civil, em www.cej.mj.pt, que: “Em Portugal, a união de facto - não raras vezes - surge inorganicamente como uma alternativa informal à conjugalidade. É essa informalidade que levanta muitas questões quando depois se concedem efeitos jurídicos a um relacionamento que existe e se mantém por um comportamento tácito das partes. Outros ordenamentos jurídicos tratam a união de facto, na sua génese e constituição, de forma distinta” (pág. 67). E acrescenta que o diploma legislativo português que enquadra a figura da união de facto (a Lei nº 7/01, de 11-5) “pressupõe que a convivência more uxorio (enquanto mera realidade de facto), por si só e sem mais, gera determinados efeitos e direitos. É certo que só poderão ser opostos pela(s) parte(s) que se queira(m) arrogar deles. Mas basta que um pretenda beneficiar dessas prerrogativas que o poderá fazer sem que o outro tenha de concordar” (pág. 68).
Como refere a mesma autora, entre nós “não existe um regime jurídico denso e vigoroso justamente porque é difícil saber onde nos devemos posicionar entre o respeito pela liberdade de viver na sombra da solenidade e, concomitantemente, não desproteger aqueles que materialmente vivem como pessoas casadas. Como tal, a preocupação tem residido em acautelar situações de crise” (ob. cit. pág. 70).
A invocação da situação de união de facto para além de dois anos antes do falecimento do outro elemento surge precisamente no âmbito das situações que o legislador procurou proteger, fazendo recair sobre quem invoca essa relação o ónus de demonstrar os factos relevantes para o efeito. Segundo Rita Lobo Xavier, (in “O “Estatuto Privado” dos Membros da União de Facto”, em RJLB, ano 2, nº 1, pág. 1539) “o conjunto de direitos e deveres reconhecidos pela lei no âmbito das relações familiares justifica-se pela importância social das funções que realizam, em regra associadas à solidariedade entre gerações, em geral, e em relação aos filhos, em especial”.
Assim, a protecção por morte dos beneficiários abrangidos pelo regime de segurança social pela atribuição da pensão de sobrevivência e do subsídio por morte está prevista no artº 3º, al. e), da Lei nº 7/01, de 11-5, e no DL nº 322/90, de 18-10. Segundo o artº 8º deste último diploma, o direito às prestações é extensivo às pessoas que vivam em união de facto, situação cuja prova é efectuada nos termos previstos pela Lei nº 7/01, com as alterações introduzidas pela Lei 23/2010 de 30 de Agosto.
Tendo em conta as alterações introduzidas pela Lei nº 23/10, de 30-8, a atribuição de tais prestações ao membro sobrevivo da união de facto basta-se com a prova da união de facto por mais de 2 anos à data do óbito do beneficiário, tendo deixado de se exigir a prova da necessidade de alimentos.
Para se poder afirmar a existência de uma união de facto juridicamente relevante importa que estejam verificados os elementos definidores previstos no artº 1º, nº 2, da Lei nº 7/01, sendo necessário que se esteja perante uma situação jurídica em que duas pessoas vivam em condições análogas às dos cônjuges há mais de 2 anos, sem que se verifique qualquer dos requisitos de exclusão enunciados no artº 2º.
O art. 2º-A regula a prova dos factos, destacando a declaração emitida pela Junta de Freguesia, elemento probatório que, em geral, é insuficiente na medida em que se limita a atestar a existência de uma determinada morada comum, facto que no caso nem sequer pôde ser totalmente valorizado, atenta a incompatibilidade decorrente de, na mesma ocasião, outra Junta de Freguesia também ter emitido, a pedido da 2ª R., uma declaração semelhante que atestava que o falecido residia, afinal, com a 1ª R. com quem foi casado.
Para que se afirme a existência de união de facto, o que seguramente deve exigir-se é que exista uma relação de comunhão conjugal manifestada exteriormente por diversos sinais, com especial destaque para a comunhão de habitação, de leito e de mesa que no caso está demonstrada em relação à 2ª ré, ora recorrida, tendo transitado em julgado a afirmação negativa de tal direito em relação à 1ª ré.
Como referem Pereira Coelho e Guilherme de Oliveira, Curso de Direito da Família, vol. I, 5ª ed., p. 56, “a circunstância de viverem como se fossem casadas cria uma aparência externa de casamento, em que terceiros podem confiar, o que explica alguns efeitos atribuídos à união de facto. Relações sexuais fortuitas, passageiras, acidentais, não configuram, pois, uma união de facto. A união de facto distingue-se igualmente do concubinato duradouro, por mais longo que este seja”.
São, aliás, estes os elementos que verdadeiramente definem uma situação de facto análoga ao casamento, realidade que, assumindo diversas denominações noutros ordenamentos jurídicos, é traduzida em geral pela “vivência em comum na forma simplificada de habitação acompanhada da existência de relações sexuais” (França Pitão, União de Facto no Direito Português, p. 25). Vivência que, como refere este autor, para ser legalmente tutelada, não deve corresponder a “uma relação fugaz, uma aventura amorosa ou encontros esporádicos”, sendo “necessário que a relação adquira contornos tais que seja ou possa ser vista, não só pelos intervenientes, mas também pelas pessoas que os rodeiam e com eles convivem como uma relação em tudo semelhante ao casamento, em que as pessoas sejam como tal vistas e tratadas” (p. 28). No mesmo sentido Geraldo da Cruz Almeida, (in “Da União de Facto – Convivência More Uxorio em Direito Internacional Privado, pp. 78 e ss.) que alude “A dificuldade está em definir o que se deve entender por viver em condições análogas às dos cônjuges e, neste aspecto, a generalidade da doutrina considera que viver em condições análogas às dos cônjuges é viver em comunhão de mesa, leito e habitação”.
A união de facto consiste, pois, numa vivência em comum em condições análogas às dos cônjuges, isto é, numa comunhão plena de vida que se traduz numa comunhão de mesa, leito e habitação, duradoura e não meramente fortuita ou concubinária.
O prazo de dois anos é condição necessária para que a união de facto previamente iniciada aceda à protecção jurídica emergente da Lei. O decurso dos dois anos faz presumir que a convivência em comum já adquiriu uma certa estabilidade, satisfazendo-se, assim, as exigências da segurança jurídica. Questiona-se se os dois anos exigidos são necessariamente de duração consecutiva, sobre tal questão Jorge Duarte Pinheiro escreve que a separação dos conviventes e posterior reconciliação acarreta nova contagem do prazo; se, pelo contrário, houve cessação da coabitação mas sem que tivesse havido o propósito de pôr fim à comunhão de habitação (v.g., por motivos profissionais), então o prazo suspende-se. ( in “O Direito da Família Contemporâneo, 3ª ed., Lisboa, AAFDL, 2012, pp. 716-717). Tal exigência de consistência temporal tem paralelo no artigo 2020.º do CC, na possibilidade conferida ao unido de facto de alimentos à herança do companheiro falecido, na sua redacção dada pela Reforma de 1977, exigia a verificação cumulativa de um conjunto de requisitos. Em primeiro lugar, o membro sobrevivo só podia exigir alimentos da herança do membro falecido se este, à data da morte, fosse solteiro, viúvo, divorciado ou separado judicialmente de pessoas e bens (a simples separação de bens não era condição suficiente). Em segundo lugar, exigia-se que a convivência tivesse durado mais de dois anos. A lei pretendia, com este requisito, afastar a concessão de alimentos ao membro sobrevivo de uma relação fugaz, efémera, atribuindo apenas o direito a alimentos àquelas uniões que, nas palavras do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 494/77, de 25 de Novembro, tivessem revelado um mínimo de durabilidade, estabilidade e aparência conjugal. O artigo 2020.º exigia, em terceiro lugar, que aquela convivência se tivesse desenvolvido em “condições análogas às dos cônjuges”, isto é, que tivesse havido comunhão de mesa, leito e habitação e não mero concubinato. Em quarto lugar, o membro sobrevivo só poderia exigir alimentos da herança do falecido quando não tivesse possibilidade de obtê-los nem do seu cônjuge ou ex-cônjuge, dos seus descendentes, ascendentes ou irmãos (alíneas a) a d) do artigo 2009.º do CC). Por último, exigia-se que o direito a alimentos fosse exercido no prazo de dois anos subsequentes à data da morte do autor da sucessão. Como vimos, a Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto, alterou o artigo 2020.º do CC, prevendo-se agora, sinteticamente, que o membro sobrevivo da união de facto tem o direito de exigir alimentos da herança do falecido (n.º 1), que este direito deve ser exercido no prazo de dois anos subsequentes à data da morte do autor da sucessão (n.º 2) e que o mesmo cessa se o membro sobrevivo contrair novo casamento, iniciar união de facto ou se tornar indigno do benefício pelo seu comportamento moral (artigo 2019.º do CC, ex vi do n.º 3 do artigo 2020.º). A reformulação do referido artigo deveu-se, sobretudo, ao facto de a sua previsão conter requisitos que já se poderiam inferir da disciplina contida na Lei n.º 7/2001, de 11 de Maio, alterada pela Lei n.º 23/2010, de 30 de Agosto. Com efeito, à luz da definição legal de união de facto oferecida pelo n.º 2 do artigo 1.º da referida Lei e em consonância com os seus artigos 3.º, alíneas e), f) e g), e 6.º, n.º 1 e 2, devemos continuar a considerar que o membro sobrevivo só tem direito a alimentos quando convivesse com o companheiro falecido há mais de dois anos em condições análogas às dos cônjuges.
Aliás a exigência temporal, a par de todas as particularidades e direitos concedidos, tem levado alguma da doutrina a considerar a natureza familiar da união de facto, pois ao exigir que o casal viva há dois anos em condições análogas às dos cônjuges para que exista uma união de facto, exige, consequentemente, que só uma relação consolidada, duradoura e estável seja classificada como tal, o que consubstancia mais um indicador por parte do legislador no sentido de tal natureza ( neste sentido Margarida Pereira in “Direito da Família”, pág. 599, apud. Mariana Filipa Lopes da Silva, na tese de mestrado “A União de Facto, o Casamento e os Direitos Sucessórios. familiar das uniões” UL-FD, 2019, onde aliás a autora expõe a discussão dogmática que ocorre na doutrina acerca da natureza da união de facto, assumindo a mesma posição que a Autora que cita).
No caso concreto, a questão coloca-se relativamente ao tempo que durou tal situação até á morte do beneficiário. Pois ainda que não haja dúvidas em considerar preenchidos os requisitos exigidos para se considere a união de facto determinante para a atribuição da pensão por morte em relação à 2ª ré, não logrou a mesma fazer prova que tal decorria há mais de dois anos.
Com efeito, está provado que o falecido e a 2ª R. mantiveram uma relação afectiva desde meados de 2017 até à data do óbito daquele, a 1/02/2019.
Destarte, para que estejamos perante uma união de facto para efeitos da aplicação das normas referidas têm de se verificar, desde logo, estes dois requisitos cumulativos, ou seja, o casal tem de viver em condições análogas às dos cônjuges há pelo menos dois anos e não se pode verificar nenhum dos impedimentos à constituição da união de facto, ou seja, só existe uma união de facto quando se verifica a existência de uma relação análoga à dos cônjuges com uma estabilidade consolidada de dois anos. Logo, para efeitos da atribuição do direito que as rés se arrogavam, o tempo de vivência, com os requisitos aludidos, entre o beneficiário e alguma das Rés deveria ser aferido à data do óbito.
Donde, demonstrado que o Beneficiário e a 2.ª Ré viveram em união de facto nos termos referidos, mas ficando por demonstrar que tal ocorreu por um período superior a dois anos, com referência à data do óbito do beneficiário, a acção de simples apreciação negativa deverá ser totalmente procedente, declarando-se julgar não reconhecida a vivencia em união de facto igualmente em relação à 2ª ré, ora recorrida.
Deste modo, o recurso procede na integra, revogando-se a decisão e julgando-se totalmente procedente a acção intentada pela Autora.
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IV. Decisão:
Por todo o exposto, Acorda-se em julgar procedente o recurso de apelação interposto pela Autora e, consequentemente, revoga-se parcialmente a decisão recorrida e decide-se:
a) Manter a decisão que julgou não reconhecida a vivência em situação de união de facto entre a Ré BB e o beneficiário CC;
b) Julgar não reconhecida a vivência em situação de união de facto entre a Ré AA e o beneficiário CC.
Custas pela 2ª ré/apelada, sem prejuízo do apoio judiciário.
Registe e notifique.
Lisboa, 10 de Abril de 2025
Gabriela de Fátima Marques
Eduardo Petersen Silva
Adeodato Brotas